segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A conversão de São Paulo, nossa conversão e a Congregação da Missão


Queridos irmãos e irmãs do MCC – Fortaleza,

Tendo em vista o dia em que a Igreja celebra a conversão do Apóstolo Paulo, resolvo vos dirigir brevemente algumas palavras. Vocês sempre fazem parte de minhas orações e de meus cuidados espirituais. Ultimamente, tenho me preocupado com a vossa atual situação, que a meu ver, é muito privilegiada.

A exemplo de São Paulo, não quero vos dirigir um discurso, nem um artigo científico sobre este grande Apóstolo da Igreja, mas escrever-lhe uma palavra inspirada no testemunho daquele que de perseguidor tornou-se discípulo e missionário do Caminho. É uma carta fraterna. Uma palavra amiga para amigos.

Irmãos e irmãs, Saulo de Tarso encontrou-se com Jesus. Trata-se de um encontro que mudou plenamente sua vida. A partir deste encontro, Saulo torna-se Paulo, missionário dos gentios. Encontrou-se com Jesus no caminho de Damasco. Poderia ser numa igreja, durante uma oração fervorosa; poderia ser um encontro de Jesus com um servo justo e fiel à lei; mas o pensar e o momento divinos são diferentes dos nossos.

Jesus escolheu um perseguidor ferrenho, um sujeito formado na lei dos homens e obediente às ordens imperiais. Jesus escolheu e chamou um funcionário do sistema opressor. Como entender isso, irmãos e irmãs? Como fazer uma leitura fiel deste santo momento e desta santa escolha. O que seria do Cristianismo se não fosse a espiritualidade missionária e o ardor apostólico de Paulo de Tarso?...

Enumeremos, humildemente, com o devido cuidado para não trairmos a Palavra e a revelação divinas, algumas lições desta famosa e histórica conversão. Primeiro, é preciso aceitar que não há pessoa perfeita. Nós exigimos que as pessoas sejam perfeitas. Isto não é um mal, antes, demonstra que estamos preocupados com a nossa conversão, que queremos que a vida e as coisas da vida sejam perfeitas, assim como as pessoas que vivem a vida.

Tenho repetido, sem medo de ser feliz, que não somos perfeitos. Isto parece não ser novidade para ninguém, mas precisamos assimilar melhor o verdadeiro sentido desta verdade. A nossa condição humana nos faz aprender com a vida o sentido do chamado de Deus, ou seja, nós entendemos o chamado divino a partir de nossa condição de seres humanos. Apesar de todo esforço, de toda luta e de toda busca incessante da perfeição, a nossa condição permanece.

Segundo, a fé que professamos em Jesus não nos livra de nossa condição. Por isso, quem quiser seguir Jesus pensando que vai se tornar perfeito neste mundo engana-se profundamente. Os santos e santas da Igreja sempre se reconheceram mais próximos de Deus quando mais reconheceram suas próprias limitações. Quando Jesus chamou os Doze e também São Paulo, que foi Apóstolo sem fazer parte do grupo dos Doze, ele conhecia muito bem aqueles aos quais estava chamando.

As mulheres e homens da Igreja de hoje precisam contemplar e meditar esta desafiadora verdade: Jesus chama os pecadores. Penso de imediato, diante das inúmeras falhas da Igreja que se revelam nos inúmeros pecados de seus pastores: “Deus, de fato, chama os pecadores”. É verdade que muitos de nossos pecados podem e devem ser evitados e/ou corrigidos, mas na falta de correção e conversão também se revela a nossa condição.

Terceiro, saber viver a condição humana no seguimento de Jesus é o grande ensinamento do Apóstolo Paulo. Ele viveu a missão de Jesus de forma humanamente bela e sublime tornando-se um dos maiores exemplos de cristão. Paulo nos ensina que para seguir Jesus não podemos, de maneira alguma, renunciar a nossa condição humana, afinal de contas, isto nos é impossível. Digo isto para aqueles iludidos, que vivem a ensinar para si e para os outros a necessidade de se fugir de si e do mundo como exigência do seguimento de Jesus. Paulo ensina-nos que isto é ilusão e alienação. Infelizmente, tem muita gente se iludindo na vida e perdendo tempo com renúncias fúteis e antievangélicas.

A Igreja deve aprender a ser itinerante como Paulo. A itinerância constitui a espiritualidade missionária. É impossível ser missionário a partir do gabinete. Este está para os executivos, para os administradores, para os doutores e magistrados. O lugar de Paulo era o lugar de Jesus: na beira do caminho e no meio dos pobres. O exercício do poder e a aquisição de prestígio não se dão nos lugares de Paulo e de Jesus, pois se tratam dos últimos lugares da sociedade. A pergunta que surge nos desafia: Quem neste mundo deseja ocupar estes últimos lugares?...

No dia 25 de janeiro de 1625, São Vicente de Paulo (França, 1581 – 1660) pregou o primeiro sermão da Missão e no dia 17 de abril do mesmo ano fundou a Congregação da Missão. Quando resolveu fundar tal instituição o santo pensou na triste situação dos pobres de seu tempo e dos tempos vindouros. Evangelizare pauperibus misit me, este é o versículo do texto evangélico de Lucas que o inspirou. São Vicente de Paulo dizia que o santo ofício do Filho de Deus neste mundo foi a evangelização dos pobres. A missão dos Padres da Missão é a mesma missão de Jesus Cristo, ou seja, na evangelização dos pobres somos chamados a participar da missão de Jesus Cristo. Aqui está a centralidade do carisma da Congregação da Missão.

Os Lazaristas, como são conhecidos os Padres e Irmãos da Congregação da Missão, sabem muito bem que os pobres estão no centro de nosso carisma. Com isto não negamos que o Cristo é o centro da vida e da espiritualidade cristãs, mas cremos que Jesus se faz presente na vida dos pobres. Por isso, sem os pobres não há missão, nem seguimento de Jesus. São Vicente de Paulo disse: “Os pobres são nossos mestres e senhores”. O que isto quer dizer? Quer dizer que aprendemos a seguir Jesus com e a partir dos pobres. Compreendemos a missão de Jesus a partir dos pobres. Eles nos mostram Jesus e nos evangelizam.

Irmãos e irmãs, para finalizar esta minha reflexão, rogo ao Deus da vida que nos ensine a lidar com a nossa condição humana, a fim de que possamos nos acolher e nos perdoar mutuamente como pecadores e seguidores de Jesus. Nunca se esqueçam da verdade que nos salva: a caridade. Somente esta é que verdadeiramente nos salva.

Com meu afetuoso abraço e votos de saúde em paz em Cristo Jesus,


Tiago de França

Obs.: Reflexão enviada ao MCC - Movimento de Cursilho da Cristandade de Fortaleza, CE.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Evangelizar os pobres


Jesus veio ao mundo para evangelizar os pobres. Eis a chave central de leitura do texto evangélico deste 3º Domingo do Tempo Comum (Lc 1, 1 – 4; 4, 14 – 21). Aqueles que se opõem à opção preferencial pelos pobres feita em Medellín (1968), certamente não concordam com a verdade de que Jesus veio evangelizar os pobres, apesar de não ser uma idéia ou descoberta de Bispos da Igreja, mas plena constatação e verdade evangélicas. Qual o sentido da opção preferencial pelos pobres? Optar significa escolher. Optar pelos pobres é escolhê-los. Na multidão de gente que habita o mundo, a opção da Igreja deve ser pelos pobres. Mas por que optar pelos pobres? Porque esta também foi a opção de Jesus. Por isso, é preciso que se opte pelos pobres a exemplo de Jesus, ou seja, optar como Jesus optou.

Optar a exemplo de Jesus, eis o desafio. Trata-se de imitar Jesus de Nazaré? Não. Ninguém consegue viver como Jesus. Ele era, é e sempre será Deus. Quem como Deus?! Ninguém. A missão cristã não é imitar Jesus, mas segui-lo. Imitar é muito diferente de seguir. Quem quer imitar é porque quer ser igual e isto seria muito pretensioso. No seguimento de Jesus aprendemos com ele a viver a opção que ele fez. Não se aprende a viver a opção pelos pobres nas cadeiras das universidades, mas na escuta atenta do Evangelho de Jesus. Aquele que nos chama é quem nos ensina a segui-lo. Ele nos confere todas as condições e aptidões possíveis para segui-lo. Fala-se, descartando o Evangelho, de imitação de Cristo, mas o próprio Cristo não nos chamou a isto. A nossa missão é de continuadores, de discípulos e missionários de Jesus. A missão de segui-lo na opção pelos pobres consiste na exigência radical da mensagem evangélica. Quem crer no Evangelho, palavra e vida de Jesus, não pode ser excluído, nem fugir de tal exigência.

A partir de uma leitura atenta e orante do texto evangélico veremos que foi muito difícil para Jesus viver, humanamente, a opção pelos pobres. O custo por tal opção foi sua própria vida, ou seja, foi crucificado por causa da opção pelos pobres. Assim sendo, tal opção compromete a vida de quem a faz. Trata-se de um compromisso que leva à morte. A vida de Jesus e dos mártires posteriores à sua morte falam bem deste risco mortal. Recentemente, aqui no Brasil, temos a Dra. Zilda Arns, que é um exemplo claro disso. Ela poderia morrer bem idosa, tranquilamente em sua casa, atendendo aos seus ricos pacientes em um ótimo consultório, ganhando muito dinheiro e honrarias, mas resolveu optar pelos pobres. Ela morreu por causa de tal opção, morreu em missão em um dos países mais pobres do mundo. Isto é seguimento de Jesus. Seguimento que se dá na vida cotidiana, sem complicações teóricas.

Recentemente, aproveitando o tempo das férias, resolvi fazer uma visita ao túmulo e à residência onde morou Dom Hélder Câmara (1909 – 1999). Confesso ao leitor que fiquei profundamente emocionado diante da humildade e da simplicidade deste Bispo, pois o vi na sua residência. Não o vi em pessoa, mas na simplicidade de sua casa. No momento em que adentrei na sala onde ele recebia os pobres me veio o seguinte pensamento: “Meu Deus, como pode um Bispo ter morado num lugar desses?!” A casa de Dom Hélder revela a sua opção de vida. Ali compreendi que antes de fazer parte do estado clerical na Igreja precisamos fazer parte da pobreza de Jesus. Não é uma pobreza que é sinônimo de miséria e abandono, mas de uma pobreza material que é sinal de humildade, despojamento e simplicidade de vida.

Na medida em que ia fotografando o ambiente me vinha também outro pensamento: “Meu Deus, este homem não precisa ‘fazer’ milagres para ser elevado à categoria dos santos nos altares da Igreja”. A santidade de Dom Hélder Câmara vivida na opção preferencial pelos pobres foi um milagre de Deus. A virtude heróica por excelência da vida deste grande homem está no fato de ter alcançado o terceiro grau da Ordem e ter vivido pobremente entre os pobres. A história da Igreja demonstra muito bem que isto foi extraordinário. Dom Hélder Câmara não teve a graça de viver o derramamento de sangue por amor a Jesus Cristo, mas a sua vida foi uma constante doação na construção do Reino de Deus.

A força do Espírito Santo que levou Jesus à Nazaré, para o meio dos seus, é o mesmo Espírito que impulsionou Zilda Arns e Hélder Câmara no seguimento de Jesus. Este Espírito nos faz adentrar no mistério divino da redenção da humanidade e nos faz co-redentores com Jesus. A nossa participação na redenção cristã é algo que transcende a nossa condição, mas que se dá em nossa condição humana. Não se trata de saída de si como negação do ser, mas de um encontro de si que se dá no encontro com o outro. Zilda e Hélder encontraram o sentido de suas vidas no Cristo que está nos pobres. Isto significa que toda pessoa que aceitar o desafio e assumir a mensagem evangélica na vida terá que viver este constante espírito de doação, pois fora desta não há seguimento de Jesus e, conseqüentemente, não há missão. A força do Espírito que impeliu Jesus à doação da própria vida nos liberta da covardia e do medo que nos prendem, nos escravizam e nos alienam.

Estamos no Ano Sacerdotal, proclamado pelo Papa Bento XVI no dia 19 de junho de 2009, por ocasião do 150º aniversário do nascimento de São João Maria Vianney, o santo CURA D’ARS. O que a opção preferencial pelos pobres fala para o clero da Igreja? A resposta é desafiadora. Certamente, em outra oportunidade, escreverei a respeito, mas posso, brevemente, afirmar que muitos Bispos e Padres fizeram e ainda fazem tal opção. Negar isto é ir contra a verdade. O ministério presbiteral não impede viver a opção preferencial pelos pobres. Tal ministério confere ao homem (pois a mulher não pode ser ordenada) certo poder e prestígio. Se o homem se deixar levar pelo poder e pelo prestígio, a partir do Evangelho podemos dizer que tal ministro não se encontra no seguimento de Jesus, porque não optou pelos pobres. A opção preferencial pelos pobres obriga o padre e o bispo a se despojarem do poder e do prestígio. Jesus se manteve longe do poder, pois, humanamente não tinha poder para nada. Jesus ficou famoso por causa de sua opção pelos pobres, pois tal opção até hoje causa admiração e respeito. Quem não admira e respeita seguidores de Jesus como Hélder Câmara e Zilda Arns?... Entraram para a história por causa da caridade cristã.

Que o Espírito nos torne dóceis às necessidades de nossos irmãos e irmãs que sofrem e nos faça missionários de Jesus na humildade, na simplicidade e no despojamento, pois estes valores constituem o seguidor de Jesus na opção preferencial pelos pobres.


Tiago de França

domingo, 17 de janeiro de 2010

O vinho novo da transformação


O texto evangélico deste Segundo Domingo do Tempo Comum (Jo 2, 1 – 11) fala da presença de Jesus numa festa de casamento em Caná da Galiléia. O fato é que faltou vinho e para não deixar os noivos passarem vergonha diante dos convidados, a mãe de Jesus pede que ele resolva a situação. Com certa resistência, Jesus atende ao pedido de sua mãe e manifesta seu primeiro sinal: transforma água em vinho. No último versículo, o evangelista João faz questão de mencionar sinais ao invés de milagres e os discípulos creram em Jesus a partir de seus sinais.

O que este texto diz para nós hoje? A Palavra fala para nós. Ela é um sinal de Deus. O sinal serve para nos advertir, para nos chamar a atenção. O sinal serve, ainda, para apontar uma direção, para mostrar uma situação. Não fala por si, mas a partir de si fala de algo que está ocorrendo ou vai ocorrer. Está para ser visto, escutado e observado pelo homem. O sinal é um toque de espírito, um aviso. Quais os sinais que se manifestam no mundo de hoje? O que eles estão nos dizendo? Onde e como estão acontecendo? Eles estão aí, escutá-los é cada vez mais urgente e necessário.

Mais de cem mil pessoas foram mortas no Haiti, vítimas dos terremotos que se abateram sobre aquele pobre país. Isto parece um forte sinal. Centenas de pessoas estão morrendo no Brasil, vítimas das chuvas e deslizamentos de terra. Pode ser outro sinal. Tudo isto precisa ser lido e interpretado à luz da fé. Estes acontecimentos precisam ser vistos como sinais de transformação. O que precisamos transformar? Antes de ousar transformar qualquer coisa, o homem precisa se transformar a si mesmo. É urgente uma radical mudança de mentalidade. É preciso que se substitua a ambição do TER pela humildade do SER.

O problema do TER está no acúmulo desnecessário dos bens. Bens que se tornam desnecessários. Enquanto sobra para uns, falta para outros. Os EUA anunciaram uma doação de cem milhões de dólares ao Haiti. Isto é muito bom. Mas isso também revela que eles têm demasiadamente. Uma modelo anuncia que fará uma doação de um milhão e meio de dólares. Certamente é uma ação louvável. Por outro lado, a concentração de riquezas se mostra absurda. Há no homem pós-moderno e capitalista um forte desejo de possuir demasiadamente as coisas não importando que estas façam falta a tantas outras pessoas.

Isto é fruto da falta de sensibilidade. Há o que podemos chamar de cultura da frieza entre os homens, que os faz perder até a boa vontade e, conseqüentemente, a disposição em partilhar e servir. Pessoas insensíveis e ricas, eis a desgraça da humanidade! Certamente, temos que reconhecer e aceitar as exceções. E este desejo de riqueza e de grandeza leva os homens a competirem uns com os outros e a se excluírem mutuamente. Conseqüentemente, temos miséria, violência, fome etc. As soluções paliativas que se apresentarão para o Haiti não resolverão os problemas daquele pobre país, pois o mesmo não tem as mínimas condições de competir no cruel sistema capitalista que se enraizou neste mundo, pois neste sistema só há lugar para os fortes.

A transformação deste mundo passa pela conversão íntima e pessoal do homem. Este precisa dialogar consigo mesmo e neste diálogo reconhecer o seu pecado. O reconhecimento do pecado passa pelo encontro com a verdade. Os sinais são verdadeiros. Eles falam a verdade. Reconhecê-los e aceitá-los é a salvação do homem. Mas este continua cego e surdo pelas ambições e pelos prazeres. A escuta dos sinais exige sensibilidade e prudência, mas estes, infelizmente, são valores em crise na sociedade atual. A sensibilidade nos faz estar atentos à realidade, julgando-a a luz da fé e da razão. A prudência ensina-nos a discernir a realidade e a agir acertadamente sobre ela. Trata-se de um processo de conversão para a salvação do mundo que não pode ser adiado. A hora é agora. O tempo chegou. Será que precisamos esperar que mais gente seja assassinada, vítima de nossa insensibilidade e imprudência?...

Jesus transformou água e vinho. O que isto diz para a Igreja e para os cristãos? Enquanto instituição estabelecida neste mundo, a Igreja nunca aceitou o discurso da transformação. Esta palavra ainda lhe causa medo. Verdadeiramente, transformar é um desafio, pois mexe com as estruturas dos homens e das coisas produzidas pelos homens. Em matéria eclesiástica, é muito mais fácil e cômodo manter do que mudar. Ao longo da história, a transformação sempre foi sinônimo de libertinagem e agitação política. Libertinos e agitadores sempre foram punidos, porque incomodaram a ordem estabelecida, porque propuseram a transformação. Mas esta, para a tristeza de muitos, ocorre naturalmente e, às vezes, despercebidamente.

A água foi transformada em vinho. Hoje tal transformação torna-se cada vez mais inevitável. Ela está acontecendo, aos poucos, mas está. Os agentes da transformação estão no mundo, agindo sem parar. Uns são calados, mas terminam ressuscitando. Na falta de uns, surgem outros com mais audácia e vigor do que os primeiros. Isto pode ser chamado de dialética evangélica ou dialética do Reino. Nada está estagnado, tudo caminha. Há um hino que ensina que, “se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão”. O Haiti e a missionária Zilda Arns estão falando para nós. É preciso ter coragem para escutar este grito, pois o grito pela transformação é comprometedor.

Os discípulos de Jesus viram os sinais e creram em Jesus. Para crer parece que foi necessário ver. O que é crer em Jesus? Por que somos chamados a crer em Jesus? A nossa fé em Jesus deve fazer diferença no mundo, ou seja, precisa identificar o cristão. Crer é transformar-se a si mesmo e ao mundo. Crer é seguir Jesus e seguir Jesus é comprometer-se. Comprometer-se é se deixar desafiar pela realidade, é inquietar-se. O cristão é um ser inquieto no meio do mundo. Tal inquietude brota da fé em Jesus e da compreensão de seu Evangelho. Eis a grande exortação evangélica deste Domingo: precisamos analisar e transformar, com sensibilidade prudência, as nossas estruturas pessoais, a fim de transformarmos o mundo em que vivemos, de acordo com nossas possibilidades. Que o Espírito nos inquiete e nos faça instrumentos da transformação.


Tiago de França

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Zilda Arns, profetisa da caridade


“Como discípulos e missionários, enviados a evangelizar, sabemos que a força
propulsora da transformação social está na prática do maior de todos os mandamentos
da lei de Deus: o amor, expresso na solidariedade fraterna, capaz de mover montanhas”
(último discurso de Zilda Arns. Haiti, 12/01/09).

Estando sentado diante do computador, quando terminava de escrever o texto O dom da escuta, resolvi acessar um portal de notícias na Internet e li imediatamente a notícia escrita em forte negrito vermelho: “Morre Zilda Arns no Haiti”. Cliquei na notícia e apareceu de repente uma linda foto da mesma segurando uma criança. O sorriso da pediatra Zilda Arns revela uma alegria que sai do coração da pessoa que ama servir o próximo. Passei a observar esta foto e em silêncio contemplei tal alegria. Aos poucos, foi me tomando uma profunda tristeza. Com esta me veio a seguinte prece: “Meu Deus, faça nascer em vossa Igreja novas Zildas, mulheres que denunciem com o testemunho da doação ao próximo o crime da fome e do abandono”.

A Pastoral da Criança, fundada pela Dra. Zilda Arns, é uma das pastorais mais eficientes da Igreja. É uma iniciativa de caridade que vai ao encontro das famílias pobres de nosso país. A mesma coisa se pode dizer da Pastoral da Pessoa Idosa em relação aos nossos idosos. É uma iniciativa que livra os idosos do abandono e dos maus tratos. Tais iniciativas expressam a opção preferencial pelos pobres exigida pelo Evangelho de Jesus. O trabalho desenvolvido por esta profetisa da caridade é um trabalho justo. Trabalho justo porque está em função do Reino de Deus. A solidariedade fraterna é a expressão da justiça do Reino de Deus e a conseqüência natural da prática da justiça é a construção da paz.

Zilda Arns merecia exemplarmente receber o Prêmio Nobel da Paz. A Pastoral da Criança é um incansável trabalho de combate contra a fome e a desnutrição infantil. É notória a quase erradicação da mortalidade infantil devido ao grande trabalho de milhares de líderes da Pastoral da Criança espalhados pelo Brasil. Quem trabalha para erradicar a fome, conseqüentemente, trabalha contra a violência e constrói a paz. Não tem situação mais angustiante do que assistir uma criança morrer de fome. Tal situação tocou o coração da Dra. Zilda Arns. Sensibilizada pela terrível situação de milhões de crianças famintas e desnutridas, ela não somente denuncia com o discurso, mas vai muito além, fundando iniciativas eficientes de solidariedade fraterna.

Ela compreendia, como se pode ver em seu último discurso, pouco antes de sua morte no Haiti, que o amor é a força propulsora da transformação social. Isto significa que o que a impulsionava a se doar pelo próximo era o amor. Certamente, ela cumpriu com alegria e audácia o maior mandamento da lei de Deus, encontrou-se com o sentido último da vida humana, e a exemplo dos santos e santas de Deus, doou sua vida até o fim à causa do Reino, morrendo em missão. Zilda Arns era o que o Evangelho chama de discípula e missionária, pois seguiu a Jesus nas pegadas do amor. Amor que se manifestou numa vida voltada para a gratuidade e solidariedade.

O que o testemunho de Zilda Arns diz para a Igreja? A Igreja precisa contemplar e aprender com o testemunho desta grande mulher. Trata-se de um testemunho que chama a atenção para a caridade. Esta está na centralidade da mensagem do Evangelho. A Igreja precisa cada vez mais revelar a face de Jesus ao mundo e não há outra maneira de revelar Jesus senão pela via da caridade. Caritas in veritate, disse recentemente Bento XVI. Não se trata de uma caridade, nem de uma verdade discursivas, mas de ambas que na prática afetiva e efetiva convertem os homens e conseqüentemente as estruturas deste mundo. Toda caridade e toda verdade anunciadas tão somente pelo discurso não passam de diplomacia e falsas justificativas para a ausência do amor. Não produzem nenhum efeito. É uma verdade bem elaborada e dita, mas que não produz nenhum efeito. O contrário ocorre com a verdade que é acompanhada com o testemunho de vida de quem a anuncia, pois se trata da palavra do autêntico profeta. Este quando fala não é elogiado, nem aplaudido pelo que disse, mas perseguido e morto porque incomodou a ordem estabelecida.

É urgentemente necessário que todo o clero faça uma profunda reflexão sobre o testemunho de vida de Zilda Arns, pois se a Igreja tentar fugir do caminho da caritas in veritate fugirá também de sua essencial vocação, que é servir no amor fraterno. Nunca devemos esquecer que fora da caridade não existe missão, nem salvação. É preciso que se faça uma releitura do que disse a Conferência de Medellín, quando se fez a opção preferencial pelos pobres. É preciso recordar que fizeram o propósito de viver tal opção, mas a prática é desafiadora. Para se viver tal opção é urgente que se viva uma conversão estrutural na Igreja. Percebe-se que a estrutura é pesadíssima e impede a vivência radical do Evangelho. O testemunho de muitos santos e santas que tiveram que deixar a estrutura hierárquica para viver a caridade evangélica não me deixa mentir.

Demos graças ao Deus da vida que fez nascer na Igreja e no Brasil o testemunho de vida da Dra. Zilda Arns. Que ela sirva de exemplo para todas as mulheres e homens deste sofrido país e que os cristãos, chamados para amar incondicionalmente, a tenham como fonte de inspiração e modelo de discípulo e missionária de Jesus. Que o Espírito do Senhor nos faça missionários do amor neste vale de lágrimas.


Tiago de França

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O dom da escuta


“O Senhor veio, pôs-se junto dele e chamou como das outras vezes: ‘Samuel, Samuel!’
E ele respondeu: Fala, que teu servo escuta”
(1 Samuel 3, 10).

O profeta Samuel, orientado pelo sacerdote Eli, escutou a voz de Deus. A resposta do profeta é muito significativa e merece nossa reflexão. Mas antes de rezarmos a resposta, prestemos atenção aos verbos que constituem o início deste versículo: O Senhor veio. A maneira como Deus nos chama é única e particular. O verbo vir revela que alguém se move, se aproxima e se torna íntimo. Deus não nos chama das alturas, mas nos chama estando perto de nós. Chama-nos porque nos conhece e nos conhece não somente porque é onisciente, mas porque convive conosco. O Pai de Jesus e nosso Pai está presente em nossa vida e participa da nossa história. Não somos chamados a escutar a voz de um estranho, mas daquele que quis fazer parte de nossa vida e quis ainda que fizéssemos parte de sua vida divina. O mistério da presença divina no mundo é revelado a nós pelo Espírito que nos torna sensíveis à voz daquele que nos chama. Trata-se de uma presença amorosa que nos chama à vida.

O Senhor pôs-se junto dele. A verdadeira segurança que podemos ter em nossa vida neste mundo é a certeza de que Deus permanece junto a nós. Concretamente, esta verdade cria e recria em nós a esperança. A esperança cristã só pode ser compreendida a partir da presença amorosa de Deus junto a seu povo na luta por libertação. Deus permanece junto do homem criado à sua imagem e semelhante, apesar das atuais crises de humanidade e de sentido. Estar junto do homem revela que Deus não abandonou a sua criação. Deus é amor e nele não há abandono. Este é uma realidade contrária ao amor. Quem verdadeiramente ama jamais abandona. Somente Deus ama plenamente a cada um de nós na verdade e na liberdade e jamais nos abandonará. Esta é nossa esperança, uma esperança que não decepciona.

O Senhor chamou. Quando eu era pequeno e escutava minha mãe e os padres falarem sobre o chamado de Deus, então ficava me perguntando: Por que será que Deus, sabendo e podendo todas as coisas chama-nos para contribuirmos na construção de seu Reino? Deus poderia fazer tudo sozinho, mas não quis. Agir solitariamente parece não ser coisa de Deus. Desde as origens até os nossos dias, Deus tem se revelado como comunhão trinitária de amor. Deus age amorosa e comunitariamente. Ele soma forças conosco e nos quer ativos na construção do Reino. Por isso, somos chamados à participação. Quem não quer participar, nem quer ser operário, não poderá fazer parte do Reino. O Deus do Reino é um Deus trabalhador. Todos os dias Deus trabalha em função de seu Reino e seu desejo é que trabalhemos junto a ele. Esta é a nossa vocação. A nossa vocação é para o trabalho. E se olharmos o mundo que nos envolve, percebemos de imediato que temos muito trabalho a fazer.

As atitudes divinas que estes três verbos revelam nos convidam a fazermos o mesmo. Assim como Deus veio ao nosso encontro, precisamos também ir ao encontro dos outros. O isolamento e o individualismo nos isolam do mundo e das pessoas. A cultura do medo e a cultura das falsas seguranças distanciam os homens uns dos outros. Tais culturas não são oriundas do acaso, mas são produzidas pelo próprio homem. O chamado de Deus impele-nos à comunhão fraterna e esta não existe sem a proximidade e sem contato humano. O discípulo e missionário de Jesus é alguém próximo das pessoas, especialmente das que mais sofrem e são excluídas pela sociedade. O caminho de Jesus, que se dá no discipulado e na missão, é um caminho de comunhão fraterna. Quem se recusa a comungar na vida do próximo não participa da comunhão com Deus, nem faz parte do caminho de Jesus.

A comunhão fraterna é uma exigência do caminho de Jesus. Somos chamados a fazer parte deste caminho, porque é justamente nele que se dá a construção do Reino de Deus. Viver a comunhão fraterna é algo desafiador. É um desafio porque na vivência de tal comunhão aprendemos a lidar com as diferenças e com as novidades. O diferente e o novo sempre desafiaram o ser humano e na vida eclesial tais valores não podem ser marginalizados, pois constituem o ser humano. Este é um ser diferente e sempre novo. O chamado de Deus nos impele também a vivermos a tolerância, o respeito e a solidariedade nas diferenças e naquilo que se apresenta como novidade. Quando se compreende o valor da diferença e da novidade percebe-se que ambas conferem sentido à vida e conferir sentido à vida é uma necessidade constante do ser humano.

Fala, que te servo escuta
. No diálogo entre duas pessoas não é possível que as duas falem ao mesmo tempo. Desta forma, o diálogo torna-se inviável. O profeta Samuel escutou a voz de Deus no silêncio. Ninguém consegue escutar no barulho. A poluição sonora e a agitação da vida pós-moderna, principalmente nos grandes centros urbanos, têm levado as pessoas a uma comprometedora surdez em relação à voz de Deus. Apesar da busca constante pelo sagrado que marca a nossa época, não são poucas as pessoas que não tem tempo para rezar um simples Pai nosso por dia. Deus não se comunica somente pela oração, mas também através de toda a vida do ser humano. A vida humana em si já é uma comunicação divina, pois não existe vida fora de Deus. Na criação e na recriação do homem e do mundo Deus se revela e se comunica conosco.

Escuta-se a Deus para descobrir e discernir a sua divina vontade. Podemos seguramente garantir que a vontade de Deus é que sejamos felizes no amor. A verdadeira e plena felicidade é encontrada e vivida no amor. Acertadamente, dizia Santa Teresinha do Menino Jesus: “A minha vocação é o amor”. Neste mundo marcado pelo desamor, que gera violência e exclusão e tantos outros males que afetam a vida, é preciso recordar que somente é possível ser verdadeiramente humano através do amor. A escuta da voz de Deus nos compromete interiormente e nos faz instrumentos da justiça e da paz. Samuel escutou a voz divina e se tornou um dos maiores profetas do Senhor. Isto nos mostra que escutamos a Deus para servi-lo no amor.

A escuta de Deus passa pela escuta do outro. Numa sociedade marcada pelo barulho e pelo discurso, em que as pessoas falam demasiadamente, somos chamados a viver o dom da escuta. Deus nos fala também através das pessoas. A escuta é capaz de aliviar e até de libertar o outro de muitos problemas. As visitas às famílias têm revelado que são muitas as pessoas que precisam somente ser escutadas. Trata-se de um exercício saudável que tanto ajuda quem fala quanto a quem escuta. Oremos a fim de que o Espírito do Senhor, que sonda todas as realidades materiais e espirituais, abra os nossos ouvidos para a escuta da voz do Deus que fala cotidianamente em nossa história e nos torne comprometidos com a justiça do Reino na prática do amor.

Tiago de França

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A violência e a paz


No dia 1° passado aconteceu em Colônia Leopoldina, Alagoas, após a Missa da Solenidade da Virgem Maria, Mãe de Deus, uma caminhada pela paz. A Paróquia de Nossa Senhora do Carmo, preocupada com a situação violenta da cidade, resolveu promover tal caminhada. O objetivo era chamar a atenção da população para o problema da violência. A participação do povo foi pequena, mas todos estavam entusiasmados e conscientes da necessidade de gritar pela paz nas ruas da pequena cidade. Ao longo da caminhada, o autor da presente reflexão assumiu a responsabilidade de animar e denunciar alguns casos de violência ocorridos ultimamente no município.

Recentemente, tem ocorrido no município alguns crimes contra pessoas, que ora são inocentes, ora estão envolvidas com as drogas. São crimes contra pessoas pobres e oriundas de famílias pobres, que ficam arquivados nos gabinetes dos agentes da Justiça. Tais crimes são facilmente “esquecidos” e tudo “fica por isso mesmo”. Sabemos que a justiça brasileira tem dificuldade de fazer justiça aos pobres e marginalizados e em Colônia Leopoldina não é diferente. Diante da tal situação, aqueles que se envolvem no mundo do crime têm facilidade de cometer as mais bárbaras atrocidades porque sabem que a Justiça não funciona.

Durante a caminhada denunciamos alguns tipos de violência que molestam a vida da população local, a saber:

- violência contra a mulher (homens que espancam suas mulheres);
- violência contra crianças;
- violência contra os embriagados nas ruas;
- violência sexual (pedofilia e prostituição infantil);
- violência contra os idosos;
- violência das armas (assassinatos de todo tipo);
- violência contra a juventude (ocasionada pelo uso das drogas, dentre elas, o álcool).

No desenrolar da caminhada fiz questão de explicar, brevemente, cada tipo de violência, citando os casos sobre os quais obtive informações. Na localidade Vila Nova fomos agredidos a pedradas por pessoas incomodadas com as denúncias, mas ninguém ficou ferido. A participação das pessoas, a reação das que observavam e a realidade da cidade revelam alguns aspectos que merecem ser mencionados, a saber:

- percebe-se um clima de medo na cidade. Há certa cultura do medo. As pessoas enxergam a realidade, mas se negam a corresponder. Quando abordamos as pessoas, logo respondem que nada vêem e nada sabem. Elas revelam certa falta de compromisso com a verdade dos fatos. Elas têm medo da verdade e tal medo revela escravidão e alienação. As pessoas ficam imobilizadas diante da violência porque não têm coragem de denunciar;

- a situação de violência revela que a instituição familiar está totalmente desestruturada. É verdade que não podemos generalizar, pois temos, ainda, muitas famílias que se esforçam e conseguem sobreviver à crise dos autênticos valores familiares. Famílias desestruturadas são altamente prejudiciais à sociedade, pois geram pessoas problemáticas e descomprometidas com a construção de um mundo melhor. Atualmente, a crise familiar põe em risco a construção de relações sociais sadias e a paz mundial, pois as pessoas se recusam a formar verdadeiras famílias e se conformam em viver meramente juntas, partilhando espaço e pouco ou nenhum compromisso com o amor;

- o desemprego acentuado é outro fator que interfere negativamente na vida da população, principalmente na vida da juventude. Jovens que vivem na ociosidade são um risco para a sociedade, pois a permissividade se faz presente na vida daqueles que nada fazem. Tal permissividade se revela nos atos ou ações que diminuem ou agridem a dignidade dos jovens. A Escola, as Igrejas, a Família e o Poder Público têm a obrigação de ajudar os jovens a descobrirem sua dignidade e construírem o futuro. Sem tal compromisso torna-se impossível a transformação da atual situação, que se apresenta de maneira grave e absurda;

- outro fator que se revela é a falta de políticas públicas para a juventude. Percebe-se que a cidade vive estagnada na mesmice e na rotina que não constrói nem provoca o verdadeiro desenvolvimento humano. A realidade da cidade não apresenta novidades e são justamente as novidades e as novas experiências de construção da personalidade que ajudam os jovens a se desenvolverem como sujeitos da própria história. Há certo pessimismo cada vez crescente que paralisa os jovens e os impede de lutar por um futuro melhor.

Os comentários revelam que a caminhada mexeu com a consciência de alguns. É uma pena que as autoridades dos poderes legislativo, executivo e judiciário não estavam presentes. Penso que tais autoridades precisam escutar mais a realidade a partir daquilo que está acontecendo. O distanciamento e a falta de diálogo entre a sociedade civil e os citados poderes estabelecidos impossibilitam a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e participativa.

Infelizmente, esta é uma realidade nacional, pois a condução do país se dá sem a devida escuta e participação da população, ou seja, o povo não participa das decisões dos poderes legitimamente estabelecidos e isto tem se mostrado bastante prejudicial. É verdade que de uns tempos para cá o Governo tem aberto vários canais de interatividade entre governo e sociedade, mas a legítima participação ainda é negada pelo jogo de interesses de pessoas e de grupos políticos e organizações descomprometidas com o bem comum.

Espero que a caminhada pela paz tenha despertado a população para a necessidade da vivência da justiça para a construção da paz. Confio na palavra da Eclesiastes que diz: “Para tudo tem o seu tempo debaixo do sol”, assim sendo, “irá chegar um novo dia, um novo céu, uma nova terra, um novo mar. E neste dia, os oprimidos, numa só voz a liberdade irão cantar”. Que o Espírito de Deus nos faça construtores da justiça e da paz a partir da realidade em que vivemos.


Tiago de França

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Natal solidário


A celebração anual do Natal é a oportunidade que os cristãos têm de fazer a memória da encarnação do Filho de Deus, Jesus Cristo. Não se trata da festa de aniversário de Jesus, mas da celebração de seu nascimento na humanidade. O sentido do Natal está no encontro de Jesus, enquanto Deus, com a humanidade. É a celebração do encontro. Quem acredita neste encontro histórico de Jesus com a condição humana é chamado a viver a espiritualidade do encontro com Jesus. Ao falar de encontro, surgem três indagações que nos ajudam a entender tal espiritualidade: Quem é Jesus? Onde encontrá-lo? Como encontrá-lo? Ao respondermos com a vida a estas perguntas estaremos vivendo a desafiante espiritualidade do encontro com o Filho do Amor.

Ninguém consegue falar com plenitude a respeito da pessoa de Jesus, pois continua sendo um mistério para a humanidade. Tudo o que conseguimos dizer é fruto de nossa leitura evangélica. Além desta leitura, somente o Espírito, na experiência particular de cada um, é que é capaz de revelar Jesus. Para nos encontrarmos com Jesus precisamos saber quem ele é, para não corrermos o risco de nos encontrarmos com um estranho. Mas com a pessoa de Jesus não precisamos ter medo, pois ele é o Amor em pessoa e este amor nos realiza plenamente e nos faz autenticamente humanos. Fiquemos, então, com esse conceito clássico sobre Deus: “Deus é amor”, ensina-nos a Escritura. Jesus Cristo sendo Deus, também é amor.

Podemos encontrar Jesus onde ele nasceu: na manjedoura. Esta implica radicalmente pobreza. Jesus nasceu pobre. Fica claro que, tendo Jesus nascido pobre entre os pobres de seu tempo, Deus fez uma opção preferencial pelos pobres. É verdade que Jesus e sua salvação são universais, mas o fato de ter nascido pobre no meio dos pobres demonstra claramente que Deus veio libertar o seu povo. Fica mais claro ainda que nos dias atuais Jesus continua no meio dos pobres, pois ele é o mesmo, ontem, hoje e sempre. Acreditar em Jesus pressupõe ir ao seu encontro no meio dos pobres. Jesus assumiu a condição de pobre, não para legitimar a pobreza, mas para lembrar a humanidade que todos os homens são iguais e queridos perante Deus, preferencialmente os pobres.

Encontrar-se com Jesus é encontrar-se com uma pessoa. Não se trata de um encontro com um fantasma, um espírito ou com uma idéia. Jesus está encarnado na história dos homens. Ele não veio para fazer uma visita e depois retornar para o repouso do paraíso, mas armou sua tenda entre nós e veio participar das contingências da história humana no desdobramento cotidiano dos pobres. Trata-se de um encontro que se dá na transparência, na reciprocidade, na simplicidade, na verdade e na espontaneidade. Não se trata de um encontro ritual e orante. Ninguém se encontra com outra pessoa para rezar para ela, mas para dialogar na amizade humilde e sincera. Assim sendo, encontrar-se com Jesus nos dias de hoje é ir ao encontro dos pobres numa atitude de amizade humilde e sincera.

A situação dos pobres, em sua maioria, é de desemprego e fome. Ir ao encontro da fome dos pobres é assisti-los como irmãos em Cristo. Não se trata de um trabalho assistencialista, mas de ação caritativa e esta se baseia na relação amorosa com o outro. Foi isto que aconteceu no dia 23 de dezembro passado, no Centro Comunitário de nossa Paróquia, onde ocorreu uma confraternização que contou com a participação de 120 crianças e suas respectivas mães. Foi um momento alegre e fraterno, onde refletimos o sentido do natal à luz do carisma caritativo de São Vicente de Paulo, Pai da Caridade. O encontro contou com a escuta de uma breve reflexão, um jantar, músicas e distribuição de brinquedos. No rosto de cada criança, alegre e feliz pelo momento, encontramos a pessoa de Jesus que nos chama à solidariedade e à paz.


Tiago de França

Obs.: Artigo publicado no Informativo Correio da Imculada, da Paróquia da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, Jacintinho, Maceió - AL, por ocasião do Natal solidário ocorrido no dia 23/ 12/ 09.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Um exame de consciência para a construção de um mundo melhor


Estamos iniciando mais um ano novo. Com a presente reflexão convido o leitor a repensar algumas questões. Trata-se de um exame de consciência. A sociedade atual é marcada pela ausência do pensamento crítico, que leva o homem a agir sem a preocupação de pensar na vida. Não se trata de um pensar alheio à realidade sem as devidas referências. Pensemos na vida segundo os princípios do amor e da liberdade para não nos perdermos na arte de pensar. Podemos pensar sobre vários assuntos e também podemos nos omitir e não pensarmos em nada. É possível não pensar em nada? Penso que não! As ações contrárias à vida humana demonstram que os homens pós-modernos pensam pouco naquilo que fazem. Isto é um dado preocupante. Sem o pensar crítico e sem o exame da própria consciência, o homem corre o risco de destruir a si mesmo e ao meio em que vive. As análises mostram que isto está acontecendo.

Estas mesmas análises têm passado a idéia de que o homem é um sujeito mau. A leitura cristã da personalidade humana proíbe-nos de pensarmos desta forma, pois cremos que o homem é imagem e semelhança do Deus que é Vida e Bondade. Somos imagem e semelhança da vida e da bondade divinas. Nascemos para viver. A vida faz parte de nossa essência. Assim sendo, não somos essencialmente maus. Aqui surge uma indagação: Se somos imagem e semelhança do Deus que é sumamente Bom, por que praticamos tanta maldade? As correntes espiritualistas das Igrejas Cristãs são claras e unânimes na resposta: “Porque somos dominados pelo demônio”. Já escutei padres católicos e pastores evangélicos afirmarem que o homem age mal quando se deixa dominar pelo demônio!

São muitos os que se deixam levar por tal pensamento e se sentem perseguidos pelo demônio. Este passa a ser o centro da pregação de muitos pastores. Estes se dedicam tão somente a expulsar o demônio dos corpos humanos e dos ambientes. O Evangelho de Jesus é marginalizado e o demônio é a grande novidade da pregação. Muitas pregações só têm sentido se o demônio fizer parte do vocabulário e dos exorcismos praticados. Em meio a tudo isto, o amor e a liberdade anunciados por Jesus são totalmente esquecidos. Na vivência de tais práticas ninguém é livre: tantos os pastores quanto às ovelhas, todos são prisioneiros da imagem e da idéia de demônio que criaram! É uma situação lamentável. Fala-se em libertação, mas no fim de tudo, todos se tornam cada vez mais escravos e alienados.

Assim sendo, nosso exame de consciência não tem o demônio como referência. Deixemos o demônio para quem o invoca e nos voltemos para o amor e para a liberdade. O amor é uma palavra ou uma verdade que é cada vez mais falseada pelo ser humano. Tornar falso o amor é conferir ao mesmo um falso significado. As pessoas afirmam que amam umas às outras. Os extremismos são evidentes: uns não acreditam no amor, pois acham que ninguém é capaz de amar. Para estes, o amor é uma mentira, pois acham que as pessoas se interessam umas pelas outras e vivem um contrato social de convivência mútua. Outras ainda crêem no amor e o colocam acima de tudo, mas não tem coragem de amar de verdade. Trata-se de um amor de palavras, de juramentos e declarações falsas, de aparências enganadoras.

O Cristianismo insiste no amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, que constitui o maior mandamento divino, mas os próprios cristãos falham na vivência deste amor exigente. Os moderados, que não são extremistas, defendem que o homem não é mal e que a vivência do amor só é possível na gratuidade. O verdadeiro amor é gratuito e incondicional. Este é o amor de Deus. O homem é chamado, apesar das limitações inerentes, a viver o amor de Deus. Fora deste amor não há felicidade nem liberdade. Somente o amor de Deus consegue libertar integralmente o homem. A adesão a este amor divino é essencial para a vivência da justiça e, conseqüentemente, para a construção da paz. Quem ama vive a justiça e quem vive a justiça constrói a paz.

Os homens inventaram várias formas de satisfações das necessidades e de buscas de felicidade, mas continuam infelizes. Alguns ricos, por possuírem saúde e riquezas pensam que são felizes, mas sabemos que se enganam totalmente. Pe. Zezinho, cantor católico, tem uma canção que diz: “Os homens fogem do amor e depois que se esvaziam no vazio se angustiam”. Fora do amor existe um profundo vazio. Este é sinônimo de solidão e nesta ninguém pode ser feliz. A solidão é capaz de matar uma pessoa, pois o homem não nasceu para a solidão. Até Deus vive em comunidade, pois é Uno e Trino. A solidão mata porque gera angústia e esta leva ao desespero. Solidão, angústia e desespero nunca fizeram bem ao gênero humano, antes, revelam sua total destruição.

Para que o mundo e os homens tenham um futuro garantido, independentemente de raça, cor, cultura, condição social e religiosa é urgente a abertura para o amor. O amor está acima de todas as crenças e culturas. Todos são chamados ao amor, pois fora do amor não existe salvação para nenhum ser humano vivo na face da terra. Levando em consideração a diversidade das culturas construídas ao longo da existência humana, abrir-se ao amor significa abraçar o respeito e a solidariedade. Só é possível construir a paz na plena adesão a estes valores fundamentais. Acreditar que o homem não é essencialmente mal é crer que ele pode viver o amor no respeito e na solidariedade. A realidade de guerras e conflitos entre os homens e nações é a prova de que o respeito pelo diferente e a vivência da solidariedade são valores esquecidos.

Quando cuida de si, o homem cuida da Casa onde habita. A economia ecológica, que se traduz no cuidado para com o planeta, está gravemente em crise. As atuais reflexões do teólogo Leonardo Boff apontam para a urgente necessidade da superação do que ele chama de “crise de humanidade”, ou seja, o homem precisa redescobrir a sua verdadeira vocação. E qual é a verdadeira vocação do homem? Um professor de História Geral no curso propedêutico do Seminário da Prainha dizia sem temor à turma: “Meus amigos, Deus nos chamou ao amor”. É a maior verdade que já tinha escutado até então. É no amor que descobrimos o sentido e o valor da liberdade. Quem não ama jamais pode entrar no caminho da liberdade.

Segundo o teólogo José Comblin, a liberdade é um caminho, pois ninguém é plenamente livre neste mundo. As estruturas e os condicionamentos são entraves para a liberdade. A liberdade é algo tão sublime, que o fato de estar no caminho da mesma já confere certo sentimento de ser livre. É como que experimentar antecipadamente da liberdade a que somos chamados. Jean-Paul Sartre, filósofo francês, dizia que “o homem é condenado a ser livre”. A liberdade anunciada pelo Evangelho de Jesus é uma liberdade sem adjetivos e sem condicionamentos. A reflexão teológica da liberdade é uma reflexão desconfiada. Quando falam de liberdade acrescentam logo o princípio da responsabilidade e outros. Para Jesus, o homem é livre quando consegue se libertar da lei. Esta é superada pela vivência da liberdade.

Os homens pós-modernos são homens escravos. É até angustiante assistir a expressões alienantes de pessoas que se consideram cristãs por cumprirem a lei. A alienação os faz sentir livres somente quando obedecem à lei. São escravos os que não conseguem observar a lei. Aqui surge uma pergunta: É possível viver socialmente sem as estruturas e a leis que as legitimam? A Sociologia (estudo da sociedade e de suas relações) ensina que não, mas a Pneumatologia (estudo do Espírito e de sua ação no mundo) afirma que sim. Imaginemos que todos os homens amassem e fossem autenticamente livres, certamente não precisaríamos de leis, pois todos agiriam conforme a reta consciência pessoal. Enquanto isto não se torna possível, então deve existir a lei para os “fracos”, como afirma José Comblin. Os fracos são os que se recusam a trilhar o caminho da liberdade, logo precisam observar a lei para não se tornarem desordeiros.

Examinar a consciência tendo em vista a ótica do amor e da liberdade significa colocar-se no caminho de Jesus e perseverar. Santa Luísa de Marillac dizia para as Filhas da Caridade: “Não basta começar bem, é preciso perseverar”. São muitos os que se iniciam no caminho de Jesus, mas devido às exigências do amor e da liberdade terminam por desistir porque se trata de um caminho estreito e difícil. O amor de Deus é exigente porque está voltado para o serviço fraterno e gratuito. Para servir ao próximo o homem precisa estar ciente de suas limitações, pois o outro se apresenta também de forma limitada. Servir segundo o amor de Deus é viver a superação das indiferenças e amar nas diferenças e não as rejeitando. Por tudo isto, a caridade não se apresenta como uma realidade pronta, mas como uma vivência a ser construída e vivida na gratuidade. A caridade evangélica vivida no amor e na liberdade santifica o homem porque todo aquele que a pratica consegue ser sal e luz no mundo revelando a presença de Deus.

Iniciemos 2010 na plena certeza de que só seremos melhores do que aquilo que fomos em 2009 se tivermos a coragem de trilharmos o caminho do amor e da liberdade. Só assim a justiça e a paz reinarão em nosso meio e construiremos um país mais justo e solidário. Que o Deus da vida confirme nossos passos no seguimento de seu Filho Jesus e que o Espírito nos ensine a amar de verdade.

Feliz Ano Novo!


Tiago de França da Silva