quarta-feira, 24 de março de 2010

Dom Oscar Romero, mártir da justiça do Reino de Deus


Neste dia, a Igreja na América Latina está celebrando a memória dos 30 anos do martírio de Dom Oscar Arnulfo Romero y Guadamez, nascido em 15 de agosto de 1917, em Ciudad Barrios, El Salvador e assassinado no dia 24 de março de 1980, durante a celebração de uma Missa na capela do Hospital da Divina Providência, na capital de El Salvador.

Inicialmente, quando eleito Bispo da Igreja, em 1977, não se mostrava preocupado com a calamitosa situação do país, que se encontrava sob o domínio de um sanguinário regime militar. Era um Bispo conservador, preocupado com questões burocráticas e com a fidelidade às orientações romanas. O conservadorismo do padre Oscar Romero o fez chegar ao episcopado, pois naquela época, a Teologia da Libertação estava bem presente na vida da Igreja latino-americana e as nomeações episcopais, como sempre, eram bem criteriosas.

Assim como Dom Hélder Câmara, da Arquidiocese de Olinda e Recife, PE, Dom Oscar Romero só se converteu ao caminho de Jesus depois de sua nomeação episcopal. A morte do missionário jesuíta Pe. Rutillo foi decisiva na conversão de Dom Oscar Romero. O primeiro fazia várias denúncias contra as graves injustiças cometidas pelo regime militar vigente. A partir de então, o Bispo resolveu se colocar ao lado dos pobres e dos injustiçados de El Salvador, passando a ser voz e vez dos sem voz e dos sem vez da sociedade salvadorenha.

Após sua decisão de aderir ao projeto do Reino de Deus, Dom Oscar Romero, que era querido e venerado pelos seus colegas Bispos e pelo Vaticano conservadores, passou a ser incompreendido e perseguido pelos militares e pela própria Igreja. Todos o acusavam de comunista e subversivo, mas manteve-se sereno, humilde e fiel. A serenidade de Dom Oscar Romero diante da certeza da morte impressionava a todos, pois quanto mais o ameaçavam mais ele intensificava as denúncias. Sua humildade no trato com os pobres demonstrava mais ainda seu espírito de santidade.

“Irmãos, como gostaria de gravar no coração de cada um esta grande idéia: o cristianismo não é um conjunto de verdades que se deve crer, de leis que temos que cumprir, de proibições! Isto se torna repugnante! O cristianismo é uma pessoa, que me ama tanto, e que reclama meu amor. O cristianismo é Cristo”, disse ele no dia 06 de novembro de 1977. Estas mesmas palavras foram confirmadas no Documento de Aparecida. São palavras que nos ensinam a verdade do Evangelho de Jesus. Meditemos este texto e vejamos o que ele significa.

“O cristianismo não é um conjunto de verdades que se deve crer, de leis que temos que cumprir”. Muitas vezes, é assim que apresentamos o cristianismo ao mundo, como um conjunto doutrinal que precisa ser aderido pela humanidade, do contrário, ela perecerá. É tão verdade o ensinamento do Bispo que em nossa Igreja chegaram a dizer o absurdo de que “fora da igreja não existe salvação”. Muitos confundem o cristianismo e a salvação com a Igreja e se esquecem de que esta está a serviço do Reino de Deus.

O mundo não precisa de um conjunto de verdades devidamente elaboradas, mas de assimilação da lei fundamental do cristianismo, o amor. Se amarmos de verdade seremos salvos! Independentemente de religião e de cultura, todo ser humano precisa amar, pois o amor faz parte de nossa essência. Ninguém consegue viver neste mundo sem amar ninguém. Nossa pretensão de querer uniformizar e enquadrar as pessoas num sistema de leis e proibições é anti-evangélica e, consequentemente, falha. Trata-se de um projeto enganoso que nunca vai dar certo, e não dará porque não vem de Deus, é coisa dos homens, que gostam de dominar. Como diz o santo Bispo, isto é “repugnante”!

“O cristianismo é uma pessoa, que me ama tanto, e que reclama o meu amor. O cristianismo é Cristo”. Jesus de Nazaré é a proposta do cristianismo para o mundo. Uma proposta não é uma imposição. Durante séculos apresentaram Jesus como “proposta” impositiva, portanto, inaceitável. A liberdade do Evangelho de Jesus liberta verdadeiramente o mundo. E o que Dom Oscar Romero fez foi anunciar ao mundo o Evangelho da liberdade. Todo aquele que anunciar tal Evangelho torna-se operário na construção do Reino de Deus e se liberta do jugo da escravidão imposto pelos sistemas opressores deste mundo. Por isso, podemos dizer com toda confiança: Dom Oscar Romero foi um homem verdadeiramente livre e sua liberdade consistiu no oferecimento de si mesmo na apresentação insistente da proposta do Reino de Deus.

Vejamos o pensamento do santo Bispo sobre a religião e sobre a Igreja: “Uma religião de missa dominical, mas de semana injusta, não agrada ao Senhor. Uma religião de muitas rezas e tantas hipocrisias no coração, não é cristã. Uma Igreja que se instala só para estar bem, para ter muito dinheiro, muita comodidade, mas que se esquece do clamor das injustiças, não é verdadeiramente a Igreja de nosso divino Redentor”, disse ele no dia 04 de dezembro de 1977. A palavra do profeta se dirige antes de tudo à própria instituição à qual está ligado na condição de Bispo. Ele não aceitava a submissão da Igreja, por parte de muitos Bispos, diante da ação criminosa da ditadura militar vigente.

O pensamento de Dom Oscar Romero sobre a Igreja nos leva a repensar a nossa maneira de ser Igreja e de viver a fé em Jesus. Para que a Igreja seja ouvida pela sociedade ela precisa se converter, e as recentes notícias publicadas no mundo afora mostram claramente a lentidão do processo de conversão da Igreja. Esta precisa abraçar o clamor dos pequeninos, do contrário, se perderá cada vez mais em seus vícios. Uma Igreja que trabalha noite e dia na construção do Reino de Deus não tem tempo para cometer certas orgias absurdas. Não basta a devida reprovação e/ou condenação dos crimes cometidos, mas é necessário saber onde estão as raízes de tais males e combatê-los com sabedoria e prudência.

Concluo esta reflexão com o belo e profético poema de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito e profeta da Prelazia de São Félix do Araguaia. Rogo incessantemente a Deus, a fim de que o mesmo Espírito que fertilizou o homem e o Pastor Oscar Romero fertilize em nós a graça da profecia que converte a Igreja e o mundo.

São Romero da América, Pastor e Mártir

O anjo do Senhor anunciou na véspera...
O coração de El Salvador marcava
24 de março e de agonia

Tu ofertavas o Pão, o Corpo Vivo
o triturado Corpo do teu Povo:
Seu derramado Sangue vitorioso
O sangue “campesino” de teu Povo em massacre
que há de tingir em vinhos e alegria a Aurora conjurada!

E soubeste beber o duplo cálice
do Altar e do Povo,
com uma só mão consagrada ao Serviço.

O anjo do Senhor anunciou na véspera
e o verbo se fez morte, outra vez, em tua morte.
Como se faz morte, cada dia, na carne desnuda de teu Povo.

E se fez vida Nova
Em nossa velha Igreja!
Estamos outra vez em pé de Testemunho,
São Romero da América, pastor e mártir nosso!
Romero de uma Paz quase impossível, nesta Terra em guerra.
Romero em roxa flor morada de Esperança incólume de todo Continente
Romero desta Páscoa latino-americana.

Pobre pastor glorioso,
assassinado a soldo, a dólar, a divisa.
Como Jesus, por ordem do Império.
Pobre pastor glorioso, abandonado
Por teus próprios irmãos de Báculo e de Mesa.
(As Cúrias não podiam entender-te:
Nenhuma Sinagoga bem montada pode entender a Cristo).


Tiago de França

domingo, 21 de março de 2010

Acolher ou condenar?


“Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais”.
(Jo 8, 11)


A Liturgia da Palavra deste 5º Domingo da Quaresma oferece-nos o texto de João 8, 1 – 11, que fala da mulher pega em flagrante adultério. A Lei estabelecida por Moisés era clara: a mulher tinha que ser apedrejada até a morte. Os mestres da Lei e os fariseus para experimentar Jesus e para terem motivo para acusá-lo, perguntam: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” Jesus não se apressou em responder, mas devido à insistência deles, corajosa e humildemente respondeu: “Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Reflitamos sobre esta sentença de Jesus. O que ela nos quer dizer?

Toda vez que leio esta passagem do Evangelho fico pensando no semblante frustrado dos mestres da Lei e dos fariseus diante destas fortes e verdadeiras palavras do Mestre Jesus. É uma verdade que bloqueia a condenação e que liberta a mulher da morte por apedrejamento. A sabedoria de Jesus, que supera a dos mestres da Lei e a dos fariseus, é libertadora e salvadora. Sua atitude diante da pecadora exposta publicamente é de misericórdia. Ele a acolhe, liberta e lhe restitui a dignidade. A Lei de Moisés torna-se inválida. Daquele momento em diante ninguém tem poder e autoridade para condenar e matar os pecadores em praça pública.

Estando a sós com ela, Jesus lhe pergunta: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Ele faz questão de mostrar que ela não foi condenada, que os homens da lei e da religião não a condenarão mais. A afirmação e indagação de Jesus revelam ainda que todos são pecadores e que ninguém tem poder e autoridade de condenar pessoa alguma, independentemente do pecado que venha cometer. Jesus não pergunta pelo pecado da mulher, nem pelos motivos que a levaram a pecar. Ele não se interessa pelo pecado, mas pela pessoa mesma da mulher excluída, exposta ao escândalo e à morte. A preocupação de Jesus é com a vida do pecador.

Jesus tinha autoridade para condená-la, mas não o quis. Não o quis porque ele não veio para condenar o mundo, mas para salvá-lo (cf. Jo 12, 47). Se Jesus condenasse aquela mulher, certamente entraria em contradição e sua ação seria reprovada por Deus, que o enviou para a salvação do gênero humano. Mesmo se ele quisesse condená-la, mesmo assim não poderia. A atitude de Jesus prova claramente que Deus ama incondicionalmente o ser humano. O pecado cometido não afasta o Criador de sua criação e não apaga plenamente no ser humano a imagem e semelhança para com Deus.

Assim sendo, peca contra Deus quem atira uma pedra contra o próximo. É um pecado condenar outro pecador! Nossa condenação é inválida diante de Deus, pois somos igualmente pecadores até a morte. Deus nos liberta do pecado, mas ninguém se julgue santo e justo, pois a plena santidade e justiça pertencem a Deus. Neste mundo não há santo, nem justo, mas mulheres e homens que buscam, caindo e se levantando, a justiça e a santidade divinas. Assim sendo, a nossa atitude constante de uns para com os outros deve ser de acolhida. Acolhida pautada na compreensão e na aceitação do outro.

Querer mudar o outro é uma tentação na qual caímos constantemente. É uma profunda ilusão querer mudar as pessoas. Na verdade, cada pessoa é dona de seu processo e deve tomar, livremente, a iniciativa de mudar, se preciso for, o rumo da vida. É verdade que podemos contribuir com a mudança do outro, mas jamais mudá-lo como se fôssemos o dono de sua vida. Precisamos cada vez mais nos conscientizar da necessidade de aceitarmos o outro do que jeito que ele é. Somos seres singulares e na particularidade de nossas vidas somos chamados a construir o novo na diversidade da existência. O outro é pecador e eu também sou e se todos pecamos, juntos podemos nos converter.

Acolher o outro do jeito que ele é não quer dizer que aprovamos o seu pecado. Seria equívoco pensarmos assim. Nós acolhemos e aceitamos a pessoa na sua situação pecaminosa, mas reprovamos seu pecado. Tal reprovação deve passar pela solidariedade e comunhão. Sermos solidários com os outros é não permitirmos que o outro desfaleça no lamaçal do pecado e, na comunhão fraterna, estender o braço e assumir a atitude de Jesus, atitude misericordiosa. Isto é amar a Deus e ao próximo como a si mesmo, do contrário, quando condenamos os que pecam, estamos contradizendo em nós o mandamento do amor e, consequemente, negamos o Deus que é amor. Acolher o outro é uma atitude de amor. Deus nos acolhe porque nos ama, logo quem ama acolhe, incondicionalmente.

O mundo de hoje padece pela via da condenação. As pessoas espreitam umas às outras e na primeira oportunidade as condenam e as escandalizam. O escândalo está se tornando algo normal e aceitável em nossa sociedade e também na Igreja. Recentemente, estamos assistindo aos escândalos de pedofilia na Igreja. Qual deve ser a nossa atitude diante destas notícias escandalosas? Nossa fraqueza impele-nos para a condenação imediata e precipitada. Condenarmos os padres envolvidos nos escândalos de pedofilia não vai resolver a situação. É verdade que não podemos aceitar o pecado cometido por tais padres, mas também não podemos condená-los. Jesus nos proíbe severamente de fazermos isto.

Diante das notícias, algumas atitudes são necessárias, a saber: 1. Termos cuidado com o sensacionalismo midiático, que sempre se aproveitou de tais situações para mentir e ganhar muito dinheiro; 2. Conscientizarmo-nos de que a Igreja é constituída de mulheres e homens sujeitos a erros de toda ordem; 3. Não cairmos no mal das generalizações apressadas e pensarmos que este é um mal de todo o clero, pois, graças a Deus e ao esforço de muitos, temos bons e santos pastores no serviço do Povo de Deus; 4. Despertarmos a discussão sadia e construtiva sobre a pedofilia e seus males na sociedade atual e 5. Esperar que a Igreja reveja a formação do clero, julgue com justiça os casos denunciados, evite omitir a verdade sobre outros casos e ofereça aos envolvidos a oportunidade de recuperarem sua saúde.

Vivamos, pois, a espiritualidade da acolhida mútua e fraterna, a fim de que possamos ter uma sociedade e uma Igreja menos indiferentes às dores do próximo. Não teremos sociedade justa, nem Igreja solidária se não tivermos acolhida e solidariedade. É preciso que as Igrejas, a Família e a Escola eduquem eficazmente para a acolhida e para a solidariedade, do contrário, continuaremos “devorando-nos” uns aos outros numa sociedade consumista e individualista.


Tiago de França

quarta-feira, 17 de março de 2010

O valor do casamento


Li no caderno Cotidiano da Folha de São Paulo de ontem (16/ 03/ 10) uma notícia que me deixou indignado, mas tão indignado que recolhi, imediatamente, as informações que seguem para a elaboração da crítica que agora me proponho a fazer. Uma crítica acompanhada da caridade evangélica, que visa corrigir para o bem comum daqueles que se encontram no caminho. Antes, preciso falar do espírito crítico de Jesus em relação à religião de seu tempo, pois muitos cristãos pensam que não se pode criticar a religião. Há também até quem pense que é pecado criticar a religião! Isto é fruto da ingenuidade e do desconhecimento do valor e do sentido autênticos da crítica, que sempre foi necessária para a conversão do Cristianismo.

No seu tempo, Jesus de Nazaré encontrou sérios problemas e pecados no Judaísmo. Ele não teve medo de desmascarar as mentiras que alienavam e escravizavam o povo. São várias as citações evangélicas onde o encontramos enfrentando os doutores da Lei e fariseus entre outros grupos religiosos e sociais, denunciando os desvios que se cometiam. Quando foi condenado pelo Sinédrio, Jesus foi acusado de ser agitador político e revolucionário, homem desobediente que quebrou a lei do sábado entre outras leis e costumes judaicos. Os gestos e palavras de Jesus eram a favor da vida humana que transcende toda e qualquer lei. Ele não estava preocupado com a lei, mas com a vida do homem. É verdade que ele mesmo afirmou que não veio para abolir a lei, mas a missão de Jesus, enquanto Filho de Deus, não estava em função da lei.

Depois de ter exposto brevemente a experiência conflituosa de Jesus em relação à religião judaica, agora apresento alguns elementos da reportagem da Folha que me causaram certa indignação. Vejamos os dados:

- Na Arquidiocese de São Paulo, segundo informações da mesma obtidas pela reportagem, a taxa de casamento religioso não pode ser maior que a do civil (R$ 246);
- Apesar da orientação da Arquidiocese, o preço do casamento sobe para R$ 821, se o juiz for até o local da cerimônia;
- A Folha encontrou ao menos sete igrejas que cobram entre 1000 a 6000 reais pelo casamento;
- Há uma lista de fornecedores ou serviços embutidos que os candidatos a noivos são obrigados a contratar;
- Na Igreja Nossa Senhora do Brasil, o preço do casamento para este ano é de 2 mil reais e para o ano que vem será de 2.200 reais. Nesta mesma igreja são realizados, geralmente, trinta casamentos por mês;
- Prestador de serviços (floricultura, foto e vídeo) paga 2 mil reais anuais mais 200 reais por casamento. O pagamento é obrigatório, mas é chamado de “contribuição”;
- No Mosteiro de São Bento, em SP se cobra 6.000,00 (seis mil reais) pelo casamento, com direito à assessoria cerimonial.
- Diante da indagação do repórter, um padre não identificado responde que se cobram estes valores devido ao custeio de despesas com energia e limpeza. Afirmou ainda que o dinheiro é revertido em manutenção e obras sociais.

Alguns elementos da reportagem nos revelam grandes contradições, além dos valores absurdamente cobrados. A citada Arquidiocese orienta que não se pode cobrar taxa de casamento superior a do civil. Tal orientação é inválida e contraditória, porque os valores que chegam até seis mil reais, como no caso do Mosteiro de São Bento desmentem tal orientação. Tais valores revelam que o Sacramento do Matrimônio, que é visto como sinal gratuito de Deus para o povo (é o que diz a doutrina oficial) tem um valor financeiro, ou seja, nos citados locais e em muitas igrejas espalhadas pelo mundo católico, quem não puder pagar a taxa estabelecida não pode se casar. Onde está a gratuidade de tal Sacramento? Além de ser uma contradição, tais cobranças revelam o que na Idade Média se chamou de simonia, ou seja, venda de favores divinos.

Quando terminei de ler a reportagem me veio o seguinte questionamento: Como pode uma Igreja dessas lançar uma Campanha tendo como lema a palavra de Jesus que diz ‘Não podeis servir a Deus e ao dinheiro?’ Se condenamos o capitalismo exacerbado, o consumismo e o apego aos bens materiais, como podemos estabelecer taxas e serviços ligados diretamente aos sacramentos, que são considerados sinais divinos? Penso que a Igreja precisa, urgentemente, repensar a questão das taxas cobradas pela dispensa dos sacramentos em nossas igrejas. É necessário impedir que certos clérigos se aproveitem dos sacramentos para o enriquecimento ilícito. Tal realidade é contrária ao Evangelho de Jesus. Se não podemos manter grandes templos e prédios históricos, que sejam feitas doações ou se vendam os mesmos, mas, evangelicamente, é inaceitável sustentar tais patrimônios à custa de supostas vendas de sacramentos, principalmente da celebração do matrimônio, como é o caso das realidades apontadas na reportagem.

Certa vez, estava num consultório odontológico e a dentista me perguntou se eu era seminarista. Diante de minha resposta afirmativa, ela desabafou: “Meu filho, nestes dias uma irmã minha se casou em uma igreja aqui de Fortaleza (CE) e fiquei escandalizada com o que o padre fez com ela: só porque minha irmã é advogada e ganha bem, depois que o padre descobriu isso, ele estipulou um valor três vezes maior para a taxa de casamento dela, sem contar que ela teve que pagar o aluguel até da igreja”. De fato, é uma situação vergonhosa e constrangedora. Tudo isso vai deixando os fiéis escandalizados e indignados com a Igreja. Depois, ainda encontramos a seguinte reclamação por parte de muitos padres: “O povo está danado mesmo, não quer saber da Igreja, não quer nada com a vida, está contaminado pelo secularismo e pelo relativismo”. Tais padres precisam revisar os conceitos de secularismo e relativismo.

Os sacramentos são sinais de Deus na vida de seu povo. Eles reconduzem o povo ao seio do mistério divino. É a maneira pela qual a Igreja se utiliza para levar as pessoas a viverem a experiência de Deus na vida comum deste mundo. Deve-se procurar preservar a autenticidade de tais sacramentos através de uma vivência respeitosa e frutuosa dos mesmos. E como disse o título de uma das obras do teólogo E. Echillebeeckx em seu estudo teólogo sobre a salvação: Cristo, sacramento do encontro com Deus. Jesus é o sacramento universal da salvação por excelência, pois, por meio dele e somente através dele, é que somos reconduzidos à intimidade e unidade divinas. Tal experiência indizível não pode ser vendida, pois nos é oferecida pelo querer do próprio Deus, que por meio do Cristo, se fez carne como nós.


Tiago de França

domingo, 14 de março de 2010

A misericórdia divina


“Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15, 2).

A parábola do filho pródigo (cf. Lc 15, 1 - 3. 11 – 32) marca a liturgia deste 4º Domingo da Quaresma. Antes de refletirmos sobre o versículo citado acima é preciso relembrar que a Quaresma é o tempo de preparação para a Páscoa, ou seja, esta confere sentido aquela. A Quaresma sem a Páscoa perde o seu valor e significado, pois na primeira somos chamados a refletir sobre a segunda. Sendo a maior festa do Cristianismo, a Páscoa é para os cristãos o grande momento da alegria da passagem do Messias de Deus, aquele que venceu a morte para nos dar vida plena. Deus, em sua infinita sabedoria e misericórdia nos deu a oportunidade de termos vida eterna fazendo seu Filho único passar pela experiência da morte, e a partir da vitória sobre a morte somos introduzidos no mistério divino e passamos a ser participantes da nova e eterna Aliança, esta pautada no amor-doação que deve se expressar em nossa humanidade.

O início do texto revela que Jesus é escutado pelos publicanos e pecadores. Eles se aproximam de Jesus e isto chama a atenção dos fariseus e mestres da Lei, que passam a criticá-lo. Tal crítica deve também chamar a nossa atenção, pois nos mostra que Jesus era próximo dos pecadores de seu tempo. Na crítica das autoridades religiosas do tempo de Jesus podemos ver que eles se utilizam do verbo ACOLHER, verbo muito significativo para a espiritualidade cristã. Depois, se utilizam do FAZER REFEIÇÃO, atitude profundamente cristã, uma vez que o Cristianismo também é conhecido como a religião do pão. Partilhar a vida e viver a comunhão em torno da mesa foram atitudes realizadas por Jesus e transmitidas pelas comunidades primitivas.

O que significa acolher os pecadores? A resposta de Jesus diante da crítica dos fariseus e mestres da Lei se dá na parábola do filho pródigo. Nela, Jesus traduz a misericórdia divina em relação a todos os pecadores. Independentemente dos pecados, Deus os ama incondicionalmente. O amor de Deus pelas mulheres e homens deste mundo é infinito. O perdão divino se revela na acolhida recíproca que deve haver entre aqueles que seguem Jesus. Não se trata de um perdão mágico ou vivido emocionalmente. A experiência do perdão divino se dá na vida das mulheres e homens de boa vontade. Acolher o perdão divino é acolher o irmão pecador naquilo que ele é, fraco e limitado. A acolhida mútua é uma das exigências do caminho de Jesus.

Jesus não era fariseu, ou seja, separado. Não era puritano, ou seja, não se julgava melhor do que os demais homens, apesar de ser o santo e o justo. Aproximando-se dos pecadores e acolhendo-os como irmãos, nos ensina o valor e o sentido de ser fraterno. Se não nos acolhemos mutuamente, a fraternidade não existe entre nós e se a fraternidade não existe, consequentemente, não somos cristãos. Acolher os pecadores foi a atitude de Jesus e deve ser também a nossa. Acolher os pecadores significa acolher aquelas pessoas com as quais não queremos conviver, nem compreender. É costume de gente farisaica tomar distância dos pecadores públicos: embriagados, prostitutas, homossexuais, ladrões, etc. Jesus acolheu estas pessoas, que são nossos irmãos e irmãs na fé. Não somente acolheu, mas fez refeição com elas, numa atitude humilde e despojada, portanto, fraterna, efetiva e afetiva.

Acolher o outro do jeito que ele é e se apresenta é algo desafiador. É tão desafiador que se tornou atitude de poucos. De fato, é muito fácil afirmar a necessidade de tal acolhida, vivê-la no cotidiano da vida é difícil, mas não é impossível. Costumamos nos aproximar das pessoas consideradas certas e quando elas erram, são imediatamente abandonadas por nós, salvo as exceções. Às vezes, detestamos os nossos pecados que se manifestam na vida dos outros. Achar que o outro está sempre errado é um gesto que impede a vivência da misericórdia entre nós. Fazemos o papel do irmão mais velho da parábola quando nos recusamos de aceitar de volta ao nosso convívio aqueles que pecaram. Se todos pecam e ninguém está isento da condição de pecador, logo ninguém tem o direito de julgar, nem de se recusar à acolhida fraterna.

Jesus participou da vida dos publicanos e pecadores. Ele era Deus e não deixou de sê-lo porque se misturou com os pecadores. Isto mesmo: Jesus se misturou com aqueles que eram tidos como os imundos da sociedade. Publicanos e pecadores eram mal vistos e odiados pela sociedade, pelas autoridades e pelos religiosos da época. A experiência divina do amor para com os pecadores se apresentou como novidade e não foi aceita pelos fariseus e mestres da Lei. Até os dias de hoje encontramos tais fariseus e mestres da Lei, que continuam não aceitando o mandamento de Jesus, pois julgam, condenam e desprezam os pecadores públicos. Um exemplo para ilustrar: os homossexuais, discriminados pela sociedade, são proibidos de receber a Eucaristia na Igreja, porque são considerados indignos. Diante deste exemplo pergunto: E quem é digno de receber a Eucaristia? E os padres, recentemente denunciados por serem pedófilos e homossexuais são dignos?... São questões que precisam ser pensadas e repensadas.

Apesar de nossas resistências precisamos buscar atender a esta difícil exigência evangélica: acolher os pecadores de nosso tempo. Eles são muitos, são perseguidos e apedrejados pela sociedade, demonizados e expostos ao ridículo. Por isso, o Evangelho nos convida a darmos a oportunidade a estes irmãos tidos como perdidos, excluídos dos padrões de normalidade estabelecidos pela sociedade. Certa vez, estando num coletivo no centro de Fortaleza – CE, falando dos jovens usuários de drogas, uma senhora falou em alta voz: “Estes marginais precisam ser mortos, pois não prestam pra nada!”. De fato, aquela mulher não sabia o que estava falando, pois condenava à morte os pobres jovens pecadores, vítimas de um sistema econômico excludente e opressor, que destrói e mata diariamente muitas pessoas.

Diante dos que pecam é preciso pensar nos fatores que os levam ao pecado. Penso que, uma vez que o pecado é danoso à vida humana, ninguém peca porque livremente quer, mas porque a realidade impõe certos comportamentos e sentimentos que tiram a vida das pessoas. Os padres homossexuais e pedófilos acima mencionados também precisam ser acolhidos. É verdade que não podemos aceitar suas práticas, mas não temos o direito de julgá-los, nem de condená-los. Todos os cristãos, pecadores no seguimento de Jesus, são chamados a viver a dialética da misericórdia, que chama para atitudes misericordiosas para com o próximo. A parábola convida ainda a sermos filhos pródigos, num constante arrependimento de nossas faltas, pois o Deus de Jesus é o Deus dos pecadores, que nos ajuda na inconstância da vida presente a nos libertar de nossos pecados, principalmente dos pecados da omissão e do fechamento de si mesmo.


Tiago de França

quarta-feira, 10 de março de 2010

O intelectual e o intelectualista


Atualmente, mais do que em outras épocas, devido aos avanços das ciências e das tecnologias, fala-se dos intelectuais. O que é um intelectual? Qual o valor do intelectual? O que é ter vocação intelectual e qual a diferença entre o intelectual e o intelectualista? São questões pertinentes que merecem nossa reflexão, a fim de que possamos saber discernir bem a realidade intelectual a partir, talvez, de algumas desconstruções de mitos e falácias a respeito de tais questões.

O intelectual não nasce pronto, mas se constrói durante toda a vida. Trata-se do ser humano que gosta de conhecer. Os filósofos antigos afirmavam que o homem, dotado de razão, tem vocação para o conhecer, para o conhecimento. Somos, por natureza, inclinados a querer saber das coisas, motivados pela curiosidade e pela admiração. Esta é a primeira atitude do filósofo, pois ao se admirar diante da realidade é motivado pela razão para conhecer. A realidade nos questiona e nos leva a conhecê-la, quer superficial, quer profundamente. Assim sendo, o intelectual é a pessoa que gosta de conhecer, que se habitou a buscar conhecer as coisas.

Penso que o intelectual se faz na árdua arte de saber ler e pensar. Ler a vida nos livros e nos acontecimentos é uma atividade que requer vontade, disciplina e perseverança. Pensar a vida e as circunstâncias da vida realizando relações entre os saberes adquiridos significa a atividade intelectual. Este fazer relações é de extrema importância para entender a construção do ser intelectual. Diante da variedade das informações, dados e conteúdos, e da complexidade das realidades e fatos que se apresentam, o intelectual é chamado a fazer relações de todas as coisas e a partir de tais relações construir o saber, o conhecimento.

O intelectual pensa com lucidez, criticidade e liberdade. O pensar lúcido se baseia na logicidade do pensar, ou seja, na fundamentação daquilo que é elaborado. Em outras palavras, o pensar precisa ter sentido, ter fundamento. A lógica e o embasamento racional do trabalho intelectual são exigências do fazer e do conhecer. O saber é perspicaz porque é construído racionalmente e a razão coloca as coisas no seu devido lugar, é o que a Filosofia chama de busca incessante da verdade, pois é esta que interessa. Em Filosofia, a verdade encerra como que o sentido último do fazer filosófico. Este só tem sentido se estiver fundamentado na busca da verdade.

O intelectual é um homem crítico, porque descobre na elaboração do pensamento a razão das coisas. A criticidade caracteriza o autêntico intelectual, pois seu conhecer está em vista da construção da realidade. É aqui que aparece o que J. B. Libânio, SJ, chama de responsabilidade intelectual ou dimensão ética da vocação intelectual. A dimensão crítica do pensar desmistifica o que parece obscuro e superficial e desmascara o que é falso e mentiroso. Por isso, o compromisso com o senso e/ou espírito crítico na arte de pensar todas as coisas faz parte da vocação intelectual.

O intelectual precisa pensar livremente. Não se constrói um intelectual comprometido sem a liberdade. O pensar livre é um dever e um direito. Ninguém pode ser impedido de pensar, nem de produzir conhecimento. Tal proibição feriria a vocação ontológica do homem, inclinado naturalmente para o pensar sobre si mesmo e sobre todas as coisas. Pensar livremente significa construir o conhecimento na liberdade e para a liberdade, independentemente dos condicionamentos e ideologias. Ser livre para pensar é uma necessidade do intelectual, do contrário, o mesmo não existe.

A história dos homens e da humanidade tem mostrado que, desde que o homem se descobriu como ser pensante e capaz de transformar a realidade, o pensamento delineou, delineia e sempre delineará sua ação sobre si mesmo e sobre o mundo. É incalculável o número de pessoas que ajudaram, com seu pensamento, a transformar o mundo e humanizar o homem. Trata-se de um processo de descobertas e redescobertas constante e interminável. O compromisso para com a verdade e com a construção de um mundo melhor também faz parte da vocação intelectual. Aqui respondo a segunda pergunta a que me propus no início desta síntese.

O intelectual não é um sujeito fechado em si mesmo, mas aberto e cultivador de abertura, pois é nesta que se constrói diária e dialeticamente. O intelectual deve ter a consciência da necessidade de ajudar, com seu saber e experiência, a construir um mundo melhor, porque de nada vale termos grandes pensadores se a humanidade se encontra desumanizada e cada vez pior. Podemos, assim, perguntar: Para que servem os intelectuais, senão para construir um mundo mais habitável e, consequentemente, mais humano? Partilhar o saber construído e adquirido é fazer com que a experiência da construção do conhecimento se perpetue entre os homens e de maneira progressiva, não regressiva. Isto possibilita o pensar continuado, ou seja, no repensar daquilo que já foi pensado, construir ou problematizar a vida a fim de se viver melhor.

Reflitamos um pouco sobre o intelectualista. Comparar este com o intelectual é ingressar no campo da responsabilidade ética perante si mesmo e o mundo. O intelectualista costuma ser um sujeito que sabe, mas que não coloca seu saber a serviço do bem comum, da construção de um mundo novo. É isolado em si mesmo do ponto de vista da partilha do saber. É o que a filosofia grega vai chamar de sofista, aquele que não está interessado na verdade, mas na retórica em troco de ganhar a vida. A realidade acadêmica e o campo de reflexão teórica estão fartos de intelectualistas, pessoas descomprometidas com o bem e com a verdade, somente interessadas naquilo que a atividade intelectual pode trazer de benefícios e honrarias.

A humildade, que faz parte da vida do verdadeiro intelectual, é uma virtude ausente na do intelectualista. Este costuma ser oportunista, arrogante, prepotente e, consequentemente, insuportável. É fechado ao diálogo e sustenta verdades com pretensões absolutas, mesmo sabendo que estas são inconcebíveis. É um sujeito que se apresenta como completo, sabedor de todas as coisas e usa do saber para tirar vantagem sobre os outros. Eticamente, é uma verdadeira ameaça ao convívio autenticamente humano e tolerável, porque se mostra indiferente em relação à realidade. Religiosamente, no Cristianismo, intelectualistas são um verdadeiro desastre, pois contradizem os valores verdadeiramente cristãos. Nas Igrejas, os intelectualistas são responsáveis pela elaboração daquilo que chamamos de fundamentalismos, que destroem a unidade a partir da uniformidade.


Tiago de França

domingo, 7 de março de 2010

Os frutos da conversão


Neste 3º Domingo da Quaresma, a Igreja tem no texto evangélico segundo Lucas 13, 1 – 9, uma profunda mensagem para reflexão. Todo o Evangelho de Jesus nos motiva e nos orienta em nosso processo de conversão. É para nos convertermos que refletimos o Evangelho, acreditamos e seguimos Jesus de Nazaré. A conversão é o fruto de nossa fé, pois todo aquele que acredita em Jesus corresponde ao seu chamado de conversão. Quem se recusa à conversão faz um caminho inverso ao de Jesus, ou seja, não está no caminho de Jesus, pois este é o da conversão que confere a verdadeira vida.

O início do texto de hoje revela a situação de opressão do povo do tempo de Jesus. Algumas pessoas informam Jesus “a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam”. Isto revela o estado de violência e opressão por parte do Império romano da época, no qual as pessoas eram brutalmente assassinadas. E a situação era tão horrível que, pelo que descreve o texto, o sangue das vítimas era misturado com o sangue dos sacrifícios que se ofereciam no Templo. A resposta de Jesus aponta para a conversão. Ele deixa bem claro: quem não se converter irá, conseqüentemente, morrer. É o que o apóstolo Paulo de Tarso vai ensinar posteriormente: “O salário do pecado é a morte” (Rm 6, 23).

Mas de que tipo de conversão e de morte está falando Jesus ao afirmar duas vezes: “Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”? Antes, Jesus deixa bem claro que os que morreram não eram mais pecadores do que os demais da Galiléia e de Jerusalém. Não sabemos do pecado daquele, nem destes; mas sabemos o pecado de Pilatos, que a serviço do Império romano ceifava a vida de muitos. O pecado cometido por Pilatos era de ordem estrutural, pois matava em nome do Império romano e a serviço do mesmo. O pecado estrutural, diferentemente dos pecados de ordem pessoal, são aqueles que são cometidos pelo sistema opressor vigente e que tem capacidade de ceifar muito mais vidas do que os pecados pessoais. Os pecados estruturais acabam com um povo, os pessoais acabam com pessoas. É verdade também que estes levam aqueles.

Quem não se converte, morre. O que isso significa, se todo ser humano tem a morte como certeza na vida? Quando Jesus fala de morte devido ao pecado, ele não se refere à morte natural. Esta está para todos, nem o próprio Jesus escapou dela. Jesus se refere à morte da vida que dura para a eternidade. Esta se encerra na nossa plena comunhão com Deus. Está unido a Deus, eis a nossa vocação e o nosso fim último, porque nele está a nossa vida. É preciso que enxerguemos a morte nesta perspectiva, ou seja, não precisamos nos preocupar com a morte natural, pois esta é uma ponte para a verdadeira vida ou para a morte definitiva, que consiste na aniquilação total do ser. Por isso, a conversão é um processo que desemboca na comunhão plena com Deus, nós caminhamos todos os dias para a visão plena beatífica.

O Cristo que nos chama para a conversão é o mesmo que nos converte plenamente, porque com nossas próprias forças somos impossibilitados de nos converter ao Deus que pode nos libertar da morte definitiva. Converter-se significa mudar de rumo, reorientar a vida. Há três ferramentas que explicam a conversão cristã: fé, esperança e amor. Estas três virtudes nos convertem. Os mártires da fé cristã também ensinam com a vida que a coragem, que nos liberta do medo e a verdade, que nos liberta da mentira, também nos ajudam em nosso processo diário de conversão. São como que recursos que estão à nossa disposição e que nos refazem diante de Deus, recuperam em nós a imagem e semelhança divinas ameaçadas pelo pecado de Adão e Eva.

Os Pilatos de ontem e de hoje dificilmente se convertem. O poder imperial exercido pelos sistemas elaborados é muito forte e os impede até de pensar na possibilidade de se converter. Estes Pilatos podem ser considerados as cabeças pensantes e os grandes proprietários do poder, que buscam viver na ostentação das riquezas, do prestígio e do poder, em detrimento da vida de milhões de pessoas que padecem diariamente de tantos males e misérias. Alguns Pilatos têm cara de piedosos e costumam fazer doações às vítimas das catástrofes que se abatem sobre os pobres, isto para passar a idéia de que são sensíveis ao sofrimento do próximo. Tais recursos paliativos e/ou ocasionais manifestações de suposta caridade não representam, nem manifestam sinais de conversão, pois não são frutos da partilha, nem de mudanças estruturais de pensamento e de vida.

A conversão da pessoa e do mundo passa pelas mudanças de estruturas, só que estas são quase impossíveis de acontecer entre os seres humanos. O jogo de interesses, a competição, o egoísmo e o individualismo, que caracterizam o sistema econômico que domina o mundo (capitalismo) não permitem conversão estrutural. O apego desordenado é outro mal que está deixando as pessoas cada vez mais vazias e superficiais, pois o valor de tais pessoas é medido por aquilo que ela tem e não por aquilo que ela é. A perda do transcendente no ser humano é algo desastroso, pois a partir daí o homem deixa de olhar para o futuro e passa a investir todos os recursos possíveis e até impossíveis na vivência hedonista do presente. Repensar tais questões é dar andamento ao nosso processo de conversão, que passa pela revisão constante das atitudes que se tomam na vida na perspectiva do Evangelho.

O texto termina com a parábola da figueira. O dono da figueira quer vê-la frutificar. Ele não aceita que a mesma fique sem dar figos. A figueira da parábola não deu frutos e foi pedido que a cortasse de imediato, mas o vinhateiro insistiu na necessidade de se esperar mais um pouco, para que a mesma, no ano seguinte, depois de uma boa adubação, desse figos. O vinhateiro parece acreditar no potencial da figueira. Na vida da Igreja temos muitas pessoas que estão na mesma situação da figueira do texto, pois não estão frutificando. Muitas delas, nem adubando tem jeito! Parece trágico, mas não é. Mas mesmo assim o dono da vinha e o vinhateiro não as cortaram. É verdade que muitas já foram cortadas, depois de muita insistência.

Todo aquele que aceita seguir Jesus e se põe em seu caminho é chamado a frutificar, do contrário somente pensa que está caminho, mas na verdade não está. No caminho de Jesus frutifica-se no amor e para o amor, na liberdade e para a liberdade, na esperança e para a esperança. É um processo lento e difícil. Jesus não tem pressa, é bondoso, compassivo e paciente. Ele nos conhece, nos compreende e nos espera. O mundo precisa urgentemente dos frutos da vida cristã: fé, esperança e amor. Estes frutos geram justiça, compaixão, liberdade e coragem. A colheita de tais frutos humaniza toda a humanidade e a vida se torna possível, do contrário, todos morremos na infelicidade oriunda da privação do amor e da justiça que geram liberdade. Que no encontro com o próximo nosso irmão possamos nos encontrar e neste encontro possamos também encontrar a Deus, que é a nossa Vida.


Tiago de França

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ser padre para a Igreja ou para o mundo?



As declarações e publicações recentes da Igreja e de personalidades da Igreja têm insistido na idéia de que é preciso ser padre para a Igreja. Mas o que significa ser padre para a Igreja? De que Igreja estamos falando? Dependendo da compreensão, cada presbítero vive a sua missão. Compreender o modelo de Igreja e de presbítero é importante para sabermos que tipo de Igreja estamos construindo e que tipo de presbítero estamos formando. Não que a Igreja seja construída somente pela ação dos presbíteros, mas pelo que se ensina, eles fazem parte do corpo hierárquico que a rege e governa.

De uns tempos para cá tenho escutado expressões e pensamentos de seminaristas, principalmente daqueles que se encontram na formação teológica e confesso que ando preocupado com algumas idéias. Uma boa parcela deles revela querer ser padres de uma Igreja que não é a Igreja Povo de Deus, proclamada pelo Concílio Vaticano II. Isto é preocupante porque a concepção de presbítero que forma a compreensão da teologia presbiteral ensina que o ministério do presbítero está voltado para o serviço. Não vejo aptidão ou vontade para servir naquele que aspira ser padre somente porque deseja fazer parte da hierarquia, pois tal desejo revela o oposto do serviço, de querer ser servido.

Assim sendo, de maneira breve podemos citar dois modelos gerais de Igreja: aquela centrada em si mesma e preocupada com a manutenção do conjunto hierárquico, portanto, fechada e legalista; e outra denominada Povo de Deus, Assembléia de discípulos e missionários de Jesus, aberta e inserida no meio dos pobres. Dom Hélder Câmara chamava a este último modelo de “Igreja dos Pobres”. São Vicente de Paulo, com sua vida e ensinamento afirmou que “os pobres são os nossos mestres e senhores”. Desta forma, na Igreja dos Pobres sonhada por Dom Hélder Câmara, os pobres são aqueles que regem e governam, pois ensinam a Igreja o verdadeiro caminho de Jesus.

Claramente podemos pensar, a partir desta compreensão, dois modelos de presbíteros. Há aqueles que são os padres da Igreja, sendo que esta não é Povo de Deus, mas estrutura governamental e estruturas de poder. Os padres deste modelo são identificados pela fidelidade à lei, à hierarquia, à uniformidade que quebra a unidade e ao espírito de manutenção das estruturas. Para eles não há novidade do Espírito, pois esta causa “desordem”. O que mantêm a ordem é a obediência à lei, por isso, esta deve ser fielmente guardada. Tal modelo de presbítero se identifica com o poder e se apega exacerbadamente a ele, levando o povo a viver uma vida regrada no direito e no dever para com as prescrições canônicas; são homens de vida tranqüila e boa, pois não se preocupam com as causas dos pobres, que pode tirar sua paz.

A formação dos padres deste modelo é pautada na lei, pois aprendem que a Igreja é um corpo hierárquico e que a obediência é a maior das virtudes. Aprendem ainda que tudo na Igreja é perfeito, que a imperfeição está naquele que desobedece ao que foi inspiradamente instituído, que não se pode misturar com o mundo nem com as pessoas do mundo, pois o presbítero é um homem consagrado a Deus, tal mistura leva ao pecado, ao vício e à tibieza. Aprendem que o presbítero é o centro da vida da comunidade, ou seja, ele deve saber e autorizar todas as coisas. Aprendem também que sem presbítero não existe Eucaristia e que o povo não sabe caminhar sozinho, precisa ser guiado. Ensina-se também, na formação deste modelo, que o presbítero deve ser temido, pois é representante de Cristo na comunidade, desta forma, todos devem venerá-lo como homem sagrado, que leva uma vida totalmente diferente da dos demais homens. Este modelo corresponde ao traçado pelo Concílio de Trento e que, infelizmente, perdura até os dias de hoje, devido às resistências oriundas do medo da guinada do Vaticano II. Este modelo gera cristãos infantilizados, que nunca ficam adultos na fé.

O segundo modelo, traçado pelo Concílio Vaticano II e explicitado nas posteriores Conferências do CELAM é o modelo do presbítero que serve à Igreja Povo de Deus. O conceito de tal presbítero está intimamente ligado ao conceito de povo. É o presbítero voltado para o povo, principalmente o povo dos pobres. Estes, em Jesus Cristo, formam a centralidade de sua missão. Despreocupados com o rigoroso cumprimento da lei, tal presbítero tem no Evangelho a sua força e o fundamento de sua missão. O presbítero da Igreja-povo é aquele que, vivendo no meio do povo, anuncia-lhe Jesus Cristo por meio de uma vida comprometida com as grandes causas do Reino de Deus, que são as causas dos oprimidos. Ele dá a vida na luta pela libertação integral do povo, conferindo ao seu ministério a marca do Cristo crucificado e ressuscitado entre os pobres, destinatários do Reino e prediletos de Jesus.

Atualmente, a formação de tais presbíteros acontece juntamente com a formação dos presbíteros do primeiro modelo. Todos se formam no Seminário. A Igreja ainda compreende que fora do Seminário não há formação clerical. O padre e teólogo José Comblin, em seu primeiro texto comentando o Documento de Aparecida, afirma categoricamente que o Seminário não é mais lugar de formar padres, pois não se formam discípulos e missionários de Jesus, mas professores de Filosofia e Teologia, homens letrados que não sabem viver entre os pobres, porque não vivem pobremente nem se formam na perspectiva dos pobres. É uma crítica a ser refletida, levando em conta a realidade da Igreja e da sociedade atuais.

Uma formação que resgate o Evangelho de Jesus e os pobres como centralidade da proposta do ser presbítero leva o ministro ordenado a fazer a opção de Jesus. Trata-se de uma formação humilde, simples, inserida e sintonizada com o mundo sofrido do povo. Uma vez que não se permite viver plenamente inserido no meio do mundo, através do trabalho e das penúrias do cotidiano, deve-se alimentar uma mística e uma espiritualidade transformadora. Deve-se, ainda, cultivar um espírito crítico e atualizado em relação à atuação missionária da Igreja, a fim de que se evite a alienação e acomodação daqueles que exercem uma missão específica no meio do povo. Tal especificidade não pode ser sinônima de cultivo e manutenção de privilégios. Este também é um dos problemas do primeiro modelo abordado.

Na Semana Teológica da Faculdade Católica de Fortaleza em 2008, perguntei ao teólogo Mário de França Miranda, SJ, depois deste ter falado sobre sua experiência na redação do Documento de Aparecida: Qual o modelo de presbítero que pode corresponder às exigências do Documento de Aparecida? Ele se explicou, mas não respondeu. Dirigi a mesma indagação ao Arcebispo de Fortaleza, que estava presente, mas este também não respondeu. Agora insisto em apresentar esta pergunta a você que está concluindo a leitura deste texto! Penso que a Igreja precisa pensar em responder efetivamente esta questão. É preciso que tenhamos padres da Igreja-povo no mundo.


Tiago de França

segunda-feira, 1 de março de 2010

Humor filosófico


Estava o filósofo Tomás de Aquino concentrado em seus estudos quando dois padres chegaram anunciando que um boi estava voando. Tomás levantou-se rapidamente da sua mesa, saiu para o átrio e começou a prescrutar o céu quando então os padres, rindo, disseram:

- Tomás, nós pensavamos que você era mais inteligente. Como pôde acreditar que um boi estivesse voando? - Ao que Tomás respondeu:

- Pois é, meus amigos. Eu preferi acreditar que um boi estivesse voando a crer que um religioso estivesse mentindo.