terça-feira, 29 de setembro de 2009

Não se acostume


Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudades, mate-a.
Se perder um amor, não se perca!
Se o achar, segure-o!


Fernando Pessoa

sábado, 26 de setembro de 2009

São Vicente de Paulo e a esperança dos pobres


No dia 27 de setembro de cada ano, a Família Vicentina na Igreja celebra a memória de São Vicente de Paulo, sacerdote francês do século XVII. A história conta que o mesmo queria ser padre, mas não tinha boas intenções para com o ministério ordenado. A sua época era de grandes santos, mas também de grandes pecados. Inicialmente, queria ser um homem importante na Igreja e na sociedade. Ser padre no tempo de São Vicente, assim como para muitos hoje, era ocupar um estatus, colocação eclesiástica que conferia poder e visibilidade. O poder e a visibilidade (prestígio social) sempre foram dois males que perseguiram e que perseguem até hoje a vida dos presbíteros e bispos da Igreja. Quando São Vicente resolve iniciar o processo de conversão em sua vida, se dá o enfrentamento de tais males.

O padre católico do tempo de São Vicente, assim como muitos nos dias de hoje, pouco se importava com o sofrimento dos pobres. A esperança dos pobres iniciada com Jesus era totalmente marginalizada, pois os padres só estavam interessados com o poder. O sacerdócio ministerial e episcopal do século XVII, salvo as exceções, estava voltado para a legitimação do poder real. Estar a serviço da corte real era um privilégio disputadíssimo pelos padres e bispos. Todos eram mantidos pelo rei. Este explorava o povo e os clérigos rezavam para que o povo se mantivesse em silêncio e em plena obediência ao regime monárquico. Havia também os clérigos e religiosas enclaustradas, que no silêncio da vida contemplativa se contentavam somente em rezar. Para os contemplativos, a busca da perfeição pessoal era a meta. O mundo externo não interessava. A vida ascética era uma constante nos monastérios.

E o padre Vicente, inicialmente, também queria fazer parte daqueles que legitimavam o poder real em troca de dinheiro e poder, mas não teve muito êxito na busca. Alguns momentos ou experiências fizeram o padre Vicente pensar no chamado de Nosso Senhor, a saber: a acusação de furto, a tentação contra a fé, o sermão de Folleville e a realidade de Châtillon. Diferentemente de outros santos, o padre Vicente vai se convertendo no encontro com a esperança dos pobres. O encontro com a miséria do povo de Deus revelada na vida dos pobres levou o padre Vicente a assumir o divino ofício do Filho de Deus: ser um missionário evangelizador dos pobres. Quando descobre Jesus como evangelizador dos pobres renuncia imediatamente o projeto inicial que traçou para a sua vida ministerial. Não se tratou de uma conversão mágica, de um dia para a noite, mas de um processo da descoberta divina na vida dos pobres. Neste sentido, São Vicente é um dos santos mais originais da Igreja.

Quando associa as senhoras ricas para o exercício da caridade com os pobres, o padre Vicente fica triste porque elas só queriam ajudar financeiramente, sem tocar nos pobres nem misturar-se com eles. Pensando no serviço afetivo e efetivo para com os pobres desvalidos, neste tocar e viver com os pobres, ele encontra em Luísa de Marillac uma solução possível. Juntamente com outras jovens camponesas faz com que elas se tornem filhas da caridade. Ser filha da caridade significava amar os pobres de verdade, servindo-os não a partir da corte real, mas a partir da realidade deles. A filha da caridade era uma jovem leiga, sem o status de freira ou monja, e que deveria pobremente entre os pobres. As senhoras ricas custeavam as obras e as pobres camponesas filhas da caridade exerciam efetivamente a missão junto aos pobres.

Pensando na triste situação do clero, o padre Vicente pensa na formação. Salvo as exceções, a grande maioria do clero era de péssima formação. Muitos nem a Missa sabiam celebrar! A ignorância fazia-os cometer sacrilégios bárbaros nas comunidades, sem contar o espírito da corrupção tomando conta da vida clerical. O desejo do padre Vicente era de fazer o clero repensar a vocação e servir com mais dignidade à Igreja. Além disso, também pensava em levá-lo a repensar a vocação no serviço aos pobres. O povo do campo era esquecido pelo clero, pois os padres não queriam assumir as paróquias do meio rural, uma vez que elas não lhes rendiam dinheiro. É pensando nos pobres e numa sólida formação do clero que o padre Vicente organiza a Companhia da Missão. A família Gondi é o suporte financeiro para a fundação da Companhia, pois Vicente era um padre de origem humilde.

A grande preocupação do padre Vicente era que os padres se mantivessem fiéis ao propósito fundacional: o serviço aos pobres. Formar bem os padres tendo em vista a caridade para com os pobres. Há uma palavra do padre Vicente dirigida ao padre Portail, um dos primeiros membros da Companhia da Missão, que diz: “Lembre-se, padre, que vivemos em Jesus Cristo pela morte de Jesus Cristo, e que temos que morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo; que nossa vida deve estar oculta em Jesus Cristo e plena de Jesus Cristo, e que para morrer como Jesus Cristo devemos viver como Jesus Cristo” (I, 320). Esta é uma das sentenças vicentinas que mais me chama a atenção. Aqui aparece o caráter cristológico do carisma vicentino.

Lendo Jesus no Evangelho e São Vicente na história veremos que São Vicente não se identificou com o Jesus glorioso ou milagreiro anunciado por muitos, mas com o Cristo evangelizador dos pobres. Jesus e os pobres são a centralidade do carisma, sendo que “Jesus Cristo é a regra da Missão” (XI, 429). Não se trata de confundir Jesus com os pobres, como apontou recentemente o teólogo Clodovis Boff em sua crítica teológico-metodológica à Teologia da Libertação, mas entender que Jesus fez uma opção pelos pobres e os Padres da Missão devem fazer a mesma coisa. São Vicente precedeu o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín e Puebla na opção preferencial pelos pobres. A opção pelos pobres feita por ele não se tratava de um tratado de fé ou uma exposição dogmática, mas de uma prática cotidiana de amor para com os pobres prediletos de Jesus. Ele fez uma leitura encarnada do Cristo evangelizador dos pobres.

Tendo dito isto, pergunto: e a esperança dos pobres? Onde ela se encontra neste contexto? Optar pelos pobres na radicalidade do seguimento de Jesus é assumir a esperança dos pobres. Quando Deus enviou Jesus a este mundo com a missão de inaugurar o Reino de Deus, ele plantou uma esperança. A fé cristã alimenta esta esperança. Os cristãos acreditam no Reino de Deus e esperam a sua plena edificação. Esta esperança move a nossa fé e nos faz agentes de transformação no mundo. Não se trata de uma esperança escatológica, mas de uma esperança fortemente profética. O cristão é chamado a viver profeticamente a sua fé na construção do Reino de Deus. A esperança cristã está diretamente relacionada e ligada ao Reino de Deus.

A caridade vivenciada e anunciada por São Vicente convida a Família Vicentina e toda a Igreja para despertar e alimentar a esperança dos pobres. São Vicente com sua prática alimentava a esperança dos pobres, por isso que insistia tanto no anúncio do Evangelho. A proposta vicentina não estava voltada para a assistência material aos pobres, mas também para a conversão a Jesus Cristo. Assistência puramente material é assistencialismo. O carisma vicentino não é assistencialista, mas evangelizador. Não existe carisma para o assistencialismo, mas para a caridade. Não se trata de dar o que os pobres precisam para viver, mas fazê-los encontrar saídas para a solução de seus problemas temporais e espirituais. São Vicente praticava a orar-ação.

Em todos os tempos e lugares os pobres sempre foram explorados e excluídos. Negar a opção preferencial pelos pobres é negar a esperança dos pobres. Jesus veio alimentar tal esperança e com sua Ressurreição assegurou que a esperança cristã não é qualquer esperança, mas uma esperança que supera todas as demais. O Apóstolo Paulo ensina-nos que a esperança cristã, produzida pela fidelidade a Cristo não decepciona (cf. Rm 5, 5). Crer nesta esperança é “colocar-se no caminho de Jesus e perseverar”, ensina-nos José Comblin. Jesus participou da sorte dos pobres de seu tempo e São Vicente fez a mesma coisa. Participar da sorte dos pobres é participar de sua esperança e isto tem um preço. No caso de Jesus, tal preço se manifestou na Cruz, pois esta foi a conseqüência natural de sua opção pelos despossuídos e maltratados deste mundo.

Participar da esperança dos pobres é unir-se a eles na luta por libertação. Recentemente, com o Concílio Vaticano II e com as reflexões que se dão no Conselho Episcopal Latino-americano, a Igreja redescobriu o Evangelho de Jesus. O padre José Comblin afirma que a Igreja ainda não conseguiu fazer uma opção preferencial pelos pobres, pois ainda se encontra apegada ao poder e ao prestígio, mas algumas mulheres e homens durante toda a história souberam amar Cristo e seus irmãos. Tudo na Igreja é lento e gradativo, por um lado isto é bom, por outro é prejudicial. É bom porque toda mudança exige cautela. É ruim porque nem todos têm paciência para esperar por tais mudanças e a evasão de fiéis da Igreja é uma prova concreta disto.

São Vicente ajudou com seu testemunho de vida no processo de conversão da Igreja. Eram muitos os padres e bispos que o escutavam, admirados com seu ensinamento. O ensinamento de São Vicente era o de Jesus. A esperança dos pobres precisa ser alimentada cada vez mais, pois as forças contrárias ao Reino de Deus são muitas: fome, violência, desemprego, corrupção, exploração sexual etc. A vida dos pobres continua sendo ameaçada, mas a fé em Deus os faz persistir na caminhada. A Família Vicentina é chamada a somar forças nas lutas dos pobres, pois sem estes o carisma se desfigura e morre. É preciso atualizar tal opção e manter a fidelidade ao fundador. É preciso que Jesus olhe para nós e diga: “Eis um vicentino verdadeiro, sem falsidade” (cf. Jo 1, 47).

Certamente, são muitas as dificuldades que se encontram no caminho da caridade. Às vezes, os obstáculos superam a fé de muitos e as desistências se fazem presentes. O conhecimento de Jesus Cristo e do próprio carisma vicentino é uma oportunidade para avaliar a caminhada. Esta se dá em meio aos desacertos da vida. Jesus viveu santamente tais limitações, porque era homem como nós. Nossa permanência entre os pobres é uma exigência do carisma e uma oportunidade para vivermos a desafiadora opção de amar aqueles que não são amados nem vistos pela sociedade capitalista. Recuperar Jesus como centro e regra da Missão é fortalecer nossa unidade para com a Trindade, comunidade de amor que nos chama a amar. Que São Vicente interceda por nós a Jesus e nos alcance o perdão pelas vezes que nos acomodamos diante da luta e dos sofrimentos dos pobres e nos alcance também a graça de servi-los fielmente nesta vida, uma vez que “são nossos mestres e senhores” (XI, 273).


Tiago de França da Silva

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Uma prece vicentina


"Meu Deus, somos fracos
e incapazes de sumbcumbir ao primeiro assalto.
Chamaste-nos por pura misericórdia;
se o quiseres, que tua infinita bondade nos conserve;
de nossa parte, mediante tua graça,
contribuiremos com todo nosso esforço,
a te prestar todos os serviços
e toda a fidelidade que esperas de nós.
Dá-nos, pois, meu Deus,
a graça de perseverar até à morte.
É o que peço, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo,
com a confiança de que mo concederás".


São Vicente de Paulo - IX, 332s.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Três encontros


O ser humano é um ser de encontros. Vivemos nos encontrando na vida. Encontramo-nos com pessoas, com lugares, com momentos e até conosco mesmos. É no encontro que nos encontramos. O encontro sempre é uma oportunidade de autoconhecimento. No encontro encontramos até o sentido da vida, porque este precisa ser encontrado. O sentido parece que nos espera para um diálogo livre. O encontro precisa de tempo e de espaço. Ninguém se encontra a toa, pois costumamos planejar o encontro. O planejamento é uma preparação para o momento do encontro. Este sempre cria em nós expectativas, costumeiramente boas, uma vez que não buscamos nos encontrar com o que não nos edifica.

Há três encontros que nos realizam enquanto seres humanos: o encontro com Deus, consigo mesmo e com os outros. Estes encontros fazem parte de nossas vidas, são como que ontológicos e fazem parte da construção de nosso ser. São momentos inevitáveis, porque constituem o nosso ser social e relacional. No encontro acontece uma relação recíproca, quer positiva quer negativa. O diálogo e a liberdade são valores presentes nestes três encontros. Eles são humanos e humanizadores. Os animais e demais seres se encontram, mas não têm consciência disso, pois não pensam no encontro que estão realizando. Um dos inimigos do encontro é o isolamento, que impede as pessoas de saírem de si mesmas e irem ao encontro do mundo.

O primeiro encontro se dá no plano individual, ou seja, antes de pensar em me encontrar com Deus e com os outros, preciso encontrar-me comigo mesmo. O encontro consigo mesmo é algo revelador. Dificilmente me engano. É um encontro com a minha verdade, com aquilo que eu sou. Não importa se me aceito ou não, este encontro me diz alegre ou dolorosamente quem sou. É um mergulho nas profundezas do ser, lá onde se encontram as mazelas que sempre procuramos esconder das pessoas. Jesus ensina que é do coração do homem que sai todo tipo de mal (cf. Mt 15, 19) e é no mergulhar no mais íntimo de si mesmo, que o homem se encontra com esta capacidade de fazer o mal, capacidade que não é adquirida ou imposta pelos outros, mas que está presente em seu ser. Quem se recusa a encontrar-se consigo mesmo dificilmente conhecerá tal capacidade e mais difícil ainda será obter um controle sobre si mesmo. Por isso, é urgentemente necessário ao bem estar físico e espiritual o encontro consigo mesmo. Encontro que deve se dá na seriedade e na renúncia do medo.

O medo é como que a força que impede os três encontros. Ele consegue imobilizar o ser humano, travando-o em si mesmo sem permitir uma saída para ir ao encontro de si, pois para o encontro consigo mesmo é necessário o sair de si para ir ao encontro de si. Sair do ser exterior, produzido segundo nosso sistema de defesa e sobrevivência e ir ao encontro daquele espaço obscuro que sempre nos negamos encontrar, aprofundar, conhecer. Quem se permite encontrar-se consigo mesmo consegue sobreviver melhor, mesmo conhecendo as mais graves e temíveis situações interiores. Não é bom para o homem desconhecer-se a si mesmo, pois o conhecimento de si mesmo é necessário para uma vivência harmoniosa consigo e com os outros. É importante salientar ainda que o conhecimento de si através do encontro consigo não esgota a complexidade nem o conhecimento de si, que é infinito. Por mais que o homem se conheça a si mesmo, jamais consegue esgotar tal conhecimento, porque o gênero humano é transcendente, criado à imagem e semelhança do infinitamente Outro.

O encontro consigo mesmo nos torna mais capazes de nos encontrarmos com os outros. Quando procuramos compreender a nossa condição pessoal teremos facilidade de compreender a situação do outro. A compreensão nos leva a aceitação de si mesmos. Aceitar a si mesmo não significa confirmar-se com algo que não é bom e que faz parte de nós, antes significa admitirmos o nosso jeito de ser e nossa situação interior para buscarmos, na relação com o outro, nos encontrar. O outro é um lugar de encontro. Posso encontrar-me no outro, porque este sempre me revela alguma coisa. Há no encontro com o outro uma dinamicidade natural, pois nunca nos encontramos igualmente com as várias pessoas de nosso convívio. Com cada pessoa temos nossa especificidade relacional. Não se tratam de várias maneiras de se relacionar, talvez, mas quero dizer que há algo novo e único em cada relação que construímos.

Enquanto sujeitos sociais, o encontro com o outro constrói a sociedade e as relações humanas. Tais relações costumam ser pautadas nos interesses. Sempre estamos interessados em algo ou em alguém. Isto é natural. Há bons e maus interesses. O encontro amigo costuma ser menos interesseiro. Aqueles que não se relacionam na gratuidade, que é uma das qualidades da amizade, não são verdadeiros amigos. Na Bíblia encontramos Jesus com doze amigos, mas um deles lhe foi infiel na amizade vendendo-o às autoridades dos judeus. Judas Iscariotes pode ser o exemplo de amigo frustrado com o outro, disposto a não perder com a amizade. Frustrado porque não conhecendo Jesus, decepciona-se com o mesmo. Uma vez decepcionado, quer ganhar pelo menos vendendo o amigo aos verdadeiros traidores do povo. No encontro com Jesus, Judas Iscariotes descobre-se traidor. O encontro com Jesus revela muitas coisas naquelas pessoas que se dispõem a segui-lo radicalmente.

Depois que descobrimos que o outro faz parte da minha história, então descubro também que nesta relação fraterna há a presença do Outro, que é causa operante da relação de amor que pode ser construída e vivida pelos seres humanos. Não se trata de uma força operante, mas de uma presença vivificante. Os místicos ensinam que esta Presença se impõe na liberdade da relação. Uma imposição livre! Como entender isto? Trata-se de uma presença amorosa que existe e que não pode ser negada. O testemunho de vida daqueles que se dedicaram a perscrutar tal presença é uma prova de que é irresistível não construir uma relação amorosa e livre com este Outro absoluto.

O encontro com Deus é algo indescritível. Sempre ousamos falar sobre, mas se trata de aproximações da realidade. Deus e a relação com Deus são indecifráveis. Somente quem ama é que é capaz de encontrar-se com Deus. Não se trata de um encontro com uma idéia magnífica e criadora, mas um encontro amoroso com o Amor. Trata-se de um encontro simples e humilde que não se dá nas alturas e nos êxtases das experiências espirituais, mas no cotidiano da vida, pois o Altíssimo resolveu, por meio de Jesus, tornar-se o Emanuel, o Homem que está conosco. Desta forma, ninguém precisa se preocupar em encontrar-se com Deus num lugar recolhido e sagrado, Ele também pode estar nestes lugares, mas Jesus revelou que ele gosta das praias, ruas e avenidas, dos povoados e da beira do caminho. O encontro com Deus nos realiza plenamente, porque para aquele que crer no mistério de tal encontro, Deus é o sentido último da existência humana, fora dele nada somos nem podemos ser, porque para Ele convergem todas as coisas. Ele é infinitamente bom e pode também ser encontrado em nós, nos outros e Nele mesmo. Ele nos criou para que pudéssemos viver para Ele e Nele.


Tiago de França

domingo, 20 de setembro de 2009

Servir a todos


“Se alguém quer ser o primeiro, deverá ser o último, e ser aquele que serve a todos”. (Mc 9, 35)

O serviço fraterno é a marca original do cristão, seguidor de Jesus. Há na pessoa certa tendência natural de ser importante, de recusar-se ser inferior aos outros. Não há pecado em ser importante, nem em não sentir-se inferior aos outros. Toda pessoa é importante, pois aos olhos de Deus somos filhos e irmãos em Jesus Cristo. As diferenças que existem entre as pessoas são normais, pois não somos iguais. O que não está correto são a indiferença e a exclusão de pessoas nas relações sociais. Indiferença e exclusão estão presentes na sociedade e na comunidade eclesial.

A indiferença e a exclusão não permitem que as pessoas exerçam o serviço fraterno, pois quem é indiferente não se compadece com o sofrimento do próximo. A exclusão é outro impedimento, porque se costuma excluir aquele que já está excluído. Ninguém pratica a caridade sem sentir-se sensibilizado pelo sofrimento do outro. É verdade que somente compadecer-se não resolve o problema, mas é pela via da compaixão que agimos caritativamente com o próximo (cf. Lc 10, 25 – 37). A compaixão nos aproxima da dor do outro e nos impulsiona à ação.

Os excluídos da sociedade são muitos e os pobres são cada vez mais numerosos. Novas formas de pobreza vão surgindo. As novas tecnologias são um exemplo de geradoras de novos pobres, pois aqueles que não têm acesso às mesmas ficam marginalizados, despossuídos. A sociedade que produz as novas tecnologias não está preocupada com os pobres. Estes são sempre excluídos porque não sabem e nem podem nada. Os pobres são subestimados em suas condições de pobreza. Só se interessam por eles para ensiná-los a consumir demasiadamente. A corrupção política é outra geradora de pobreza, porque uma vez desviados os recursos públicos, as pessoas ficam sem condições de se desenvolverem e desassistidas pelo poder público ficam à mercê do assistencialismo dos exploradores, que se aproveitam da situação de miséria do povo.

Todo serviço fraterno efetuado na gratuidade e em sintonia com o Evangelho de Jesus é uma ação profética na Igreja e na sociedade. A caridade se manifesta profeticamente diante do individualismo e do consumismo sociais. Quem pensa somente em si e se deixa levar pela ideologia do mercado dificilmente tem condições de corresponder à caridade, porque esta exige partilha e solidariedade. Ser solidário hoje é ir ao encontro da pessoa e não somente de suas necessidades. Ir ao encontro da pessoa é um processo gradativo que se dá a partir de uma leitura da realidade. Esta leitura se realiza a partir do Evangelho de Jesus. Ler a vida com os olhos de Jesus significa compadecer-se e agir como ele se compadeceu e agiu. Jesus serviu a todos, preferencialmente aos pobres.

Na comunidade eclesial temos o problema da liderança. Na Igreja temos os líderes: coordenadores de pastorais e grupos, presbíteros e bispos. Nas congregações religiosas, ordens e institutos de vida consagrada temos os superiores. São mulheres e homens que receberam o ofício de exercer a liderança na comunidade. A maior tentação que as lideranças sofrem no exercício da autoridade está no pensar e agir como se fossem maiores do que os demais membros da comunidade. Este espírito de superioridade corrompe a liderança, porque tal espírito retira dela outro mais importante ainda, o da humildade. Somente o líder humilde é capaz de servir à comunidade.

Um líder colocar-se na condição de servo de todos é algo desafiador, porque a idéia comum que impera é justamente contrária, principalmente quando as estruturas do poder que se exerce obstaculizam o servir. Um exemplo claro disso é a condição do Bispo de Roma. Ele é chamado de servus servorum dei, que quer dizer servo dos servos de Deus. Teoricamente, tal condição implica ser servo de todos os que são servos de Deus. Não me atrevo a julgar a condição do Bispo de Roma, mas levando em consideração a palavra de Jesus, só é verdadeiramente líder aquele que serve. Além de ser aquele que serve, deve ainda ser o último. Ao conceder tal ensinamento aos discípulos, Jesus mostra conhecer muito bem o mais profundo da condição humana.

Nas comunidades eclesiais, as lideranças que se recusam servir são problemáticas porque provocam divisão e mal estar. Certamente não podem ser excluídas, mas reconduzidas e reorientadas. Só pode liderar quem aprendeu ou se dispõe a aprender a servir. Por isso, o líder precisa aprender com Jesus, manso e humilde de coração, a ser um bom operário na Messe do Senhor. Ninguém nasce pronto para liderar, mas deixando-se conduzir pelo Espírito que se manifesta na voz e na situação do outro, aprende-se certamente a ser um bom líder.

O Ano Sacerdotal nos chama a atenção para a liderança exercida pelos padres, principalmente os que são párocos de comunidades. O padre é convidado a comportar-se como pai. Um pai não é dono dos filhos, nem manda na vida dos filhos. Não adianta um pai de família querer ser dono de sua família, pois ninguém é dono de ninguém! Somos livres e filhos de um mesmo Pai, que é Deus. O padre não é dono da comunidade, nem manda na vida dos membros da mesma. Ele é o coordenador, aquele que orienta a fé das pessoas na e para a liberdade. Supondo que o padre seja uma autoridade, esta se revela na capacidade do mesmo servir à comunidade. Se o padre procura ser servido, então não serve para nada, a não ser para ser desprezado e odiado pela comunidade, pois nenhuma comunidade consciente e bem formada aceita o abuso da autoridade exercido pelas posturas ríspidas de muitos presbíteros. Aqui é preciso mencionar a importância da formação da personalidade do presbítero no Seminário.

A triste situação política do Brasil também nos exige analisar o perfil do líder político. O que assistimos é a plena manifestação daqueles que não aceitam servir à nação na integridade de um mandato político comprometido. Nós, que somos membros da comunidade-nação precisamos agir na hora do voto, a partir do ano que vem, para mudarmos este triste quadro. Já que não contamos com mandatos participativos, façamos ouvir nossa voz e nossa indignação na escolha de novos sujeitos, pois é uma injustiça um político bater no peito e dizer com orgulho patriótico que está há mais de cinqüenta anos no poder e ainda se julga exemplo de moralidade política para o país.

Jesus é o maior exemplo de líder que a humanidade já teve, porque não se deixou levar pela corrupção. Sua liderança estava pautada no amor a Deus e ao próximo. E nós, que buscamos segui-lo na comunidade eclesial, precisamos imitá-lo na vivência da fraternidade, que se exerce na justiça e no amor.


Tiago de França

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Brasil, o maior país católico do mundo?


Nas discussões cotidianas sobre religião sempre aparece a afirmação de que a Igreja Católica é a que tem maior número de fiéis no Brasil e que este é o maior país católico do mundo. No que se refere ao número, podemos até concordar. Agora, afirmar que o Brasil é o maior país católico do mundo é equivocar-se, pois tal afirmação nunca foi verdadeira. Isto se tornou até ideologia para levar as pessoas a se convencerem de que a Igreja é inabalável. Ultimamente, tenho lido alguns autores da Filosofia da Religião e eles são unânimes em afirmar que há anos tal constatação tornou-se equivocada. Antes de qualquer estatística precisa-se averiguar qual o conceito que temos de cristãos católicos.

A tradição cristã ensina que o cristão é aquele que se encontrou com Cristo, conheceu sua pessoa e seu projeto, compreendeu e aderiu à mensagem, colocando-se no caminho de Jesus. A Teologia chama isto de seguimento de Jesus. A Igreja ensina que o católico é aquele que tendo se incorporado a Cristo e à Igreja pelo batismo, participa ativamente da comunidade dando testemunho da fé cristã. Os que estão fora destes conceitos, não são cristãos, nem católicos. Voltando o nosso olhar para a realidade da Igreja no Brasil, a afirmação de que o Brasil é a maior nação católica do mundo cai por terra, pois a grande maioria dos batizados na Igreja não participa da vida eclesial.

O Documento de Aparecida no n. 99, item f aponta para a perda do sentido de transcendência por parte de muitas pessoas, levando-as a abandonar as práticas religiosas. O Papa Bento XVI já bem antes de ser eleito, sempre insistiu de que a culpa está nos vícios da modernidade. Recentemente, tem visto no relativismo o grande mal que afeta os cristãos no seguimento de Jesus. Em contrapartida, alguns teólogos que refletem a questão a partir de outro ponto de vista, crêem que o discurso papal acentua cada vez mais tal evasão de fiéis da Igreja. A realidade mostra muito bem que a Igreja ainda não se acostumou com a idéia de que ela é uma entre outras, daí a dificuldade do diálogo inter-religioso, pois segundo alguns, a tendência é fazer com as pessoas de outras religiões e Igrejas se convertam a nós, marginalizando assim o autêntico sentido do diálogo inter-religioso e intra-religioso.

O certo e real é que a porcentagem dos que professam a fé na comunidade eclesial é mínima, levando em consideração o número de batizados e as estatísticas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e do CERIS (Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais), que apontam para pouco menos de 75% da população brasileira que se declara católica. Para a dinâmica da fé e do Reino de Deus estes números não dizem muita coisa, pois não se mede a participação religiosa na Igreja por meio de números, mas pela da participação ativa na construção do Reino de Deus. O Documento de Aparecida e os discursos de alguns Bispos na mídia mostram claramente que a Igreja não se preparou e não está preparada para lidar com a perda de fiéis, uma que vez que tal fenômeno se mostra complexo e incontrolável.

O pluralismo religioso nos remete a duas expressões que fazem parte das análises do complexo problema da diversidade religiosa hoje: mercado religioso e trânsito religioso. Não é sadia a idéia de incluir o aspecto religioso da vida na dinâmica do mercado, porque este pressupõe compra e venda, oferta e procura, satisfação e insatisfação. A situação é tão drástica que somos obrigados a concordar que o mercado religioso é diversificado e tentador. São várias as ofertas que se apresentam nas prateleiras dos “supermercados da fé”. Podemos encontrar ofertas religiosas nos centros comerciais e cada uma tem seu marketing próprio, pois o espírito competitivo faz parte da lógica mercadológica.

Devido ao excesso de ofertas religiosas, as pessoas ficam cada vez mais confusas e procuram experimentar a todas. As doenças de nosso século levam as pessoas a encararem o sagrado não como uma vivência amorosa com Deus, mas como busca incessante de satisfação das necessidades temporais e espirituais. Todas as ofertas religiosas prometem variadas soluções para os problemas da vida, mas nem todas resolvem. A lei da eficiência é outro valor mercadológico que as ofertas religiosas precisam atender, pois quem for mais eficiente termina por ganhar o fiel para Jesus. A partir daí a relação é clientelista. Certo dia, escutei um padre perguntar a outro coirmão o seguinte: “Padre, me diga, a sua igreja sempre está cheia?” Tal questão revela a preocupação do padre e sua linha de pensamento no exercício de seu ministério. Por isso que quando se fala de tal temática, sabia e profeticamente o teólogo José Comblin costuma ensinar: “preocupa-se com tudo, menos com o testemunho”.

“Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13, 35). Certamente, dar testemunho da Ressurreição de Jesus neste mundo é algo desafiador. Além de nossa natureza frágil e inclinada para o mal, ainda temos que enfrentar o mundo tomado pelo ódio e pelo egoísmo. Seguir Jesus na radicalidade de sua mensagem é a missão da Igreja. O mundo atual exige atitudes concretas de uma Igreja profética. Não devemos empenhar nossas forças e nosso entusiasmo na busca do rebanho “perdido” por meio da eficiência no culto ou reformas doutrinais, mas atendendo ao que nos pede Jesus na citação joanina: Ter amor uns para com os outros. Este é o mandamento de Jesus e que nos fará plenos. É preciso resgatar a identidade cristã original que se revela no amor vivido e anunciado por Jesus.


Tiago de França

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Maria, Mulher das Dores


Ó mulher forte,
Que na fidelidade ao chamado do Senhor
Estiveste firme ao pé da cruz
Daquele
Que veio a este mundo
Amar os pecadores e pobres.

Ó mulher pobre,
Que educaste com amor e confiança
O menino Verbo de Deus feito carne,
Aquele
Que se tornou igual a nós
Amando-nos até as últimas conseqüências.

Ó mulher da libertação,
Que foste fecundada pela força do Amor
E engravidando-te por inteira
Serviste
Ao Servo libertador de Javé
Seguindo-o fielmente nesta vida.

Ó mulher mãe dolorosa,
Que foste sensível ao desespero da falta de vinho
Na festa dos noivos de Caná,
Olha com ternura
O clamor das mães de nosso mundo
Que desesperadas clamam por dignidade.

Ó mulheres órfãs,
Mulheres mães solteiras,
Desempregadas e lavadeiras,
Presidiárias, prostituídas e excluídas,
Aprendei de Maria de Nazaré
A serem perseverantes no caminhar das regiões montanhosas da vida.

Virgem dolorosa ao pé da cruz,
Ensina-nos a amar Jesus
A fim de que não percamos a sensibilidade e a ternura
De sermos fiéis discípulos e missionários do Pobre de Nazaré,
Que espera por nós nas ruas e vielas da vida das mulheres e homens
Crucificados da história.


Tiago de França

domingo, 13 de setembro de 2009

Oração do Pai-nosso


Pai-nosso que estais no céu, e sois nossa Mãe na Terra, amorosa orgia trinitária, criador da aurora boreal e dos olhos enamorados que enternecem o coração, Senhor avesso ao moralismo desvirtuado e guia da trilha peregrina das formigas do meu jardim,

Santificado seja o vosso nome gravado nos girassóis de imensos olhos de ouro, no enlaço do abraço e no sorriso cúmplice, nas partículas elementares e na candura da avó ao servir sopa,

Venha a nós o vosso Reino para saciar-nos a fome de beleza e semear partilha onde há acúmulo, alegria onde irrompeu a dor, gosto de festa onde campeia desolação,

Seja feita a vossa vontade nas sendas desgovernadas de nossos passos, nos rios profundos de nossas intuições, no vôo suave das garças e no beijo voraz dos amantes, na respiração ofegante dos aflitos e na fúria dos ventos subvertidos em furacões,

Assim na Terra como no céu, e também no âmago da matéria escura e na garganta abissal dos buracos negros, no grito inaudível da mulher aguilhoada e no próximo encarado como dessemelhante, nos arsenais da hipocrisia e nos cárceres que congelam vidas,

O pão nosso de cada dia nos daí hoje, e também o vinho inebriante da mística alucinada, a coragem de dizer não ao próprio ego e o domínio vagabundo do tempo, o cuidado dos deserdados e o destemor dos profetas,

Perdoai as nossas ofensas e dívidas, a altivez da razão e a acidez da língua, a cobiça desmesurada e as máscara a encobrir-nos a identidade, a indiferença ofensiva e a reverencial bajulação, a cegueira perante o horizonte despido de futuro e a inércia que nos impede fazê-lo melhor,

Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e aos nossos devedores, aos que nos esgarçam o orgulho e imprimem inveja em nossa tristeza de não possuir o bem alheio, e aqueles que, apáticos diante da nossa suposta importância, fecham-se à inconveniente intromissão,

E não nos deixeis cair em tentação frente ao porte suntuoso dos tigres de nossas cavernas interiores, às serpentes atentas às nossas indecisões, aos abutres predadores da ética,

Mas livrai-nos do mal, do desalento, da desesperança, do ego inflado e da vanglória insensata, da dessolidariedade e da flacidez de caráter, da noite desenluada de sonhos e da obesidade de convicções inconsúteis,

Amemos.


Versão de Frei Betto

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

As estranhas afirmações de Felipe Aquino


Recebi recentemente um artigo do Prof. Felipe Aquino da Comunidade Canção Nova, intitulado “O desafio das seitas”. O artigo apresenta algumas distorções que merecem algumas observações. Não pretendo desmerecer a pessoa do Prof. Felipe Aquino, mas como estudante de Filosofia e membro da Igreja, tendo em vista a exposição crítica das idéias e a verdade que forma e informa o povo de Deus, aspiro apresentar meu ponto de vista sobre algumas afirmações do artigo, que as considero inadequadas ou equivocadas. Apresentarei literalmente as afirmações em cada parágrafo e farei os devidos comentários.

“É muito bom meus irmãos poder lembrar que logo que nossos colonizadores chegaram aqui no Brasil, eles foram dando nomes de santos a algumas coisas que encontraram”. Pela leitura da história civil e eclesiástica da formação do povo brasileiro sabemos que os colonizadores que aqui chegaram só tinham uma intenção: explorar a terra e os índios que aqui encontraram. Juntamente com os colonizadores, a Igreja também se fez presente para cristianizar os que aqui moravam. Se fizermos a leitura da obra historiográfica de Darcy Ribeiro, um dos maiores antropólogos da história do Brasil e autor da obra O Povo brasileiro, encontraremos a história da formação do povo brasileiro e descobriremos que o que ocorreu foi um verdadeiro genocídio indígena, que ultrapassa e muito o massacre aos judeus na Alemanha. Então, esta de colocar “nomes de santos a algumas coisas que encontraram” é a expressão plena da imposição da cultura religiosa européia sobre a cultura indígena, tida como pagã e selvagem. Não “é muito bom” lembrar disso como sinal de salvação na história, porque o catolicismo tradicional colaborou com a quase erradicação da cultura de nossos índios, nossos antepassados.

“O primeiro Bispo que chegou ao Brasil foi mártir e muitos morreram aqui, enfrentando os índios, as doenças e outros perigos”. É inegável que na edificação da Igreja no Brasil, muitos religiosos deram sua vida pela defesa da vida. No que se refere aos verdadeiros mártires, a nossa justa homenagem. Aqui destaco a atuação de muitos santos jesuítas que defendiam os direitos dos povos indígenas contra a exploração da Coroa portuguesa. Mas é verdade também que a fé foi usada em favor dos exploradores no sentido de alienar os explorados, fazendo com que estes se submetessem à escravidão permanente. Os nossos índios, tidos como preguiçosos, nem com as rezas dos clérigos aceitaram a escravidão, porque não era e nem é da cultura indígena a exploração indevida da terra e da natureza. Interessante como o autor do artigo iguala índios, doenças e outros perigos. Na visão do autor, os índios representavam uma ameaça aos brancos e aos clérigos. Isto é inaceitável porque os índios, nesta triste visão, são vistos como selvagens. Índio não é bicho do mato, mas um ser humano digno de respeito.

“Precisamos prestar uma homenagem a tantos missionários e padres que vieram de suas pátrias para implantar o Evangelho no nosso Brasil”. O dicionário Aurélio ensina que a palavra implantar significa inserir (uma coisa) em outra, plantar, arraigar, fixar, introduzir, estabelecer. Por isso, a idéia de implantar o Evangelho é por si mesma antievangélica, porque passa a idéia de que todas as pessoas são obrigadas a aceitar o Evangelho implantado. O Evangelho de Jesus não é uma lei, norma, disciplina ou uma vontade que deve ser imposta sobre a pessoa, grupo ou nação. O anúncio do Evangelho se dá na liberdade. Se houve implantação do Evangelho, certamente podemos afirmar que não houve evangelização. Todas as pessoas, de todos os tempos e lugares, que receberam o anúncio do Evangelho são livres para aceitá-lo. Ninguém está obrigado a aceitar o Evangelho, mas pela citação do autor, todos foram obrigados a aceitar, querendo ou não. Talvez a dispersão cristã a que assistimos hoje seja herança disso.

“João Paulo II diz em uma de suas cartas que surgem seitas que fazem ruir a estrutura de fé de muitas nações e ainda diz em outra de suas cartas que a expansão das seitas constitui uma ameaça para a Igreja”. O uso do termo seitas em si já cria separação. Quando dizemos que as demais Igrejas são seitas, afirmamos que a nossa é a verdadeira e as demais são falsas. Diante disso pergunto: É dessa forma que estamos buscando o ecumenismo entre nós cristãos? É verdade que não podemos esconder que muitas Igrejas surgem com a intenção de explorar financeiramente as pessoas, como é o caso da recente denúncia contra o Bispo Macedo e sua Igreja. Mas é verdade também que Jesus nos quer unidos em seu amor e nós cristãos somos totalmente desunidos. Ao longo da história percebemos que também a nossa Igreja é responsável pela divisão entre os cristãos. Afirmar que a expansão das seitas constitui uma ameaça para a Igreja é induzir as pessoas a brigarem pela sua fé. Ninguém precisa brigar pela fé que professa. A finalidade da fé não é competir com outros credos ou crenças. Este tipo de afirmação causa divisão e ódio entre os que aspiram seguir o mesmo Cristo. Cristãos ameaçando cristãos é um verdadeiro absurdo!

“O segundo ponto é o culto a Virgem Santíssima, porque sabem que a Virgem Santíssima é a mãe do Brasil e da América”. Para nós, católicos, certamente a Virgem Maria é a Mãe da Igreja e nossa. Isto faz parte de nossa fé. Mas os irmãos separados não são obrigados a aceitar isso. Eles não acreditam na Virgem Maria como nós acreditamos. No tempo em que a Igreja era a religião oficial do Império até que era aceitável afirmar que a Virgem Maria é a Mãe da nação brasileira, mas hoje, diante da diversidade cultural e religiosa em que vivemos, creio não ser mais necessário afirmar que a ela é a Mãe de todos os brasileiros, sendo que muitos deles não a aceitam como Mãe. Nós não podemos estender a maternidade da Virgem Maria a todos os cristãos, mas somente aos católicos, porque a mariologia faz parte da doutrina da Igreja.

“O povo de Deus não quer uma Igreja Católica política, mas sim uma Igreja que traga sua identidade, sua espiritualidade”. A Igreja não pode assumir partido político. Ela própria, em suas constituições, reprova o envolvimento com partidos políticos e a politicagem. Afirmar que a Igreja não faz política é ir contra os princípios constitucionais da mesma, pois além de ser religiosa, também é uma instituição e todas as instituições têm suas políticas de governabilidade. O Vaticano é um Estado independente dentro de Roma. O Papa é chefe religioso e político da Igreja, pois é Chefe de Estado. Isto não é novidade, pois todos sabem disso. A Igreja tem seu discurso político e está inserida na política quando luta pelos direitos humanos, pela promoção humana e pelos seus interesses. Estando no mundo vítima do capitalismo assassino, é impossível à Igreja ausentar-se da política. O ser humano é um ser político, porque é um sujeito social. E este mesmo ser humano também é chamado a ser cristão e este não pode negar-se à política, pois desta dependemos para vivermos em sociedade, quer no regime monárquico, quer no democrático. A política juntamente com outros setores rege a sociedade.

“Meus irmãos, as simples vestes de um religioso já dizem para nós de Deus”. Com esta afirmação, o autor saudosista deseja que o hábito e a batina preta voltem na Igreja. Antes do Concílio Vaticano II, o hábito religioso e a batina eram distintivos das religiosas e clérigos. Após o Concílio, o uso ficou facultativo e pelo que se vê, a grande maioria resolveu abolir tal uso. Tal uso fazia parte das imposições do Concílio de Trento e do jeito de se vestir em tempos de Cristandade. A renovação da mentalidade proposta pelo Vaticano II não admite o uso de tais vestes, porque o testemunho do discípulo missionário de Jesus não depende das mesmas, pois “não é o hábito que faz o monge”. Sem o hábito e a batina, os religiosos e padres se tornaram mais próximos do povo, porque passaram a se vestir como o povo. A idéia de que os consagrados e ordenados são pessoas superioras ou especiais diminuiu depois da abolição de tais vestes.

“O Papa quer ouvir bater os sinos das igrejas chamando o povo a rezar”. Esta expressão revela o modelo de Igreja que imperava antes do Vaticano II, voltada para o templo e para os sacramentos. A justiça social e a situação do mundo não importavam, porque a vontade de Deus se revelava na recepção dos sacramentos e na prática da ascese. A busca da perfeição pessoal era a meta do cristão. Atualmente, boa parte dos católicos se recusam a participar do culto divino. O catolicismo do templo não está funcionando mais. Agora, a Igreja é chamada a ir ao encontro das pessoas. Na Europa, os templos estão sendo vendidos porque os católicos não aceitam rezar na igreja. Por mais que se convide, somente os que tradicionalmente se acostumaram é que aparecem. Os jovens só aparecem quando estão participando da catequese dos sacramentos da iniciação cristã. Depois disto, a grande maioria julga que a religião não é mais tão importante.

“O Papa nos convoca como Igreja a buscar estas ovelhas que eram católicas e estão perdidas por aí”. Há uma falsa idéia de que somente é cristão aquele que é católico e que freqüenta o culto divino. É verdade que para aquele que professa a sua fé na comunidade, o culto torna-se necessário e importante. Os que praticam a fé na comunidade não podem julgar a fé dos que não praticam. Não podemos afirmar que os não praticantes da religião “estão perdidos por aí”, pois não é verdade. Ninguém está perdido. O Evangelho não nos confere o poder nem a autoridade para dizermos que as pessoas estão perdidas. A missão da Igreja é acolher as pessoas e não julgá-las. A missão da Igreja não é fazer com que toda a humanidade se torne cristã católica, mas levar a toda a humanidade o Evangelho de Jesus. Não precisamos converter todas as pessoas à nossa Igreja, mas chamá-las à conversão ao Evangelho. Apresentar o Evangelho como proposta e alternativa à humanidade sem imposições.

“Nós para ganharmos uma pessoa para Deus, precisamos primeiro ganhar para gente”. Nós não precisamos ganhar as pessoas para Deus. Antes disso, precisamos levar as pessoas a se encontrarem com Deus. É a pessoa, se possível com nossa ajuda, que precisa conhecer a Deus e crer nele. Ninguém ganha as pessoas para si e para Deus, mas em comunidade vivemos em união com Deus. O autor pensa assim porque há uma falsa idéia de que evangelizar é levar Jesus para as pessoas, e na verdade, nós não levamos Jesus para as pessoas, mas ele já está presente na vida delas. Nossa missão consiste em levar as pessoas a enxergarem Jesus, compreender sua mensagem e aceitá-la, e segui-lo na liberdade.

“O Papa diz que a inculturação do Evangelho não é uma adaptação mais ou menos oportuna dos valores do ambiente, mas uma verdadeira purificação da cultura e a remissão dela”. Na elaboração dos conceitos profano e sagrado, a cultura afro-brasileira sempre foi condenada pela Igreja como obras das trevas. As religiões afro-brasileiras como o Candomblé, a Umbanda, o Xangô e tantas outras irmandades sempre foram mal vistas pela Igreja. Sempre afirmam que tais religiões precisam ser “purificadas”. Certo dia, assistindo a uma Missa na Canção Nova, um neo-presbítero disse na homilia: “Se os irmãos das religiões afro-brasileiras não se converterem, não herdarão o Reino de Deus porque suas práticas são obras das trevas”. Creio que a mente e a inteligência deste neo-presbítero é que têm que ser purificadas e convertidas. Nós precisamos respeitar a cultura dos povos indígenas e africanos, porque todo o povo brasileiro é oriundo destas culturas. Somos filhos de nossos antepassados e a cultura deles forma o nosso jeito de ser brasileiro. Não existem culturas impuras, mas culturas diferentes. A inculturação do Evangelho se dá no respeito às demais culturas.

“O Papa diz também que as coisas precisam ser feitas na lei e a Igreja não pode fomentar a invasão de terras, pois isso está fora da lei...” O que realmente está fora da lei, aqueles que vivem sem a terra ou aqueles que a tem demasiadamente sem necessidade? O autor deveria ter pensado um pouco antes de ter falado tamanho absurdo. Não há invasão de terras, mas luta pela terra que é de todos. Deus criou a terra para todos. A Comissão Pastoral da Terra, órgão da Igreja que apóia a luta dos movimentos sociais na luta pela terra compreende que a terra é um dom gratuito de Deus e um direito de todos.

Infelizmente, o Prof. Felipe Aquino é escutado por muitas pessoas, e a grande maioria considera o que ele fala como certo porque não pensam no que o mesmo está falando. Ele não entende de Teologia e nem busca entendê-la. Simplesmente, repete o que diz o Magistério, sem uma interpretação das leis e da doutrina. A Palavra de Deus e a doutrina da Igreja precisam ser melhor compreendidas. Não podemos fazer afirmações sem levar em consideração a realidade da vida, pois é a vida que deve estar em primeiro lugar. Toda a doutrina e todo o Evangelho estão em função da vida do povo de Deus. A nossa missão é defender e promover a vida.


Tiago de França

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Um olhar sobre o Grito dos Excluídos


O Grito dos Excluídos é “um alerta e uma denúncia do modelo econômico excludente (neoliberal) e o anúncio da justiça, da solidariedade e de um compromisso ético, como valores indispensáveis para o estabelecimento do Brasil que queremos” (Bassegio, Setor Pastoral Social, Grito dos Excluídos, 1996, p. 13). Não se trata de um grito de revoltados, nem de pessoas que perderam a esperança, mas do grito de mulheres e homens sedentos de justiça e paz. O grito não é a manifestação de um “bando de gente” descomprometida, arruaceira e alienada como muitos pensam, mas de pessoas que lutam pela promoção e dignidade humanas.

Neste ano tive a oportunidade de participar do Grito dos Excluídos em Belo Horizonte – MG, onde me encontro, e que teve como tema: “A força da transformação está na organização popular”. Três pontos me chamaram a atenção e aqui partilho brevemente, depois de ter apresentado acima o significado e a motivação geral do Grito dos Excluídos. Um olhar crítico sobre o Grito é necessário para que não se repitam alguns equívocos e/ou contradições.

O primeiro fato é o encontro breve que tive com uma senhora negra, empregada doméstica, que me disse o seguinte: “Eu não participo disso. Isso é coisa de petista vagabundo! Gente arruaceira que não tem o que fazer. Prefiro assistir ao desfile a fazer barulho no meio da rua. Isso não resolve nada!” Apesar de ser empregada doméstica e estar exercendo uma profissão reconhecida, mas não valorizado o suficiente, considerei aquela senhora uma excluída da sociedade. É verdade que os verdadeiros excluídos não têm emprego e vivem numa situação crítica. Quando cheguei ao local da concentração do Grito (em frente à Assembléia Legislativa), recordei-me logo da expressão da doméstica. De fato, os verdadeiros excluídos não apareceram no Grito, salvo algumas exceções. Isso deve ser motivo de reflexão para todos, principalmente para aqueles que preparam o Grito e acreditam na sua proposta.

Diante da ausência dos pobres no Grito, perguntei-me: “É válido estarmos aqui gritando pelos excluídos?” Quem participa do Grito é chamado a gritar com os excluídos e não pelos excluídos. Se os excluídos da sociedade neoliberal não querem gritar nem se manifestar contra as explorações a que estão submetidos, de que vale o grito de padres, freiras, seminaristas e coordenadores de ONGs?... Não pretendo invalidar o Grito, mas tal indagação precisa ser pensada. O tema foi muito oportuno, pois chamou a atenção para a organização popular. O Grito é manifestação do povo que sofre, mas os sofredores não estavam lá. Como bem apontou a doméstica, muitos preferiram assistir ao desfile do Dia da Pátria.

O segundo ponto que quero destacar refere-se à participação dos seminaristas. Eram muitos os que estavam presentes, principalmente os de congregações religiosas. Pelas expressões faciais e verbais de boa parte deles, a insatisfação era rapidamente percebível. Antes mesmo de terminar o evento, alguns foram embora porque descobriram que os respectivos superiores já tinham ido. Apesar da crítica ao evento, o Grito permanece como estratégia importante para chamar a atenção das autoridades públicas para a resolução dos graves problemas sociais, e se aqueles que se preparam para o ministério ordenado se recusam a estarem presentes nestes momentos, algo pode ser questionado.

Não quero dizer que somente tem vocação os seminaristas que participam do Grito dos Excluídos. O Grito representa o clamor dos pobres por justiça social. Creio que é importante a participação dos futuros pastores das comunidades se fazerem presentes neste clamor, afinal de contas, o sacerdócio ministerial só tem sentido se estiver unido ao clamor dos pobres, pois os pobres são os prediletos de Jesus. Agora, é questionável sim, aqueles que se sentem chamados por Deus a tal ministério, mas apresentam certa aversão à presença dos pobres e suas lutas por libertação. Isto é sinal claro do que chamo de “vocação aburguesada”, ou seja, homens que buscam no sacerdócio ministerial a pura realização pessoal em detrimento da participação na missão de Jesus Cristo. Sendo mais claro, de acordo com os ensinamentos recentes da Igreja, levando em consideração que sacerdócio é serviço ao próximo, assistimos ao surgimento de muitas “vocações” que se recusam a aderir à espiritualidade do serviço gratuito e fraterno, recusando-se desta forma ao projeto de Jesus. Aqui aparece a importância do papel dos formadores dos Seminários no acompanhamento de tais casos e circunstâncias.

O terceiro e último ponto a ser considerado foi uma observação de um seminarista que caminhava ao meu lado, depois que percebeu a ausência do clero no evento: “Depois que se ordenam, se esquecem dessas coisas”. Conheço um padre que trabalha em Fortaleza – CE, que quando era seminarista tinha um pensamento crítico sobre a realidade e era considerado um dos melhores da Casa de Formação na ação pastoral junto ao povo. Depois que o mesmo foi ordenado, assumiu uma personalidade que até então era desconhecida, pois se tornou um padre ultraconservador e clericalista, inimigo da luta e da esperança dos pobres. Como explicar isso?

Há duas constatações. A primeira, é que muitos formandos assumem certos pensamentos e atitudes tidas como libertadoras, porque a Congregação ou a linha de pensamento da formação educa para o serviço aos pobres, principalmente na Igreja pós-Aparecida, em que a opção preferencial pelos pobres foi destacada até pelo Papa Bento XVI. Então, para serem bem vistos e aprovados pelos formadores, certos formandos se comportam como tal, apesar de que no mais profundo de si, não gostam daquilo que fazem. Depois de ordenado, este tipo de formando logo se revela. Uma segunda constatação refere-se ao poder que a Ordem confere ao homem ordenado. Quando o poder “sobe à cabeça” do presbítero, o mesmo fica alienado diante da vida e da missão e só pensa em ter e não em ser. O ser discípulo missionário de Jesus Cristo é esquecido.

Quem está apegado ao poder não aceita aproximar-se dos pobres, porque estes questionam o poder estabelecido. Por isso que Jesus e seus discípulos eram destituídos de poder humano, porque somente assim eram livres para a missão. Os teólogos da libertação ensinam que os pobres convertem constantemente a Igreja, porque eles não aceitam nem se identificam com a união entre o sagrado e o poder humano. Por isso que os Bispos que se dispuseram a construir a chamada “Igreja dos Pobres” descobriram que os pobres não aceitam uma Igreja voltada para o poder e para as relações de poder, mas para o serviço e a promoção do gênero humano. Quanto mais humilde e despojada for a Igreja, mais os pobres haverão de se aproximar dela.


Tiago de França

domingo, 6 de setembro de 2009

Ouvir e falar


A Liturgia da Palavra deste Domingo tem no Evangelho segundo Marcos 7, 31 – 37 seu eixo central. Sabemos que Marcos escreveu seu evangelho para responder a pergunta “Quem é Jesus?”. Jesus se revela por meio de suas palavras, gestos e comunhão com o Pai. No trecho de hoje encontramos Jesus curando um homem da surdez e a mudez. A cura ocorre num ambiente pagão, em meio a uma gente que não acreditava no Deus de Jesus. Isto é sinal de que ele não exclui as pessoas de sua mensagem nem de sua salvação.

O homem é um ser que sabe que ouve e fala. Ele entende o que ouve e o que fala. É um ser que comunica e se deixa comunicar. Inserido no coletivo da vida é também um ser de relações. A escuta e a fala são essenciais na vivência de tais relações, são duas faculdades interligadas, que precisam funcionar bem para a vivência harmoniosa em sociedade. Por isso, diante do homem que não conseguia escutar nem falar, Jesus liberta-o de tal situação. A vontade de Jesus é que todos escutem e falem ao mundo.

O que Jesus quer nos dizer curando o surdo-mudo? Antes de tudo, é preciso olhar para nossa realidade. Atualizar a mensagem de Jesus sempre requer que olhemos a realidade. Não vivemos para nós mesmos, mas para o mundo. Não pregamos a nós mesmos, mas ao mundo. A sociedade de nossos dias é uma sociedade do discurso, do barulho, da dispersão. Tudo é excessivo. O mercado oferece de tudo. As pessoas falam tudo. Mais do que em outras épocas, não há preocupação com o que se fala, pois se fala de tudo a todos. E em meio às ofertas e ao excesso de barulho, o dom da escuta fica comprometido, porque se somente falo, não paro para escutar. Compreendamos, pois, o que vem a ser o dom da escuta.

Na Igreja, os homens e mulheres de vida contemplativa sabem ou devem saber muito bem o que é o dom da escuta. É verdade também que tal dom não é privilégio dos contemplativos. O dom da escuta é a capacidade concedida por Deus, por meio de seu Espírito, de escutar a sua voz e de atender aos sinais dos tempos. Escuta-se a voz de Deus para conhecê-lo cada vez mais. Escutá-lo requer vontade e fé. Vontade porque ninguém está obrigado a escutar a Deus. A escuta se dá na liberdade. Escutamos a Deus porque queremos conhecer a sua vontade e saber o que quer de nós. A fé nos ajuda a compreender e a aceitar os mistérios divinos, nos confere a confiança necessária para continuar na escuta atenta à voz de Deus e a perseverança no caminho da vida e da liberdade.

Outra dimensão da escuta refere-se à realidade da vida. Quem escuta a voz de Deus está inserido na realidade, porque é para esta que Deus nos chama. A missão do cristão é tornar a realidade cada vez mais humana. É na escuta a Deus que temos o discernimento para agir bem em favor do homem e do mundo. Sem a divina orientação corremos o risco de agir de forma contrária à vontade de Deus. Ele nos chama, nos orienta e nos capacita para a prática do amor. Para escutarmos a Deus precisamos saber onde ele está falando hoje. Deus nos fala por meio das Escrituras Sagradas, da oração, das pessoas que nos rodeiam, dos sofredores deste mundo e por meio dos sinais dos tempos. A escuta destas realidades nos tornam capazes para a missão. Ninguém pode ser discípulo e missionário de Jesus Cristo sem escutar atentamente a tais realidades, porque elas nos revelam a vontade de Deus.

O outro dom é o da fala. Como disse acima, atualmente fala-se demais. Muitas pessoas se perdem no falar. É também por meio da fala que descobrimos quem são as pessoas. É verdade que as obras são mais seguras do que a fala para se descobrir a índole da pessoa. Quero destacar a mentira como um dos piores males da fala de nossa sociedade. A mentira é uma falsa palavra, que causa confusão e divisão. Um exemplo disso é a triste realidade da política de nosso país. Muitos de nossos políticos mentem descaradamente diante da opinião pública. Usam de falsas palavras para enganar e desmerecer pessoas e instituições. São tantos os argumentos falsos e as falsas notícias que o espectador fica sem saber onde está a verdade.

Diante da mentira das pessoas e das instituições, o cristão é chamado a falar a verdade. A verdade tem o poder de desmascarar os mentirosos. É na verdade que devemos pautar a nossa vida. Jesus soltou a língua do mudo para que falasse ao mundo. Nós precisamos falar ao mundo. Mas falar o quê? O que os cristãos devem falar ao mundo? O que a Igreja deve falar à sociedade? Torna-se cada vez mais urgente falarmos Jesus ao mundo, pois cremos que ele é a Verdade. Não precisamos criar uma verdade, nem levar as pessoas a se enquadrarem numa doutrina. Jesus é nossa doutrina. Como dizia São Vicente de Paulo: “Jesus é a regra da missão”. Falar a verdade é o mesmo que denunciar as injustiças que oprimem o povo de Deus. Que Jesus abra nossos ouvidos à escuta de seu ensinamento que se revela na vida do povo e que abra também nossa boca para anunciarmos a verdade ao mundo. A verdade é que liberta o homem da confusão e do conflito, pois quando a mesma aparece, prevalecem a justiça e o bem de todos.


Tiago de França

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O pecado, fraqueza do homem


Não costumo falar de pecado. É um tema que sempre me recuso a falar, apesar de estar presente na vida humana. Alguns jovens me pediram para escrever algo sobre o pecado. Eles querem saber se o pecado é pecado mesmo e se é pecado pecar! Certa vez, um padre me disse que não devemos nos preocupar com o pecado, pois se dermos muita atenção, o mesmo se introduzirá em nosso pensamento e não conseguiremos pensar em outra coisa. Acabei por concordar porque conheço pessoas que de tanto pensar no risco de pecar, terminam por pecar, esquecendo-se de que o pecado não é o centro da vida cristã. Muitas pessoas vivem atormentadas pelo medo de pecar, porque escutam nas igrejas que quase tudo na vida é pecado. Será que é verdade mesmo?...

Qual a origem do pecado? Numa explicação simples e levando em consideração o pecado de Adão e Eva no livro do Gênesis, o pecado não é criação divina. Então, quem criou o pecado? Como surgiu? Será que foi o demônio? Brevemente, podemos dizer que o pecado surgiu do mau uso da liberdade. Deus criou o homem livre e este resolveu desobedecer aquele. A catequese cristã ensina que o pecado surgiu na desobediência do homem e da mulher em relação à vontade de Deus. É o que nos remete o livro da Criação. Santo Agostinho, Bispo de Hipona, na sua obra De libero arbitrio ensina-nos que o homem recebeu de Deus o dom da liberdade, sendo capaz de soerguer-se por sua livre iniciativa. Assim sendo, o homem é livre para pecar e para obedecer a Deus. Quando o homem se volta para Deus, ele não peca, porque a vontade divina não induz ao pecado, mas liberta do mesmo.

Durante toda a Idade Média até o Concílio Vaticano II reinou na Igreja uma forte idéia de pecado. Durante este período, a Igreja deu muita ênfase ao pecado, principalmente aos pecados pessoais. O rigor disciplinar fazia parte do cotidiano da Igreja. A prática da ascese como caminho para a perfeição era o ideal proposto pela Igreja a todos que nela professassem a fé. Ligado ao pecado aparecia o inferno, que amedrontava a todos, pois a pregação dos padres nas igrejas chamava a atenção dos fiéis para a presença do demônio no mundo. Até nossos dias impera-se tal espiritualidade na vida de muitas pessoas, que não se libertando, vivem a se confessar periodicamente, com medo de ir para o inferno. Com isto, não quero afirmar que não há pecado e inferno, nem pretendo invalidar o Sacramento da Reconciliação, tão necessário à vida cristã dos católicos, mas quero apenas afirmar que tal espiritualidade vivida ao extremo, criou em muitas pessoas o que chamo de complexo de culpa. Numa linguagem espiritual, tal complexo torna a pessoa inferior e a escraviza, fazendo com que a mesma sinta-se permanentemente culpada por cometer pecados, que muitas vezes, nem chegaram a ser cometidos, ou que não mereçam extrema atenção, por não serem graves.

No Evangelho encontramos Jesus. Cremos e professamos que ele não cometeu pecado algum, mesmo sendo homem. Justamente por ser homem, Jesus entendeu a realidade e a condição do homem. Ele viveu a condição humana e se compadeceu. Por isso, ao cometer o pecado, por meio de Jesus, o homem alcança o perdão de Deus. Cremos que Deus é misericordioso porque tendo se encarnado neste mundo por meio de Jesus, conhece profundamente o íntimo de cada homem e sabe de seus limites. Deus é fiel em nos socorrer nas tentações. Vejamos o que diz o Apóstolo Paulo: “Vocês não foram tentados além do que podiam suportar, porque Deus é fiel e não permitirá que sejam tentados acima das forças que vocês têm” (1 Cor 10, 13). Deus não exige que sejamos perfeitos como ele, porque sabe que somos limitados.

Analisando as atitudes de Jesus diante das pessoas consideradas “pecadoras”, principalmente aquelas que eram mais condenadas pela sociedade, percebe-se que Jesus não se une à condenação feita e exigida pela lei e pela sociedade. Duas sentenças de Jesus esclarecem bem seu posicionamento diante de tais pessoas: diante da mulher pega em adultério, disse Jesus: “Quem de vocês não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8, 7), e aos fariseus, respondeu Jesus: “Aprendam, pois, o que significa: ‘Eu quero a misericórdia e não o sacrifício’. Porque eu não vim para chamar justos, e sim pecadores” (Mt 9, 13). Jesus faz questão de ensinar que não podemos julgar as pessoas que pecam, mas ajudá-las a superar o pecado. Não se trata de relativizar o pecado, numa tentativa de inocentar culpados e condenar inocentes, mas criar em nós uma atitude de misericórdia diante da fragilidade do próximo. Uma vez que todos somos pecadores, estamos proibidos de julgar uns aos outros, pois estamos no mesmo patamar.

No processo de Evangelização da Igreja vamos encontrar o pecado e o demônio na pregação dos pastores. No ambiente dos irmãos separados, encontramos certa insistência nos temas pecado, graça, demônio, inferno e paraíso. A idéia central é vencer o pecado e alcançar o que chamam de céu. Todos querem ir para o céu! E nesta busca, Deus deixa de ser nosso Pai para ser “meu Pai”, Jesus deixa de ser universal e se torna “meu Jesus”, propriedade particular dos que crêem. Cultiva-se cada vez mais uma fé individualista, portanto fora do espírito comunitário. A religiosidade encerra-se numa relação pessoal entre o meu eu e Deus. Uma fé que não se interessa com a situação pecaminosa do mundo, pois basta que Deus perdoe meus pecados, porque somente estes é que lhe interessam. Para as pessoas complexadas com o pecado, Deus se torna um vigia permanente, que não deixa passar a oportunidade de castigar na hora certa pelo pecado cometido. Para estas pessoas, Deus é o Supremo Senhor e Juiz, o Onipotente e Santo, em detrimento da verdadeira imagem de Deus revelada em Jesus, o Emanuel misericordioso que vem ao nosso encontro e nos acolhe com amor e ternura.

No ambiente católico, predominantemente na Renovação Carismática Católica e nas novas Comunidades de vida de inspiração neopentecostal, há um grande esforço de se voltar à Cristandade. A regra é a seguinte: Confessar os pecados ao padre e comungar constantemente para se alcançar o que chamam de “estado de graça”. Esta espiritualidade também não está interessada com a realidade do mundo. Os problemas do mundo não interessam aos neopentecostais, pois a responsabilidade na resolução de tais problemas é do Governo e suas instâncias. A idéia de Igreja é a retratada pelo padre João do Auto da Compadecida ao cangaceiro Severino, “a Igreja cuida da parte espiritual”. Para não passar a idéia de que a caridade não existe, os neopentecostais gostam de campanhas assistencialistas que não questionam a situação estrutural da sociedade.

Certamente, os pecados que mais ferem a dignidade humana e mais provocam a Deus são os pecados sociais. O Deus revelado por Jesus não aceita a exploração do homem pelo homem nem a agressão à mãe natureza. O Deus e Pai de Jesus e também nosso Pai, quer a vida do mundo e do homem, e é da responsabilidade do homem o cuidado com a vida doada gratuitamente. A ausência do cuidado com a vida é o maior pecado que o homem comete. Somos infantis e alienados se pensarmos que Deus está preocupado com nossas pequenas falhas cotidianas. A Sagrada Escritura testemunha que Deus está preocupado com a exploração feita aos pobres da terra, aqueles que não têm vez nem voz (cf. Ex 3, 7- 9).

No que concerne ao pecado, precisamos anunciar a Boa Notícia. Não podemos usar a Palavra de Deus para anunciar o medo. Este não é parte integrante do anúncio da vida. O medo impede a vida brotar. Anunciamos o Evangelho para libertar as pessoas do medo que o pecado produz. Infelizmente, há pastores do povo de Deus que se utilizam da Palavra de Deus para semear medo nos corações das pessoas. Cria-se até campanha contra o pecado, como é o caso do PHN da Canção Nova. Seria importante se todo este marketing fosse empregado numa grande campanha pela justiça e solidariedade entre as pessoas. É preciso combater o pecado, não sou contra isso, mas precisamos combater os pecados graves, tais como: a fome, a miséria, a violência, a prostituição, a desonestidade, a corrupção e tantos outros que estão presentes na sociedade. Estes pecados ferem a dignidade humana e tiram a vida do povo de Deus. É contra estes pecados que precisamos fazer campanhas. Que o Senhor seja misericordioso conosco, assim como estamos sendo com nossos irmãos, e que o pecado não domine a nossa consciência e a nossa vida.


Tiago de França

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Pensamento


"A coisa mais bela que o homem pode experimentar é o mistério. É esta a emoção fundamental que está na raiz de toda ciência e arte. O homem que desconhece esse encanto, incapaz de sentir admiração e estupefação, esse já está, por assim dizer, morto e tem os olhos extintos."


Albert Einstein

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Como não ter Deus?!


Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possí­vel, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar, é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo.


Guimarães Rosa

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O anúncio da Palavra de Deus


“A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo” (DV, 9). Os cristãos acreditam que a Bíblia é a Palavra de Deus, é o seu livro sagrado, assim como o Alcorão é para o Islamismo e a Torá para o Judaísmo. Na Bíblia encontramos a revelação da vontade de Deus, porque a mesma foi escrita segundo a inspiração do Espírito de Deus. A Palavra de Deus orienta a vida de seu povo e o faz herdeiro do Reino de Deus inaugurado por Jesus de Nazaré. É pela Sagrada Escritura que acreditamos na Ressurreição de Jesus, nas suas palavras e obras e é por meio dele que seremos salvos. Por isso, com o Apóstolo Paulo podemos dizer que “toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as obras boas” (2 Tm 3, 16 – 17).

“A Palavra de Deus é a verdade, sua lei é liberdade!” (ODC, p. 36). Jesus é a Verdade que liberta o homem das trevas e do poder da morte. Nós também o encontramos na Bíblia, porque ele próprio é a Palavra de Deus (cf. Jo 1, 1). Por isso, ao nos encontrarmos com Jesus, estaremos nos encontrando com a Palavra de Deus. Para nós, Jesus é a plenitude da vontade divina, porque em tudo foi obediente ao Pai, até a morte de cruz (cf. Fl 2, 8). Pela leitura, meditação e contemplação da Palavra de Deus somos chamados a sermos obedientes à vontade divina, assim como o foi Jesus. É na Sagrada Escritura que encontramos todas as orientações necessárias para o bem viver neste mundo de acordo com os desígnios de Deus, porque nela estão inscritos seus caminhos e nos faz encontrar com a verdadeira vida. Fora da Palavra de Deus e regidos tão somente pela nossa razão natural, não conseguimos saber quem é Deus, porque a divina revelação nos é dada por meio da Palavra. É nesta que encontramos a Verdade que nos torna plenos do amor de Deus.

Os discípulos de Jesus acreditaram na Palavra de Deus, e a partir daí, puseram-se no meio do mundo e anunciaram o Evangelho de Jesus. A Ressurreição de Jesus é a manifestação de que Deus estava presente nele e o fez Senhor da vida e vencedor da morte. Crentes de que seriam ressuscitados com Cristo, os discípulos se tornaram Apóstolos dele, porque obedeceram ao mandato missionário do mesmo (cf. Mc 16, 20). No anúncio do Evangelho da vida e da liberdade, Jesus esteve presente na vida dos Apóstolos, confirmando-os na fé e na missão. E nós, que acreditamos que Ele é a Boa Nova do Reino de Deus, por meio de nosso batismo, também somos chamados a anunciá-la a presente humanidade, tão carente de justiça e paz. Quem quiser ser cristão de verdade não pode excluir-se do anúncio da Boa Notícia, porque é neste anúncio que nos tornamos autênticos cristãos.

“Quando cresce no cristão a consciência de pertencer a Cristo, em razão da gratuidade e alegria que produz, cresce também o ímpeto de comunicar a todos o dom desse encontro. A missão não se limita a um programa ou projeto, mas é compartilhar a experiência do acontecimento do encontro com Cristo, testemunhá-lo e anunciá-lo de pessoa a pessoa, de comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins do mundo (cf. At 1, 8)” (DA, 145). Quando o crente se encontra com a Palavra, vive a experiência do encontro com Jesus Cristo. Este encontro também se dá na realidade da vida iluminada pela Palavra de Deus. Este encontro com a pessoa real de Jesus confere ao cristão um espírito de pertença, ou seja, o cristão pertence a Cristo. Somos chamados de cristãos porque seguimos a Cristo, o Messias de Deus.
É na Palavra que conhecemos melhor a Trindade Santa, comunidade de amor, que nos ensina a amar. Diante de nossa humanidade cada vez mais desumanizada, o anúncio do Evangelho da verdade e da vida desperta para o amor. Neste somos restituídos em nossa dignidade de filhos e filhas de Deus. É no amor e não fora deste que nos realizamos e que temos a verdadeira vida. Esta é a verdade que precisamos anunciar ao mundo: um amor que gera justiça e uma justiça que gera paz. Não a justiça corrompida do mundo, que nos decepciona todos os dias, mas somos chamados a anunciar a justiça do Reino de Deus. Esta consiste em restituir a dignidade dos explorados e dos marginalizados da história, fazendo-os protagonistas da construção de um mundo mais justo e fraterno. O profeta Dom Hélder Câmara gritava na Igreja de Recife e Olinda: “Precisamos construir um mundo de irmãos!”

Como poderemos construir um mundo de irmãos se a Palavra de Deus é cada vez mais marginalizada entre os cristãos? Como construirmos um mundo de irmãos se os valores do Reino de Deus revelados nas Sagradas Escrituras são esquecidos? Precisamos continuar a missão apostólica do anúncio da verdade do Evangelho, para por meio dela, podermos conferir vida ao mundo e ao homem. É no encontro com a Verdade, que aprendemos a construir um mundo melhor. Não é na “escola do capitalismo” que aprenderemos a construir um mundo fraterno, mas na “Escola do Evangelho”. Quem quiser se matricular na Escola do Evangelho, que é a Escola de Jesus, precisa estar disposto a se converter, a mudar de vida.

A Sagrada Escritura nos converte ao caminho de Jesus. Convertemo-nos ao caminho de Jesus quando nos esforçamos por praticar a vontade de Deus. E qual é a vontade de Deus? Deus nos pede para vivermos o amor, o perdão, a união, a fé, a verdade, a esperança, a alegria, a fraternidade. Com Francisco, o pobre de Assis, somos chamados “a procurar consolar, mais que ser consolado, compreender, que ser compreendido, amar, que ser amado”. Consolar os irmãos diante das dores e angústias da vida, compreender que somos fracos e que não podemos exigir perfeição dos outros e buscar muito mais amar do que ser amado. Eis a vontade de Deus!

Assim sendo, reconhecidos os valores do Reino e do Evangelho de Jesus, o discípulo missionário de Jesus Cristo é alguém que se esforça em se converter ao caminho de Jesus, e nesta busca constante convida outras pessoas a fazer o mesmo. O anúncio do Evangelho só será eficaz se quem anuncia busca viver aquilo que anuncia, porque do contrário, não teremos anúncio, mas exibicionismo. É aqui que aparece o valor do testemunho do missionário. Na comum-unidade, Jesus convida-nos a dar testemunho de sua Ressurreição a partir de nossa experiência de Deus. Para podermos anunciar Jesus é preciso ir ao seu encontro, estar com ele, conhecê-lo, conhecer e aderir à sua proposta e buscar vivenciá-la. Há um ditado popular muito oportuno que diz: “As palavras convencem e os exemplos arrastam”.

Isto vale para nós, missionários de Jesus, quando nos dispomos à missão. Na sociedade pós-moderna, em que o discurso é imperativo nas relações interpessoais e sociais, somos tentados a aderir à prática do discurso para evangelizar. É claro que devemos e podemos utilizar o recurso da palavra para evangelizar, mas no caminho de Jesus, as obras valem mais do que muitas palavras. Não entraremos no Reino de Deus porque fomos grandes pregadores da Palavra, mas porque fomos praticantes da mesma. Assim nos ensina o Apóstolo: “Sejam praticantes da Palavra, e não meros ouvintes, iludindo a si mesmos” (Tg 1, 22).

A Igreja, que é portadora da Palavra e guardiã da mesma, é convidada a ser a primeira a dar testemunho de Jesus ressuscitado na história. Na Encíclica Mater et magistra, sobre a evolução da questão social à luz do doutrina cristã, o Beato João XXIII afirmou que a Igreja é “Mãe e mestra de todos os povos”, assim sendo, ela é convidada a dar testemunho do amor de Deus a toda a humanidade, fazendo com que todos sejam irmãos. Na construção do mundo de irmãos sonhado pelo profeta Dom Hélder Câmara, a Igreja é instrumento e fermento na massa. Que a Igreja seja a primeira a se colocar a serviço do amor que constrói o Reino, renunciando à tentação dos excessos de discursos, documentos e disciplinas que possam obscurecer o Evangelho de Jesus, porque a caridade nos basta e nos faz todos ser mais santos.


Tiago de França