sábado, 28 de novembro de 2009

Advento: Tempo de esperança e de alegria


“Bendito sejais, Deus bondoso, pela luz de Cristo,
sol de nossa vida, a quem esperamos com toda a ternura do coração”
.

O Tempo do Advento dá início ao Ano Litúrgico da Igreja. Há relatos de que o Advento começou a ser vivido pelos cristãos entre os séculos IV e VII em vários lugares do mundo como preparação para o Natal. Na Gália (atual França) do século IV e na Espanha, o Advento tinha caráter ascético com jejum e penitência e duração de seis semanas como na Quaresma. Com a reforma litúrgica, passou a ser celebrado durante quatro semanas. Durante este Tempo não se canta o Hino de Louvor nas Celebrações da Palavra e da Eucaristia; a cor litúrgica é roxa; usa-se a coroa do advento com as quatro velas e as principais figuras que aparecem na Liturgia da Palavra são: os profetas Isaías e João Batista, São José e sua esposa Maria, e Jesus, que é o centro e o sentido maior da celebração de todo o ano litúrgico.

A espera, a expectativa, a alegria e a conversão formam o conjunto temático do Tempo do Advento. Os judeus esperavam o Messias prometido. Ele veio e eles não o receberam (cf. Jo 1, 11). Desde a subida de Jesus aos céus, após a ressurreição dentre os mortos, os cristão esperam sua parusia, ou seja, a sua volta gloriosa. É um tempo de expectativa porque não sabemos o dia, nem a hora em que Jesus virá. É um mistério insondável. Ninguém sabe, a não ser o Pai (cf. Mc 13, 32). É um tempo de alegria porque não somos chamados a viver a penitência quaresmal, mas a alegria da vinda definitiva de Jesus. A conversão também é característica do Advento, porque este também é um tempo de preparação. Preparamo-nos para celebrar o nascimento daquele que veio com a missão de inaugurar o Reino de Deus e ser nosso Salvador.

Advento também é tempo de esperança. A vinda de Jesus ao mundo é sinal de que Deus não decepciona a esperança humana. Ele cumpre com sua palavra e envia-nos o socorro maior, seu amado Filho Jesus Cristo. A esperança vivida pelos seguidores de Jesus não é qualquer esperança, mas uma esperança que não decepciona (Rm 5, 5). Trata-se de uma esperança que os leva a lutar contra toda desesperança. É uma força que move-nos para a construção do Reino. Somente alimentados pela esperança é que somos capazes de sobreviver às aflições e aos desesperos a que estamos submetidos nos últimos tempos. A vivência da fé cristã restaura-nos para a vivência da esperança.

Estamos diante do aumento da fome, da violência, da corrupção e da crise de humanidade que explica a origem de todas as demais crises. As pessoas estão cada vez mais depressivas, impacientes, insensíveis, egoístas e individualistas. Os aspectos religiosos e o sagrado da dimensão humana estão cada vez mais banalizados. Há certo desespero tomando conta das pessoas, levando-as, no caso de muitas delas, à descrença no valor e sentido da vida. Falar e viver a esperança neste contexto de sobrevivência é de extrema importância e é justamente aqui que aparece a Boa Notícia do Advento. As pessoas precisam saber e crer que o Deus da vida, que é plena bondade e misericórdia, não abandonou o gênero humano na destruição e na morte.

Diferentemente do que muita gente pensa, o nosso Deus está presente e vive conosco a história sofrida de cada dia. Quem acredita em Jesus precisa anunciar a experiência do amor, pois somente esta é capaz de salvar o mundo da destruição que se aproxima. Os homens precisam se conscientizar da necessidade de viver e permitir que outras gerações vivam no futuro. O cuidado com a vida é manifestação do amor que temos pela vida de nosso semelhante e pelo Deus de nossa fé. Quando promovemos e preservamos a vida da pessoa e da natureza estamos provando que realmente amamos a Deus. Ninguém pode dizer que ama a Deus se não cuida da vida do outro. Cuidar da vida do outro é cuidar da própria vida, porque somos irmãos em Cristo, filhos de um mesmo Pai que nos ama.

Percebe-se que o ódio e a vingança entre as nações e entre as pessoas estão aumentando cada vez mais. Por que isto? Porque o amor está sendo deixado de lado, e os interesses mesquinhos estão tomando conta das relações sociais e interpessoais. As pessoas estão se tornando intensamente estranhas umas às outras. O espírito de eliminação daqueles que são considerados “inválidos” para o convívio social está tomando conta do pensar e do agir das pessoas. O ser humano só vale quando produz e quando tem poder aquisitivo para comprar aquilo que é supérfluo, do contrário, precisa ser eliminado porque não serve e só atrapalha o falso desenvolvimento e a falsa harmonia do mercado e das relações entre as pessoas. Isto tudo pode ser chamado de cultura de morte, porque só tende para a destruição da dignidade da pessoa humana.

O autêntico seguidor de Jesus é chamado a combater a cultura de morte que impera no mundo atual e tal combate se dá pelo anúncio do Evangelho de Jesus, que é vida e liberdade para todos. Valores como justiça, solidariedade, partilha, perdão, compreensão, tolerância, amizade entre tantos outros, ajudam na construção de um mundo melhor. Independentemente de qualquer coisa ou circunstância precisamos acreditar no ser humano e a partir dele construirmos um mundo de paz e justiça. Somente quando a justiça fizer parte das relações entre os homens é que teremos um mundo de acordo com a vontade de Deus. É preciso constatar e valorizar as pessoas e as organizações que se comportam justa e coerentemente na luta por uma sociedade justa e solidária, por isso, intensifiquemos esta luta e finalmente viveremos em paz.

Preparar-se para a Celebração do nascimento de Jesus não é só recordar que ele veio até nós, mas assumirmos em nossa vida seu projeto de justiça, de amor e de paz. O desafio é grande, mas não é impossível. Sabemos de nossas limitações, mas em meio a elas e com a ajuda da graça divina podemos fazer a vontade de Deus na construção de seu Reino entre nós. Não nos deixemos vencer pelo medo da morte, nem pelas forças que ameaçam a vida, pois Jesus é o Emanuel, ele está conosco e mais intimamente unido às pessoas que padecem por causa do sofrimento e da perseguição. O nosso Deus é justo e fiel e jamais nos abandonará nas mãos da morte que impiedosamente nos amedronta. Vivamos, pois, intensamente, este santo tempo de graça e salvação e que Jesus renasça no mais íntimo de nosso ser e revigore nossas forças, a fim de que não recuemos diante das dificuldades da vida presente. Que Jesus nos liberte da cegueira que nos impede de vê-lo na vida de nossos irmãos e irmãs que sofrem. Vigiemos!


Tiago de França

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ver o essencial


"Só se vê com o coração. O essencial é invisível aos olhos".

(Antoine Saint-Exupéry)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O Conselho de Ética do Congresso Nacional


A Resolução nº 20, de 1993 instituiu o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal. Na Câmara dos Deputados o mesmo foi criado em 2001. O que é o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar? “É o órgão encarregado do procedimento disciplinar destinado à aplicação de penalidades em casos de descumprimento das normas relativas ao decoro parlamentar”, informa o portal da Câmara dos Deputados na Internet. O Conselho pode aplicar as seguintes penas aos parlamentares:

- advertência: que pode ser aplicada pelo Presidente da Casa Legislativa, do Conselho ou pelo Presidente de uma Comissão;
- censura: é aplicada, por exemplo, quando um parlamentar desacata outro parlamentar;
- suspensão: é a perda temporária do mandato, que é decidida pelo Plenário, em votação secreta, por maioria simples. É aplicada, por exemplo, quando um parlamentar faltar a 10 sessões ordinárias consecutivas sem motivo justificado;
- perda de mandato: é decidida pelo Plenário em votação secreta e exige maioria absoluta (41 votos, no caso do Senado). É aplicada, por exemplo, quando um parlamentar cometer “atos contrários à ética e ao decoro parlamentar capitulados nos artigos 4º e 5º da Constituição”.

Percebe-se que a estrutura e composição do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar de ambas as Casas Legislativas Federais são muito inteligentes e organizadas. Parece tudo perfeito, mas infelizmente não funciona. O erro mais vergonhoso cometido pelo Conselho de Ética do Senado foi o arquivamento de onze processos contra o Senador e Presidente do Senado Federal, José Sarney (PMDB – AP). O problema não está na estrutura e composição jurídicas do Conselho em si, mas na falta de idoneidade e ética por parte de boa parte de nossos parlamentares, tanto no Senado quanto na Câmara. Arquivam-se, descaradamente, diante dos olhos de toda a nação processos contra a corrupção explícita de parlamentares que só mancham e envergonham a política brasileira.

A edição de ontem (23/11) do Jornal Nacional retratou a corrupção por parte de parlamentares que se utilizam de notas “frias” para justificar os gastos da verba indenizatória (15 mil reais por mês). Os corruptos sabem tanto que as CPIs e o Conselho de Ética não funcionam, que aparecem na reportagem com justificativas mentirosas, tentando enganar a nação brasileira. No fim da reportagem, o corregedor da Câmara dos Deputados, deputado ACM Neto (DEM – BA), querendo aparecer como um político “justo”, mandou seu recado afirmando que quem não comprovasse licitamente os gastos seria levado ao Conselho de Ética da Câmara. O neto de um dos maiores corruptos da história política brasileira falando em Ética parece até piada!... Os políticos brasileiros são os mais bem pagos do mundo, visto que, além do salário mensal, que por si já é um absurdo, ainda têm verba indenizatória e todas as despesas pagas pelo Estado (transporte, alimentação, moradia, material gráfico, segurança etc), além dos suplementes e do foro privilegiado junto ao Poder Judiciário. Os políticos criminosos são especiais, não podem ser julgados pela justiça comum, mas somente por eles mesmos!

Diante disso, pergunto: Até quando, nós, brasileiros, vamos tolerar uma aberração dessas? Perderemos tempo e dinheiro se esperarmos que os próprios parlamentares cortem tais regalias injustas. É verdade que o que salva a política brasileira é o pequeno número daqueles, que apesar do sistema corrupto, se mantêm firmes na busca do bem comum da nação, como é o caso, por exemplo, do deputado Chico Alencar (PSOL – RJ) e da senadora Marina Silva (PV – AC), frutos da ação política de eleitores conscientes da importância do voto e da política para a vida social do país. O regime democrático exige de cada cidadão a crença na política. Precisamos acreditar na possível arte de governar em vista do bem comum da população. É verdade que as estruturas políticas e partidárias não favorecem, pois os interesses particulares e grupais estão acima dos interesses do povo, mas os testemunhos de homens públicos como do falecido senador Jefferson Peres (PDT – AM) e do senador Cristovam Buarque (PDT – DF) demonstram que a política em nosso país tem jeito de ser reorientada.

A reflexão ética convida-nos a pensarmos na atual situação política de nosso país. Penso que o regime democrático é possível quando contamos com representantes políticos comprometidos com as grandes causas sociais. Precisamos resgatar a ética, a honestidade, a responsabilidade e o autêntico compromisso com aquilo que pertence ao povo na política de nosso país. A sociedade precisa se organizar cada vez mais em torno das discussões de questões de interesses nacionais. Todo cidadão é um sujeito político e todos são responsáveis pela situação do país. A omissão não pode fazer parte da cultura política dos brasileiros. Indico o Portal Transparência do Governo Federal (http://portaltransparencia.gov.br), lançado em 2004, como sugestão de leitura e informação. Através deste recurso, o cidadão pode acompanhar a execução financeira dos programas do governo. O Portal Transparência é uma iniciativa da CGU – Controladoria Geral da União, órgão que fiscaliza os gastos públicos.

Costumamos criticar nossos governantes. Isto é justo e necessário. Não podemos aceitar os desvios de verbas e de conduta moral de políticos que não governam em favor do povo. O que não é justo é desconhecermos a administração da máquina pública e das ações governamentais em favor da população e ficarmos apresentando críticas infundadas e preconceituosas. A crítica só constrói quando está fundamentada na verdade dos fatos, sendo assim desprendida de falsas acusações e do sensacionalismo midiático, que mais confunde do que esclarece. O cidadão precisa ler, pesquisar e informar-se; escutar o noticiário e discernir a verdade das circunstâncias apresentadas, do contrário, continuaremos tendo um povo ignorante que não sabe tomar decisões políticas, nem avaliar a situação conjuntural que se manifesta.

Tiago de França

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a pedagogia do oprimido


Paulo Freire, educador brasileiro e considerado cientista da educação, escreveu a obra Pedagogia da Esperança, que considerada como um “re-dizer” e um reencontro com a Pedagogia do Oprimido, obra escrita e publicada por ele em 1967. Trata-se de releitura crítica onde o autor se reencontra com o primeiro texto. Ele reler a partir das transformações que se dão na realidade e a partir também das críticas recebidas por aqueles que não entenderam a Pedagogia do Oprimido ou discordaram dela.

A centralidade da proposta educacional de Paulo Freire está na ligação que ele faz da educação com a transformação da sociedade. Ele defende a idéia de que a educação tem um papel importantíssimo com o processo de libertação da pessoa humana. Partindo da idéia de que vivemos num estado de opressão constante, os sujeitos que promovem a educação devem utilizá-la como instrumento eficaz de transformação.

A Pedagogia da Esperança se apresenta como um aprofundamento da obra anterior, a que faz referência durante todo o texto. Ele reafirma as primeiras convicções, buscando responder com mais clareza os pontos principais e relevantes. A pedagogia construída por Paulo Freira é uma pedagogia que se constrói a partir da realidade das massas oprimidas. Por isso, ele defende a idéia de que a realidade sofrida das massas é o lugar da construção do saber popular. Um saber que tem cientificidade, mas que está intimamente ligado com a praticidade da vida comum do povo simples.

Ele fala que a esperança é uma “necessidade ontológica” do ser humano. Este precisa da esperança e do sonho para viver e construir um mundo melhor. A educação tradicionalista (pragmática) não leva em consideração o sonho e a esperança; antes, desmerece plenamente o autêntico sentido e valor de ambos, anulando assim a possibilidade do conhecimento transformador. A educação pragmatista promove a adequação do sujeito à ordem social, ou seja, simplesmente ajuda o sujeito a se conformar com aquilo que está estabelecido.

Não se trata de qualquer esperança, mas de uma “esperança crítica”, ou seja, uma esperança que não torna a pessoa estática (paralisada, alienada no tempo), mas que leva para a ação. É uma esperança não-saudosista, uma esperança que faz a pessoa enxergar o opressor “fora de si”, levando-a, ainda, a reinventar a própria realidade e reconfigurar a vida. Desta forma, a educação é como que um “motor” de transformação social, mas que sozinha não pode transformar. A transformação só é possível quando a educação está atrelada à prática política do sujeito. Aqui entra o aspecto da democratização da escola pública, do ensino e de todo o processo ensino-aprendizagem.

A escola precisa falar para o mundo e não para si mesma. Ela precisa levar a pessoa a entender a palavra, mas antes desta, o mundo que o circunda. Ele diz enfaticamente que “a leitura do mundo é anterior à leitura da palavra”, por isso, que no seu método, Paulo Freire defende uma leitura do mundo do estudante, antes de levá-lo ao encontro do puro saber teórico. A realidade crua e nua precisa ser enfrentada pelo educando, que auxiliado pelo educador aprende a fazer uma leitura da realidade pelo viéis da esperança. Esta o leva a superar aquilo que Paulo Freire chama de “situações-limite”.

Ele também fala da importância da linguagem e defende a idéia de que esta é o caminho para a invenção da cidadania. A linguagem tem um papel muito importante na história, pois ela consegue formular e desmascarar as ideologias opressoras e alienantes. O educando, chamado a ser sujeito cognoscente, é um ser de linguagem. A linguagem proporciona a compreensão do pensar e este é chamado a repensar o homem também como ser relacional.
A obra fala ainda da superação dos sectarismos através do ato de educar. Só que não é qualquer ato educacional, mas o ato de educar politicamente. A importância política do ato de educar leva o educando a assumir-se a si mesmo como indivíduo e como classe, libertando-o do “medo da liberdade”. O papel do educador neste processo é de extrema importância, pois a prática educativa que leva em conta o espírito político ou o sujeito como ser social e política é uma prática que também considera o “senso comum” como fonte de saber, pois este revela o que povo pensa e faz, revela a realidade do povo.

Paulo Freire explica ainda o ato de ensinar. O que é ensinar, segundo ele? A resposta é simples: “Ensinar é um ato criador, um ato crítico, não mecânico”. O ato criador de ensinar revela que o educador não pode pensar que é o sabedor de todas as coisas ou que ele leva o saber aos educandos. Isto é pragmatismo. O educador precisa entender que o educando tem um saber a oferecer, pois este não é uma “tábua rasa”, vazia, sem conteúdo. A educação conteudista pensa justamente isto: pensa que o educando não sabe de nada e que veio à escola somente para aprender.

O ato crítico de ensinar revela que toda realidade precisa se compreendida. Nada ocorre por acaso. Tudo tem lugar, personagem, destinatários, causas. Assim, o educador precisa levar o educando a “desconfiar” das coisas tais como se apresentam, pois não há compreensão da realidade sem uma prévia compreensão. O olhar crítico do educando não é o olhar crítico do educador, ou seja, o educando não pode pensar ou ser induzido a pensar conforme o educador. Isto é enquadramento. O educando precisa ser despertado para o pensar e neste encontro fazer o confronto da teoria com a prática social.

Quando o educando pensa sua realidade e a realidade do mundo, tal como este se organiza e funciona, com sua dialética e seus sistemas elaborados, também passar a compreender a história como possibilidade. A história não está pronta, mas é constantemente construída pelos sujeitos sociais e históricos. Nesta construção a luta entra como categoria histórica. Paulo Freire ensina que “é preciso transformar a vida em existência”. Nós existimos. Nós somos. Eu não sou e você não é, mas nos construímos em sociedade. Ele diz a este respeito o seguinte: “Não sou se proíbo você de ser”.

Finalmente, ele fala sobre o medo na vida do oprimido. O medo “paralisa” o oprimido diante do opressor e da opressão. É justamente diante do significado do medo paralisante que ele reforça o conceito de esperança, como elemento fundamental para se recuperar a utopia como sonho possível. O medo é vencido pela esperança que move o ser humano para a luta incansável de um futuro melhor. A leitura crítica da Pedagogia da Esperança nos faz repensar o projeto educacional brasileiro. Trata-se de uma leitura que nos leva a repensar o conceito e o método educacional. Esta magnífica obra de Paulo Freire denuncia a falta de prioridade dos governos brasileiros no que refere à educação de sua gente. Fora da educação libertadora não temos sujeitos conscientes nem transformadores.

Tiago de França

Referência bibliográfica

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 245 p.

Obs.: Esta resenha crítica foi apresentada à disciplina de Didática II do Curso de Licenciatura em Filosofia no Instituto Santo Tomás de Aquino.

domingo, 22 de novembro de 2009

Cristo, rei do universo?


“Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”
(Jo 18, 37).

O ano litúrgico na Igreja termina com a Solenidade de Cristo rei do Universo. Esta solenidade foi instituída pelo Papa Pio XI no ano de 1925. Esta Solenidade se parece muito com o Papa que a criou, pois foi Pio XI que assinou junto ao fascista Mussolini o Tratado de Latrão, que criou o Estado do Vaticano, em 1929. Pio XI se tornou o primeiro Chefe do Estado do Vaticano. Ele era um Papa muito preocupado com os interesses políticos da Igreja e tinha uma visão política da pessoa de Jesus, ou seja, segundo ele, Jesus deveria reinar sobre todos os reinos deste mundo e sendo o Papa o Pontífice e Soberano, detentor do poder espiritual, que supera todos os poderes temporais deste mundo. Em outras palavras, com tal Solenidade o Papa pretendia dizer ao mundo que todos deveriam escutar a Igreja, pois ela foi fundada pelo Rei do Universo. Por isso que a pretensão “fora da Igreja não há salvação” se disseminou facilmente no seio da Igreja com o documento Christus dominus, decreto publicado no pontificado de Paulo VI. Esta é uma visão breve do sentido histórico da Solenidade.

O novo dicionário Aurélio apresenta as seguintes informações sobre a palavra rei: 1. Soberano que rege ou governa um Estado monárquico; 2. Em certos casos, título do marido da rainha; 3. Indivíduo que se distingue entre outros; 4. Aquele que detém poder absoluto. Jesus não se encaixa em nenhum destes significados. A história do reinado de Herodes e dos reis romanos retrata algumas características dos reis: opressores, mentirosos, assassinos etc. Na categoria de opressor se encontra o explorador, o tirano, o manipulador etc. Tudo isto se resume num sistema em que o povo não é livre e plenamente explorado. Quem se opor à vontade do rei é perseguido e assassinado. Todos os membros do reino são súditos do rei. Ele é o senhor. E com o desenrolar da história o rei é coroado pelo Papa em nome de Deus. Diante destas informações, perguntamos: Jesus foi mesmo rei? Estamos certos de que Jesus não tinha nenhuma das características do perfil de rei acima mencionadas.

Jesus não nasceu na corte imperial, mas numa manjedoura de Belém, terra de Judá. O rei é um homem rico e dominador, Jesus nasceu pobre, viveu pobre e morreu pobre, não tinha poder sobre ninguém. Jesus era livre em relação a todos e todos eram livres em relação a Jesus. A autoridade imperial era lembrada constantemente e temida por todos, Jesus não tinha, humanamente falando, autoridade nenhuma. Não podia nada. Jesus nunca se autoproclamou rei dos judeus, nem se impôs como Deus. Alguns pensavam que ele iria reinar neste mundo, tomando o poder de Herodes, mas sua entrega na cruz disse e mostrou o oposto. Jesus foi respeitado pela Boa Notícia que pregou e pelos milagres que fez. Os judeus não o aceitaram como o Messias prometido, nem como Salvador. Não aceitaram Jesus como Filho de Deus, é o que João diz no prólogo de seu evangelho (cf. Jo 1, 11). Nestas condições, pode-se afirmar que Jesus era rei?

Creio profundamente que Jesus até hoje continua sem ser compreendido. Colocaram na cabeça de Jesus uma coroa de ouro, sendo que a sua verdadeira coroa foi de espinhos. Certo dia, entrei na sacristia da Basílica Menor de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte – CE, e vi uma imagem do Cristo rei. Confesso que fiquei escandalizado e pensei imediatamente: “Meu Deus, tiraram as insígnias de Herodes e colocaram em Jesus”. Uma verdadeira deformação da pessoa de Jesus. Precisamos alimentar em nós o Cristo da manjedoura e da cruz. Como diz o teólogo jesuíta Jon Sobrino: “O Ressuscitado é o crucificado”. A partir do que Jesus fez, entenderam que ele queria ser o rei dos judeus e o acusaram disso. Na crucificação, acima de sua cabeça está escrito: “Jesus Nazareno, rei dos judeus”. Os doutores da lei e fariseus, diante do Sinédrio acusaram Jesus de ameaçar o poder de Herodes. De fato, a postura política de Jesus ameaçou qualquer poder opressor, pois ele denunciou as injustiças contra os pobres, mas a acusação tinha o tom de dominação, ou seja, eles acusaram Jesus de querer tomar o poder de Herodes.

É verdade que Jesus fala do Reino de Deus. De fato, ele o inaugurou, mas Jesus ainda não reinou neste mundo. Como poderia Jesus está reinando neste mundo se o mundo está desse jeito, repleto de males? Cremos na construção do Reino de Deus e na volta definitiva de Jesus. Aí, sim, ele reinará, pois haverá novo céu e nova terra, onde a justiça e o amor prevalecerão. Os homens reinam e governam tendo em vista seus interesses particulares. Jesus reinará na justiça, na verdade e no amor (cf. Is 11, 1 – 9). Ele diz a Pilatos o que veio fazer neste mundo: “dar testemunho da verdade”. Enquanto eles estavam preocupados com o poder, Jesus pensava na verdade. Em outro trecho do mesmo evangelista está escrito: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32). É a verdade que precisa reinar, pois libertos da mentira e da confusão construímos um mundo melhor. A realidade de nosso mundo mostra que a mentira e a falsidade fazem parte das relações entre os homens, enquanto seguidores de Jesus somos chamados a viver na verdade. Não há seguimento de Jesus fora da verdade, pois esta identifica o autêntico cristão.


Tiago de França

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Dia Nacional da Consciência Negra


No dia 20 de novembro de cada ano, os brasileiros são convidados a refletir sobre a Consciência Negra. Os negros fazem parte da história e da formação do povo brasileiro. Todo brasileiro é fruto da mistura de brancos, índios e negros. Ninguém escapa disto. O sangue que corre em nossas veias é sangue de branco, de negro e de índio. Somos um povo miscigenado. Somos uma raça misturada. Somos uma diversidade de costumes e culturas. Tudo é muito rico e precisa ser valorizado, pois a miscigenação constitui a nossa identidade cultural.

Houve tempos no Brasil e também no mundo, em que havia duas raças: a do branco e a do negro. A vocação do branco era para ser senhor e a do negro ser escravo. Somente o branco é que podia ser padre, prefeito e doutor. Negro só servia para o serviço braçal, para servir às mesas, para a limpeza da casa e do serviço da cozinha, para cuidar dos animais e para cultivar a terra do patrão. O negro não precisava de documento, pois era vendido como mercadoria no mercado de escravos. O cidadão era o homem e a mulher brancos.

Para amenizar a dor e o sofrimento de sua condição, o negro dançava a capoeira e praticava o candomblé. Na invocação aos espíritos e entidades, procuravam alívio e sentido para a existência. Nas fazendas dos brancos católicos, o padre celebrava a Missa para que os negros pudessem ser dóceis com seu senhor. Não o senhor Deus, mas o senhor de engenho! Todos eram batizados e obrigados a professar a fé católica, mas como não se identificavam com a difícil e complexa doutrina católica, os negros se mantiveram fiéis ao candomblé e às demais práticas religiosas condenadas pela Igreja como “obras das trevas” e “satânicas”.

No século XVII, antes mesmo da princesa Isabel assinar a Lei Áurea, decretando a abolição da escravatura no Brasil, viveu em Alagoas a extraordinária e intrigante figura de Zumbi dos Palmares. Este era líder do Quilombo dos Palmares, comunidade que chegou a reunir mais de trinta mil escravos fugitivos de vários engenhos da região. Tratava-se de uma experiência de liberdade, vivida por homens e mulheres que não suportando mais o regime de escravidão, reuniam-se na vida comunitária formando uma realidade que ameaçou à ordem social vigente e incomodou os senhores de engenho. Aos vinte e cinco anos de idade, Zumbi se tornou líder da Comunidade quilombola e aos quarenta anos foi executado pelo bandeirante Domingos Jorge Velho a mando do Governador da Província de Pernambuco, no dia 20 de novembro de 1695.

Zumbi é símbolo da coragem, da ousadia e da liberdade. É símbolo de resistência na luta contra a escravidão, a discriminação e o preconceito raciais. A liberdade é constitutiva do ser humano e este só se realiza na liberdade. Todo homem e toda mulher deve ser livre. Ninguém deve ser escravo. Todo e qualquer tipo de escravidão contraria e fere a condição humana. É inaceitável o racismo e o preconceito contra toda e qualquer pessoa humana, seja ela branca ou negra. Não somos várias raças de seres humanas, mas somente uma, pois não há várias espécies de seres humanos, mas somos uma única espécie animal-racional. A Constituição do país é clara ao afirmar que todos são iguais perante a lei, apesar da violação dos direitos humanos. A intolerância nas relações sociais entre os seres humanos de diferentes cores e culturas é intolerável. As diferenças que se manifestam na diversidade cultural não podem gerar indiferenças.

A história prova que também a Igreja praticava o racismo e a discriminação contra os negros. Somente após o Concílio Vaticano II é que os negros puderam se tornar clérigos (padres, bispos e cardeais). É verdade que muitas vozes na América Latina levantaram-se contra a escravidão dos negros antes do Vaticano II. Podemos citar o Bispo de Chiapas (México, séc. XVI), o dominicano Bartolomeu de Las Casas. Mas diante da opressão, geralmente, a Igreja a legitimava covardemente por considerar “coisa normal” da época. Depois de muita reflexão, a Igreja optou por denunciar o racismo e se opor veementemente contra o preconceito racial. Há vinte anos foi fundada na Igreja a Pastoral Afro-brasileira, que visa “dar uma organicidade às diferentes iniciativas dos negros católicos que marcam presença na vida e na missão da Igreja” (cf. Site da CNBB, pastoral afro-brasilera). No Governo Lula também foi criada em março de 2003 a Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial, órgão da Presidência da República que coordena políticas afirmativas de proteção aos direitos de indivíduos e de grupos étnicos e raciais afetados por discriminações e outras formas e intolerância, com ênfase na população negra.

A luta dos negros por igualdade de direitos e deveres é uma luta por libertação. O testemunho da Sagrada Escritura mostra claramente que Deus não faz distinção de pessoas. Deus é de toda humanidade, raça de muitas cores e culturas. O autêntico seguidor de Jesus não pode praticar o racismo e/ou a preconceito racial, mas sentir-se e ser igual a todos, e lutar pela igualdade de todos. Os negros são chamados a não se sentirem inferiores aos brancos, pois não deve haver superioridade de cor entre os humanos. Se houvesse no Brasil uma consciência autenticamente formada, não precisaríamos reservar cotas para os negros ingressarem nas universidades, pois o negro não é inferior ao branco em matéria de inteligência e/ou capacidade intelectual. Um exemplo disso é o negro Joaquim Barbosa, Ministro do Supremo Tribunal Federal, mineiro de família pobre, que sempre estudou em escola pública e fez mestrado e doutorado em Direito pela Universidade de Paris, França.

Lutemos para que a justiça prevaleça em nosso país. Que os negros e os demais homens e mulheres de todas as cores e culturas aprendam a viver tolerantemente suas diferenças. Não somos melhores ou piores do que os outros, somos apenas diferentes. Que o amor, que supera toda e qualquer indiferença, nos faça viver unidos na diversidade e nas diferenças.


Tiago de França

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Uma assembléia


Contam que, em uma marcenaria, houve uma estranha assembléia.

Foi uma reunião onde as ferramentas juntaram-se para acertar suas diferenças.

Um martelo estava exercendo a presidência, mas os participantes exigiram que ele renunciasse.

A causa?

Fazia demasiado barulho e além do mais, passava todo tempo golpeando.

O martelo aceitou sua culpa, mas pediu que também fosse expulso o parafuso, alegando que ele dava muitas voltas para conseguir algo.

Diante do ataque o parafuso concordou, mas por sua vez pediu a expulsão da lixa.

Disse que ela era muito áspera no tratamento com os demais, entrando sempre em atritos.

A lixa acatou, com a condição de que se expulsasse o metro, que sempre media os outros segundo a sua medida, como se fosse o único perfeito.

Nesse momento entrou o marceneiro, juntou todos e iniciou o seu trabalho.

Utilizou o martelo, a lixa, o metro, o parafuso...

E a rústica madeira se converteu em belos móveis.

Quando o marceneiro foi embora, as ferramentas voltaram à discussão.

Mas o serrote adiantou-se e disse:

- Senhores, ficou demonstrado que temos defeitos, mas o marceneiro trabalha com nossas qualidades, ressaltando nossos pontos valiosos...

Portanto, em vez de pensar em nossas fraquezas, devemos nos concentrar em nossos pontos fortes.

Então a assembléia entendeu que o martelo era forte, o parafuso unia e dava força, a lixa era especial para limpar e afinar asperezas, e o metro era preciso e exato.

Sentiram-se como uma equipe, capaz de produzir com qualidade; e uma grande alegria tomou conta de todos pela oportunidade de trabalharem juntos.

O mesmo ocorre com os seres humanos.

Quando uma pessoa busca defeitos em outra, a situação torna-se tensa e negativa.

Ao contrário, quando se busca com sinceridade os pontos fortes dos outros, florescem as melhores conquistas humanas.

É fácil encontrar defeitos...

Qualquer um pode faze-lo !

Mas encontrar qualidades?

Isto é para os sábios !

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Algumas afirmações sobre Jesus de Nazaré


No domingo passado (15/11) fui convidado para falar sobre Jesus de Nazaré para um grupo de crismandos em um retiro. Então, diante do Evangelho de Jesus resolvi fazer algumas afirmações a respeito da pessoa e da vida de Jesus de Nazaré. Comentei sobre cada uma destas afirmações com os jovens. Eles ficaram um pouco “escandalizados”, pois, como esperava, percebi que eles tinham e/ou ainda têm uma imagem equivocada sobre Jesus. Cada afirmação merece um estudo aprofundado, mas por agora prefiro simplesmente partilhar tais afirmações. Na medida em que for lendo, convido-o a pensar sobre cada uma delas. Ei-las:

- Iniciemos com uma indagação: Qual a imagem que tenho sobre Jesus? Jesus não é uma idéia na história, mas uma pessoa.

- Outra indagação: O que se diz sobre Jesus? O Evangelho é a fonte segura de informações sobre Jesus (cf. Mc 15, 39).

- Jesus nasceu na pobreza de Belém, viveu pobremente no meio do povo pobre e morreu pobre na Cruz.

- Jesus foi enviado pelo Pai com a missão de inaugurar o Reino de Deus.

- Jesus foi igual a nós em tudo, exceto no pecado (cf. Hb 4, 15).

- Jesus foi amigo dos pecadores e comia com eles (cf. Mt 11, 19).

- Jesus não era sacerdote, nem levita, nem doutor da lei, mas filho de carpinteiro. Não exercia função importante na sociedade.

- Jesus realizou milagres para manifestar a presença de Deus (cf. Jo 9, 1 – 3). Ele não fazia para chamar a atenção, ou para ficar famoso e ser temido, mas para dizer que Deus é libertador.

- Jesus não era rei. Nunca se afirmou superior aos homens, apesar de sê-lo.

- Jesus não veio ao mundo para satisfazer os desejos das pessoas.

- Jesus nunca pediu para ser adorado pelos homens, mas pediu para que o seguissem.

- Jesus não veio para algumas pessoas, para uma religião ou para algum grupo, mas para toda a humanidade.

- Jesus não tem recompensa material para dar as pessoas. Ele não veio ao mundo para solucionar os problemas materiais e espirituais das pessoas.

- Jesus está no mundo, no meio do povo, presente na luta dos pobres (cf. Mt 28, 20).

- Jesus era livre e defendeu e promoveu com a própria vida a liberdade do ser humano.

- Jesus é centro da fé, da espiritualidade cristã e da vida do cristão. Crer nele é segui-lo dentro ou fora do Cristianismo.

- Jesus não é o Salvador das almas, mas da pessoa humana e de toda a Criação.

- Jesus é igual a Deus. Deus é amor. O mandamento de Jesus é o amor.

- Quem praticar o mandamento do amor será salvo, tendo prática religiosa ou não.


Tiago de França

sábado, 14 de novembro de 2009

Os sinais dos tempos


“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13, 31).

Não basta ao homem ser culto ou inteligente para ler os sinais dos tempos. A sabedoria meramente humana não leva o homem a enxergar o que o Espírito do Senhor revela na história. Enxergam-se e compreendem-se os sinais de Deus na história com os olhos da fé e com a iluminação do alto. Por isso mesmo, os homens de hoje, mesmo dotados da tecnologia e do avanço das ciências, estão como que perdidos sem saber que rumo tomar para a história.

A confusão de nossos dias, a insegurança do amanhã e a dispersão da comunidade humana são sinais vivos do esquecimento de Deus. É inegável a contribuição eficaz das ciências e dos frutos da inteligência humana para a qualidade de vida e o conforto para o corpo, mas é inadmissível que tenhamos tudo e percamos o fundamento de nossa existência. Deus é o fundamento de nossa existência.

Estamos no tempo do desespero da crise econômica, que aos poucos se acalma; da crise ambiental que se acentua; na trilha sem volta de um fim trágico. Falar de esperança e vivê-la nos dias de hoje é como que a água fecundando a terra seca. A terra sem a água fica como que infértil, sem vida. Assim é o homem que resolveu não mais acreditar na esperança que o impulsiona para a vida, fica seco, sem motivação para nada, torna-se pessimista e insuportável.

O Espírito do Senhor revela-nos o sentido e o valor da vida humana. Na criação do mundo, tudo foi criado pela palavra de Deus. Quando deu vida ao homem, Deus soprou-lhe as narinas e o homem se tornou um ser vivente. Nós somos seres vivos e não podemos viver como mortos. Ultimamente, a morte tem se manifestado tragicamente entre nós. Ela parece nos amedrontar, querendo nos imobilizar diante da vida. Mas não desesperemos, pois ela só tem aspectos que nos causam medo, mas a vida é maior. A vida é simples e está acima de todas as coisas. A vida do planeta, a vida do homem, a vida do cosmos é insuperável.

Encontro idosos, que diante do desespero das pessoas, desejam morrer. Encontro crianças, que olham para o futuro e não sabem o que querem ser. Encontro jovens, que desorientados no meio da confusão, desistem dos sonhos e mergulham na ficção do cinema norte-americano, no mundo das drogas e no pessimismo paralisante. Como poderá o mundo ter futuro se seus habitantes agem desta forma? Renovar a esperança que nos salva e que nos revigora diante dos sinais de morte que ameaçam a vida é urgentemente necessário. Anunciar e acreditar no Evangelho de Jesus hoje é anunciar e crer na esperança de um mundo melhor e possível.

No meio do barulho que nos ensurdece, resistindo ao sensacionalismo da mídia que pode nos alienar e crentes de que no mais profundo de nós o querer viver e viver dignamente está mais vivo do que nunca, nos unamos na esperança de um futuro melhor. Engajemo-nos nas iniciativas de promoção da vida. O Deus da esperança e da consolação está conosco. Ele é a vida plena e nos ama profundamente, muito mais do que ousamos pensar.

A Palavra revela que o desejo do coração de Deus é a vida plena da humanidade. As palavras dos homens passam, mas a certeza e a esperança que a Palavra gera em nós, jamais passarão. Acreditemos na Palavra de Deus, pois ela é a nossa salvação. O amor tudo pode e tudo transforma. Acreditemos no amor. Acima e apesar de tudo, amemos, pois fora do amor estamos perdidos.


Tiago de França

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Festa da Vida: Identificar, contemplar e celebrar


A sociedade capitalista de nossos dias é mercada pelos inúmeros sinais de morte que nos causam medo e angústia. O medo e a angústia imobilizam o ser humano na defesa e promoção da vida. Há duas violências que maltratam impiedosamente a humanidade hoje: a violência urbana e a violência ambiental. Para combatermos tais violências é preciso diagnosticá-las. VER a realidade crua e nua, JULGAR a partir da fé e do testemunho cristão e AGIR conforme o Evangelho de Jesus.

As estatísticas mostram que a violência está presente em todos os setores e realidades da vida humana. O homem, com o passar do tempo, está cada vez mais violento. Será isto fruto do acaso? De jeito nenhum! Todo e qualquer tipo de violência têm causas, personagens e lugares de atuação. Por isso, o cristão precisa se conscientizar da necessidade de ver bem tais realidades, a fim de que não possa se deixar alienar e pensar que é coisa do acaso ou do destino. Não há acaso, nem destino, quando se trata de violência; o que há é uma sociedade doente, internada na “UTI do descaso” e mergulhada nas injustiças sociais.

As injustiças de ordem política, econômica, cultural, religiosa e social causam a morte do homem na Terra. Governantes descomprometidos com verdadeiras políticas públicas de educação, saúde, segurança, moradia etc.; o racismo e o preconceito contra as minorias negras, analfabetas e pobres; a disputa ingênua e desrespeitosa entre as Igrejas e denominações e as profundas desigualdades sociais desumanizam a pessoa, tirando-lhe a vida. Todos querem viver, mas as condições básicas para a manutenção da vida é escassa e a falta de respeito para com o homem e o planeta é vergonhosa.

Diante de tantas injustiças, o cristão e o cidadão precisam mergulhar na luta por libertação. As reclamações, as denúncias, as insatisfações, as revoltas, as críticas e o número acentuado de desesperados são muitos, mas a sociedade carece de iniciativas radicais e revolucionárias para a transformação da realidade. É urgente que os poderes estabelecidos e reconhecidos se sensibilizem com as verdadeiras causas dos que padecem as injustiças. Os poderes públicos são responsáveis, segundo a Constituição do país, de defender e promover a vida e os direitos de todos os brasileiros. Se isto não ocorre, é necessário que a população tome conhecimento de seus direitos e reivindique pelo diálogo e pelo voto o cumprimento dos direitos já reconhecidos.

A participação na vida pública é deve do cidadão consciente que almeja um país melhor. A vida é publica e não particular. Todos merecem viver dignamente. Isto é um direito. Se o direito à vida está sendo violado é porque os sujeitos agredidos não movem suas forças na luta por libertação. A sociedade brasileira precisa acordar do “sono alienante” a que está submetida. Os direitos humanos precisam ser respeitados e revigorados, mas para que isto aconteça é necessário que todo cidadão mergulhe sem medo na discussão pública dos direitos e exija participar das decisões e dos rumos traçados para o país. Precisa-se urgentemente de uma democracia participativa, pois sem a participação do povo nos atos governamentais é impossível a construção da cidadania. Os governantes se mostram cada vez mais insensíveis e corruptos graças à falta de consciência política do povo brasileiro, que não sabe eleger mulheres e homens dignos da vocação política.

A sociedade civil organizada é motivo de ameaça para governantes descomprometidos com a trágica situação social, pois a organização dos membros da sociedade gera consciência e mobilização em favor da justiça e da verdadeira ordem social. Os poderosos da nação, proprietários do capital especulativo e opressor buscam sempre anular e incriminar a luta dos pobres por libertação. Um exemplo disso é o que está acontecendo com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, que está sendo incriminado por segmentos políticos e latifundiários, insatisfeitos com as conquistas dos pobres em matéria de Reforma Agrária. O brasileiro precisa fazer uma leitura crítica da ação mentirosa e danosa dos detentores corruptos do poder, pois usam a lei e o discurso moralista para inviabilizar a luta dos oprimidos por libertação.

Diante desta calamitosa situação, o que a Igreja e demais Igrejas podem fazer para ajudar os pobres a ter mais vida e vida em abundância, como aponta-nos o Evangelho de Jesus? O Concílio Ecumênico Vaticano II afirmou enfaticamente: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para comunicá-la a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história” (Gaudium et Spes, n. 1).

O discípulo é toda pessoa que, pelo batismo e pela fé, aderiu ao projeto salvador de Jesus de Nazaré. O seguidor de Jesus deve permanecer unido ao clamor dos injustiçados, pois foi para os oprimidos que Jesus veio a este mundo. Ele veio para que todos possam ter vida e vida em abundância (cf. Jo 10, 10), e preferencialmente os pobres (cf. Lc 4, 18). E a Igreja, que busca ter uma fidelidade constante a Jesus, deve também fazer a opção de Jesus. O texto evangélico prova claramente que Jesus optou pelos pobres, pois nasceu, viveu e morreu pobre entre os pobres. Quando nasceu, não tinha onde nascer; quando viveu, não tinha onde reclinar a cabeça e quando morreu, não tinha onde ser sepultado. Desta forma, é inegável que, pelo desígnio do Pai, Jesus abraçou com alegria a condição dos pobres.

Nos documentos conferenciais do CELAM - Conselho Episcopal Latino-americano e do Caribe, desde Medellín até Aparecida, a Igreja resolveu, a exemplo de Jesus, fazer a opção preferencial pelos pobres. Assim diz o Documento de Aparecida, n. 397: “Nesta época costuma acontecer de defendermos de forma demasiada nossos espaços de privacidade e lazer, e nos deixemos contagiar facilmente pelo consumismo individualista. Por isso, nossa opção pelos pobres corre o risco de ficar em um plano teórico ou meramente emotivo, sem verdadeira incidência em nossos comportamentos e em nossas decisões. É necessária uma atitude permanente que se manifeste em opções e gestos concretos228, e evite toda atitude paternalista. É solicitado que dediquemos tempo aos pobres, prestar a eles uma amável atenção, escutá-los com interesse, acompanhá-los nos momentos difíceis, escolhê-los para compartilhar horas, semanas ou anos de nossas vidas e, procurando, a partir deles, a transformação de sua situação. Não podemos esquecer que o próprio Jesus propôs isso com seu modo de agir e com suas palavras: “Quando deres um banquete, convida os pobres, os inválidos, os coxos e os cegos” (Lc 14,13).

Ao mesmo tempo em que a Igreja reconhece a necessidade de se fazer a opção preferencial pelos pobres, também reconhece que tal opção ainda não foi feita plenamente. A opção preferencial pelos pobres é muito importante na defesa e promoção da vida, pois os pobres são, desde sempre, as maiores vítimas das injustiças sociais. É a vida dos pobres que está ameaçada. Optar pelos pobres não é somente assisti-los em suas necessidades materiais e espirituais, por meio da caridade evangélica, mas aderir às suas lutas por libertação. Neste sentido, a Igreja no Brasil tem feito um trabalho exemplar nas várias pastorais e organismos que compõem a ação laica da Igreja, mas diante da terrível situação a que assistimos a ação da Igreja é como que uma gota d’água no oceano. É preciso valorizar o que já se tem feito e intensificar cada vez mais a ações em favor da vida.

É verdade que não cabe somente à Igreja resolver os problemas sociais, pois temos governantes e Estados de Direitos constituídos, cuja responsabilidade na promoção humana é total. Na sociedade democrática e na vivência eclesial da fé todos somos responsáveis pelo respeito e promoção à dignidade da pessoa humana. Enquanto cristãos, Jesus se apresenta como o modelo de homem justo, pois seu testemunho foi pautado na prática da justiça. E como somos chamados a segui-lo, faz-se urgentemente necessário que a justiça faça parte do cotidiano de nossas vidas. É impossível seguir Jesus fora do caminho da justiça, conseqüentemente, é impossível construirmos uma sociedade nova sem o contributo da justiça. O Deus de Jesus e nosso Deus é o Deus da justiça, da verdade e da vida, para crermos nele precisamos viver a justiça e a verdade, pois só assim teremos vida.

É acreditando que a vida está acima de todas as coisas, que a Arquidiocese de Fortaleza, depois de ter celebrado a Campanha da Fraternidade de 2008, que teve como tema: “Escolhe, pois, a vida”, resolveu promover uma grande Festa pela Vida, que ocorrerá no dia 12 de dezembro do corrente ano, no CEU – Condomínio Espiritual Uirapuru, com o objetivo de identificar, contemplar e celebrar o sentido e o valor da vida, os sinais e a ações em favor da vida presentes nas comunidades eclesiais. Roguemos ao Deus da liberdade e da vida que torne os nossos corações sensíveis à dor e ao sofrimento de nossos irmãos e irmãs que padecem a violência das injustiças e que o Espírito que habita em nós nos impulsione à ação.

Tiago de França

Obs.: O presente artigo foi escrito a pedido do Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Fortaleza, Dom José Luiz, por ocasião da Festa da Vida.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Saber amar


"Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar".

(Machado de Assis)

domingo, 8 de novembro de 2009

Relatório da ONG Save the Children


Mais uma vez as notícias sobre a situação climática do planeta não são boas. Lendo o caderno Ciências do jornal Diário de Minas, edição deste domingo (08/11), encontrei o resultado sintetizado do relatório Feeling the heat – child survival in a chanching climate (sentindo o calor – a sobrevivência das crianças nas mudanças climáticas) da ONG Save the Children, lançado em Barcelona sobre as mudanças climáticas. Antes de apresentá-lo, peço ao leitor que não perca a esperança, pois, apesar das notícias não muito boas, precisamos continuar acreditando na vida. Acreditar na vida é alimentar a esperança que nos leva a posturas éticas em nosso relacionamento com o meio ambiente. Os números abaixo retratam nossa realidade. Não nos excluamos, nem fechemos os olhos diante dela. Os números denunciam a falta de consciência do homem na sua relação com a mãe natureza.

- 2 milhões de crianças com menos de 5 anos morrem anualmente por causa de doenças de fácil prevenção e tratamento. Cerca de 85 mil óbitos estão relacionados com as mudanças climáticas;

- Os casos de diarréia deve aumentar entre 2 e 5 por cento em 2009 nos países com renda per capita anual menor que US$ 6 mil. Em algumas partes da África, o aumento poderá ser de 10%;

- A malária já é responsável pela morte de 1 milhão de crianças por ano, sendo que 80% têm menos de 5 anos. Na África, a cada 30 segundos, uma criança morre em decorrência da picada do mosquito transmissor;

- Estima-se que, em 2050, 25 milhões de crianças estejam subnutridas;

- 45 milhões de pessoas passam fome no mundo como resultado direto da mudança do clima. A previsão é de que esse total aumente entre 80 e 210 milhões nas próximas décadas;

- 325 milhões de pessoas já são seriamente afetadas pela mudança climática. Quatro bilhões de pessoas estarão vulneráveis no futuro e 500 milhões se encontrarão em risco extremo;

- O percentual de territórios que sofrem severos períodos de seca passou, nos últimos 10 anos, de 1 para 3 por cento. A estimativa é que o índice chegue a 8% em 2020 e a 30% no fim do século;

- As safras de alimentos devem diminuir por volta de 50% na África em 2020. Em algumas partes da Ásia, é esperada a queda de 20%,

- Fontes de água potável vão secar, deixando 1,8 bilhão de pessoas a mais sem acesso à água por volto de 2080.

A tomada de posição por parte dos países emissores de dióxido de carbono é urgente, principalmente os EUA, que são os maiores poluidores. Se estas informações passarem despercebidas, não sei o que será do futuro da humanidade.


Tiago de França

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A esperteza e os espertos


O mundo é dos espertos
Mas também dos que não são
Os que são, pensam que vivem melhor
Vivendo na ilusão

A esperteza é amiga da vantagem
Esta é amiga do tirar proveito
Este é amigo daquilo que é bem feito
Das incertezas e dos jeitos

Desvantagens são para os lerdos
Que vivem dormindo na lentidão
De uma vida que passa despercebida
Aproveitada pelos espertos de plantão

Vantagens e desvantagens
Esperteza e lerdeza
Ilusão e realidade
Qual a vantagem da esperteza?

Na vida temos as circunstâncias
Onde o eu pode ser encontrado
Dependendo de cada ocasião
O esperto pode ser encontrado

A vida é um só dilema
Para espertos ou não
Uns sofrem mais, outros menos
O padecer e a finitude, a esperteza não transforma em ilusão

Lerdos ou espertos
Na vantagem ou na desvantagem
Todos os homens são iguais
Porque tudo o que é vivo
Morre


Tiago de França

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Viver


Nasci e comecei a morrer
Comecei a nascer
Morrendo

Morri e comecei a nascer
Comecei a morrer
Nascendo

Nascer
Começar
Morrer

Morro
Quando começo
A nascer

Esta é a dialética do vir-a-ser, viver.


Tiago de França

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Renunciar por amor


“Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim não pode ser meu discípulo.
Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem,
não pode ser meu discípulo!”
(Lc 14, 27.33)

A renúncia é uma das exigências do seguimento de Jesus de Nazaré. Sem renúncia é impossível segui-lo, pois optar por ele é renunciar a tudo o que se opõe ao Evangelho. Toda renúncia exige um esforço humano para ser realizada, juntamente com a graça de Deus que colabora no desprendimento daquilo que impede a pessoa de seguir Jesus. A graça não substitui a ação humana, mas colabora gratuitamente. É a ação divina na vida da pessoa que crer naquele que é a Vida. A graça divina não faz distinção de pessoas, mas age em toda pessoa que implora o auxílio divino na vivência dolorosa da experiência humana neste mundo. A ação divina em nós é silenciosa, humilde e oculta. Pela graça entramos em comunhão com Aquele que deseja ardentemente permanecer em nós e nos move para o bem. Este mover-se para o bem é a renúncia a todo o mal do mundo. É a ação de Deus em nós que nos capacita a fazermos o bem e evitarmos o mal.

O versículo 27 do capítulo 14 de Lucas como se pode conferir acima, apresenta Jesus com a exigência de se carregar a cruz. Trazendo para o hoje de nossa vida, quero transcrever um pensamento de um amigo professor do Seminário da Prainha: “É muito fácil e apetitoso trair Nosso Senhor pelo dinheiro ou pela fama, o difícil é abraçar sua cruz com amor”. Recebi recentemente por e-mail este pensamento. O autor estudou para ser padre, mas depois de concluída a formação do Seminário, optou pelo sacramento do matrimônio e hoje faz parte das Equipes de Nossa Senhora, movimento cristão que reflete sobre a realidade matrimonial. O autor do pensamento acima optou pelo matrimônio não por causa do celibato exigido pela Igreja, mas por causa da pobreza do ministério presbiteral. Quando estudava com ele História da Igreja e Economia e em nossas conversas informais, explicava-me que o presbítero e o bispo na Igreja devem ser homens pobres, e que somente a Igreja sendo pobre é que poderá ser escutada pelos pobres. Recordo-me de Dom Hélder Câmara que sonhava com a “Igreja dos Pobres” e que ensinava que quando a Igreja tornar-se pobre, o povo seria verdadeiramente Igreja e a Igreja verdadeiramente Povo de Deus.

Abraçar a cruz de Nosso Senhor com amor nos moldes da Igreja e da sociedade atual é algo dificílimo, porque tudo converge para o poder que se manifesta nas estruturas. O dinheiro e a fama, valores do capitalismo neoliberal, juntamente com o poder e a vaidade, também se infiltraram na vida da Igreja. Não preciso citar nomes de padres e bispos carreiristas, que só pensam na fama, no dinheiro, no poder e na vaidade; que são anti-valores evangélicos, que somente atrapalham na edificação do Reino de Deus entre nós. Abraçar a cruz de Nosso Senhor com amor é renunciar a tudo isto. Renunciar é uma experiência desagradável, humanamente falando, uma vez que somos seres tendenciosos. As influências de nossa sociedade doentia afloram as más tendências que há no homem tornando-o escravo de si mesmo e dos outros. Inebriado pelo poder, o homem se esquece do amor de Deus e do cuidado para com seu semelhante. Por isso que comecei esta reflexão falando do papel da graça em nós, pois sem ela não conseguimos agradar a Deus, nem nos libertarmos do fascínio do poder.


O versículo 33 do capítulo 14 de Lucas apresenta Jesus exigindo a renúncia de tudo o que se tem. É impossível negarmos que este versículo se refere às pessoas ricas, àquelas que detêm o poder financeiro. Os pobres, financeiramente, não têm nada para renunciar. É verdade que muitos pobres precisam renunciar a falta de união, de perseverança na luta pela libertação e a ambição pelo ter e pelo poder, pois temos muitos pobres que desejam ardentemente riquezas e poder, e quando conseguem ficar ricos passam da condição de explorados para a condição de exploradores. Um exemplo disso são muitos de nossos governantes, que desejaram e conseguiram ser eleitos tendo em vista somente os altos salários e mordomias, além dos desvios de verbas públicas. Na política, enveredar pelos caminhos da corrupção é mais cômodo e mais fácil que pelos da justiça e retidão. A situação é tão viciosa que muitos afirmam que político justo não existe e se existir não dura por muito tempo!

Para concluir e ilustrar esta reflexão apresento brevemente dois nomes que retratam muito bem o testemunho da renúncia ao poder e às riquezas. Trata-se de um Padre e de um Bispo. O Pe. José Antônio de Maria Ibiapina, mais conhecido como Padre-mestre Ibiapina, nasceu em Sobral, CE, em 1806 e faleceu em 19 de fevereiro de 1883, em Santa Fé, PB. Em 1832 recebe o título de Bacharel em Direito pela Faculdade de Olinda, PE, tornando-se em seguida professor da mesma. Em 1834 e 1835 foi nomeado Juiz de Direito de Quixeramobim, CE. De 1834 a 1837 foi Deputado Estadual da Província do Ceará. Concluído o mandato, resolveu regressar para o Recife, onde começou a advogar em favor dos pobres que não tinham condições para pagar advogados. Exerceu a mesma profissão na Paraíba, entre os anos 1838 e 1839. Depois disso, resolveu se recolher num retiro espiritual de três anos consecutivos para uma reflexão sobre a própria vida. Logo após, decidiu-se pelo ministério presbiteral. Tendo estudado Teologia, é ordenado por Dom João da Purificação Perdigão, Bispo de Pernambuco, em 26 de julho de 1853. Devido à aguçada inteligência, Dom João o nomeia Vigário Geral, Provedor do Bispado e professor de Eloqüência do Seminário de Olinda, mas não se deixando seduzir por tais ofícios honrosos, o Padre-mestre Ibiapina resolveu ir ao encontro dos pobres do Nordeste, como missionário. Não foi recebido em algumas dioceses, devido à inveja dos Bispos, mas foi bem acolhido pelos prediletos de Jesus, os pobres, a quem serviu pela prática da caridade. Faleceu com fama de santidade em sua Casa de Caridade preferida, em Santa Fé, PB, rodeado por suas santas beatas, mulheres dadas à caridade evangélica. Seu processo de canonização já está aberto em Roma. O Apóstolo do Nordeste já é reconhecido pela Igreja como Servo de Deus, após documento emitido pela Santa Sé em fevereiro de 1992. Padre-mestre Ibiapina é um exemplo de homem humilde e simples, de seguidor de Jesus de Nazaré junto aos pobres.

O segundo nome é mais conhecido ainda, pois viveu entre 1909 a 1999. Dom Hélder Pessoa Câmara nasceu em Fortaleza, CE e morreu em Recife, PE. Foi um dos maiores profetas do século XX, o maior da Igreja do Brasil. Fundador da CNBB e do CELAM, trabalhou incessantemente pela conversão da Igreja. Foi poeta, escritor, místico e santo. Quem o conheceu de perto sabe de sua sensibilidade e humildade para com os sofredores da sociedade de seu tempo. Dotado de um espírito crítico e perspicaz estava atento aos problemas sociais que assolavam a vida dos pobres. Homem de extraordinário poder de comunicação denunciou corajosamente a ditadura militar dentro e fora do Brasil. Amigo da verdade e da transparência ajudou a Igreja a repensar o processo de evangelização no Brasil. Identificado com a simplicidade, morreu pobremente entre os pobres em Recife, PE. Dom Hélder foi exemplo de cristão e de Bispo para a sociedade e para a Igreja. Tocados por tais exemplos possamos também trilhar o caminho de Jesus de Nazaré, que passa pela renúncia a toda espécie de poder opressor, portanto, contrário ao Evangelho da vida e da liberdade.


Tiago de França

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A morte na poesia


A morte, sem dúvida, também é um tema, objeto de pesquisas e preocupações. Negá-la como fato é difícil. Admitir as perplexidades que a cercam é quase uma virtude, principalmente amparada pelo equilíbrio mental. Querer fugir à realidade de que, ainda, ela assusta, é arriscado intelectualmente.

A morte amedronta? Meu velho tio, brincando, sempre dizia que: "Se a morte é descanso, prefiro viver cansado." A gente ria, mas no fundo aprendeu-se. Já na minha juventude, lia muito poesia e encontrei muitos versos dedicados à morte. Diversos os conceitos, variadas as posições frente à temática. Mas, percebi que, de fato, a morte é, existe e representa, sim, a única e definitiva certeza da vida. Já muitos o disseram.

Gostava do "Poeta do hediondo", o nosso Augusto dos Anjos que, no célebre soneto com esse título, confessou:

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

Quando me decidi a examinar o tema, vi-me assustado. Lembrei-me de um chiste de Woody Allen, que colhi em Dicionário de Pensamentos, muito interessante:

Não que eu esteja
com medo de morrer.
Apenas não queria estar lá
quando isso acontecesse.

Brincadeira séria, reflete mais ou menos a maioria dos seres vivos quanto à Morte. Quevedo, também, oscila em seis versos significativos:

O que chamais de morrer
é acabar de morrer
E o que chamais nascer
é começar e morrer
E o que chamais viver
É morrer vivendo.

Gostei de esgrimir com a morte. Senti-a, às vezes, amedrontadora. Outras vezes, convidativa. Outras, ainda, repulsiva e indesejável. Quase sempre a senti um pouco misteriosa, assim como se pouco sabida, pouco entendida e pouco explicada. Daí ter me inclinado a examiná-la em relação à Poesia. Os poetas, como sempre, falam bonito das coisas. Adivinham, têm olhos cismadores, fantasiam, acalmam, afastam o medo e a depressão. Com a morte eu bem senti isso. E caminhei. Não sei se cheguei...
O que é a morte?
São Paulo decifrou-a:
"A morte é passagem para a vida definitiva". (2 Coríntios, 4, 16-18 e 5, 1-10)

Eurípedes, o trágico poeta grego, já refletia indeciso por volta de 480 a.C.:

Morrer deve ser como não haver nascido
e a morte talvez seja melhor até que a vida
de dor e mágoas, pois não sofre
quem não tem a sensação dos males.

Fernando Pessoa considerava a morte um "enigma" e falou disso em seus versos:

O que é a vida e o que é a morte
Ninguém sabe ou saberá
Aqui onde a vida e a sorte
Movem as cousas que há
Mas, seja o que for o enigma
De haver qualquer cousa aqui
Terá de mim o próprio estigma
Da sombra em que eu vivi.

Omar Khayyam falou da morte com restrição até à vida:

Não temo a morte: prefiro
esse fato inelutável
ao outro que me foi imposto
no dia do meu nascimento.
Que é a vida?
Um bem que me confiaram
sem me consultar
e que restituirei
com indiferença

Os dicionaristas tratam-na como um fato: "É a cessação completa e definida de vida de um homem, de um animal ou de um vegetal" (Delta Larousse); "o ato de morrer; o fim da vida animal ou vegetal" (Aurélio). Jânio Quadros amplia: "O fim da vida animal ou vegetal; cessação da vida; ação de morrer; termo; fim; destruição; acabamento." Seguem exatamente as mesmas linhas, ainda, os Dicionários da Academia Brasileira de Letras, Melhoramentos e Caldas Aulete. A morte no Oxford Universal Dictionary não difere também: "Death: the act or fact of dying; the final cessation of the vital functions of an animal or plant" (Morte: o ato ou fato de morrer; a final cessação das funções vitais de um animal ou vegetal).

Sob o ângulo médico-jurídico, a coisa se complica. Morte, real ou aparente? Existem os sinais clínicos clássicos e as provas pactognômicas para a certeza da morte? Estão presentes as funções vitais do ser alguma delas? A "fácies cadavérica, a imobilidade e o relaxamento dos esfíncteres" surgiram? A morte é cerebral ou cardíaca?
Sob o ângulo religioso, são igualmente inúmeras as perplexidades? Morreu, acabou? A morte é o fim? Existe a vida depois da morte? Existe a Vida Eterna? O limiar da morte é científico? Que diz a Filosofia sobre a morte, os conceitos de alma, espírito, etc.?

Um verdadeiro Universo, talvez inalcançável...
Depois dessas considerações, voltei rápido à Poesia. A morte fica até um pouco mais bonita, mais desejada, mais compreensível, mais aceitável. Surgiu, então, outra perplexidade. Foram tantos os poemas, sonetos, trovas, textos e abordagens dos poetas sobre a morte que eu me vi obrigado a adotar critérios. Mas, quais? São tão imensos os poetas e são belos e sugestivos tantos trabalhos... Daí porque me antecipo em apresentar escusas se esqueci alguém mais importante dos que eu citei entre os poetas e os poemas a respeito da Parca, às vezes maldita e às vezes, quase sempre, abençoada. Afinal, a morte é também "coisa de Deus".

A morte para os poetas

Augusto dos Anjos tem um soneto em que não fala da morte, mas de quem cuida, um pouco, de sua fase terminal. São os "Versos a um coveiro", um soneto cru, cruel e realisticamente macabro e assustador. É o lado triste da morte:

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais:
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números
A tua conta não acaba mais!

Castro Alves pedia, profético:

Quando eu morrer... não lancem meu cadáver
No fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto,
Como o viajante desse hotel funéreo.

Oliveira Ribeiro Neto é consciente do poder irreparável da morte:

Pois nada vale esforço, luto e choro,
serão todos cantores do seu coro,
que só não muda e se transforma em nada
a sempiterna de olhos de safira,
potente, alada e lúbrica mentira
pelo sonho dos homens sustentada.

Emílio de Menezes, o satírico, o humorista do verso, fala assim, e tão bem, da morte:

Vai, sacrílega, a morte, em sempiterna ronda
A ceifar e a espalhar o horror e o sacrilégio.
— Quem há que ao seu apelo, acaso não responda,
Seja espírito escasso ou pensador egrégio?

É uma alma juvenil? Ela, em volúpia, a sonda...
É um sábio? Ela o envenena em letal sortilégio...
É um artista? Ela o chama e erguendo a destra hedionda
Ao mundo inteiro impõe o seu domínio régio.

E é bem conhecido o magistral soneto de Francisco Otaviano, mais ou menos na esteira da Hamlet, ao filosofar via Shakespeare, a respeito da morte:

Morrer, dormir, não mais: termina a vida
E com ela terminam nossas dores,
Um punhado de terra, algumas flores
E às vezes uma lágrima fingida.
Sim, minha morte não será sentida,
Não deixo amigos e nem tive amores!
Ou se os tive, mostraram-se traidores,
Algozes vis de uma alma consumida.
Tudo é pobre no mundo; que me importa
Que ele amanhã se esb’roe e que desabe
Se a natureza para mim está morta!
É tempo já que o meu exílio acabe;
Vem, pois, ó morte, ao nada me transporta!
Morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe?

Goethe é menos incisivo:

A Morte é uma impossibilidade
que, de repente,
se torna realidade.

Nosso beato José de Anchieta, nosso quase primeiro Santo, tem um sugestivo poema sobre a Morte, chamado "Como vem guerreira":

Como vem guerreira
a morte espantosa,
como vem guerreira
e temerosa!
Suas armas são doença,
com que a todos acomete;
por qualquer lugar se mete,
sem nunca pedir licença
[...]
Por muito poder que tenha,
ninguém pode resistir;
dá mil voltas sem sentir,
mais ligeira que uma azenha,
quando Deus manda que venha
[...]
A uns caça quando comem,
sem que engulam o bocado;
outros mata no pecado,
sem que gosto nele tomem,
quando menos teme o homem
[...]
A ninguém quer dar aviso,
porque vem como ladrão;
[...]
Quando esperas de viver
longa vida, mui contente,
ela entra, de repente,
sem deixar-te perceber,
quando mostra seu poder
a morte espantosa.
Como vem guerreira
e temerosa.

Até aqui, versos tristonhos, pessimistas como se a morte fosse a tragédia (que é?). Há poetas, contudo, capazes de minimizar a crueza do tema.

Metastásio, por exemplo:

Não é verdade que a morte
é o pior de todos os males,
é um alívio dos mortais
que estão cansados de sofrer.

Bocage fala da "Morte dos tristes":

Ah! Só deve agradar-lhe a sepultura,
Que a vida para os tristes é desgraça,
A morte para os tristes é ventura!

Baudelaire fala da "Morte dos pobres":

É um anjo que segura em seus dedos magnéticos
O sono e mais o dom dos êxtases mais poéticos,
Que sempre arruma o leito aos pobres...

Uma curiosa e bem-humorada observação de Sofocleto nesse particular:

Os que mais morrem
são os que não têm onde cair mortos.

Nessa linha quase humorística, há uns versos de Homero, na sua Ilíada:

Eia, meu amigo, morre tu também!
Por que lamentas a sorte?
Também morreu Pátroclos, que valia
muito mais que tu!

E Nabokov sofisma:

Um silogismo:
os outros morrem.
Mas eu não sou outro;
assim, não morrerei.

E uma historinha inglesa sobre um inglês, igual a tantos:

Nasceu numa segunda
Batizou-se numa terça
Casou-se numa quarta
Adoeceu numa quinta
Piorou numa sexta
Morreu num sábado
Enterrou-se no domingo

E este foi o fim de Solomon Grundy.

Há lindos poemas e sonetos sobre a morte. Repito apenas algumas preciosidades, às vezes sem dizê-los inteiros. Cruz e Souza, por exemplo, nosso grande simbolista, que tanto cultuou a morte:

Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do Dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu Sentir latente.
Morre com a alma leal, clarividente,
Da Crença errando no Vergel florido
E o Pensamento pelos céus brandindo
Como um gládio soberbo e refulgente.

O excelso e efêmero Casimiro de Abreu:

Que tem a Morte de feia?
Branca virgem dos amores
Toucada de muitas flores
Um longo sono nos traz;
E o triste que em dor anseia
— talvez morto de cansaço —
vai dormir no seu regaço
como num clausuro de paz.

Nosso confrade Expedito Ramalho de Alencar é sucinto e objetivo, em sua clara análise da Morte no precioso Dicionário poético de sua lavra:

Morte
Término da vida, cessação
De funções orgânicas vitais.
Um nada, vazio, escuridão,
Sumiço d’amigos e rivais.
Desaparecimento do ser.
A negação do querido ente.
Eliminação do pretender
Ter existência permanente.

Há os poetas que brindam a Senhora Dona Morte com versos exaltativos, brilhantes como seus suas autores, quase cadinho de otimismo no enfrentamento desse enigma, dessa interrogação eterna, desse mistério às vezes até bonito, apesar de tantas perplexidades.

Por exemplo, o grande Vinícius de Morais

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca esperada
Ela que é na vida
a grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida!

Ou a nossa Arita Damasceno Pettená, espargindo confiança e tranqüilidade:

Quando em mim tudo for silêncio
e a própria via esvair-se
nas esteiras das águas flutuantes,
hei de buscar, no primeiro ancoradouro,
o porto seguro para meus sonhos todos.
Que importa que haja ondas revoltas,
ameaçando um casco acorrentando.
Quero respirar, no último momento,
a esperança diluindo-se em espumas,
espumas desmanchando-se em esperanças.

Ou a maravilhosa sonetista Florbela Espanca, autora de tantas belezas de sofrimento e paixão:

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce lago
E, como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má morte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
má fada me encantou e aqui fiquei
à tua espera... quebra-me o encanto!

Ou essa jovenzinha tão precocemente roubada (se Deus for capaz de roubar alguém...) antes dos 20 anos à Poesia pátria, Sylvia Celeste de Campos, tão talentosa:

Morrer... Não sonhar mais. Esquecer minha vida
Tão triste, tão vazia...
Nunca mais ver o fim de uma ilusão querida...
Não pensar na tristeza ou na alegria...
Não viver, nunca mais, de uma linda esperança:
Ser para alguém, um dia, um tesouro encantado...
E em paz há de ficar um coração de criança,
Que sofreu e que amou, sem nunca ser amado...

E o nosso incomensurável Guilherme de Almeida, nosso Príncipe por eleição popular, o mágico do verso e das rimas, neste maravilhoso e quase entusiasmante poema:

Uma sombra perpassa, toda vagarosa,
pelo campo amargo do acônito e cicuta.
Ela abre largas asas de carvão e oculta
um corpo cor de medo na veste ondulosa.
Todo o seu grande ser, belo como um lenda,
tem perfumes subterrâneos de argila e avenca.
Nas suas mãos frias e embalsamadas de óleos
há dez unhas agudas que vazam os olhos.
Ela traz asfódelos e heléboros bravos
em torno dos cabelos negros como víboras.
Ela ri sempre: e o seu riso de dentes alvos
brilha como um punhal mordido entre as mandíbulas.
Os homens fortes sorriem quando ela chega:
os poetas, à sombra ilustre da árvore grega;
os heróis, sob as asas de ouro da vitória.
— Porque ela talha as estátuas e a engendra a glória!

Ou este grito ainda juvenil de um poeta novo, com seu primeiro livro de poemas, Pedaços de mim, Fernando Gigliotti Paschoal, campineiro, mas olimpiense de adoção:

Morte que me estremece
Me olhe com suas promessas
Troque meu medo pelo prazer
Me faça viver de verdade
Morte de tantas vozes
Tantos desenhos, tantas cores
Morte louca, morte rouca
Morte de platina
Venha me livrar da agonia
Morte traga-me a imunidade
Livra-me da doença do mundo
Quero dormir ao seu lado.

E muitos outros. Rimbaud, Hugo, Byron, Shelley, Sêneca, Sófocles, Platão, Virgílio, Horácio, Petrarca, Montaigne, La Fontaine, Salomão Jorge, aliás autor de um famoso e belo livro chamado Estética da morte, Tagore, Unamuno, Paul Valery, Maurois, Murilo Araújo, Mário Quintana, Renata Pallottini, Hilda Hilst, quase todos, em algum momento, estiveram pensando e ensinando, em sua linguagem de sonho, o que é a morte.

Antes de encerrar, contudo, não me privo do prazer de ler um poema de Manuel Bandeira, religioso e humilde e pleno de ternura:

Fiz tantos versos a Teresinha...
Versos tão tristes, nunca se viu!
Pedi-lhe coisas. O que eu pedia
Era tão pouco! Não era glória...
Nem era amores... Nem foi dinheiro...
Pedia apenas mais alegria:
Santa Teresa nunca me ouviu!
Para outras Santas voltei os olhos.
Porém as Santas são impassíveis
Como as mulheres que me enganaram.
Desenganei-me das outras Santas
(Pedi a muitas, rezei a tantas)
Até que um dia me apresentaram
A Santa Rita dos Impossíveis.
Fui despachado de mãos vazias!
Dei volta ao mundo, tentei a sorte.
Nem alegrias mais peço agora,
Que eu sei o avesso das alegrias.
Tudo o que viesse, viria tarde!
O que na vida procurei sempre
— Meus impossíveis de Santa Rita —
Dar-me-eis um dia, não é verdade?
Nossa Senhora da Boa Morte!

Castro Alves, aqui e lá.
Castro Alves, o condoreiro, nosso maior poeta épico, romântico na vida e na morte, foi meu maior companheiro de juventude. Li-o e reli-o dezenas, centenas de vezes em alguns poemas e caminha comigo, em sua vida e obra, desde meus mais tenros anos.

Por isso o escolhi para uma última observação, centrada na existência de poesias psicografadas por privilegiadas pessoas, que são publicadas geralmente para angariar fundos para sustentação de trabalhos sociais. Gostaria de apresentar à sua paciência, ainda, trechos do poema "Mocidade e morte", escrito em vida pelo vate, e do poema "A morte", psicografado por Francisco Cândido Xavier, o famoso Chico Xavier que foi já, parece-me candidato, ou candidato a candidato ao Nobel da Paz.

Eis o trecho de Castro Alves, vivo:

Morrer – é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado – escutar dobres de sino,
– Voz da Morte, que a morte lhe lamenta –
Ai! morrer – é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher – no visco
de larva infame do sepulcro fundo.
Ver tudo findo... só na lousa um nome,
Que o viandante a perpassar consome.
Eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
um mal terrível me devora a vida:
[...]
E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínico da vida – novo Tântalo –
O vinho do viver ante mim passa.
Sou dos convivas da legenda hebraica,
O estilete de Deus quebra-me a taça.
É que até a minha sombra é inexorável,
Morrer! Morrer! Soluça-me implacável!

E do lado de lá teria feito esta bela poesia, inserta no livro Parnaso do além túmulo, de Chico Xavier:

No extremo pólo da vida
Diz a Morte: — "Humanidade,
Sou a espada da Verdade
e o Têmis do mundo sou;
Sou balança do destino,
O fiel desconhecido,
Lanço Cômodo no olvido
e aureolo a fronte de Hugo!
O cronômetro dos séculos
Não me torna envelhecida;
Sou morte — origem da vida,
Prêmio ou gládio vingador.
Sou anjo dos desgraçados
Que seguem na Terra errantes,
Desnorteados viajantes
Dos Niágaras da dor!
Também sou braço potente
Dos déspotas e opressores,
Que trazem os sofredores
No jugo da escravidão;
Aos bons sou compensação,
Consolo e alívio aos precitos,
E nos maus aumento os gritos
De dores e maldição.
Sepultura do presente,
Do porvir sou plenitude,
Da alegria sou saúde
E do remorso o amargor.
Sou águia libertadora
Que abre, sobre as descrenças,
O manto das trevas densas
E sobre a crença o esplendor.
Desde as eras mais remotas
Coso láureas e mortalhas,
E sobre a dor das batalhas
Minha asa sempre pairou;
Meu verbo é a lei da Justiça,
Meu sonho é a evolução;
Meu braço a revolução,
Austerlitz e Waterloo.
Homem, ouve-me; se às vezes
Simbolizo a guilhotina,
Minha mão abre a cortina
Que torna o mistério em luz;
E por trabalhar com Deus,
Na absoluta equidade,
Sou prisão ou liberdade,
Nova aurora ou nova cruz".
Quid inde?!...

Conclusão

Desculpem-me, se os cansei. Embora algo tormentoso, o tema é apaixonante. E são belas as poesias de tantos poetas que foi difícil extirpar alguns, que talvez até merecessem mais. Contudo, foi um problema de tempo e escolha.
Uma conclusão apenas se me oferece. A morte continua um mistério, apesar das revelações aos homens e mulheres que a buscam entender. Assim, o que depois dela vier, a mim ainda parece uma questão de fé. Aprendi criança, ainda os seie os tenho presentes em cada dia de minha vida na Terra. São princípios, verdades religiosas em que, verdadeiras ou não, acredito. Estão no final da oração do "Credo", básica para a minha crença:

Creio no Espírito Santo,
na Santa Igreja Católica,
na Comunhão dos Santos
na Remissão dos Pecados,
na Ressurreição da Carne,
na Vida Eterna.
Amém.

Questão de crença e de fé, claro. Respeito e procuro entender todas as questões assemelhadas que existem mas resguardo a minha com amor e confiança.
Para terminar, um pequeno poema que fiz no fim desta agradável viagem por territórios muito pouco percorridos.

A morte, essa descrença
enganosa, esse medo
conosco no nascimento,
quase crônica doença,
perde todo o seu segredo
só quando chega o momento
de com ela conviver.
Parece, então, corriqueira,
a Verdade verdadeira
do seu lugar neste mundo:
— Não é feia, indesejada,
não se ama nem se odeia!
É um conselho fecundo
e mais uma companheira
conosco junto, na estrada
que às vezes cansa ou enleia!
Ah! a morte!
É ponte, meio ou passagem
onde termina a viagem
por estes páramos plebeus.
Para os bons, é a certeza
do encontro da realeza
no doce aconchego de Deus.

Obrigado.

(O texto do poeta e escritor Alcy Gigliotti recolhe as reflexões de vários poetas e pensadores sobre o tema morte. O lírico e o mórbido se unem nas poesias de todos os tempos).