quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O dom da escuta


“O Senhor veio, pôs-se junto dele e chamou como das outras vezes: ‘Samuel, Samuel!’
E ele respondeu: Fala, que teu servo escuta”
(1 Samuel 3, 10).

O profeta Samuel, orientado pelo sacerdote Eli, escutou a voz de Deus. A resposta do profeta é muito significativa e merece nossa reflexão. Mas antes de rezarmos a resposta, prestemos atenção aos verbos que constituem o início deste versículo: O Senhor veio. A maneira como Deus nos chama é única e particular. O verbo vir revela que alguém se move, se aproxima e se torna íntimo. Deus não nos chama das alturas, mas nos chama estando perto de nós. Chama-nos porque nos conhece e nos conhece não somente porque é onisciente, mas porque convive conosco. O Pai de Jesus e nosso Pai está presente em nossa vida e participa da nossa história. Não somos chamados a escutar a voz de um estranho, mas daquele que quis fazer parte de nossa vida e quis ainda que fizéssemos parte de sua vida divina. O mistério da presença divina no mundo é revelado a nós pelo Espírito que nos torna sensíveis à voz daquele que nos chama. Trata-se de uma presença amorosa que nos chama à vida.

O Senhor pôs-se junto dele. A verdadeira segurança que podemos ter em nossa vida neste mundo é a certeza de que Deus permanece junto a nós. Concretamente, esta verdade cria e recria em nós a esperança. A esperança cristã só pode ser compreendida a partir da presença amorosa de Deus junto a seu povo na luta por libertação. Deus permanece junto do homem criado à sua imagem e semelhante, apesar das atuais crises de humanidade e de sentido. Estar junto do homem revela que Deus não abandonou a sua criação. Deus é amor e nele não há abandono. Este é uma realidade contrária ao amor. Quem verdadeiramente ama jamais abandona. Somente Deus ama plenamente a cada um de nós na verdade e na liberdade e jamais nos abandonará. Esta é nossa esperança, uma esperança que não decepciona.

O Senhor chamou. Quando eu era pequeno e escutava minha mãe e os padres falarem sobre o chamado de Deus, então ficava me perguntando: Por que será que Deus, sabendo e podendo todas as coisas chama-nos para contribuirmos na construção de seu Reino? Deus poderia fazer tudo sozinho, mas não quis. Agir solitariamente parece não ser coisa de Deus. Desde as origens até os nossos dias, Deus tem se revelado como comunhão trinitária de amor. Deus age amorosa e comunitariamente. Ele soma forças conosco e nos quer ativos na construção do Reino. Por isso, somos chamados à participação. Quem não quer participar, nem quer ser operário, não poderá fazer parte do Reino. O Deus do Reino é um Deus trabalhador. Todos os dias Deus trabalha em função de seu Reino e seu desejo é que trabalhemos junto a ele. Esta é a nossa vocação. A nossa vocação é para o trabalho. E se olharmos o mundo que nos envolve, percebemos de imediato que temos muito trabalho a fazer.

As atitudes divinas que estes três verbos revelam nos convidam a fazermos o mesmo. Assim como Deus veio ao nosso encontro, precisamos também ir ao encontro dos outros. O isolamento e o individualismo nos isolam do mundo e das pessoas. A cultura do medo e a cultura das falsas seguranças distanciam os homens uns dos outros. Tais culturas não são oriundas do acaso, mas são produzidas pelo próprio homem. O chamado de Deus impele-nos à comunhão fraterna e esta não existe sem a proximidade e sem contato humano. O discípulo e missionário de Jesus é alguém próximo das pessoas, especialmente das que mais sofrem e são excluídas pela sociedade. O caminho de Jesus, que se dá no discipulado e na missão, é um caminho de comunhão fraterna. Quem se recusa a comungar na vida do próximo não participa da comunhão com Deus, nem faz parte do caminho de Jesus.

A comunhão fraterna é uma exigência do caminho de Jesus. Somos chamados a fazer parte deste caminho, porque é justamente nele que se dá a construção do Reino de Deus. Viver a comunhão fraterna é algo desafiador. É um desafio porque na vivência de tal comunhão aprendemos a lidar com as diferenças e com as novidades. O diferente e o novo sempre desafiaram o ser humano e na vida eclesial tais valores não podem ser marginalizados, pois constituem o ser humano. Este é um ser diferente e sempre novo. O chamado de Deus nos impele também a vivermos a tolerância, o respeito e a solidariedade nas diferenças e naquilo que se apresenta como novidade. Quando se compreende o valor da diferença e da novidade percebe-se que ambas conferem sentido à vida e conferir sentido à vida é uma necessidade constante do ser humano.

Fala, que te servo escuta
. No diálogo entre duas pessoas não é possível que as duas falem ao mesmo tempo. Desta forma, o diálogo torna-se inviável. O profeta Samuel escutou a voz de Deus no silêncio. Ninguém consegue escutar no barulho. A poluição sonora e a agitação da vida pós-moderna, principalmente nos grandes centros urbanos, têm levado as pessoas a uma comprometedora surdez em relação à voz de Deus. Apesar da busca constante pelo sagrado que marca a nossa época, não são poucas as pessoas que não tem tempo para rezar um simples Pai nosso por dia. Deus não se comunica somente pela oração, mas também através de toda a vida do ser humano. A vida humana em si já é uma comunicação divina, pois não existe vida fora de Deus. Na criação e na recriação do homem e do mundo Deus se revela e se comunica conosco.

Escuta-se a Deus para descobrir e discernir a sua divina vontade. Podemos seguramente garantir que a vontade de Deus é que sejamos felizes no amor. A verdadeira e plena felicidade é encontrada e vivida no amor. Acertadamente, dizia Santa Teresinha do Menino Jesus: “A minha vocação é o amor”. Neste mundo marcado pelo desamor, que gera violência e exclusão e tantos outros males que afetam a vida, é preciso recordar que somente é possível ser verdadeiramente humano através do amor. A escuta da voz de Deus nos compromete interiormente e nos faz instrumentos da justiça e da paz. Samuel escutou a voz divina e se tornou um dos maiores profetas do Senhor. Isto nos mostra que escutamos a Deus para servi-lo no amor.

A escuta de Deus passa pela escuta do outro. Numa sociedade marcada pelo barulho e pelo discurso, em que as pessoas falam demasiadamente, somos chamados a viver o dom da escuta. Deus nos fala também através das pessoas. A escuta é capaz de aliviar e até de libertar o outro de muitos problemas. As visitas às famílias têm revelado que são muitas as pessoas que precisam somente ser escutadas. Trata-se de um exercício saudável que tanto ajuda quem fala quanto a quem escuta. Oremos a fim de que o Espírito do Senhor, que sonda todas as realidades materiais e espirituais, abra os nossos ouvidos para a escuta da voz do Deus que fala cotidianamente em nossa história e nos torne comprometidos com a justiça do Reino na prática do amor.

Tiago de França

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