domingo, 29 de agosto de 2010

Humildade, dom de Deus


“A humildade é a origem de todo o bem que possamos fazer”
(São Vicente de Paulo. In: Coste IX, 604)

O mês vocacional termina com a exortação de Jesus a respeito da humildade. Façamos, pois, uma breve leitura de Lc 14, 1.7 – 14: coração da Liturgia da Palavra deste 29º Domingo Comum. A palavra é para a edificação de todos, quer leigos, quer ordenados. Jesus exorta a todos, indistintamente. O texto traz alguns detalhes importantes que precisam ser considerados. A verdadeira humildade tem seu caminho e tem sua origem na pessoa de Jesus. É para a glória de Deus e anúncio da Boa Nova é que somos chamados à humildade, do contrário não temos humildade, mas aparência e falsidade. Ninguém é humilde para chamar a atenção, mas para mostrar que tudo procede de Deus e converge para Deus.

No início do texto encontramos Jesus, num sábado, na mesa da casa de um dos chefes dos fariseus. Sabemos que estes eram seus inimigos. Ao sentar à mesa, Jesus vai ao encontro de seus adversários e corre o risco de estar com eles. A leitura de todo o Evangelho mostra que, de fato, os fariseus eram perigosos. Mas Jesus não tem medo deles. Esta atitude de Jesus revela que precisamos conviver com aqueles que se tornam nossos inimigos. Comer na casa de alguém é partilhar da vida da pessoa. Não podemos afirmar que Jesus partilhava das idéias nem dos projetos maliciosos dos fariseus. Sua presença junto deles é uma oportunidade para a conversão dos mesmos. Posteriormente, veremos que isto não aconteceu. Eles só observavam Jesus, com o intuito de apanhá-lo nalguma fraqueza. Eles não sabiam fazer outra coisa, e Jesus sabia disso; mas mesmo assim insiste em não ter medo deles.

Na medida em que os convidados tomam o lugar na mesa, algo chama a atenção de Jesus: eles escolhiam os primeiros lugares. Naquela época, assim como hoje, os primeiros lugares são das pessoas importantes e/ou daquelas que gostam de se destacar. Os primeiros lugares são dos destacados. Parece não ser o lugar dos humildes. Algumas vezes, encontramos pessoas humildes nos primeiros lugares, mas isto é muito raro.

Duas situações para ilustrar: Na escola, costuma-se dizer que os inteligentes sentam à frente e os bagunceiros ficam no fundo da sala; nas Missas do padroeiro das comunidades do interior, as autoridades políticas costumam ficar nos primeiros lugares. O padre e/ou os coordenadores da festa já reservam o lugar deles. Já cansei de ver muita gente pobre ser retirada desses lugares. Há uma hierarquia de lugares: no presbitério está o padre com os ministros e acólitos, nos primeiros lugares estão as autoridades e os ricos, e na multidão estão os pobres. O padre prega para os que estão nos primeiros lugares e corrige a falta de silêncio da multidão lá de trás.

Diante deste comportamento natural dos fariseus (ocupar os primeiros lugares), Jesus conta-lhes uma parábola. Ele se utiliza de uma festa de casamento para chamar a atenção deles. Ele ensina a procurar os últimos lugares e termina a parábola dizendo: “Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado”. Quem não entende a maneira de ser de Jesus pensa logo que ele gosta da humilhação. Jesus quer ver as pessoas humilhadas? De que humilhação fala Jesus? Essa humilhação a que se refere Jesus não corresponde à anulação de si mesmo. Em outras palavras, Jesus não está pedindo para que nos sintamos os piores de todos, mas está nos exigindo a humildade.

Pode-se interpretar, equivocadamente, esta passagem quando se pensa: Jesus está pedindo que nos aniquilemos, que reconheçamos a nossa indigência pecaminosa, que soframos por nossos pecados, que nos desvalorizemos. Esta visão legitimou a autoflagelação acusatória na vida de muitos santos da Idade Média. Jesus não está pedindo nada disso. A humilhação a que se refere Jesus não corresponde a sacrifícios corporais, mas ao reconhecimento de nossa condição humana, legítima e naturalmente limitada e frágil. A pessoa soberba comporta-se contrariamente: goza de um orgulho excessivo, de uma arrogância insuportável. Assim se comportavam os fariseus, pois se sentiam melhores do que os demais membros da religião e da sociedade judaicas, julgavam-se superiores.

Em seguida, Jesus adverte o chefe dos fariseus a respeito dos convidados. Pelas indicações, eram amigos, irmãos, parentes e vizinhos ricos. Jesus diz que estes não deveriam ser convidados, pois possuem recompensas para retribuir o convite. Jesus lhe fala dos pobres, dos aleijados, dos coxos, dos cegos. Estes são dignos do convite para um almoço ou jantar, simplesmente, porque não possuem recompensas. Mas é preciso tomar cuidado com a idéia de recompensa, pois corremos o risco de pensar que basta convidar os pobres, oferecer-lhes comida, esperar a recompensa na ressurreição dos justos e tudo estará resolvido. Isto não significa muita coisa e Jesus não está pedindo isso. O que está ensinando Jesus ao falar dos pobres a um fariseu?

Jesus sabia muito bem que os fariseus exploravam e viviam à custa dos pobres. Em outra ocasião o Evangelho revela que o Dízimo era a maior fonte de exploração dos pobres (cf. Mt 23, 14), assim como é hoje em muitas de nossas Igrejas. Jesus fala dos pobres porque são eles os protagonistas do Reino de Deus. Jesus veio preferencialmente para os oprimidos do povo de Deus. Ele faz questão de dizer isso em plena mesa do fariseu, apontando o caminho da humildade. Os pobres conseguem mais facilmente ser humildes do que os ricos. Estes se julgam sábios, superiores e melhores, gostam de ser servidos, elogiados e aplaudidos. A pessoa humilde se abstém de tudo isso, pois sabe que todas estas coisas são obstáculos para a prática da humildade.

A pessoa que não é humilde gosta de humilhar o próximo, pois enxerga-o com indiferença e o considera inferior. Na ausência dos gestos, o orgulhoso é reconhecido pelo olhar, pois olha com desprezo e com más intenções. Não é um olhar que dialoga e penetra com misericórdia, mas que julga e condena as circunstâncias e as pessoas. O orgulhoso não vê no outro alguém que sabe e que pode, pois somente ele sabe e pode. Ele se coloca como a plenitude, como alguém que assegura a certeza e a completude das coisas. Se estas não passam pelo seu crivo, então não servem e/ou não se mostram válidas. Por isso, o orgulhoso tem uma tendência e uma facilidade de controle das circunstâncias e das pessoas, gosta de centralizá-las em si.

A pessoa humilde deixa o outro viver, participa da vida deste outro sem interferir na sua liberdade. Ser humilde também significa respeitar a liberdade do próximo. Somente quem é humilde consegue gozar da paz que vem do Cristo. O soberbo é inquieto, impaciente, intolerante; do contrário, o humilde é alguém tranqüilo, calmo, paciente, manso... O humilde sabe esperar. O orgulhoso, do contrário, atropela-se a si mesmo e aos outros. Costumeiramente, ninguém gosta de se aproximar nem de dialogar com gente orgulhosa, portanto, o orgulhoso está condenado ao isolamento e à solidão. Somente o humilde goza da verdadeira alegria e simpatia, o orgulhoso sempre se encontra estressado consigo mesmo e com a vida. Às vezes, chega a não suportar-se a si mesmo!

Na Igreja, temos pessoas humildes e orgulhosas. Há quem goste dos primeiros lugares e há quem goste dos últimos. Há um conflito permanente entre ambos os tipos. Aqueles que assumem os postos de lideranças são os que mais incorrem no pecado do orgulho. No clero, o orgulho é sinônimo de acomodação e de divisões. Muitos ungidos de Deus brigam entre si pelo poder. Estas brigam revelam uma crise de serviço. Somente este pode converter a todos na Igreja.

Em outras palavras, “aquele que quer ser o primeiro, deverá ser o último, e ser aquele que serve a todos” (Mc 9, 35). O serviço fraterno segundo os valores do Evangelho destrói em nós o orgulho. Somente a nossa participação no serviço ao próximo (caridade, solidariedade) pode nos assegurar a participação na ressurreição dos justos, pois o sentido da vocação e da missão cristãs está no SERVIÇO. Não encontramos brigas entre aqueles que buscam servir, verdadeira e evangelicamente ao próximo, mas entre aqueles que só sabem julgar, criticar e condenar, ou seja, entre os orgulhosos, interessados no controle e na manipulação do próximo.

Que o Espírito cultive cada vez mais no mais profundo do nosso ser o dom da humildade e que esta nos impulsione ao serviço.


Tiago de França

sábado, 28 de agosto de 2010

Hélder Câmara, Dom de Deus para o povo


07 de fevereiro de 1909, data da chegada
em Fortaleza, CE.
Estudou,
formou-se,
erigiu-se presbítero
jovem.

27 de agosto de 1999, data da partida
em Recife, PE.
Anunciou,
incansavelmente,
entrou para a história como Bispo-profeta
idoso rejuvenescido.

90 anos de serviço.
Serviço aos pobres de Jesus,
serviço ao Deus presente neles,
solidariedade.
Paciência divina na história,
luta.

Profeta:
Homem da palavra.
Palavra:
Que dói na consciência,
que incomoda,
que desinstala,
que anuncia e denuncia.

Místico:
Sem visões nem êxtases,
sem fenômenos extraordinários,
sem misticismos.
Místico:
Homem cheio do Espírito,
ungido para a libertação do povo de Deus.

Uma prece ao Deus anunciado pelo Bispo-profeta do Reino:
- Ó Deus da vida e da liberdade,
a tua Igreja necessita,
urgentemente,
de pastores a exemplo do teu servo Hélder Câmara.
Pastores, não mercenários.
Pastores,
meu Deus,
que dêem a vida pela vida do povo.
Pastores,
homens da vida, da fraternidade e da liberdade.
Pedimos-te, ó Pai,
Pastores-profetas,
que despertem e alimentem a esperança
do teu povo a caminho.


Tiago de França

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Shopping Center


“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1, 2).

Certo dia, tendo saído da faculdade mais cedo, resolvi ir a um dos shoppings centers da cidade. Fui com o intuito de escrever, posteriormente, este texto. Por isso, a pressa e o olhar despercebido não me fizeram companhia. Observei tanto as coisas e o movimento das pessoas, que um dos seguranças do Shopping veio em minha direção e me disse:

- Posso ajudar em alguma coisa? Fique a vontade, mas saiba que estou de olho em você!

Nada respondi, apenas sorri! Diante do imprevisto, tomei distância do citado segurança, trajado de preto, portando um olhar ameaçador, e fui a outro local, no terceiro peso do prédio. Por incrível que pareça, depois de cinco minutos de observação, lá me vem um outro segurança, desta vez mais velho e simpático. Rindo, disse-me:

- Está procurando alguma coisa? Estamos de olho no senhor!

Então revelei a minha identidade estudantil e minha intenção no lugar:

- Moço, sou estudante de Filosofia e estou observando algumas coisas para, posteriormente, elaborar uma crítica ao consumismo e ao materialismo.

Vendo minha sinceridade na descrição de minha atividade – fiz questão de ser objetivo na mesma -, respondeu:

- Ah, ta! É que, vez e outra, aparecem uns espertos por aqui. Somos responsáveis pela segurança. Sendo assim, fique a vontade.

Tranqüilizei-me, depois de ter escutado e visto o mesmo entrar em contato com os demais seguranças, explicando o motivo de meu comportamento “anormal” em relação ao lugar! Eles acreditaram no que disse, pois pararam de me observar.

Diante desta situação, percebi que o Shopping não é lugar de gente à toa. Para permanecer, é preciso está em movimento, olhando as mercadorias visando comprá-las. Mesmo que não as compre, é preciso passar a idéia de que vai comprar. É o que as pessoas fazem. Olham, tocam, perguntam, admiram, desejam e quando não podem comprar, sonham em comprar as coisas.

Para despertar o desejo das pessoas, as coisas precisam estar bem expostas e num colorido irresistível. Há uma exploração da beleza e da estética. Tudo parece perfeito, tudo combina com quem quer que seja. Numa loja de roupas, mal olhamos uma peça, o/a vendedor/a se aproxima e diz:

- Esta ficou linda em você! Foi feita pra você!

No Shopping as pessoas são bem recebidas e tratadas. É uma educação que, às vezes, nos causam impaciência. E quando o vendedor ganha por produto vendido, a situação torna-se intolerável. Apelam desesperadamente! Há certa insistência nas vendas: as pessoas compram mesmo sem necessidade. É a lógica do mercado: às vezes, você não precisa de nada naquele dado momento, mas o mercado lhe convence de que precisa de tudo o que está exposto. É a força da propaganda, da publicidade; no ditado popular: “a alma do negócio!”.

Percebi que, ao entrar no Shopping, as pessoas perdem a noção do tempo. O tempo não existe! A satisfação dos desejos as transporta para uma realidade semelhante a do paraíso: tranqüilidade e paz perpétua. Não encontramos pessoas tristes no Shopping, todas estão sorrindo, alegres, aparentemente, felizes. Há pessoas que diante do estresse e das obrigações impostas pela vida procuram um Shopping para relaxar. Muitas vezes, é melhor ir ao Shopping no domingo à noite, do que ir às igrejas rezar. Há, também, aquelas pessoas e famílias que passam todo o domingo no Shopping, pois encontram de tudo para passar bem o dia.

No Shopping não há nada de natural, desde os produtos até o sorriso das pessoas, tudo é superficial. Há algumas plantas naturais sufocados pelas luzes artificiais e “estressadas” por estarem fora de seu habitat natural. Tudo é superficial e fabricado para durar pouco: a descartabilidade é característica fundamental na constituição do lugar. A alegria das pessoas, tanto do cliente quanto do vendedor, está em função do descartável. Ao sair do Shopping, as pessoas voltam ao peso do cotidiano e a alegria desaparece. Mesmo não comprando os produtos, alegremente, se satisfazem em observá-los na exposição fascinantes das vitrines.

Se nas igrejas as pessoas cultuam ao Deus que transcende às realidades humanas, no Shopping cultuam o mercado. Este é o deus que dita as regras da convivência de muitos seres humanos. A verdade do Cristianismo é o Cristo que se tornou humano e solidário, a “verdade” do Capitalismo é o mercado que se faz presente por meio do lucro. Seguir Jesus no caminho da justiça e da solidariedade é a vocação do cristão, comprar e vender é a lei do mercado. Quem não compra nem vende não serve para o mercado, torna-se objeto descartável.

Percebi, ainda, que é quase impossível as pessoas saírem do Shopping sem comprar alguma coisa. Tudo é facilitado. Há mercadorias para todas as classes sociais: pobres, médios e ricos podem e devem comprar. O cartão de crédito foi criado com este objetivo: levar as pessoas às compras. A tentação é tão grande que muitas pessoas se viciam em comprar, se endividando e perdendo o crédito no mercado. Com o cartão você não precisa levar dinheiro: ele vale dinheiro. Tudo se torna mais cômodo e seguro. A regra é facilitar a vida das pessoas. Quanto mais rico for o indivíduo mais consumista ele se torna.

No Shopping há lugar para todos, ninguém é impedido de entrar: pobres e ricos, negros e brancos, bonitos e feios, religiosos e ateus, felizes e infelizes. O Shopping não tem preconceito para com as pessoas, há produtos para todos os gostos e para todo tipo de gente. Ao inventarem o Shopping, pensaram justamente nisso: num só lugar, oferecer um maior número de produtos e serviços. São tantos os produtos expostos de maneira inteligente e criativa, que as pessoas perdem, momentaneamente, a capacidade de reflexão e passam a acreditar em tudo o que está sendo dito e/ou oferecido.

A fé cristã vem ao encontro desta realidade purificando-a. Longe de se cultivar uma fé puritana (farisaica), seguramente, podemos afirmar que o Evangelho e o mercado são incompatíveis. O primeiro está preocupado com a vida do ser humano, com sua dignidade, enquanto o segundo está preocupado consigo mesmo, ou seja, o mercado vive à custa das pessoas e mantém o sistema capitalista. Não existe capitalismo sem o mercado que gera o lucro. O mercado não está preocupado com a dignidade das pessoas, mas visa tão somente sua condição financeira. O Evangelho não tem preocupações financeiras nem está em função do dinheiro.

Esta linha de pensamento pode parecer radical e provoque a seguinte indagação: Isso significa que o cristão não pode ir ao shopping? É claro que pode! O que não convém acontecer é se deixar levar pelo consumismo. O cristão consciente consome o necessário. É verdade que ninguém fica isento do mercado. Todos precisam adquirir o necessário para viver. O problema do mercado é que o mesmo não distingue o supérfluo do essencial. Para o mercado tudo é necessário, portanto, essencial. O cristão é chamado a desmascarar esta mentira alienante e escravizadora.

O mercado consegue tirar a liberdade das pessoas. A liberdade que o mesmo permite que exista é a liberdade de escolhas no ato de consumir. Você é livre somente para escolher o que quer consumir. Uma vez alienada pelo consumo, a pessoa não é livre para deixar de consumir. A fé cristã ensina que a falta de controle no consumo leva a um vazio existencial, pois consumo excessivo oriundo de desejos insaciáveis tem como conseqüência a falta de sentido. Com o tempo, as pessoas descobrem que nada aquilo que compraram tem sentido para suas vidas, a não ser para a satisfação momentânea. Tudo ou quase tudo se torna lixo, poluição, causa de impedimento para uma existência sadia pautada na liberdade dos filhos de Deus.

O consumo exacerbado leva à ganância e para os gananciosos fala Jesus no seu Evangelho: “Com efeito, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a própria vida?” (Mc 8, 36). Os gananciosos pensam que estão construindo a vida, pois a idéia de construção da vida está relacionada com o ter e não com o ser. Pensam consigo mesmos: “Agora sou feliz, porque tenho tudo o que quero na vida!” Para os que pensam assim vale a indagação de Jesus acima mencionada.

Jesus nos adverte para o perigo dos bens, e não são somente os ricos dignos de tal advertência, mas também os pobres que, mesmo não tendo condições para o consumo exacerbado, ao possuírem dinheiro não perdem tempo em cair na mesma tentação em que caem os ricos. Poucos são os pobres que resistem ao consumismo. A imensa maioria das mercadorias é acessível aos pobres, pois o mercado sabe que os mais pobres são mais facilmente induzidos ao consumo do que aqueles que têm uma maior formação e, portanto, consciência crítica. Esta combate a manipulação e o suborno mercadológicos.


Tiago de França

domingo, 22 de agosto de 2010

Quem entrará no Reino de Deus?


“Afastai-vos de mim, todos vós, que praticais a injustiça!” (Lc 13, 27).

A obtenção da salvação trazida por Jesus sempre foi motivo de grande preocupação para muitas pessoas neste mundo. Não é pequeno o número daquelas que vivem pensando se serão salvas ou condenadas. Mas será que estas mesmas pessoas já pararam para se perguntar sobre a salvação que almejam? Em que consiste a salvação oferecida por Jesus? Há algumas idéias equivocadas sobre esta salvação, que precisam ser urgentemente corrigidas. Vejamos uma descrição breve.

Refere-se ao fato de que vivemos no corpo e no espírito. Somos constituídos de matéria e espírito (dualismo). Quando morrermos, a matéria ficará e o espírito subirá até Deus. Diante de Deus o espírito será julgado e receberá a sua recompensa: perdição (inferno, condenação) ou salvação (céu, paraíso). Por isso, a pessoa, neste mundo, precisa fazer o bem, pois Deus recompensa a cada um conforme as obras. Quanto mais coisas boas a pessoa fizer, mais chance terá de ser salva. Criou-se até a estória de que cada gesto concreto realizado neste mundo corresponde a um tijolo na construção da morada eterna. Quem não praticar o bem, já tem seu destino certo: o inferno!

Assim sendo, não é difícil de perceber que este é um modelo facilitado de se obter a salvação que vem de Deus, ou seja, bastam as obras praticadas isoladamente e todas as pessoas serão salvas. Mesmo concordando com o Apóstolo Tiago, que ensinou que sem as obras a fé torna-se morta (cf. Tg 2, 24), não podemos aceitar este modelo de salvação. E não podemos aceitar pelo seguinte motivo: Porque não exige compromisso com a construção do Reino de Deus. É um modelo de salvação desvinculado do Reino de Deus, pois nele as pessoas estão preocupadas com a salvação de suas almas. É uma salvação particular, individualista, cada pessoa vive a sua fé numa relação intimista com Deus (Deus e eu), sem nenhum compromisso com a situação do mundo.

A Igreja ensinou este modelo de salvação durante séculos. Até hoje as pessoas têm dificuldades de aceitar a verdade da salvação em Jesus Cristo relacionada diretamente com a construção do Reino de Deus. Se observarmos o ensinamento da Igreja (Magistério) ao longo da história até o Concílio Vaticano II, veremos que o tema Reino de Deus sempre foi esquecido e/ou marginalizado. Os temas pecado e purificação sempre vigoraram no ensinamento magisterial. A catequese sempre levou as pessoas a se preocuparem mais com o pecado do que com a vivência da solidariedade. Nesta linha de pensamento, a Celebração Eucarística é sacrifício de expiação dos pecados e não Ação de graças, e o padre é o sacerdote do sacrifício, homem do altar.

Tal corrente de pensamento sempre causou e causa medo nas pessoas, porque estas vivem na perspectiva da condenação; preocupam-se, excessivamente, com a absolvição dos próprios pecados, pois sabem que, se morrerem em pecado mortal, vão diretamente para o inferno. A idéia de pecado e de inferno causou o que podemos chamar de trauma espiritual na vida das pessoas. Inúmeros cristãos viveram toda a sua vida espiritual preocupados com a condenação eterna. Não lhes foi oferecida a oportunidade de pensar em outra coisa. Os que escutaram os sermões na Igreja pré-Vaticano II sabem contar melhor esta triste situação. Metia-se medo nas pessoas e no medo elas obedeciam fielmente às orientações doutrinais e morais da Igreja. Vivia-se uma obediência forçada, não-livre, portanto, antievangélica.

Na Igreja pós-Vaticano II apareceu o ainda significativo fenômeno do neopentecostalismo. Trata-se de uma corrente religiosa que gera pessoas altamente piedosas, dadas à devoção e aos sacramentos, mas que não passam disto. Devoção e sacramentos fazem a vida dos neopentecostais. Para estes, o que vale é a devoção à Virgem Maria e aos santos e a participação nos sacramentos, especialmente os da Eucaristia e da Reconciliação (no caso dos católicos). As Novas Comunidades de Vida Apostólica, com exceção de poucas, vem recuperar na Igreja as velhas concepções de pecado e de salvação acima descritas. Trata-se de um movimento pietista marcado por uma fé fervorosa, mas que se mostra descomprometida com as grandes causas do Reino.

Citemos algumas características deste movimento pietista católico e não-católico: Cultos e Missas longas, constituídas de músicas pouco litúrgicas e sermões fervorosos, que apelam para a emoção das pessoas; grandes marchas e caminhadas (exposição do povo na rua para mostrar quantidade em detrimento da qualidade); mercado religioso dos objetos da fé: bênçãos, água benta, óleos, CDs e DVDs; festas que tem por objetivo a mera arrecadação; Missas-shows; shows musicais acompanhados de gritos, lágrimas, êxtases, repousos no Espírito, efervescência; preocupação exacerbada com o Dízimo e outras arrecadações financeiras; confissão constante dos pecados e comunhões diárias da Eucaristia; culto às pessoas, preferencialmente aos padres e pastores que cantam e que simulam curas e prodígios etc.

Nada de todas estas coisas tem ligação com o Reino de Deus. Estas manifestações têm como objetivo o fortalecimento financeiro e ideológico das instituições religiosas através da edificação espiritualista das pessoas. Quem assimila e/ou está inserido neste jeito espiritualista de ser Igreja não está preocupado com a fome, com a violência, com a prostituição, com a ecologia nem com as demais causas do Reino de Deus. Antes, tais pessoas estão preocupadas com a purificação da alma, tendo em vista a salvação particular. Elas dizem que os problemas da sociedade são de responsabilidade direta e única dos governantes. A idéia de Igreja que prevalece é a de que a Igreja deve se preocupar com as realidades espirituais, com os problemas do espírito. Assim, o lugar do cristão é na igreja e o do padre é na sacristia.

No texto evangélico deste 21º Domingo do Tempo Comum (cf. Lc 13, 22 – 30) encontramos a verdadeira proposta de salvação oferecida por Jesus. Alguém pergunta: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” A pessoa que faz esta pergunta parece já ter certa idéia de salvação. Percebe-se também que a salvação não é algo fácil de conseguir. Jesus não responde sim nem não, mas fala da porta estreita, como que concordando com a idéia de que não é fácil ser salvo. Ele continua, depois de ter falado da porta e de certo dono de uma casa, que tem domínio sobre a porta, mencionando as figuras de Abraão, Isaac, Jacó e os profetas do Antigo Testamento. Jesus fala da participação destes no Reino de Deus. Depois ele fala da universalização da mesa do Reino, ou seja, dela participarão gente de todos os povos de todas as partes da Terra: do ocidente e do oriente, do norte e do sul.

Há uma pergunta que revela a proposta salvífica de Jesus neste texto: Por que quando perguntado sobre os que se salvam, Jesus menciona a participação no Reino de Deus? A resposta é divinamente simples: A salvação dos cristãos está na participação no Reino de Deus. Em outras palavras, o Reino de Deus é a nossa salvação. Em outra passagem evangélica, o próprio Jesus disse que ele próprio seria o Reino de Deus chegando ao mundo (cf. Lc 17, 21). Com isto, ele inaugura a construção do Reino. Ele veio a este mundo para construir o Reino. A Igreja, Povo de Deus e Assembléia dos chamados, tem como missão colocar-se no caminho de Jesus. O que se faz neste caminho é construir o Reino.

Portanto, a salvação oferecida por Jesus está no Reino de Deus. Ser salvo significa participar deste Reino. Quem será lançado fora do Reino de Deus? O desejo divino é a participação de todos no seu Reino, mas vejamos o que diz o texto: “Afastai-vos de mim, todos vós, que praticais a injustiça!” Com estas palavras, Jesus está dizendo que os que praticam injustiças não participarão do Reino de Deus. O que seriam estas injustiças? Seguramente, não são os nossos pecados de ordem pessoais. Expliquemos o porquê.

Os pecados que geram injustiças não são os de ordem pessoal. Estes costumam nos prejudicar no aspecto particular de nossa existência. Os pecados que geram injustiças são os chamados pecados estruturais, aqueles praticados pelos sistemas de poderes que regem este mundo. E estes sistemas são oriundos da inteligência humana. Eles não são frutos do acaso nem da vontade de Deus. Por trás dos sistemas opressores deste mundo encontramos pessoas que vivem à custa do suor e do sangue de tanta gente sofrida: São os ricos e poderosos, donos do capital opressor, que não se cansam de matar e explorar as pessoas. E já que estamos no ano eleitoral, não podemos esquecer que a grande maioria de nossos políticos se enquadra no número dos exploradores. São desses opressores que Jesus está falando.

Sem medo algum de errar, confiando na palavra de Jesus podemos afirmar com todas as letras: Os exploradores do povo de Deus, se não se converterem, serão lançados fora, não participarão do Reino de Deus. Hoje, estes exploradores são os primeiros em tudo, possuem de tudo, gozam de uma vida “feliz”. E aqueles que são hoje os últimos, os empobrecidos da sociedade, serão os primeiros no Reino de Deus. Os empobrecidos de todos os tempos e lugares são os bem-aventurados do Reino de Deus (cf. Mt 5, 1 – 12). Somente no Reino de Deus é que os empobrecidos terão plenamente a vida, porque em nossa realidade regida por interesses corporativistas, a sua dignidade é infinitamente ferida.

Então, fica claro o ensinamento de Jesus: Quem quiser participar do Reino de Deus, portanto, ser salvo, precisa praticar a justiça. Esta constrói verdadeiramente o Reino. Não se trata da justiça dos doutores da Lei e fariseus, a justiça dos homens, que mais explora do que promove, mas da justiça do Reino pautada na solidariedade para com o próximo, amor que se faz solidariedade. Nesta perspectiva, ser santo significa ser justo, e ser justo significa praticar o amor na solidariedade. Como dizia Dom Hélder Câmara, o profeta da justiça do Reino: “Não se trata de um amor de palavras, de aplausos, mas de atos, de gestos concretos”. Apesar de suas proféticas e sábias palavras, das multidões que o aplaudiam, Dom Hélder Câmara foi e continua sendo um dos modelos de solidariedade evangélica na opção preferencial pelos pobres.

O Espírito, enviado por Deus a este mundo, é a força divina que está atuando na vida cristã. Este mesmo Espírito nos faz instrumentos do amor gratuito e solidário de Deus. Peçamos, pois, ao Deus da vida e da liberdade que nos conduza com seu Espírito no caminho de Jesus, caminho da justiça que se manifesta na solidariedade.


Tiago de França

sábado, 14 de agosto de 2010

Maria, mulher da solidariedade


“Bem-aventurada aquela que acreditou,
porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu”
(Lc 1, 45).

Na história da salvação, Deus escolheu pessoas para serem suas fiéis colaboradoras. Neste mundo, Deus sempre contou com a compreensão e a disponibilidade de mulheres e homens que acolheram e acreditaram em sua palavra. A leitura bíblica nos revela que tais personagens eram pessoas comuns do povo, pessoas inseridas na história, pessoas do mundo. Levando em consideração a falsa idéia que se tem de Deus, poderíamos até perguntarmo-nos: Se Deus é onipotente, onipresente e onisciente, por que não optou em salvar a humanidade sem a participação das pessoas? Quem faz esta curiosa indagação desconhece a dinamicidade da ação amorosa de Deus na história.

Toda a Escritura Sagrada revela-nos que o mundo é criação divina e mesmo corrompido pelo pecado, Deus não se ausentou da realidade criada. A face misericordiosa de Deus nos faz compreender que o pecado do mundo não ameaça a existência de Deus nem o faz desistir de seu projeto criador. Deus acredita na sua criação, especialmente na pessoa humana, criada à sua imagem e semelhança. Sua opção, portanto, foi de escolher pessoas que ajudassem a construir o seu povo, o Povo de Deus. Este povo é a mina de seus olhos, ou seja, Deus quer muito bem a seu povo e com este fez uma aliança. Em Jesus de Nazaré, esta aliança renova-se e torna-se perpétua. Jesus é a prova de que Deus nos ama, infinitamente.

Com a pessoa de Jesus surge a de Maria. Esta foi uma das escolhidas de Deus. Sua prima Isabel chama-a de “bendita entre as mulheres” (Lc 1, 42). Não se trata de exaltar Maria acima das demais mulheres da terra, mas de reconhecer nela um exemplo de fidelidade ao chamado divino. Deus não teve a pretensão de elevar Maria e colocá-la como mediadora entre Ele e seu povo. A mediação é uma missão que cabe somente a pessoa de Jesus (cf. 1Tm 2, 5 – 6). A missão de Maria foi a de ser a mãe de Jesus, o Filho de Deus. A maternidade de Maria não lhe confere a mediação entre Deus e seu povo. Trata-se de uma maternidade privilegiada, pois somente ela é que teve a graça de trazer em seu seio a segunda pessoa da Trindade.

Maria faz parte da vida do povo de Deus. O cântico que o evangelista coloca em sua boca (cf. Lc 1, 46 – 55), inscreve-a na história da salvação. Ela aceitou, depois de certo questionamento justo e necessário, colaborar com o projeto de Deus: resgatar a dignidade do ser humano e de toda a criação por meio da construção do Reino. Ao dar à luz a Jesus de Nazaré, Maria possibilita a encarnação de Deus na vida de seu povo. Desta vez, Deus não se faz presente por meio de uma voz que fala numa nuvem nem por meio de oráculos com algumas pessoas escolhidas, como ocorria no Antigo Testamento, mas enquanto ser humano no mundo, encarnado na história, vem caminhar pessoalmente com seu povo.

Maria acredita no Deus que se compadece de seu povo e desce para ajudá-lo a libertar-se do poder da morte e da opressão (cf. Ex 3, 7 – 10). Por isso, sabendo que Deus agiu e continua agindo na história através de um amor que se faz serviço libertador e perpétuo, ela se coloca na fileira daqueles e daquelas que buscam amar através do serviço fraterno e gratuito. Maria é a mulher do avental, aquela que corre, apressadamente, para servir (cf. Lc 1, 39), sempre preocupada com o bem-estar das pessoas. O evangelista mostra que, grávida de Jesus, ela vive o ensinamento que o mesmo Jesus irá recordar a todos: o amor que se traduz na solidariedade. Assim sendo, Maria é missionária e protagonista do Reino.

Maria traz à lembrança a vida de tantas mulheres, discípulas e missionárias de Jesus, que exerceram o santo ministério diaconal na Igreja. Para ilustrar, eis alguns exemplos das diaconisas (servidoras) do povo de Deus: Beata Lindalva Justo de Oliveira, Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce, Irmã Dorothy Stang, Santa Rosa de Lima, Santa Luísa de Marillac e tantas outras mulheres que na Igreja e na sociedade lutaram por um mundo mais justo e fraterno. Hoje, tanto na Igreja quanto na sociedade, não são poucas as mulheres que constroem, incansavelmente, o Reino de Deus através das práticas da justiça e da caridade.

Maria ensina que a vida cristã só tem sentido através da prática da caridade, que se traduz no amor a Deus e ao próximo como a si mesmo. Por isso, mais do que venerá-la, a Igreja precisa aprender com ela a ser servidora do mundo. Mais do que celebrar a Assunção de Maria aos céus, a Igreja precisa, e com certa urgência, apreender do testemunho mariano o espírito diaconal, ou seja, a capacidade evangélica de servir ao próximo. Não se trata de servir nem de seguir a Maria, pois o cristão só serve a Deus na pessoa do próximo. Só seguimos a Jesus de Nazaré.

Algumas correntes espiritualistas que atuam na Igreja, principalmente a partir do surgimento do movimento neopentecostal, estão cometendo alguns desvios de ordem doutrinal. Fala-se num Reino de Maria como oposição ao Reino de Deus. Afirmam que somente por Maria se chega a Jesus, somente por meio dela é que se consegue a salvação oferecida por Jesus; que é inconcebível o seguimento a Jesus sem o auxílio e/ou proteção de Maria.

Duas verdades precisam ser ditas e que desmascaram tal absurdo: Primeira, que Jesus inaugurou o Reino de Deus e que não existem dois Reinos. Só existem o Reino de Deus e as forças do anti-reino. A devoção à Virgem Maria está em função do Reino. Não existe Reino de Maria, pois o seu Reino é o de Deus. Segunda, se afirmamos que somente por Maria se chega a Jesus, pergunto: Como ficam os cristãos que não veneram a Virgem Maria? Perdidos? Excluídos do convívio dos eleitos?

A devoção à Maria transformou a pobre mulher de Nazaré em Rainha. Penso que não podemos passar disso. Biblicamente, é quase que inaceitável aceitá-la como Rainha, pois ela não teve reino algum a seus pés e/ou às suas ordens. Jesus não aceitou publicamente o título de rei. Nunca se proclamou a si mesmo como rei. Se ele o foi, não o foi ao modo deste mundo. Ele não foi enviado por Deus para reinar neste mundo. Jesus retornou aos céus (ascensão) e, ao mesmo tempo, continua entre nós (Emanuel) e os impérios deste mundo continuam exercendo o seu poder. Jesus não tomou o poder de Herodes para si. Se a doutrina mariológica da Igreja pede-nos para venerarmos Maria como Rainha, então a veneremos enquanto aquela que disse SIM ao chamado divino. Assim sendo, não é correto igualar Maria a seu filho Jesus, pois também ela foi discípula dele, discípula do próprio filho. Isto, sim, é correto afirmar, crer e proclamar.

Maria não está no centro da mensagem cristã. Afirmar isso seria marginalizar a pessoa de Jesus, que é o centro da vida e da espiritualidade cristãs. Ela aponta para Jesus e pede-nos que o escutemos e o obedeçamos (cf. Jo 2, 5). Maria é modelo de obediência à vontade divina, e isto já a torna Bem-aventurada aos olhos de Deus e dos homens. Mesmo não compreendendo bem as coisas de Deus, conservando-as no coração (cf. Lc 2, 51), ela aceitou a proposta, acreditou na palavra de Deus e a praticou em sua vida.

Maria é um modelo de entrega total a Deus. Ela ensina-nos o serviço fiel a Deus na pessoa de nossos irmãos e irmãs que padecem neste mundo. Trata-se de um serviço simples, humilde, paciente e perseverante. Entregar-se sem reservas ao serviço divino, que é a caridade, significa aderir ao projeto de Jesus (Reino de Deus) até as últimas conseqüências. A devoção mariana com suas manifestações religiosas não pode ocupar o lugar do seguimento de Jesus de Nazaré, mas confirmá-lo e reforçá-lo. Se não nos legitimam no seguimento, tal devoção torna-se ilegítima, portanto, antievangélica.

Que o Espírito que fecundou o seio da Virgem Maria nos torne obedientes à Palavra de Deus, que é o próprio Cristo, iluminando-nos e orientando-nos na prática da solidariedade.


Tiago de França

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Lei Ficha Limpa, um projeto que pode dar certo


A Lei Complementar 135/2010, popularmente conhecida como Ficha Limpa, foi sancionada pelo Presidente Lula no dia 04 de junho de 2010. Trata-se do resultado de um projeto de iniciativa popular, que contou com a manifestação de mais de 1,5 milhões de assinaturas de brasileiros de todo o país. Inicialmente, causou repúdio no Congresso Nacional, quando lá chegou no dia 29 de setembro do ano passado, mas, devido à insistência do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, composto por 40 entidades, dentre elas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, os parlamentares cederam à pressão popular e midiática e resolveram votar o projeto.

Depois de votado e sancionado, apareceu uma nova discussão: Esta Lei vale para as eleições deste ano? O MCCE e a população em geral exigiram a aplicação imediata, mas somente os ministros do Tribunal Superior Eleitoral – TSE é quem podem resolver tal questão. Nesta quarta-feira, 11/08, o Min. Ricardo Lewandowski, Presidente do TSE declarou: "No aspecto da constitucionalidade, a Lei Ficha Limpa não foi contestada na maioria dos TREs. Alguns aspectos é que foram melhor analisados. É possível que o próprio TSE, ao examinar os casos concretos, entenda que alguns candidatos que foram barrados não estejam enquadrados nessa nova lei”.

Devido aos aspectos que foram melhor analisados, apareceram as modificações na Lei Ficha Limpa. Estas modificações dão brecha para os advogados dos políticos corruptos apelarem aos Tribunais Regionais e conseguirem o registro de candidaturas. Para ilustrar tal situação, citemos um caso ocorrido no Maranhão. Infelizmente, desrespeitando as resoluções da Lei Ficha Limpa, o Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Maranhão – TRE-MA liberou a candidatura do deputado federal Sarney Filho (PV-MA). Este ficha suja responde a processo na justiça por abuso de poder econômico e uso indevido de meios de comunicação.

Isto significa que, mesmo com a Lei Ficha Limpa, políticos corruptos continuarão se aproveitando dos cargos públicos para benefício próprio. Esta decisão do TRE-MA não surpreende a ninguém, pois, historicamente, é sabido que a Justiça maranhense nunca se opôs aos desmandos da família Sarney. Quem vive no Maranhão sabe muito bem disso! Por outro lado, a Lei Ficha Limpa é motivo de comemoração, pois impugnou dezenas de candidaturas de pessoas interesseiras, gente que quer fazer da política um meio de vida. Para ilustrar, basta citar o caso Joaquim Roriz (PSC-DF), que no dia do próprio aniversário resolveu registrar sua candidatura. Resultado? Barrado pela Lei Ficha Limpa! Motivos? Sem comentários!

A situação política do Brasil é tão vergonhosa, que foi necessária a mobilização popular para aprovar uma Lei que impugne candidaturas. Em matéria de consolidação democrática, trata-se de uma situação terrível, que merece profunda reflexão por parte de todos os brasileiros. Pessoas mal intencionadas precisam enxergar que a sociedade não suporta mais tamanha corrupção, deveriam ter misericórdia da parcela marginalizada da sociedade, que depende, integralmente, dos serviços públicos. Os que votam, o cidadão brasileiro, precisa aprender a ser crítico diante de tal situação, buscando informar-se melhor sobre os candidatos, a fim de fazer boas escolhas.

A Justiça precisa oferecer os meios necessários para ajudar o cidadão a enxergar o processo político eleitoral como necessário ao autêntico desenvolvimento do país. As Igrejas também devem contribuir no processo de conscientização política, erradicando o discurso meramente dogmático e doutrinal e ajudando as pessoas a encontrarem a verdade dos fatos, formando a consciência crítica. A Escola e a Universidade também são chamadas a exercerem um papel transformador neste cenário, provocando a discussão e as campanhas necessárias para a consolidação democrática. O Brasil tem jeito, basta que cada cidadão faça a sua parte. Votar, conscientemente, é preciso!


Tiago de França

domingo, 8 de agosto de 2010

Vigiar na fé e na solidariedade


“A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido” (Lc 12, 48).

Depois de ter inaugurado o Reino de Deus, Jesus confiou a continuidade desta construção permanente aos seus discípulos. Estes são chamados a prolongar a vida e a missão de Jesus, o enviado do Pai. Desta forma, entendemos que os discípulos se tornaram missionários da vinha do Senhor, operários do Reino. A Igreja nasce justamente no início da construção do Reino e em função do mesmo. Ela nasce para se colocar a serviço de tal construção. Todos os que desejam fazer parte do corpo eclesial devem saber e assumir tal compromisso. A centralidade da missão deste corpo está na construção do Reino. Sem este não tem sentido a existência da Igreja.

O texto evangélico que está no centro da Liturgia da Palavra deste Domingo (Lc 12, 32 – 48), Dia dos Pais, chama-nos a atenção para o compromisso com o Reino de Deus. Jesus começa dizendo que o Reino é do “pequenino rebanho”. Este é formado pelas “minorias abraâmicas”, ou seja, pelos empobrecidos de todo tempo e lugar. Os empobrecidos formam o povo de Deus. E a Igreja, que nasceu em função do Reino, deve colocar-se a serviço deste pequenino rebanho. Trata-se de um serviço fiel, permanente e missionário. Um serviço que se dá na vigilância, na iminência da vinda definitiva do Senhor, que estabelecerá de uma vez por todas o seu Reino.

Aqueles que desejam servir ao Reino precisam estar atentos à recomendação de Jesus, a saber:

- “Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar” (v. 36): Quem serve a Deus precisa estar atento aos sinais dos tempos e à volta iminente de Jesus. A fidelidade no serviço ajuda em tal espera. É preciso manter as “lâmpadas acesas” e os “rins cingidos”. O “empregado” prudente é aquele que está atento ao que pediu o seu patrão. Assim é o cristão: deve permanecer fiel e vigilante naquilo que abraçou como missão.

A Igreja, serva do Servo Sofredor, colocando-se permanentemente a serviço dos empobrecidos do Reino, precisa também vigiar para não se desviar do serviço humilde e solidário. As tentações do poder, do prestígio e das riquezas podem apagar as lâmpadas da Igreja. Para resistir a tais tentações, a busca incessante da fidelidade criativa na missão é urgentemente necessária. A Igreja é a grande responsável de “dar comida a todos na hora certa”, ou seja, estar atenta às necessidades dos prediletos de Jesus e protagonistas do Reino, os empobrecidos.

O texto revela, ainda, três tipos de “empregados”, que apontam para três tipos de servidores do Reino:

1. O empregado que, pensando que o patrão está demorando, resolve espancar os criados e as criadas, comer e beber até embriagar-se. Na Igreja, este empregado representa todas aquelas pessoas que se aproveitam dos encargos religiosos para obter vantagens e privilégios. Podem ser ordenados ou leigos. Costumam ser agressivos, pois gostam de maltratar as pessoas por se sentirem superiores e/ou melhores do que elas. Isto é mais grave na vida daqueles que se consagraram ao serviço, pois vivem o oposto, ou seja, obrigam, direta ou indiretamente, os leigos a lhes servirem. Isto é a maior prova da falta de vocação para o serviço. Tais pessoas jamais poderiam ter assumido encargos de coordenação e animação do povo de Deus.

2. O empregado que mesmo conhecendo a vontade do seu Senhor, nada preparou nem agiu conforme a sua vontade. Na vida eclesial, este segundo tipo de “empregado” está relacionado às lideranças do povo de Deus, pois estas julgam conhecer melhor a vontade de Deus, principalmente a hierarquia da Igreja. Basta levar em consideração a preparação dos candidatos ao sacerdócio ministerial: em geral estudam Filosofia e Teologia. Estas conferem ao candidato certo conhecimento da vontade e do projeto de Deus, principalmente a Teologia.

Com o ingresso dos não ordenados nestas áreas de conhecimento, podemos colocá-los nesta segunda categoria de empregados, que muitas vezes, mesmo conhecendo a vontade de Deus, não se interessam em praticá-la, mas caem na tentação de buscar atender aos próprios interesses. E qual é a vontade de Deus? É que nos coloquemos no caminho de Jesus e nele perseveremos até o fim de nossa existência. E o que se faz no caminho de Jesus? Vive-se o amor solidário ao próximo. É tudo muito simples de se compreender, mas muito difícil de se praticar. Muito difícil, mas não impossível!

3. O empregado que não conhece a vontade e que não liga para a missão recebida de seu patrão. Este peca menos, pois o pecado não é tão grave quando não sabemos da gravidade do mesmo. Na vida eclesial, são muitas as pessoas que ainda não sabem que a participação e a comunhão entre todos os membros são de vital importância para a construção do Reino. Muitas não servem porque não foram despertadas para o serviço.

A experiência de Jesus mostra claramente que ele saiu do seio do Pai para nos servir aqui na terra. Se pararmos para pensar no gesto do lava-pés veremos o quanto é extraordinário a ação do Deus que lava os pés dos pecadores. Jesus não veio a este mundo para dominar a vida das pessoas, nem para satisfazer as suas vontades, mas para servir e neste serviço nos ensinou a fazer a mesma coisa. A solução para os problemas humanos está no amor que se manifesta na solidariedade. Se a solidariedade existisse efetiva e permanentemente entre os homens, o mundo seria diferente.

A solidariedade não permite que as pessoas se matem nas guerras e conflitos, nem que tantas pessoas morram de fome. Somente através da solidariedade é que se erradicará, de uma vez por todas, a marginalização social. A violência, o desemprego, as drogas, as prostituições, a destruição da natureza e todos os males que assolam a humanidade de hoje só serão erradicados pela solidariedade. Esta é o amor em ação. É isto que Jesus veio fazer no mundo: lembrar a todos que somente a solidariedade é que nos salva. Ele não veio resolver os problemas dos homens.

O Espírito Santo, enviado após a subida de Jesus ao seio do Pai, nos concede a graça de vivermos a solidariedade. Isto é o que nos é dado e confiado; é o que nos será pedido e exigido. Se formos condenados no Juízo final, não será por causa de nossos pequenos pecados. Estes não afetam a Deus. O que causa tristeza ao coração de Deus é a falta de solidariedade entre seus filhos. Esta falta de solidariedade é o grande pecado que pode nos condenar definitivamente. Por isso, cuidemos em sermos solidários, vivendo segundo a justiça que gera a paz.


Tiago de França

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Despojados e livres para servir


“Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”.
(Lc 12, 15)

O mês vocacional, no qual a Igreja reflete sobre o chamado de Deus, que se manifesta nas diversas formas de serviço na Igreja e no mundo, iniciou com a advertência de Jesus a respeito do perigo das riquezas (cf. Lc 12, 13 – 21, da Liturgia do 18º Domingo do Tempo Comum). No primeiro domingo deste mês vocacional, a Igreja rezou e refletiu o ministério presbiteral, que é uma das vocações específicas. O presbítero, na Igreja, é um homem chamado a congregar as pessoas no amor de Deus, fazendo-as participantes do mistério e da vida divina. Para isto, o presbítero precisa colocar-se a serviço das pessoas no altar do Senhor, no cotidiano da vida dos que sofrem e dos que são excluídos na sociedade.

O mundo atual é marcado pelas riquezas. O mundo sempre foi rico, pois Deus criou tudo para o bem de todos. Tudo o que Deus criou é bom e na bondade das coisas criadas por Deus, também nós, seus filhos e filhas, somos chamados a sermos felizes. Trata-se de uma felicidade que não exclui ninguém. A ganância está na base do conceito atual de felicidade criado pelo homem. Muita gente se considera “feliz” tendo todos os bens necessários à vida mais o supérfluo, enquanto a grande maioria das pessoas deste mundo vive uma vida infeliz, marcada pela fome, miséria e opressão.

A ganância leva as pessoas a agirem de forma criminosa para a manutenção de certo padrão de vida. Trata-se de um sentimento que cega as pessoas levando-as à competição injusta. Não é pequeno o número daqueles que subornam, traficam, mentem, iludem e matam para, assim, conservarem as riquezas. A pistolagem, a sonegação de impostos, a morte de muita gente que fiscaliza e denuncia, o latifúndio etc. são alguns dos meios utilizados por quem se preocupa em conservar os bens ilícitos. São pessoas escravas do dinheiro e do poder corrompido, que vivem para as riquezas e não para a vida.

A posse das riquezas impede que a pessoa seja livre, pois as riquezas alienam e escravizam. Em quem possui riquezas há sempre o sentimento do “quero mais”, ou seja, a pessoa nunca está satisfeita com o que tem, mas quer cada vez mais. O desejo pelos bens é insaciável. Os bens passam a ser o centro das preocupações e da vida da pessoa, impedindo que a mesma viva tranqüila e livremente. A paz e a liberdade são daqueles verdadeiramente despojados, que se utilizam dos bens necessários à vida sem servir ao dinheiro. A paz e a liberdade passam pelo autêntico despojamento.

O mercado, regido pela competição, pelo consumismo e pelo materialismo leva cada vez mais as pessoas ao apego aos bens materiais. As pessoas brigam, se intrigam e até se matam por causa dos bens. Mesmo sabendo que ao morrer não levarão nada consigo, muita gente não desiste das riquezas. Para tais pessoas, a perda das riquezas significa a perda do sentido da vida. Há as que se contentam em “viver” toda a vida comprando e vendendo, pois se “realizam” vivendo assim. Pessoas assim, dificilmente, participarão do Reino de Deus, pois se mostram incapazes de viver a partilha e a solidariedade. No Reino de Deus não há pobres e ricos, mas Deus é tudo em todos. No Reino de Deus, a vida é plenamente digna.

O cristão deve buscar viver na humildade e na simplicidade. Toda espécie de riqueza, principalmente aquela oriunda da injustiça, afasta o cristão da justiça do Reino de Deus. “Buscai, primeiro, o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será acrescentado”, nos diz Jesus em outra ocasião. Assim sendo, o Reino e a sua justiça devem ser o centro da espiritualidade e da vida cristãs. A sociedade atual precisa de pessoas despojadas e empenhadas com a justiça do Reino, pessoas corajosas que ajudem na libertação daqueles que estão dominados pela ganância e pela sede de poder. É preciso despertar o amor (solidariedade) no coração das pessoas.

A palavra de Jesus também tem algo muito pertinente a dizer para aqueles que se dedicam exclusivamente à missão: religiosos/as, diáconos, presbíteros, bispos e todas as demais formas de vida consagrada. Os/as consagrados/as nas Congregações, Institutos e Comunidades de Vida Apostólica tem no voto de pobreza a motivação de se verem livres das riquezas. Viver o voto de pobreza significa apaixonar-se pela missão, sair pelo mundo afora e anunciar o Evangelho de Jesus. Para isto, é preciso despojar-se de tudo aquilo que impede o sair de si mesmo para o encontro e o cuidado com o outro.

Na Igreja, infelizmente, muita gente consagrada e ordenada para o serviço do povo de Deus peca gravemente contra o voto de pobreza. Isto é visível naqueles que se aproveitam da condição religiosa para viver luxuosamente à custa do dinheiro suado do povo doado à Igreja. São pessoas que, ao invés de formarem-se, academicamente, para a vida profissional, terminam caindo na tentação de viver a condição religiosa como mera profissão. São religiosos/as destituídas de espiritualidade comprometida com a justiça, que escandalizam a fé do povo de Deus. Em todas as Igrejas cristãs temos este mal, fruto da ganância e da sede de poder.

O desafio proposto pelo Evangelho é o de viver como Jesus viveu: simples e humildemente. O Evangelho revela que Jesus não tinha onde reclinar a cabeça, dada a sua pobreza. Toda pessoa que aspira seguir Jesus deve aprender com ele a ser simples e humilde na missão. Esta se torna mais leve e autêntica quando vivida na simplicidade e na humildade. Todo o nosso viver se torna mais feliz quando buscamos ser livres para o serviço. Um missionário livre é como um pássaro fora da gaiola: livre para voar. No caso do pássaro, livre para voar para todo lugar habitável; no caso do missionário, livre para ir aonde o Espírito enviar. Fora da liberdade não existe missão.

Ao invés de centralizar sua vida nos bens, o missionário é chamado a viver integralmente da Providência divina. Esta não deixa nada faltar para aquele que confia fielmente. Quem se entrega plenamente ao anúncio da Boa Nova de Jesus recebe constantemente o socorro da divina Providência. Falando para os Padres da Missão (Lazaristas), vejamos o que nos ensina São Vicente de Paulo (1581 – 1660): “Que felicidade estar livre de todos esses devaneios importunos, viver na santa pobreza, tendo Deus como nosso provedor! Sejamos amantes dessa bela virtude. Peçamo-la freqüentemente a Deus” (citado por Pierre Coste – XI, 252).

Para ser ouvida pela sociedade, a Igreja precisa ser uma pobre missionária entre os pobres de nossos dias, a exemplo de Jesus de Nazaré. Peçamos a Deus esta graça.


Tiago de França