sábado, 27 de fevereiro de 2010

Escutar Jesus de Nazaré


“Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” (Lc 9, 35).

Numa montanha Jesus se transfigura diante de três de seus discípulos (cf. Lc 9, 28b – 36), eis a meditação que nos é proposta neste 2º Domingo da Quaresma. Jesus sobe à montanha para rezar. Jesus era um homem de oração e nesta oração, Lucas fala que seu rosto mudou de aparência e suas vestes ficaram brancas e brilhantes. Literalmente, parece que Jesus tomou forma aparentemente divina, impressionando seus discípulos. É como se quisesse mostrar um pouco daquilo que ele é na eternidade. Tal aparência causou medo em Pedro, Tiago e João.

Pedro gostou do momento e mesmo sem saber o que estava falando resolveu sugerir a Jesus que construíssem três tendas e ficassem por ali mesmo. Na sugestão de Pedro aparecem as figuras de Moisés e Elias, grandes profetas do Antigo Testamento. O primeiro representando a Lei e o segundo, os profetas. Jesus está em pleno espírito de unidade e continuidade em relação a estes grandes homens de Deus da Antiga Aliança. Em relação a esta, Jesus é o Messias da Nova e Eterna Aliança.

Jesus conversa com Moisés e Elias sobre sua morte. Ele sabia que ia morrer na Cruz. Esta foi conseqüência de sua ação missionária junto aos desfavorecidos de seu tempo. Enfrentar o Império Romano através do anúncio do Reino de Deus, contrário ao reino de Herodes, foi procurar a própria morte. Tinha que se crucificado aquele que se colocou contra a ordem estabelecida, provocando desordem. A liberdade e a vida anunciadas por Jesus e que constituem a centralidade do projeto do Reino não foram aceitas pelos poderosos, pois sempre ameaçaram o poder estabelecido. A mensagem da liberdade que gera a vida no homem e no mundo sempre ameaçou todo e qualquer poder.

A proposta de Pedro é a da acomodação: “é bom estarmos aqui”. De fato, ficar na montanha é mais cômodo do que descer da mesma e enfrentar os riscos da planície. A montanha impõe certa distância do cotidiano no oferecimento do silêncio, do descanso e da paz. A montanha, na experiência bíblica é o lugar da visão e da escuta de Deus. Mas este mesmo Deus fala e convida para descer à montanha. A missão não se faz na montanha, mas no descer da mesma. Descer da montanha é um desafio, pois não se trata de subida, mas de descida, vir para baixo, tocar o solo da existência, incorporar a vida do homem e enfrentá-la com coragem e ousadia.

Não são poucas as mulheres e homens, que estando na planície do caminho de Jesus caem na tentação de Pedro, retirando-se à montanha e repetindo com ele: “Mestre, é bom estarmos aqui”, vamos fazer tendas! Talvez as tendas sejam necessárias para o descanso, para “recarregar a bateria”, para repensar os passos dados, mas jamais para fixar residência. O missionário do Caminho não tem residência fixa, ele escuta a voz de Jesus que pronuncia os verbos “Ide e anunciai”. Quem quiser anunciar vai ter que ir, e quem se dispuser a ir, vai ter que anunciar.

A transfiguração de Lucas já apresenta a imagem do Servo Sofredor, daquele que vai dar a sua vida para o resgate de muitos. No processo doloroso a que foi submetido, Jesus se encontrou sozinho, pois seus discípulos não eram capazes nem de permanecer acordados durante a noite em oração. Os discípulos são medrosos e sonolentos. Isto aponta para a condição humana, limitada e frágil. E não adianta fazer juramentos como Pedro faz em seguida, mas a partir da condição humana, buscando ser plenamente humano, é preciso que se busque estar com Jesus do Horto das Oliveiras até o dia da Ressurreição.

A voz de Deus revela um pedido: “Escutai o que ele diz!” O que é que Jesus nos diz? Jesus é o Escolhido, o Ungido de Deus. Por isso, é digno de nossa plena confiança. Ele foi fiel ao projeto de Deus e inaugurou o Reino de justiça e de amor. É isto que Jesus nos diz e nos pede: que sejamos fiéis construtores do Reino. Para isto, não podemos construir tendas. Quais tendas? As tendas da acomodação, do individualismo, do preconceito, da competição, do egoísmo e tantas outras que nos paralisam e nos desviam do caminho de Jesus.

O barulho da vida pós-moderna e as propostas do anti-Reino têm ensurdecido muita gente neste mundo. São numerosas as pessoas que estão à toa, totalmente desorientadas. Quando olhamos a vida da grande parcela da humanidade percebemos, nitidamente, que está seduzida por aquilo que passa, e plenamente alheia aos valores que não passam e que constroem, de fato, a autêntica liberdade do gênero humano. É de doer no coração o acentuado número de iludidos e alienados, que se deixam levar por aquilo que nos afastam do projeto transformador do Reino.

É aí que se revela a missão da Igreja. Esta é chamada a dar testemunho da liberdade que edifica a verdadeira vida. Muito mais do que nos tempos passados, é preciso anunciar a mensagem da liberdade contida no Evangelho. Não se trata de pseudo-liberdade, mas da mensagem da Boa Notícia de Jesus, que por si mesma é a liberdade dos filhos de Deus. Liberdade anunciada sem medo, anúncio da verdadeira felicidade, que se revela na pertença ao Reino da vida. A humanidade precisa se libertar do poder da morte e somente a liberdade dos filhos de Deus é capaz disso. Jesus era um homem plenamente livre e veio a este mundo para proclamar a liberdade dos filhos e filhas de Deus. Nossas Igrejas precisam renunciar à tentação do anúncio de seus interesses, sistemas e tradições, para se colocar no caminho de Jesus, caminho do anúncio da pessoa de Jesus, que é liberdade e vida para todas as pessoas.

Escutar o que Jesus nos diz é dizer sim ao amor e à liberdade, pois somente estes nos libertam do medo e da mentira. Os políticos roubam, porque são escravos de seus interesses; os pobres sofrem demasiadamente, porque a eles é negada a mensagem da liberdade, que liberta das falsas ideologias e dos sistemas opressores; os ricos são infelizes, porque não se satisfazem com o que já possuem, pois são escravos de suas riquezas; enfim, a escravidão é presente e a fé vivida no caminho de Jesus nos liberta do ódio que mata e de tudo aquilo que nos paralisa e nos aliena. Que nesta caminhada quaresmal aprendamos a nos libertar juntos, pois na comum-unidade o Espírito do Senhor se faz presente e nos ajuda em nosso processo de conversão e libertação.


Tiago de França

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Arruda, Kassab e a crise do DEM


De maneira mais explícita, agora é a vez do DEM, o antigo PFL. Agora fica mais que confirmado que corrupção política na atual conjuntura é coisa de governo e oposição. Ninguém tem autoridade para criticar ninguém, pois uns pecam antes e os demais, posteriormente. Em pleno ano eleitoral, uma das maiores autoridades políticas do Distrito Federal, onde estão estabelecidas as maiores instâncias do poder Judiciário, é pega em flagrante. Não se trata de acusações sem provas, mas de filmagens comprometedoras não de fantasmas, mas de homens que foram eleitos pelo povo para administrar o que é do povo.

A grande maioria dos casos semelhantes e passados, a senhora Justiça resolveu absolver, como é praxe acontecer no Brasil. Isto é tão verdade que políticos corruptos roubam em pleno ano eleitoral e ainda ousam negar, afirmando ser tudo mentira e calúnia eleitoral. A senhora Justiça parece não saber o que fazer, dada a complexidade da situação, uma vez que isto se apresenta como algo novo na história do Brasil: o fato de um Governador de Estado ser preso em pleno exercício do mandato. Os advogados do Governador, certamente pagos pelo dinheiro do povo, lutam incansavelmente pela absolvição do réu temporário, que surpreendentemente ainda se encontra preso.

Em São Paulo, é a vez do Kassab, político polêmico e midiático, acusado de caixa dois na última campanha eleitoral, ou seja, segundo a senhora Justiça, recebeu, ilicitamente, doações de entidades de classe ou concessionárias de serviços públicos. Juntamente com ele, para não se sentir injustiçado e/ solitário pelo pedido de cassação, acompanham-no 24 dos 55 vereadores da Câmara Municipal de São Paulo. O número de políticos envolvidos com crimes eleitorais e administrativos tem revelado que o “negócio” é “promissor”. Enquanto isto, a Igreja, ONGs e a sociedade civil aguardam, pacientemente, a aprovação do projeto de lei PLP 518/09, fruto da Campanha Ficha Limpa, que visa impedir candidaturas de pessoas que respondem a processos em primeira ou única instância ou com denúncia recebida por um tribunal, entre outras complicações. Mas eles, os políticos da Câmara Federal, não estão animados, e com razão, em aprovar tal iniciativa.

Agora, resta-nos esperar pela boa vontade política dos que compõem a Suprema Corte da Justiça brasileira. O atual Procurador-Geral da República, num ato corajoso e justo, fez a sua parte: pediu a prisão do Governador Arruda. Agora é da responsabilidade do Supremo Tribunal mostrar para o país que, apesar da lentidão da atividade judiciária, tal Governador perderá efetivamente seu mandato, responderá, preso (o que é difícil acontecer), pela justa condenação, que se espera ser, no mínimo, perda total dos direitos políticos e devolução daquilo que foi roubado. O mesmo se diz em relação à vergonhosa situação do prefeito Kassab e companhia.

Os brasileiros merecem respeito. Temos muita gente preocupada com o futuro da nação. A resposta que se espera é que justiça seja feita e o mais rápido possível!


Tiago de França

domingo, 21 de fevereiro de 2010

As tentações e a nossa conversão


“Retirem-se as tentações e ninguém será salvo”
(Pai Evágrio, monge do deserto).

A liturgia deste 1º Domingo da Quaresma oferece-nos o texto de Lucas 4, 1 – 13, que fala daquilo que podemos chamar de retiro quaresmal de Jesus. Ele inicia a sua missão com este retiro. Na experiência do deserto aparecem três tentações: fome, poder e providencialismo. Jesus as enfrenta e as vence, mostrando que não se deixou vencer pelas propostas contrárias ao projeto de Deus. As tentações são formas de afastamento ou traição do projeto divino, ou seja, por meio delas podemos renunciar à vontade de Deus e abandonarmos o seu projeto.

A citação do Pai Evágrio, monge do deserto nos faz pensar sobre a importância das tentações na vida do cristão, seguidor de Jesus Cristo. Pode-se encontrar algum valor nas tentações? Sim, certamente. Algumas afirmações precisam ser frisadas antes de avaliarmos mais profundamente sobre o valor das tentações, a saber:

- Deus não nos livra da tentação, logo perde seu tempo quem pedir a Deus para viver neste mundo livre das tentações. O citado texto evangélico revela que nem Jesus, o Messias de Deus, foi poupado das tentações.

- Deus não tenta a ninguém e nem permite que sejamos tentados acima de nossas forças, como nos revela o apóstolo Paulo (cf. 1 Cor 10, 13). Isso nos revela, ainda, que não causa alegria e satisfação a Deus o fato de sermos tentados e cairmos na tentação, pois a oração do Pai nosso nos ensina que Deus pode nos ajudar a não cairmos nas tentações.

- Não seremos abandonados por Deus se cairmos em tentação, pois Ele conhece a nossa fraqueza e nos ama do jeito que somos. Ele não exige perfeição de nossa parte, pois sabe que somos fracos por natureza, que sem a sua graça não somos nada e nada podemos fazer. Quando afirmo que Deus não nos exige perfeição não estou negando o convite de Jesus: “Sede perfeitos, como o vosso Pai do céu é perfeito” (Mt 5, 48), mas estou afirmando que, humanamente, não temos condições de corresponder plenamente a tal convite, uma vez que somos concupiscentes, ou seja, tendemos ao pecado.

As tentações são necessárias à nossa salvação, pois através delas podemos alcançar a misericórdia de Deus. A mesma coisa podemos dizer do pecado, pois é por meio deste que somos assistidos pela graça de Deus. Claro que não podemos afirmar que a graça de Deus age em nós somente pela via do pecado, ou seja, somente quando pecamos, mas costumamos clamar a misericórdia de Deus quando nos conscientizamos de nossos pecados, pois eles nos afastam de Deus.

Diante das variadas formas de pecado que podemos cometer contra a vontade divina, devemos nos preocupar com o pecado maior, aquele que pode nos privar definitivamente da salvação, esta entendida como participação no Reino de Deus. Este pecado maior pode ser chamado de desamor. Fechar-se à experiência do amor de Deus que se revela no amor ao próximo. Não podemos nos preocupar com o fato de cairmos na tentação de cometer pequenas faltas, que em nada modificam o sentido de nossa vida, nem interferem no seguimento de Jesus, mas devemos nos preocupar com a falta do amor, pois tal falta tira o sentido de nossa vida.

A partir das tentações que nos vão aparecendo, temos a oportunidade de vivenciarmos a experiência da misericórdia divina que não nos abandona. Deus é justo e fiel, pois nos assiste com sua graça e não deixa de nos amar por causa de nossos pecados. O Senhor não leva em conta os nossos pecados, porque sabe que não subsistiríamos a seu juízo (cf. Sl 129). Não podemos cultivar em nós a falsa imagem de um Deus vingativo e vigilante, que fica a espreita esperando nossa queda para nos castigar. Isso contradiz o princípio da misericórdia divina. Deus é infinitamente bom e amável e jamais se cansa de nos amar, apesar de nossas iniqüidades.

Assim sendo, a batalha espiritual do cristão não está em pecar ou não pecar, mas em está ou não no caminho de Jesus por meio da vivência do seu amor. Eis o que deve nos preocupar: se estamos ou não unidos a Deus por meio da unidade para com o nosso próximo, por meio do amor. É uma batalha porque somos tentados a nos fechar em nós mesmos (individualismo) e nos esquecermos que somos filhos de um mesmo Pai. Jesus foi tentado três vezes, segundo o texto, a trair ou desistir do caminho da Cruz, caminho de vida e ressurreição. A mesma tentação se manifesta nos dias de hoje e com mais intensidade, pois a ilusão do consumismo, do poder e das riquezas nos desafia todos os dias.

Estar no caminho de Jesus pressupõe coragem e ousadia profética, pois não se trata de um caminho qualquer, mas de uma experiência desafiadora que se revela no amor-doação, no grito contra as injustiças, na luta pela libertação integral da pessoa humana, na renúncia às forças do anti-Reino, na coragem de ser sal e luz do mundo. É um caminho perigoso, mas que vale a pena ser trilhado. Como dizia o profeta Dom Hélder Câmara: “O caminho de Jesus é uma experiência linda de viver!”. Na história do Cristianismo encontramos várias mulheres e homens que se deixaram conduzir no caminho de Jesus e, apesar do sofrimento causado por tal adesão, são felizes eternamente porque se tornaram membros do Reino de Deus em construção. Eis a verdadeira felicidade: se tornar membro do Reino de Deus.

O convite deste início de Quaresma é para que possamos nos deixar conduzir pelo Espírito de Deus. Deixar conduzir pelo Espírito é uma aventura gratificante, que nos leva a caminhos nunca vistos ou pensados. Somente o Espírito nos faz sentir na vida cotidiana a presença amorosa de Deus que revela na ternura e na intimidade que se pode viver nas relações humanas. Se vivemos num século perturbado, numa Igreja que não sabe bem para onde vai (em alguns momentos isto se revela, pelo menos nas ações de alguns personagens), é porque nos recusamos a viver segundo o Espírito, como nos ensina São Paulo (cf. Rm 8, 1 – 17). O caminho da conversão está em viver segundo o Espírito, porque este nos revela o amor, nos faz viver o amor e nos converte no amor.


Tiago de França

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Viver a Quaresma com Jesus no deserto


“Quem busca a verdade, quem obedece a lei do amor,
não pode estar preocupado com o amanhã"
(Gandhi).

Estamos iniciando o tempo que precede a maior festa do Cristianismo: a Ressurreição do Senhor. A Quaresma é um tempo de preparação. A oração, a caridade e o jejum caracterizam o tempo quaresmal, pois levam o cristão a viver penitencialmente. Não se trata de mera penitência em vista da simples purificação do espírito, mas como preparação para a festa da Páscoa. É um tempo de escuta, silêncio e meditação da Palavra de Deus que levam à conversão da vida.

A CF – Campanha da Fraternidade, inserida anualmente na Quaresma, ajuda o cristão a pensar a situação emergencial da sociedade do ponto de vista da fé que brota da Palavra de Deus. O tema deste ano chama a atenção para o problema da economia. Trata-se de uma reflexão crítica da situação econômica atual, que mais mata do que dignifica a pessoa humana e como esta foi criada à imagem e semelhança de Deus, a CF quer alertar a todos para a necessidade de uma economia para a vida, para a acolhida e desenvolvimento integral de todos.

A espiritualidade quaresmal lembra a ida de Jesus ao deserto, impelido pelo Espírito, para ser tentado pelo diabo (cf. Mt 4, 1 – 11). A Quaresma é um tempo de deserto. Este é um lugar sombrio, silencioso, misterioso e até perigoso. A experiência de Jesus no deserto foi sofrida e, humanamente, angustiante. Seu encontro com o diabo é revelador. Jesus é tentado e resiste às três tentações. A maior das três é a que representa a sede de poder, o risco de se mostrar poderoso e superior aos outros, de ser rico e dominador. Enquanto homem como nós, Jesus fez a experiência de ser tentado e sentiu na pele a condição na qual nos encontramos: limitados e frágeis. Ninguém escapa de tal condição, mas a superamos pela fé em Jesus. Este não somente nos conhece porque é Deus, mas também porque tendo sido homem, nos conheceu pela carne e na carne.

O fato de Jesus nos conhecer muito mais do que nós nos conhecemos a nós mesmos é algo que nos assegura uma comunhão para com ele. Ir ao deserto significa participar desta comunhão com aquele que nos conhece e que por isso mesmo nos ama fraternalmente. O deserto é o lugar da intimidade com Deus, o lugar da experiência divina. A nossa condição não permite nos adentrarmos na comunhão trinitária, é o próprio Deus, por meio de seu Espírito, quem nos conduz ao seio de sua intimidade e nos faz participantes de uma experiência única e indelével. O encontro com Jesus no deserto é marcado por uma presença amorosa que opera em nós a conversão de nossa vida. É um encontro dialógico que nos remete ao mais íntimo de nós mesmos fazendo-nos conhecer mais e melhor.

As tentações foram necessárias para que Jesus se conhecesse melhor, isto enquanto pessoa. A condição humana de Jesus nos permite dizer isso. Quanto se encontra consigo mesmo, o homem se torna mais humano e, consequentemente, mais autêntico consigo mesmo e com o próximo. O encontro com as tentações fez Jesus se conhecer melhor na sua humanidade e também na sua divindade. Também nós, criados à imagem e semelhança daquele que estava com e em Jesus, somos chamados a nos conhecermos melhor nos encontro cotidiano com as tentações.

O Espírito de Jesus é quem melhor conhece a cada pessoa e sabe de seus processos e histórias. Cada ser humano está inserido numa realidade, num contexto diferente de vida que o torna humano ou desumano. Cada ser é fruto de sua realidade. O homem é responsável pela sua história e a partir do momento em que vive, mesmo que não queira, constrói a própria história e a do mundo. E no desenrolar desta história de homens frágeis e limitados, o Espírito se faz presente de maneira íntima e silenciosa, agindo em prol da libertação integral da cada pessoa. A vontade de Deus é que todos os homens se encontrem consigo mesmos e com Ele, e neste encontro revelador todos sejam felizes.

Aqui se percebe o quanto é perigoso a negação das próprias limitações e também a negação do mundo. Jesus não se recusou ir ao deserto. Ele foi, enfrentou as tentações e as venceu, saiu vitorioso. A vitória de Jesus sobre as tentações que geram o anti-Reino e a morte não passou pela negação de seu ser humano, nem pela fuga do mundo, mas pelo enfrentamento amoroso e recriador da experiência limitada deste mundo. Por isso, asseguradamente, podemos dizer que Jesus foi plenamente humano. Aprendemos a ser humanos a partir da experiência dele. Somos seguidores de Jesus a partir de sua experiência neste mundo, experiência revelada no seu Evangelho.

Para que o Espírito do Senhor nos revele quem verdadeiramente somos, precisamos combater em nós a tentação do fechamento de nós mesmos. O Espírito trabalha na e para a liberdade. Não somos forçados a nos deixar revelar e moldar por este Espírito. Pela oração e pela vida precisamos deixar transparecer a possibilidade de intervenção divina em nós. Deus pode fazer todas as coisas, mas não interfere em nossa liberdade. Esta nos dar a oportunidade de aceitarmos ou recusarmos o auxílio divino. Na experiência de Jesus aprendemos com sua obediência à vontade do Pai a sermos obedientes à voz do Deus que nos pode libertar do poder da morte. A obediência de Jesus à vontade de Deus o fez participar de sua intimidade e divindade. Também nós, a partir da experiência de Jesus, nos tornamos íntimos de Deus e participantes de seu amor.

O Espírito de Deus nos ensina, pela obediência à vontade divina, a amar a Deus através do amor ao próximo. A Quaresma nos diz que precisamos estar atentos ao amor, pois foi pelo amor que nos salva que Jesus ressuscitou dentre os mortos. Toda a experiência de Jesus encerra-se no amor. Ele tudo fez por amor. Veio a este mundo para nos recordar que fora do amor não existe salvação. A penitência quaresmal perde plenamente seu sentido e valor se não nos levar ao amor. Penitenciamo-nos não para sermos rigorosos conosco mesmos e, desta forma, nos mostrarmos mais santos; mas para sermos mais humanos e, consequentemente, mais amorosos conosco mesmos, com o próximo e com o mundo. Não adianta sermos piedosos e ascéticos se por meio de tais exercícios perdemos a capacidade de amar, pois onde não existe amor, mesmo que existam ascese e renúncias, não há santidade de vida.

Aproveitemos, pois, o tempo quaresmal para nos abrirmos ao Espírito, a fim de que nos revele a vontade de Deus. Precisamos aprender a amar, apesar de nossa condição. O mundo atual carece de mulheres e homens que amem apesar de tudo. Não permitamos que o ódio e a indiferença tomem conta de nossas vivências. Permitamo-nos que o Espírito nos converta e nos ressuscite para uma vida nova, pautada no amor que nos leva ao serviço do próximo, especialmente do sofredor e excluído.


Tiago de França

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Os bem-aventurados do Reino de Deus


A presente reflexão tem como referência o texto evangélico da liturgia deste 6º Domingo do Tempo Comum: Lc 6, 17. 20 – 26. Jesus cita os bem-aventurados e os mal-aventurados. Os primeiros são felizes, os últimos não. Os bem-aventurados são os pobres, os que têm fome, os que agora choram e os que são vítimas do ódio, da expulsão, dos insultos e da maldição. Os mal-aventurados são os ricos, os que têm fartura, os que agora riem e os que são elogiados. Esta é a letra do texto. Como entendê-lo para os dias de hoje?

“Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!” O oposto desta bem-aventurança se refere aos ricos, logo não podemos afirmar que Lucas se refere aos pobres, espiritualmente, mas aos pobres, materialmente. Desde que o homem inventou a propriedade privada, apoderando-se das riquezas do mundo, particularizando-as, os pobres começaram a existir. Existem pobres porque há ricos. Estes o são por causa daqueles. Se eu sou pobre e tu és rico é porque tu tens aquilo que me falta. A recusa à partilha gera exclusão e miséria. Esta é diferente da pobreza.

Ser pobre não é um mal, este está no fato de não ter o necessário para a manutenção da vida. Sociologicamente, fala-se de categorias de pobres e do surgimento de novos tipos de pobreza, mas de maneira geral podemos dizer que os pobres que podem viver dignamente e há os miseráveis, que nada têm para viver. O combate à miséria é uma urgente necessidade que se manifesta em todas as épocas da sociedade humana, pois sempre foi uma realidade que agrediu e continua a agredir a dignidade da pessoa humana, dotada de direitos e deveres. Há o direito de se viver bem e há o dever de se assegurar este viver.

Os demais bem-aventurados do texto também se referem aos pobres, pois estes passam fome, choram, são odiados, expulsos, insultados e amaldiçoados. Diante das catástrofes naturais e sociais que assistimos na realidade atual, os pobres sempre são as maiores vítimas. Se olharmos as vítimas do recente terremoto do Haiti, veremos que são pessoas pobres; se visitarmos os grandes presídios deste país, veremos que os presos são pobres; se olharmos os jovens, vítimas das drogas, da violência e da prostituição, veremos que a grande maioria é pobre. Diante da crise financeira que se abateu sobre o mundo, os pobres foram os que mais sofreram. Se buscarmos saber quem são os desassistidos pelo serviço público de saúde, educação, moradia, saneamento básico, segurança, justiça etc. veremos que a maioria é pobre. Enfim, os pobres são os sofredores deste mundo. Eles não existem por causa do destino ou por causa da vontade de Deus, mas são resultado da ganância, do individualismo e dos sistemas econômicos criados pelos homens.

Eclesialmente, depois do despertar conciliar do Vaticano II, a Igreja viu que precisava urgentemente optar pelos pobres, pois antes ela não fazia tal opção. Infelizmente, a Igreja sempre foi conivente com a escravidão e a exploração do homem pelo homem, salvo algumas exceções de mulheres e homens de Igreja que souberam amar Cristo e seus irmãos. A História da Igreja sabe muito bem falar sobre isso e a história secular mais ainda. Ninguém pode ir contra a história verídica, pois esta desmente quem busca esconder a verdade dos fatos. A verdade fala por si mesma, quer que admitamos ou não. Ela está aí, todos podem ler.

As Conferências Episcopais das Igrejas Particulares da América Latina, graças ao entusiasmo de muitos Bispos profetas e do testemunho exigente de muitas pessoas inseridas na pobreza, resolveram refletir seriamente as conclusões conciliares e até hoje buscam construir um modelo de Igreja que se aproxime cada vez mais do Evangelho de Jesus. O Espírito do Senhor tem sido misericordiosamente providente para com a Igreja Latino-americana fazendo surgir mulheres e homens que não se cansam de amar a Deus na luta pela libertação integral do ser humano. De fato, a Igreja reaprendeu a ler o Evangelho de Jesus e por toda parte temos o testemunho dos mártires da caminhada, que com seu sangue não deixam a profecia morrer. A Igreja tem demonstrado muitos sinais de conversão.

“Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação”. Este “ai de vós” é uma séria advertência para os ricos. Em outras ocasiões Jesus os adverte sobre o perigo de suas riquezas. Estas prendem seus corações e os afastam de Deus, porque são conseguidas, na maioria das vezes, com meios ilícitos. Os ricos precisam passar pela experiência de Zaqueu, chefe dos cobradores de impostos, que tendo recebido Jesus em sua casa resolve mudar de vida partilhando sua riqueza e devolvendo quatro vezes mais às pessoas às quais tinha roubado (cf. Lc 19, 1 – 11). Os ricos de nossos dias estão cada vez mais ambiciosos e sofisticados, roubam descaradamente aos pobres. Destacamos os políticos corruptos, que descomprometidos com a justiça social e com a moralidade política desviam os recursos públicos, deixando a população desassistidas em seus direitos.

O sistema capitalista oportuniza o surgimento de ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres. Os primeiros, geralmente, costumam ser insensíveis ao sofrimento dos pobres aproveitando-se dos mesmos para a própria promoção. Costumam, ainda, ser oportunistas, exploradores, espertos, calculistas, etc. Cada vez mais se aperfeiçoam na vergonhosa arte de enganar e subornar a consciência das pessoas. São pessoas demasiadamente fartas, que vivem rindo à toa, sem saber onde colocar tanto dinheiro; são elogiadas e bem vistas na sociedade, amigas do discurso e da aparência no jeito de ser e de se comportar.

Por isso, Jesus exige, radicalmente, que todos os ricos reorientem suas vidas através das práticas da partilha e da solidariedade. Os ricos são chamados a viver a justiça do Reino de Deus, que os igualam a todas as pessoas deste mundo. A Campanha da Fraternidade deste ano é um convite para os ricos deixarem de servir ao dinheiro e se tornarem discípulos e missionários de Jesus na justiça e no amor. O que Jesus propõe é a renúncia ao supérfluo e o ingresso no caminho da justiça, do contrário não há salvação para aqueles que vivem toda a vida servindo ao dinheiro. Infeliz do homem que põe a sua confiança no dinheiro, pois somente Deus é a nossa confiança, em quem podemos viver seguramente tranqüilos e em paz (cf. Jr 17, 5 – 8).


Tiago de França

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O presbítero e o resgate da profecia


Neste Ano Sacerdotal proclamado pelo Papa Bento XVI no dia 19 de junho do ano passado, toda a Igreja é chamada a refletir sobre a vida e a missão do presbítero. Qual a missão do presbítero na Igreja e no mundo? Iniciemos, brevemente, com os conceitos de missão, de presbítero, de Igreja e de mundo. Assim sendo, responderemos à indagação e descobriremos a importância do presbítero na missão da Igreja no mundo. A presente reflexão não pretende esgotar um tema tão complexo da vida eclesial, mas apenas apresentar uma colaboração a muitos que não têm acesso às revistas, jornais e livros que têm, demasiadamente, refletido sobre o mesmo tema. Para os que lêem tais fontes bibliográficas e informativas, talvez algumas questões se mostrem repetitivas, mas certamente cada autor expõe de forma diferente e original sobre um mesmo tema.

O que é a missão? Sabemos que Jesus veio ao mundo enviado pelo Pai para inaugurar o Reino. Ele cumpriu fielmente a sua missão, juntamente com um grupo de pessoas que escutaram seu chamado e corresponderam à missão. Jesus não viveu a sua missão sozinho. Ele a cumpriu numa comunidade de pessoas humanas e pecadoras, que na vivência cotidiana de seus costumes e culturas se comprometeram com seu projeto. Com isso quero dizer que Jesus não pediu para que seus discípulos renunciassem à sua vida comum para viverem uma vida sobrenatural, mas a missão se dá na simplicidade da vida humana neste mundo. Substancialmente, não há nada de extraordinário no seguimento de Jesus, ou seja, segui-lo não implica uma transformação da vida comum para uma vida de prodígios, milagres, êxtases, visões etc. Assim sendo, a missão resume-me no seguimento de Jesus, ou seja, a missão é seguir Jesus. Antes de presbítero, o ministro ordenado precisa buscar a autenticidade cristã, ou seja, ser um cristão autêntico.

O presbítero, na Igreja e no mundo, é chamado a seguir Jesus. Antes de qualquer posição eclesiástica que se ocupe na hierarquia ou na sociedade, o presbítero deve ser um seguidor de Jesus. Muitas vezes, infelizmente, certas posições e certos títulos afastam o presbítero do caminho de Jesus, desviando-o para o caminho do prestígio e do poder. Todo aquele que responde o chamado divino na condição de presbítero deve abraçar com radicalidade a proposta de Jesus, pois o ministro ordenado deve ser o primeiro a buscar viver o Evangelho de Jesus e tal vivência encerra-se no caminho de Jesus. Desta forma, percebe-se que o ministério presbiteral é um compromisso sério e exigente, é preciso coragem e muita disposição para cumpri-lo nos dias atuais. A missão do presbítero é levar as pessoas a se tornarem seguidoras de Jesus. Como isto se faz? É simples de entender, mas difícil de viver. O presbítero aponta o caminho de Jesus com a vida e com a palavra, a isto chamamos testemunho.

O que é um presbítero? Também chamado sacerdote ou padre, o presbítero é um homem comum, uma pessoa. Nascido no seio de uma família, ele é filho da carne e do sangue. Tendo escutado o chamado divino opta pelo seguimento de Jesus na condição de ministro ordenado na Igreja, colaborador da Ordem Episcopal, como ensina o Magistério. Antes do Concílio Vaticano II, o presbítero era o centro da vida da comunidade cristã, era visto como homem santo, reservado, detentor e conhecedor dos mistérios divinos, mediador da comunidade e legislador da vida particular do povo. Devido à sua missão específica e elevada em relação aos demais cristãos, era revestido de vestes especiais (hábito religioso) e de um poder sagrado que fazia temer os grandes e os pequenos da localidade, principalmente das pequenas cidades do interior.

Tal mentalidade colocava o presbítero no seu devido lugar, ou seja, era encontrado ou na igreja, ou na casa paroquial. Não era dado às andanças, nem às conversas e locais indevidos. Os antigos costumavam dizer que o padre não era um homem, mas alguém separado e consagrado ao Senhor. Tal mentalidade, construída pela própria Igreja foi bem aceita e assumida pelos católicos. Estes são os primeiros a não aceitar as mudanças realizadas pelo Concílio Vaticano II, salvo as exceções. Os mais velhos da comunidade sentem falta do hábito e da linguagem dura dos padres pré-conciliares.

Certamente não podemos escandalizar tais pessoas, mas precisamos convencê-las de que tal modelo de presbítero não corresponde mais às exigências do tempo presente. O presbítero deve continuar sendo um homem comum, ou seja, pobre entre os pobres como Jesus. A simplicidade da vida presbiteral, por incrível que pareça, é hoje um dos temas mais discutidos, pois as tentações do consumismo e do apego aos bens materiais têm desafiado os presbíteros da Igreja de hoje muito mais do que os da Igreja de antigamente. A globalização do consumismo é também um obstáculo para a Igreja.

O lugar do presbítero, discípulo e missionário de Jesus, é no meio do povo, pois este é que dá sentido para a vida presbiteral. Dom Hélder Câmara, profeta da paz, dizia que o presbítero não existe para si mesmo e o pai biológico deste profeta disse que o ser padre é incompatível com o egoísmo. Este, por sua vez, esvazia o sentido da missão. Um presbítero egoísta é um desastre para a Igreja, pois o ser presbítero está voltado para o serviço e ninguém serve a si mesmo, mas ao outro. Quem não serve, não serve para nada! O sentido autêntico do ministério presbiteral está no serviço ao povo de Deus. O chamado é para ser operário. Jesus não chama para a administração, nem para a posse da vinha, mas para o trabalho na vinha. O presbítero é um trabalhador. O presbítero não é um funcionário da Igreja, nem do altar do Senhor, mas um operário a serviço da comunidade.

O que é a Igreja? O Concílio Vaticano II disse que a Igreja é Povo de Deus (cf. Lumen Gentium). O presbítero está a serviço desta Igreja-povo. Presbíteros, bispos e povo formam a Igreja peregrina e todos devem trabalhar na construção do Reino de Deus. Tudo e todos devem convergir para o Reino, do contrário, tudo e todos perdem o sentido da existência cristã. A Igreja, enquanto instrumento de salvação da humanidade, deve ser uma humilde serva da vinha do Senhor.

O serviço da Igreja à humanidade é de grande importância porque sua missão é de religar os homens a Deus por meio da caridade de Cristo, enviado pelo Pai para a salvação dos homens. O anúncio da salvação em Jesus Cristo restitui à humanidade o vínculo perdido com seu Criador. A Igreja é chamada a apontar o caminho de Jesus, a fim de que se cumpra seu mandato missionário. Recordar aos homens que o amor é o fundamento e o sentido último da existência humana é missão essencial da Igreja. O presbítero está a serviço do anúncio do amor.

O que é o mundo? É a nossa Casa comum. Casa maltratada por seus moradores, seres humanos em crise de humanidade. A missão do presbítero se dá no mundo e para o mundo. A Igreja está a serviço do mundo e como membro da Igreja, o presbítero deve está inserido no mundo, sem medos e pretensões. Por que ter medo do mundo aquele que é enviado por Deus para a conversão dos homens do mundo? É verdade que o mundo, na sua atual dinâmica, desafia radicalmente o presbítero ameaçando-o, mas o Cristo que chama é o mesmo que capacita e encoraja para a missão. A missão presbiteral não se dá na fuga do mundo, pois esta o isola do povo que está no mundo e o afastar-se do povo compromete gravemente a missão do ministro ordenado.

A Igreja e o mundo atuais necessitam urgentemente de profetas. Antes de morrer, Dom Hélder Câmara pediu ao monge Marcelo Barros, OSB, que o visitava: “Não deixem morrer a profecia”. A profecia é necessária para a vida do mundo e da Igreja, pois sem ela o processo de conversão da humanidade se torna impossível. Os profetas fazem o Reino de Deus acontecer na história, porque anunciam a Boa Nova que constrói a vida e a liberdade do gênero humano e denunciam as injustiças, que são as forças do anti-Reino.

Os profetas, com sua palavra e gestos, impedem que o medo e o poder da morte imperem sobre o ser humano. É preciso louvar e agradecer a Deus o testemunho dos presbíteros profetas que tivemos e temos na Igreja, mas que são poucos. A Igreja e o mundo são renovados no seguimento de Jesus quando a profecia se faz presente, do contrário, temos uma Igreja dada à acomodação e à sede do poder, que impede a ação do Espírito Santo.

É o Espírito de Deus que faz surgir os profetas na Igreja. Eles são homens e mulheres livres, que vivem cotidianamente na liberdade do Espírito. Ninguém consegue controlar a vida de um profeta, pois o mesmo não sabe de onde veio, nem para onde vai. A dinâmica do Espírito é indecifrável, pois o mesmo sopra onde, quando e em quem quer. Por isso, os profetas precisam ser acolhidos e compreendidos, o que, muitas vezes, não acontece.

Se tal compreensão e acolhida não ocorrem, os profetas não se incomodam, pois sabem de sua condição e confiam plenamente na divina Providência. São homens e mulheres entregues à vontade de Deus, que no sofrimento e na perseguição, acolhem a graça de Deus colocando-se a serviço da construção do Reino. Este é sempre lembrado pelos profetas, pois constitui a centralidade da mensagem cristã. Fora disso tudo não há profeta, nem profecia, mas suposições e/ou aparências de profetas e profecias. Oremos, pois, ao Deus da vida e da liberdade, que faça nascer no mundo e na Igreja profetas e profetisas, que apontem o caminho da conversão para que possamos verdadeiramente viver.


Tiago de França

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Avançar para as águas mais profundas


A liturgia deste 5º Domingo do Tempo Comum reflete sobre o chamado e o envio. Alguém chama e envia para realizar alguma coisa. O título da presente reflexão fala do pedido de Jesus: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca” (Lc 5, 4). É um convite desafiador estendido a todo discípulo de Jesus, que impõe riscos à vida daquele que se dispuser a avançar para as águas mais profundas. Estas são desconhecidas, pois não se sabe o que há no mais profundo das águas oceânicas. É uma realidade que gera surpresa e causa medo. Os discípulos de Jesus, apesar de não terem pescado nada durante toda a noite, em atenção à sua palavra lançam as redes nas águas mais profundas e conseguem obter grande quantidade de peixe. Só conseguiram porque atenderam ao pedido de Jesus.

O mundo em que vivemos é um grande oceano. Neste há vários tipos de peixes e vários mistérios. As águas mais profundas deste mundo são as realidades sombrias que nos causam medo e nos desafiam a cada dia. Os seguidores de Jesus, chamados de cristãos, chamados para “pescar homens”, devem realizar tal pesca nestas águas mais profundas. Citemos, a fim de compreendermos melhor o sentido destas águas, alguns lugares, realidades e circunstâncias em que se manifestam a força das ondas oceânicas da vida: zonas de prostituição, favelas, ruas e praças, países paupérrimos, fome, violência, discriminação, agressão à natureza, enfim, o lugar dos empobrecidos e sofredores deste mundo. Os empobrecidos, com suas realidades e histórias são as águas mais profundas nas quais o discípulo de Jesus deve lançar as redes para a pesca.

O que vem a ser esta pesca? Como ela se dá? Com que finalidade se deve pescar? As Igrejas cristãs, sem exceção alguma, correm o risco de cair na tentação daquilo que podemos chamar de conquista de almas para Jesus. Nas grandes favelas encontramos centenas de pequenas igrejas situadas em tudo quanto que é lugar e de variadas manifestações religiosas. Nelas há um ponto negativo que compromete gravemente o trabalho de evangelização, que consiste no cultivo de uma fé ingênua e/ou espiritualista, ou seja, professam a fé superficialmente tendo como fim a mera satisfação dos desejos. A oração de tais Igrejas não visa a libertação integral da pessoa, por meio do processo de conscientização cristã e política, mas simplesmente na busca incessante de milagres para a solução de problemas, principalmente de ordem financeira.

Por outro lado, é inegável a presença reconfortante destas Igrejas no meio dos pobres. É justo admitir que, muitas vezes, os nossos irmãos assim chamados de “evangélicos” ou “crentes” estão mais presentes no meio dos pobres do que a Igreja, na realidade dos favelados. Eles celebram, visitam, estimulam a fé e recupera em muitas pessoas o gosto pela vida. Este é o aspecto positivo e louvável. Também pode ser um sinal ou um convite para a Igreja Católica se planejar melhor e se fazer cada vez mais presente na realidade dos pobres, pois a grande tentação é esperar que os pobres saiam de suas casas e procurem participar dos sacramentos nos templos. A Conferência de Aparecida denuncia e reprova com toda clareza a pastoral de manutenção e a vivência de uma Igreja sacramentalista, descomprometida com a vida das pessoas.

A pastoral de manutenção visa conservar uma Igreja que não corresponde mais às realidades pós-modernas. O avanço da mentalidade e da sociedade em si mesma obriga-nos a uma séria e exigente reciclagem teológico-metodológica. Tal reciclagem passa pela proximidade que se deve ter com a vida das pessoas, preferencialmente da vida dos pobres. Estes sempre desafiaram a Igreja, pois a pobreza sempre gritou contra o luxo e a ostentação, contra o prestígio e o poder. Os empobrecidos nos evangelizam quando nos dispomos a escutá-los humildemente, a exemplo de Jesus, que se fez pobre entre os pobres para confundir os grandes deste mundo.

A Igreja sacramentalista, que é resultado das decisões do Concílio de Trento, enquanto resposta à Reforma Protestante, está cada vez mais marginalizada pelas pessoas. Estas não aceitam mais a recepção passiva dos sacramentos, que em nada constrói, antes, escraviza e compromete a construção do Reino de Deus. Jesus não nos chamou para o sacramentalismo, mas para, por meio dos sacramentos, enquanto sinais da presença amorosa de Deus no meio do povo, e do anúncio da Boa Nova da vida e da liberdade construirmos seu Reino de amor e de justiça.

Avançar para as águas mais profundas é um desafio possível e necessário, mas para isso precisamos renunciar a tudo o que nos prende e nos impede. O texto evangélico deste Domingo (Lc 5, 1 – 11) termina com as seguintes palavras: “Então levaram as redes para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus”. Será que precisamos renunciar a vida e ao mundo para nos voltarmos para Jesus, que está nas alturas dos céus, como nos ensinam os espiritualistas de nossas Igrejas? Será que é preciso entregar a nossa vida a Jesus, porque tudo é do Pai que resolve todos os problemas? Este, certamente, não é o caminho apontado pelo Evangelho. Este nos aponta outra direção.

A leitura equivocada do Evangelho de Jesus está deixando muita gente nas águas mais rasas e límpidas. Não somos chamados para ficarmos na beira-mar, sem correr nenhum risco. Até podemos tomar tal atitude, mas certos de que não é a que Jesus nos pediu. As pessoas que estão na beira-mar são aquelas que ainda são dominadas pelo medo. É verdade que este faz parte da condição humana, mas quando se fala de seguimento de Jesus, o medo que paralisa e aliena torna-se inaceitável. O medo é incompatível com a missão cristã. Quem se deixa dominar pelo medo jamais consegue seguir Jesus, pois para isso precisa-se de coragem e ousadia.

Pessoas como Dom Hélder Câmara, Dom Luciano Mendes, Dom Oscar Romero, Ir. Dorothy Stang, Madre Teresa de Calcutá, Beata Lindalva Justo de Oliveira, entre tantos outros e outras que atenderam ao pedido de Jesus e avançaram para as águas mais profundas. Destes, as Irmãs Dorothy e Lindalva tiveram a graça de alcançar a coroa do martírio na construção do Reino de Deus. A vida destes santos e santas de Deus mostra claramente o risco que se corre no avançar para as águas mais profundas. Esta é a vocação de todo ser humano: doar a vida pela vida do mundo, a fim de que todos creiam na vida trazida por Jesus. Não somos chamados para pescar almas, pois estas não se pescam! Somos chamados a pescar homens, pessoas completas, com suas realidades e histórias enraizadas no mundo dos homens, a fim de que possam viver digna e integralmente conforme a vontade de Deus.

Somos chamados a responder prontamente a voz daquele que nos chama para a construção desafiante do Reino. A exemplo do profeta Isaías digamos a Deus: “Aqui estou! Envia-me” (Is 6, 8).


Tiago de França

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

CF 2010 - Economia e vida


“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24c).

A economia faz parte da vida humana. Assim como a política rege as decisões e as relações sociais na sociedade, a economia está voltada para o cuidado com a casa, como indica a origem da própria palavra. Ninguém está excluído da economia, enquanto rede de relações comerciais inserida no mercado e fora dele. A compra e a venda de produtos, mercadorias e serviços fazem parte da construção econômica da vida humana e social.

O tema da CF - Campanha da Fraternidade deste ano é ecumênico, ou seja, ultrapassa as fronteiras religiosas. É uma Campanha que visa refletir sobre a relação entre economia e vida para todas as pessoas, independentemente de suas crenças religiosas, pois a economia constrói e/ou afeta a vida de todos. A CF de 2010 é também uma oportunidade das Igrejas, juntas, repensarem suas práticas religiosas e suas compreensões daquilo que chamamos de economia da salvação.

A Igreja, que tomou a iniciativa de fazer, anualmente, uma Campanha nacional que visa pensar, rezar e buscar soluções para os problemas sociais emergentes do país, procura também, ao mesmo tempo, à luz do Evangelho de Jesus e dos valores autenticamente humanos, reorientar a sua caminhada enquanto instituição incluída no Povo de Deus. A CF é uma oportunidade de as Igrejas se afirmarem, positivamente, diante da sociedade demonstrando que estão preocupadas com a atual situação econômica do país e que estão dispostas a contribuir com a construção de uma economia voltada para a vida.

Anualmente, durante o tempo quaresmal, ocorre a Campanha da Fraternidade. Considero-a uma das atitudes proféticas da Igreja no Brasil. O espírito profético constitui a mensagem cristã anunciada pela Igreja e tal mensagem pressupõe o anúncio da vida e da liberdade do gênero humano. Neste ano, a preocupação da Igreja em comunhão com as demais denominações religiosas volta-se para a economia. Sabemos das distorções e dos crimes contra a dignidade humana cometidos pelo sistema capitalista atual.

É verdade que as Igrejas não são responsáveis diretamente pela economia. Algumas pessoas, equivocadamente, chegam até a se perguntar sobre a intromissão ou envolvimento da Igreja em assuntos não religiosos. O interesse da Igreja na reflexão de temas considerados não religiosos refere-se à defesa e promoção da vida do homem e do mundo. Não basta ficar somente na liturgia que celebra a vida, mas é justo e necessário o mergulho nas questões do homem e do mundo. A Igreja é formada por homens e está situada no mundo, logo precisa está intimamente envolvida com os problemas que os afetam.

O Concílio Vaticano II, que até hoje tenta reorientar as atitudes da Igreja, levando-a a optar radicalmente pelos pobres, nos faz compreender a Igreja como Povo de Deus encarnada na história. Sem esta compreensão, a Igreja não seria Povo de Deus. Se a Igreja se separa ou foge do mundo e de seus dilemas, ao mesmo tempo, ela se exclui do Reino de Deus e isto compromete a sua missão. A vocação da Igreja é para o serviço do mundo. Este não está a serviço da Igreja, mas é destinatário da caridade de Cristo que se manifesta nas ações da Igreja em favor dos cidadãos deste mundo.

Assim sendo, toda corrente espiritual que vise afastar as pessoas do mundo descomprometendo-as, torna-se um mal e uma força do anti-Reino. Tais correntes espiritualistas precisam ser erradicadas da Igreja, pois em nada contribui na edificação do Reino de Deus. Tudo na Igreja deve convergir para o Reino de Deus, do contrário, somos fariseus e hipócritas, amigos das leis e das tradições. A citada economia da salvação está na ação eclesial que se revela no compromisso afetivo e efetivo da Igreja enquanto instrumento de salvação da humanidade.

O lema da CF deste ano chama-nos a atenção para o serviço a Deus. O versículo bíblico apresenta-nos duas alternativas: servir a Deus ou ao dinheiro. O serviço a estes senhores acarreta sérias conseqüências para a vida humana. Quem quiser servir a Deus tem como regra de vida servir aos pobres, os prediletos de Jesus. O serviço a Deus se expressa no serviço ao próximo, preferencialmente os mais sofridos. É um desafio quase que impossível, mas compreende a exigência da mensagem cristã. Quem aceita Jesus como Deus e Senhor é chamado a servi-lo nas pessoas agredidas em sua dignidade. Sem este serviço não há fé, mas suposição e/ou aparência de fé.

O serviço ao dinheiro é algo perigoso, pois compromete a salvação do indivíduo e da humanidade inteira. A atual situação do mundo demonstra muito bem o quanto é perigoso servir ao dinheiro. Quem serve ao dinheiro não respeita, não promove, nem defende a vida, mas a explora infinitamente. O fato de a Conferência de Copenhage (COP – 15), ocorrida no ano passado, não ter tido resultado algum revela que os representantes dos países, principalmente dos industrialmente desenvolvidos estão preocupados com o lucro e a produção desregrada da riqueza em detrimento da saúde do planeta, nossa Casa comum.

Isto tem revelado a necessidade de uma séria conversão de vida. Este é o apelo da CF que se dá no Tempo da Quaresma: o homem precisa se converter e tal conversão passa pela mudança de mentalidade. A mentalidade capitalista é corrupta e destruidora. A ideologia capitalista, mentirosa e manipuladora engana-nos quando nos leva a pensar no progresso que constrói a vida humana. Não devemos ser contra o progresso, afinal de contas, a vida social deve progredir; mas todo progresso vivido na competição que exclui e marginaliza as pessoas não é verdadeiro e deve ser combatido. É verdade que não basta somente criticar e combater, mas apresentar sugestões para a resolução de tais problemas. Tais sugestões também pressupõem sérias cobranças às autoridades públicas também responsáveis pelo encaminhamento de possíveis soluções.

Sirvamos, pois, a Deus e usemos o dinheiro para suprir as nossas necessidades básicas. O dinheiro está para nos servir naquilo que precisamos e não o oposto. A vida se torna mais fácil e mais leve quando nos libertamos das falsas promessas, do falso progresso e da doentia e alienante ideologia capitalista, que tem assassinado a consciência e a vida de muitas pessoas em nosso mundo.


Tiago de França