domingo, 18 de julho de 2010

Escutar e viver a Palavra de Deus


“... uma só coisa é necessária...” (Lc 10, 41).

A Sagrada Escritura fala diversas vezes de si mesma e da importância da escuta da Palavra de Deus. O episódio de Marta e Maria no evangelho segundo Lucas 10, 38 – 42 retrata bem o significado desta escuta atenta da Palavra. Fala-se muito da necessidade de se escutar o que a Bíblia diz, mas o que significa mesmo tal necessidade? O que é ou quem é a Palavra? Como e onde escutá-la? Por que e para quê escutá-la? Se as pessoas não pensam sobre estas questões, dificilmente procurarão escutar e valorizar a Palavra de Deus. Para que haja valorização e prática é preciso conhecer a Palavra. Como viver um ensinamento que não se conhece?

Em sua infinita sabedoria, Deus quis se comunicar com a humanidade por meio de palavras e recursos humanos. A palavra tem o poder de comunicar e de transformar a vida humana. Sabendo do poder e da influência que a palavra exerce sobre o mundo, Deus resolveu revelar-se por meio da palavra. Desde as origens, Deus quis estar unido ao seu povo por meio da palavra dos patriarcas e matriarcas, profetas e profetisas; mulheres e homens inspirados que tiveram acesso a revelação da vontade de Deus e a transmitiram ao mundo por meio da palavra e dos gestos. Deus fala através da palavra e da ação humanas. Esta palavra e ação humanas inspiradas por Deus são instrumentos de libertação e salvação do gênero humano, pois Deus está presente no mundo através de tais instrumentos.

Depois de ter falado brevemente da presença amorosa de Deus por meio de sua palavra libertadora, voltemo-nos para o episódio de Marta e Maria descrito por Lucas. O texto começa dizendo que Jesus caminhava com seus discípulos e eis que entraram num povoado. Jesus estava caminhando para Jerusalém, pois estava chegando o tempo de “ser levado para o céu” (Lc 9, 51). Ele estava caminhando rumo ao martírio e no caminho foi acolhido por Maria e Marta. A primeira sentou-se aos seus pés, para escutar a sua palavra; a segunda ocupou-se com os afazeres da casa e quando percebeu que Maria somente o escutava, reclamou e pediu a Jesus que a mandasse ajudá-la.

Jesus não atendeu ao pedido de Marta, mas lhe fez a seguinte advertência: “Marta, Marta! Você se preocupa e anda agitada com muitas coisas; porém, uma só coisa é necessária, Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10, 42). Esta advertência, que encerra o episódio, é o centro da mensagem do texto. Maria é a mulher contemplativa, aquela que escuta atentamente a palavra de Jesus. Marta é a mulher das muitas coisas, da ação. Estas muitas coisas apontadas por Jesus revelam certo ativismo que estava deixando Marta agitada e preocupada, excessivamente. Os excessos de agitação e preocupação levaram-na a deixar de lado a coisa necessária, a melhor parte.

O que este episódio fala para o cristão, para a sociedade e para a Igreja de hoje? O anúncio exige atualização da Palavra de Deus. Esta tem o poder de transformar o homem e o mundo. Por isso, o anúncio precisa ser autêntico e tal autenticidade passa pela proclamação da verdade contida na Palavra. Esta verdade é que liberta e converte. Sem o anúncio da Palavra libertadora de Deus não há missão nem conversão, pois esta é conseqüência daquela. Toda pessoa que aceita seguir Jesus de Nazaré é chamada a se comprometer com o anúncio da Palavra de Deus, do contrário, não é discípulo nem missionário.

O cristão precisa aprender a ouvir a Palavra de Deus. Ninguém pode ser cristão sem viver constantemente a experiência da escuta da Palavra. A experiência da escuta leva o cristão ao seguimento de Jesus, que se revela no compromisso de amar e servir. Este amor que se revela no serviço solidário ao próximo é a expressão viva de quem aprendeu a escutar a Deus por meio de sua Palavra salvadora. Por isso, seguramente podemos dizer que a Palavra é o lugar do encontro com Deus. Podemos, também, compreender esta Palavra enquanto livro sagrado, a Escritura; e enquanto pessoa, Jesus de Nazaré. Este é o Verbo, a Palavra enviada por Deus a este mundo.

Permanecer aos pés de Jesus não significa ser alienado diante das tarefas que a vida nos impõe, pelo contrário, é aprender com Jesus a melhor maneira de viver a solidariedade. A vivência desta é sinal de obediência ao ensinamento de Jesus, pois não adianta somente escutá-la, é preciso que haja um esforço constante em buscar viver seu ensinamento. Jesus afirma que a coisa necessária e a melhor parte é a escuta de sua palavra. Por isso, diante do barulho perturbador do mundo atual, o cristão é chamado a viver a experiência da escuta da palavra de Jesus e aprender com ele a ser instrumento de libertação do mundo. Toda escuta pressupõe atenção, silêncio e perseverança.

Os cristãos, principalmente os da Igreja Católica, escutam pouco a Palavra de Deus, pois se acostumaram e se satisfizeram com a Liturgia da Palavra das Celebrações e com as pregações dos padres. O número daqueles que lêem a Bíblia diariamente é mínimo, principalmente antes do Concílio Vaticano II, quando a Escritura era quase que inacessível às pessoas. O texto sagrado tinha como que um segredo que só podia ser lido pelos ministros ordenados da Igreja. O povo sempre tinha que se contentar com os doutrinários sermões dos padres. Então, ficou essa triste herança para as gerações posteriores ao Concílio, apesar do imenso trabalho de estudo e publicação da Sagrada Escritura que se faz hoje.

Os cristãos que não professam a fé na Igreja Católica costumam ler mais a Bíblia, mas desconhecem seu conteúdo. O fundamentalismo bíblico que provoca divisão e alienação cresce insistentemente. As pessoas lêem a Palavra, mas não a compreendem. São inúmeras as interpretações, umas mais absurdas que outras. E com estas variadas interpretações vão surgindo novas denominações religiosas, que mais dividem do que unem os cristãos. Na Igreja Católica há o Magistério que apresenta uma leitura oficial das Escrituras, nas Igrejas não-católicas cada um é livre para ler do jeito que quiser. A leitura bíblica realizada pelos evangélicos é mais livre, na Igreja Católica ninguém pode contradizer a interpretação magisterial.

Vivemos numa sociedade em que a prática da escuta está profundamente comprometida. Os meios de comunicação de massa, com seus programas e coberturas jornalísticas não respeitam a liberdade das pessoas. Há uma explosão de novidades e informações. Quando não existe um controle por parte dos usuários, tudo se transforma numa profunda agitação, e tal agitação vai deixando as pessoas estressadas. Estas não conseguem escutar, pois toda perturbação impede a escuta. Trata-se de uma sociedade formada por pessoas cada vez mais desumanas que não aceitam escutar a Palavra de Deus. As preocupações são tantas que a escuta da Palavra passa ser vista como perda de tempo, coisa de quem não tem o que fazer.

Diante desta situação e a parte dela surge a missão da Igreja. Esta tem duas opções: uma antievangélica, que consiste em pecar por omissão. O pecado de omissão neste caso consistiria no silêncio da Igreja em relação à atual situação de surdez da sociedade. Sociedade que se recusa a cultivar os valores da justiça, da partilha, da solidariedade, do perdão etc. A segunda opção, contrária à primeira, consiste em abraçar a ação profética. Ação profética que se manifesta no anúncio da Palavra, no convite insistente à escuta da mesma e na denúncia das ações e projetos injustos, frutos da ausência da escuta e da falta do conhecimento da vontade de Deus. É pela escuta que conhecemos a vontade de Deus.

Para que a sociedade escute o que a Igreja tem a dizer, é necessário que a própria Igreja seja uma fiel ouvinte da Palavra de Deus. Esta precisa encontrar espaço dentro daquela. As estruturas da Igreja não podem ofuscar o brilho da Palavra nem impedir a manifestação da sua força. Sempre e cada vez mais, a Igreja precisa se deixar conduzir pela Palavra, a fim de que se avance no processo de conversão. Somente na escuta atenta da Palavra é que a Igreja conseguirá ser plenamente instrumento de salvação da humanidade, conforme ensinou o Concílio Vaticano II. Uma Igreja que não escuta nem obedece a Palavra de Deus não é digna de confiança nem deve ser escutada, pois não anuncia a Boa Nova, mas a si mesma, impondo-se ao mundo através de seu regime doutrinal e de seus interesses corporativistas.

O Espírito Santo torna sensíveis nossos ouvidos, coração e mente para a escuta e para a prática da Palavra. Quem não se deixa conduzir pelo Espírito é incapaz de escutar a voz de Deus que se manifesta na Palavra e nos acontecimentos da história. O Espírito conduziu Jesus na sua missão salvífica e o tornou um servo obediente até a morte. Jesus, Palavra de Deus, cumpriu a vontade divina sendo solidário com os pecadores deste mundo libertando-os do poder da morte, tomando parte no sofrimento dos excluídos da sociedade, inaugurando, assim, o Reino de Deus. Estar do lado dos empobrecidos, eis o caminho de Jesus. Conduzida pelo Espírito, a Igreja deve se colocar e permanecer fiel neste caminho até a parusia do Senhor.


Tiago de França

Nenhum comentário: