quarta-feira, 10 de março de 2010

O intelectual e o intelectualista


Atualmente, mais do que em outras épocas, devido aos avanços das ciências e das tecnologias, fala-se dos intelectuais. O que é um intelectual? Qual o valor do intelectual? O que é ter vocação intelectual e qual a diferença entre o intelectual e o intelectualista? São questões pertinentes que merecem nossa reflexão, a fim de que possamos saber discernir bem a realidade intelectual a partir, talvez, de algumas desconstruções de mitos e falácias a respeito de tais questões.

O intelectual não nasce pronto, mas se constrói durante toda a vida. Trata-se do ser humano que gosta de conhecer. Os filósofos antigos afirmavam que o homem, dotado de razão, tem vocação para o conhecer, para o conhecimento. Somos, por natureza, inclinados a querer saber das coisas, motivados pela curiosidade e pela admiração. Esta é a primeira atitude do filósofo, pois ao se admirar diante da realidade é motivado pela razão para conhecer. A realidade nos questiona e nos leva a conhecê-la, quer superficial, quer profundamente. Assim sendo, o intelectual é a pessoa que gosta de conhecer, que se habitou a buscar conhecer as coisas.

Penso que o intelectual se faz na árdua arte de saber ler e pensar. Ler a vida nos livros e nos acontecimentos é uma atividade que requer vontade, disciplina e perseverança. Pensar a vida e as circunstâncias da vida realizando relações entre os saberes adquiridos significa a atividade intelectual. Este fazer relações é de extrema importância para entender a construção do ser intelectual. Diante da variedade das informações, dados e conteúdos, e da complexidade das realidades e fatos que se apresentam, o intelectual é chamado a fazer relações de todas as coisas e a partir de tais relações construir o saber, o conhecimento.

O intelectual pensa com lucidez, criticidade e liberdade. O pensar lúcido se baseia na logicidade do pensar, ou seja, na fundamentação daquilo que é elaborado. Em outras palavras, o pensar precisa ter sentido, ter fundamento. A lógica e o embasamento racional do trabalho intelectual são exigências do fazer e do conhecer. O saber é perspicaz porque é construído racionalmente e a razão coloca as coisas no seu devido lugar, é o que a Filosofia chama de busca incessante da verdade, pois é esta que interessa. Em Filosofia, a verdade encerra como que o sentido último do fazer filosófico. Este só tem sentido se estiver fundamentado na busca da verdade.

O intelectual é um homem crítico, porque descobre na elaboração do pensamento a razão das coisas. A criticidade caracteriza o autêntico intelectual, pois seu conhecer está em vista da construção da realidade. É aqui que aparece o que J. B. Libânio, SJ, chama de responsabilidade intelectual ou dimensão ética da vocação intelectual. A dimensão crítica do pensar desmistifica o que parece obscuro e superficial e desmascara o que é falso e mentiroso. Por isso, o compromisso com o senso e/ou espírito crítico na arte de pensar todas as coisas faz parte da vocação intelectual.

O intelectual precisa pensar livremente. Não se constrói um intelectual comprometido sem a liberdade. O pensar livre é um dever e um direito. Ninguém pode ser impedido de pensar, nem de produzir conhecimento. Tal proibição feriria a vocação ontológica do homem, inclinado naturalmente para o pensar sobre si mesmo e sobre todas as coisas. Pensar livremente significa construir o conhecimento na liberdade e para a liberdade, independentemente dos condicionamentos e ideologias. Ser livre para pensar é uma necessidade do intelectual, do contrário, o mesmo não existe.

A história dos homens e da humanidade tem mostrado que, desde que o homem se descobriu como ser pensante e capaz de transformar a realidade, o pensamento delineou, delineia e sempre delineará sua ação sobre si mesmo e sobre o mundo. É incalculável o número de pessoas que ajudaram, com seu pensamento, a transformar o mundo e humanizar o homem. Trata-se de um processo de descobertas e redescobertas constante e interminável. O compromisso para com a verdade e com a construção de um mundo melhor também faz parte da vocação intelectual. Aqui respondo a segunda pergunta a que me propus no início desta síntese.

O intelectual não é um sujeito fechado em si mesmo, mas aberto e cultivador de abertura, pois é nesta que se constrói diária e dialeticamente. O intelectual deve ter a consciência da necessidade de ajudar, com seu saber e experiência, a construir um mundo melhor, porque de nada vale termos grandes pensadores se a humanidade se encontra desumanizada e cada vez pior. Podemos, assim, perguntar: Para que servem os intelectuais, senão para construir um mundo mais habitável e, consequentemente, mais humano? Partilhar o saber construído e adquirido é fazer com que a experiência da construção do conhecimento se perpetue entre os homens e de maneira progressiva, não regressiva. Isto possibilita o pensar continuado, ou seja, no repensar daquilo que já foi pensado, construir ou problematizar a vida a fim de se viver melhor.

Reflitamos um pouco sobre o intelectualista. Comparar este com o intelectual é ingressar no campo da responsabilidade ética perante si mesmo e o mundo. O intelectualista costuma ser um sujeito que sabe, mas que não coloca seu saber a serviço do bem comum, da construção de um mundo novo. É isolado em si mesmo do ponto de vista da partilha do saber. É o que a filosofia grega vai chamar de sofista, aquele que não está interessado na verdade, mas na retórica em troco de ganhar a vida. A realidade acadêmica e o campo de reflexão teórica estão fartos de intelectualistas, pessoas descomprometidas com o bem e com a verdade, somente interessadas naquilo que a atividade intelectual pode trazer de benefícios e honrarias.

A humildade, que faz parte da vida do verdadeiro intelectual, é uma virtude ausente na do intelectualista. Este costuma ser oportunista, arrogante, prepotente e, consequentemente, insuportável. É fechado ao diálogo e sustenta verdades com pretensões absolutas, mesmo sabendo que estas são inconcebíveis. É um sujeito que se apresenta como completo, sabedor de todas as coisas e usa do saber para tirar vantagem sobre os outros. Eticamente, é uma verdadeira ameaça ao convívio autenticamente humano e tolerável, porque se mostra indiferente em relação à realidade. Religiosamente, no Cristianismo, intelectualistas são um verdadeiro desastre, pois contradizem os valores verdadeiramente cristãos. Nas Igrejas, os intelectualistas são responsáveis pela elaboração daquilo que chamamos de fundamentalismos, que destroem a unidade a partir da uniformidade.


Tiago de França

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