segunda-feira, 24 de março de 2008

Partilha fraterna (agosto de 2007)

Fortaleza – CE, 28 de agosto de 2007.

Partilha Fraterna

Disse-lhes Jesus: “Vinde em meu seguimento e eu farei de vós pescadores de homens”
(Mc 1, 17)

Introdução

Prezados irmãos em Cristo Jesus, nestes meses em que a Igreja volta suas atenções para uma maior reflexão sobre o chamado de Deus e a uma escuta maior da Palavra de Deus, ofereço-vos também algumas pistas de reflexão que julgo necessárias para um melhor entendimento deste chamado insistente que nosso Irmão Jesus nos faz. Fatos como a censura imposta ao padre jesuíta Jon Sobrino, a V CELAM, o pronunciamento do Papa sobre a identidade católica perante as demais religiões e Igrejas e as conclusões do teólogo José Comblin, motivaram-me a partilhar convosco algumas inspirações surgidas ao longo do proceder destes fatos e declarações. Rejeitando a pretensão de obscurecer as grandes reflexões já elaboradas em torno destas, quero apenas reacender ainda mais essa chama de santa e audaciosa inquietação em que são tomadas as nossas realidades eclesial e social. Crendo no Espírito de Deus que faz novas todas as coisas, espero que este mesmo Paráclito nos mantenha fiéis ao projeto de Deus que é vida abundante para todos.


O chamado de Deus

O nosso Irmão maior e Filho de Deus, Jesus Cristo, sendo obediente ao Pai até a morte e morte de cruz, nos faz um convite: “Vem e segue-me!” Os doze por ele escolhidos não se recusaram ao convite, e seguiram a Jesus. Eles escutaram o chamado e responderam decididamente, deixando tudo e seguindo o jovem Galileu. Durante todo o seguimento tiveram dificuldades de entender o projeto de Jesus. Eram pessoas simples, pobres pescadores, sem conhecimento da lei hebraica. Jesus chamou pessoas trabalhadoras, que viviam do suor de seu rosto, alguns pais de família, dedicados a viver comumente neste mundo. Jesus chamou pessoas de sua condição. Tudo muito simples para trabalharem em um projeto de simplicidade. Um projeto simples, mas desafiador. Esse mesmo Jesus vai encorajando os discípulos, que ora entendiam o que ele falava, ora não entendiam! Viviam a pregar a Boa Nova do Reino, sem riquezas, sem apegos a nada. Viviam sendo assistidos pela Divina Providência. Os discípulos seguiam em tudo o seu Mestre. Certa vez resistiram e afirmaram que não estavam suportando mais aquelas duras palavras, mas como Jesus tinha seu jeito, tudo se ajeitava e se normalizava... Chegando ao fim de sua peregrinação terrena, ele morre na cruz, mas antes afirma que irá ressurgir ao terceiro dia. Um pouco decepcionados com a morte do Nazareno, não acreditando muito na Ressurreição, mas esperam escondidos por medo das autoridades dos judeus. Quando Jesus ressuscita aparece no meio deles e lhes deseja a paz. Diante de tanta confusão e medo, eles precisavam de paz! E depois, recebendo o sopro que sai das entranhas do Cristo, posteriormente, assistem pasmados a sua ascensão aos céus. Resta agora esperar a vinda do Espírito que os encoraja para a missão. E o Espírito desce sobre eles, e a partir deste grande momento, inicia-se a fundação do Caminho de Jesus. É aqui que surge a Igreja povo de Deus, assembléia dos chamados. Os discípulos dão continuidade à missão iniciada pelo seu Mestre.
É a isso que somos chamados: a sermos continuadores da missão de Jesus. Mas para que isso aconteça, precisamos saber qual é essa missão. O que Jesus pediu? Qual é a missão? É preciso entender o sentido da missão para depois vivenciá-la. Fazer a missão acontecer é andar no mesmo caminho que Jesus andou. Estar com ele onde ele estiver. Basta lermos as instruções que ele deu aos discípulos e descobriremos a nossa missão. Sintetizando para facilitar a compreensão, vejamos o que nos relata Lucas, fazendo Jesus ler na sinagoga de Nazaré onde fora criado, repetindo o que já dizia o profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18 – 19). Este trecho revela a nossa missão. Vejamos os verbos: evangelizar, proclamar, recuperar e restituir. Se fugirmos disso, não estamos sendo fiéis a Jesus. Lucas coloca este trecho no início de seu evangelho. A partir de nosso batismo todos somos consagrados pelo Espírito do Senhor. Somos constituídos sacerdotes e sacerdotisas para a missão. Nosso povo não sabe que é um povo de sacerdotes. E se sabem não tem plena consciência disso. O povo pensa que sacerdotes só são os padres, e só ficam esperando por eles! O povo pensa que os protagonistas da missão são os padres e somente eles. A maneira de a Igreja catequizar contribuiu para a construção dessa visão errônea. O povo aprendeu a ser ovelha, e o papel da ovelha é escutar e obedecer. Mesmo na Igreja pós-conciliar essa visão ainda permanece. Todo cristão é protagonista no Reino de Deus. Alguns críticos da teologia afirmam que a catequese católica educou os fiéis para a acomodação. Quando os religiosos europeus vieram para o Brasil e América Latina, a forma de educação para a fé era quase que totalmente assistencialista. O conteúdo transmitido foi para a obediência cega à hierarquia. Obediência cega seria uma forma de obediência sem diálogo, sem questionamentos. Como dizem os antigos: “duvidar dos padres era um pecado grave, pois eles diziam a verdade”. E isso virou herança. Nós, infelizmente, herdamos isso. E a maioria dos católicos sente até saudade desse modelo de Igreja! Sentem saudade porque aprendeu a gostar de obedecer dessa forma. A obediência é uma virtude dos céus, mas vivida nessa dimensão, é demoníaca porque não liberta as pessoas.
O Senhor nos chama na liberdade de filhos e filhas de Deus. Somos livres para respondermos ou não ao chamado que Ele nos faz. Não importa nossa condição, Deus nos chama insistentemente a assumirmos nosso compromisso batismal, manifestando sua presença neste mundo. A nossa vocação é para um serviço de amor neste mundo. Um serviço que se dá na doação total ao próximo. Responder a este chamado é ser obediente à voz daquele que nos fala ao coração e também fala-nos através da realidade em que nos cerca. Não seremos felizes se nos recusarmos ao chamado de Deus. Ele nos chama insistentemente porque precisa de nossa colaboração para a construção de um Reino que é nosso. Antes de tudo a Igreja deve orientar o povo para uma melhor compreensão de como esse chamado se dá em nossa vida, em nossa realidade, em nosso tempo... Deus tem nos falado em todas as épocas de maneiras diferentes. O Espírito do Senhor nos orienta e nos faz escutar e sentir a presença divina onde quer que ela se manifeste. Abrir-se a este Espírito que já habita em nós é colocar-se a disposição da vontade de Deus. A vivência dessa vontade é que nos faz semelhantes a Jesus que obediente ao Pai não fugiu da Cruz, mas com humildade e mansidão, inaugurou o Reino de Deus nesta terra.
No caminho de Jesus há os desafios e dificuldades. Atender ao chamado de Nosso Senhor é saber que trilharemos seus caminhos. Um caminho de liberdade no Espírito. Um caminho de amor e doação. Caminho de perseguição e tribulações. Se afirmarmos ser membros deste caminhar e não padecermos as chagas do Crucificado, vã é nossa vocação. Seguir Jesus é está em comunhão com ele. Está presente onde ele se faz presente. E Jesus está presente na vida e nas pessoas que são excluídas pelo governo, pelas instituições civis e por que não dizer também pelos excluídos de nossas Igrejas. Aqueles que não são vistos nem assistidos pela nossa evangelização. É por isso que Dom Hélder Câmara ao instituir o projeto de criação da CNBB, afirmava a urgente necessidade de voltarmos todo o nosso agir missionário para os pobres, os prediletos de Jesus! Cremos e professamos a fé no Jesus que nasceu, viveu e foi morto em meio aos pobres. Nossa fé deve ser alicerçada no testemunho missionário junto aos pobres. É por isso que afirmamos sem medo de errar que as Comunidades Eclesiais de Base, as comunidades dos pobres do Evangelho, estão vivas e atuantes. A Igreja enquanto corpo hierárquico deve tomar conhecimento da necessidade de voltar às origens enquanto é tempo. E a origem de nossa Igreja está nas comunidades dos pobres. Nossa origem é a pobreza. Não nascemos para a riqueza dos dogmatismos e secularismo religioso, mas nascemos para contagiar o mundo com a lei de Jesus: o amor. O santo Bispo Oscar Romero afirmava sem medo em El Salvador, que a Igreja descobre sua verdadeira vocação quando ela perde o medo de despojar-se e tornar-se pobre.

O sacerdócio ministerial

Diante disso, o sacerdote ordenado é chamado a viver servindo ao povo de Deus na alegria. O sacerdócio só tem validade perante Deus se estiver voltado ao serviço do povo. O sacerdote que não direciona sua vida para o serviço não segue a Jesus. Mas, usando do ministério a ele confiado pela Igreja, procura ser servido e neste agir antievangélico oprime o rebanho a ele confiado. Certo dia um velho amigo católico fervoroso e exemplo de vida para todos, em uma de nossas conversas me dizia: “Eu queria que o Papa tirasse esses padres do poder, acabando as paróquias e cortando os salários, para ver se ainda iria existir tanto padre na Igreja”! Ele tinha me dito isso logo após ter assistido a “Missa do Galo” celebrada pelo Papa no Vaticano. Ele achou grande a quantidade de padres presentes na Missa. A Igreja anda muito preocupada com o número de sacerdotes. Sobe a Deus a prece incessante “enviai, Senhor, operários para a vossa messe”. Diante da crítica do velho amigo acima mencionado, surgem alguns questionamentos. O que dizer de nosso método de evangelização paroquial? A maioria dos Bispos reunidos na V CELAM já admitiu a urgência de reformas. Sabiamente o padre Comblin expressou que as mesmas estão ultrapassadas. Após a Conferência alguns Bispos estudam a possibilidade de paróquias missionárias. É possível uma paróquia ser missionária? Creio que se continuarem as mesmas estruturas de paróquia que temos atualmente, certamente não será possível. Curioso como os Bispos apontam a necessidade de mudanças, mas não apontam vias de solução para tal mudança. Como transformar as paróquias que temos em comunidades missionárias? É preciso reavaliar a ação pastoral dos que são chamados “leigos” e revisar também o modelo de sacerdócio ministerial, afirmam grandes nomes da Teologia em nossa Igreja. Creio que o próximo Sínodo dos Bispos não poderá deixar de lado essa temática. Enquanto as reais mudanças não ocorrem os nossos párocos e vigários vão colocando em prática aquilo que aprenderam no Seminário. Há alguns que se sobressaem e vencem as circunscrições eclesiásticas, trabalhando em seus ministérios a missionariedade da vocação recebida. Estamos certos de que estamos perdendo muitos fiéis graças à nossa metodologia ultrapassada. Na minha paróquia de origem, em Alagoas, a participação ativa nas Missas é dos idosos. A maioria destes sente saudade da Missa em latim! Não reivindicam por uma Igreja jovem nem voltada para um melhor trabalho de conscientização das massas. Outro item que merece destaque é a crise ética e moral vivida por muitos sacerdotes, que por vários motivos, perderam o sentido de sua vocação, mas que não abandonando o ministério, escandalizam a fé do povo fiel. O problema está no método de formação presbiteral. Desde a fundação dos Seminários e Casas de Formação, a Igreja continua formando seus presbíteros quase do mesmo jeito. Mudou pouca coisa no processo formativo em muitos séculos que já se passaram... Uma entre muitas saídas seria uma maior aproximação do formando em relação à realidade do povo, ou seja, a formulação de um projeto de formação inserida. É urgente a necessidade de homens que renunciando a si mesmos, tomando a cruz e seguindo a Jesus, sirvam ao povo de Deus na condição de sacerdotes. Um sacerdote despojado é um homem livre. Um presbítero destituído de poder é um homem livre para a missão. Se o sacerdote é a personificação de Jesus, ele precisa ser simples e humilde como Jesus. Quando a grande maioria de nossos sacerdotes estiver na condição dos pobres, certamente a evangelização será mais eficiente. Pois, o discurso destes sacerdotes será mais realista e coerente. Padre Comblin vai dizer que os sacerdotes são mais professores de Filosofia e Teologia do que humildes operários da messe do Senhor. Claro que ainda temos bons sacerdotes, dedicados ao povo, vivendo uma vida de sacrifícios, mas são poucos. O que se pede é que basta ao discípulo ser como seu Mestre.

As novas fundações

Desde as origens da Igreja o Espírito de Deus tem feito surgir novas formas de vida e de serviço apostólico. Estas fundações têm convertido a Igreja ao longo dos séculos. A partir de uma visão de fé, cada fundação é como se fosse um alerta do próprio Deus, chamando-nos a atenção para com o compromisso e sentido original da missão. Basta recordar Francisco de Assis, apresentando seu projeto de vida missionária, baseado na pobreza radical e na opção pelos pobres. Francisco surgiu em um dos períodos mais críticos da Igreja. Ignorado por todos, ensinou-nos que seguir Jesus é imitar Jesus. Francisco era tido como louco, assim como Jesus. O pobre de Assis despertou na Igreja um novo jeito de ser Igreja! É claro que não mudou a Igreja, e não pretendia fazer isso, mas relembrou a Igreja da necessidade de revisar sua caminhada e lembrar que o que Jesus mandou fazer foi simplesmente pregar o Evangelho a toda criatura. Francisco nos fez lembrar que o que Jesus fez foi abrir um caminho e que precisamos caminhar neste caminho. Caminho e vida para o mundo. O projeto de Francisco só não morreu, porque ainda há pessoas de boa vontade, atentas aos sinais dos tempos que continuam pisando nas pegadas deixadas por ele, mas são poucos. A valia da Igreja e do mundo são essas pessoas que se doam e arrastaram e ainda arrastam multidões ao seguimento de Jesus. Estes dias, debrucei-me num estudo mais espiritual do testemunho evangélico da Toca de Assis, projeto fundado pelo padre Roberto Lettieri. Esse projeto é uma atualização do carisma de Francisco de Assis. É preciso que rezemos ao Senhor para que possam continuar sendo fiéis ao projeto que ainda é original. Recordo que nossas Congregações Religiosas precisam fazer uma releitura do carisma de seus fundadores e fundadores, atualizando-os na prática do amor gratuito. O Concílio Vaticano II aceita e reconhece o valor das novas comunidades. Estas provocam a Igreja a uma maior reflexão sobre sua missão no mundo. São fundações santamente ousadas que mexem com nossa juventude. É o novo que o Espírito grita no seio da Comunidade Cristã Universal. Vão surgindo mulheres e homens ousados que pensam e põe em prática projetos de práticas de amor ao próximo, rejuvenescendo a Igreja.
Quero ainda partilhar uma experiência missionária que está surgindo em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. Trata-se do jovem Henrique Luis, meu irmão na fé e no sangue, que decidiu fundar um estilo de vida contemplativa. Ele tem vinte e seis anos de idade, até fevereiro deste ano residia em Alagoas com meus pais. Mas, mudando para Guaraciama – MG, atendendo ao sopro do Espírito que sopra onde, quando e em quem quer, resolveu viver uma experiência de vida contemplativa. Está iniciando um projeto que já tinha em mente. Estou ajudando-o na condição de orientador espiritual. Estamos nos colocando na presença de Deus para ver o que Deus quer que ele faça. Ele sentiu uma santa inquietação que o motivou a viver o que São Bento pediu a séculos atrás “ora et labora”. É o que ele está fazendo: orando e trabalhando. Estamos preparando textualmente a idéia para que possamos apresentar ao Arcebispo de Montes Claros, mas a preocupação maior é na construção de um seguimento coerente a Jesus. Ele está iniciando bem a experiência. Rezo ao Senhor para que esta seja mais uma provocação de Divina Providência em nossa Igreja. Suplico as bênçãos proteção de Deus a todas as novas comunidades para que continuem sendo instrumentos de vida e transformação da realidade na construção do Reino de Deus.

Conclusão

Prezados irmãos e irmãs, é preciso que confiemos em Deus e nos abramos ao seu Espírito. Estamos no caminho de Jesus e precisamos aprender cada vez mais a caminhar. Espero que esta reflexão venha motivar a todos a viverem mais intensamente a aventura do seguimento a Jesus na opção pelos pobres. Não podemos perder o referencial. O centro da mensagem cristã é Jesus. Ele é nossa Boa Notícia. Peçamos a Senhor a graça de pregarmos com nossa vida esta Boa Notícia. Nosso povo está cansado de discursos e palavras. Os cristãos precisam ser testemunhas do amor no mundo. Deus está nos falando todos os dias através dos sinais. Abramos os olhos e nos convertamos à mensagem cristã. Cessem as rivalidades religiosas, as discriminações, as divisões, as injustiças sociais e religiosas, vivamos o amor a Deus na pessoa do próximo e isto nos basta! A nossa regra de vida é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Dependemos totalmente da graça de Deus para que isso aconteça, pois sem a graça divina nada podemos ser nem fazer. Assim como deseja o Apóstolo Paulo aos Coríntios, eu vos desejo a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós! Que a Virgem Maria, mãe fiel ao pé da cruz, ajude-nos com sua intercessão!

Fraternalmente,


Tiago, seminarista
missionariotiago@hotmail.com

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