sábado, 14 de agosto de 2010

Maria, mulher da solidariedade


“Bem-aventurada aquela que acreditou,
porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu”
(Lc 1, 45).

Na história da salvação, Deus escolheu pessoas para serem suas fiéis colaboradoras. Neste mundo, Deus sempre contou com a compreensão e a disponibilidade de mulheres e homens que acolheram e acreditaram em sua palavra. A leitura bíblica nos revela que tais personagens eram pessoas comuns do povo, pessoas inseridas na história, pessoas do mundo. Levando em consideração a falsa idéia que se tem de Deus, poderíamos até perguntarmo-nos: Se Deus é onipotente, onipresente e onisciente, por que não optou em salvar a humanidade sem a participação das pessoas? Quem faz esta curiosa indagação desconhece a dinamicidade da ação amorosa de Deus na história.

Toda a Escritura Sagrada revela-nos que o mundo é criação divina e mesmo corrompido pelo pecado, Deus não se ausentou da realidade criada. A face misericordiosa de Deus nos faz compreender que o pecado do mundo não ameaça a existência de Deus nem o faz desistir de seu projeto criador. Deus acredita na sua criação, especialmente na pessoa humana, criada à sua imagem e semelhança. Sua opção, portanto, foi de escolher pessoas que ajudassem a construir o seu povo, o Povo de Deus. Este povo é a mina de seus olhos, ou seja, Deus quer muito bem a seu povo e com este fez uma aliança. Em Jesus de Nazaré, esta aliança renova-se e torna-se perpétua. Jesus é a prova de que Deus nos ama, infinitamente.

Com a pessoa de Jesus surge a de Maria. Esta foi uma das escolhidas de Deus. Sua prima Isabel chama-a de “bendita entre as mulheres” (Lc 1, 42). Não se trata de exaltar Maria acima das demais mulheres da terra, mas de reconhecer nela um exemplo de fidelidade ao chamado divino. Deus não teve a pretensão de elevar Maria e colocá-la como mediadora entre Ele e seu povo. A mediação é uma missão que cabe somente a pessoa de Jesus (cf. 1Tm 2, 5 – 6). A missão de Maria foi a de ser a mãe de Jesus, o Filho de Deus. A maternidade de Maria não lhe confere a mediação entre Deus e seu povo. Trata-se de uma maternidade privilegiada, pois somente ela é que teve a graça de trazer em seu seio a segunda pessoa da Trindade.

Maria faz parte da vida do povo de Deus. O cântico que o evangelista coloca em sua boca (cf. Lc 1, 46 – 55), inscreve-a na história da salvação. Ela aceitou, depois de certo questionamento justo e necessário, colaborar com o projeto de Deus: resgatar a dignidade do ser humano e de toda a criação por meio da construção do Reino. Ao dar à luz a Jesus de Nazaré, Maria possibilita a encarnação de Deus na vida de seu povo. Desta vez, Deus não se faz presente por meio de uma voz que fala numa nuvem nem por meio de oráculos com algumas pessoas escolhidas, como ocorria no Antigo Testamento, mas enquanto ser humano no mundo, encarnado na história, vem caminhar pessoalmente com seu povo.

Maria acredita no Deus que se compadece de seu povo e desce para ajudá-lo a libertar-se do poder da morte e da opressão (cf. Ex 3, 7 – 10). Por isso, sabendo que Deus agiu e continua agindo na história através de um amor que se faz serviço libertador e perpétuo, ela se coloca na fileira daqueles e daquelas que buscam amar através do serviço fraterno e gratuito. Maria é a mulher do avental, aquela que corre, apressadamente, para servir (cf. Lc 1, 39), sempre preocupada com o bem-estar das pessoas. O evangelista mostra que, grávida de Jesus, ela vive o ensinamento que o mesmo Jesus irá recordar a todos: o amor que se traduz na solidariedade. Assim sendo, Maria é missionária e protagonista do Reino.

Maria traz à lembrança a vida de tantas mulheres, discípulas e missionárias de Jesus, que exerceram o santo ministério diaconal na Igreja. Para ilustrar, eis alguns exemplos das diaconisas (servidoras) do povo de Deus: Beata Lindalva Justo de Oliveira, Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce, Irmã Dorothy Stang, Santa Rosa de Lima, Santa Luísa de Marillac e tantas outras mulheres que na Igreja e na sociedade lutaram por um mundo mais justo e fraterno. Hoje, tanto na Igreja quanto na sociedade, não são poucas as mulheres que constroem, incansavelmente, o Reino de Deus através das práticas da justiça e da caridade.

Maria ensina que a vida cristã só tem sentido através da prática da caridade, que se traduz no amor a Deus e ao próximo como a si mesmo. Por isso, mais do que venerá-la, a Igreja precisa aprender com ela a ser servidora do mundo. Mais do que celebrar a Assunção de Maria aos céus, a Igreja precisa, e com certa urgência, apreender do testemunho mariano o espírito diaconal, ou seja, a capacidade evangélica de servir ao próximo. Não se trata de servir nem de seguir a Maria, pois o cristão só serve a Deus na pessoa do próximo. Só seguimos a Jesus de Nazaré.

Algumas correntes espiritualistas que atuam na Igreja, principalmente a partir do surgimento do movimento neopentecostal, estão cometendo alguns desvios de ordem doutrinal. Fala-se num Reino de Maria como oposição ao Reino de Deus. Afirmam que somente por Maria se chega a Jesus, somente por meio dela é que se consegue a salvação oferecida por Jesus; que é inconcebível o seguimento a Jesus sem o auxílio e/ou proteção de Maria.

Duas verdades precisam ser ditas e que desmascaram tal absurdo: Primeira, que Jesus inaugurou o Reino de Deus e que não existem dois Reinos. Só existem o Reino de Deus e as forças do anti-reino. A devoção à Virgem Maria está em função do Reino. Não existe Reino de Maria, pois o seu Reino é o de Deus. Segunda, se afirmamos que somente por Maria se chega a Jesus, pergunto: Como ficam os cristãos que não veneram a Virgem Maria? Perdidos? Excluídos do convívio dos eleitos?

A devoção à Maria transformou a pobre mulher de Nazaré em Rainha. Penso que não podemos passar disso. Biblicamente, é quase que inaceitável aceitá-la como Rainha, pois ela não teve reino algum a seus pés e/ou às suas ordens. Jesus não aceitou publicamente o título de rei. Nunca se proclamou a si mesmo como rei. Se ele o foi, não o foi ao modo deste mundo. Ele não foi enviado por Deus para reinar neste mundo. Jesus retornou aos céus (ascensão) e, ao mesmo tempo, continua entre nós (Emanuel) e os impérios deste mundo continuam exercendo o seu poder. Jesus não tomou o poder de Herodes para si. Se a doutrina mariológica da Igreja pede-nos para venerarmos Maria como Rainha, então a veneremos enquanto aquela que disse SIM ao chamado divino. Assim sendo, não é correto igualar Maria a seu filho Jesus, pois também ela foi discípula dele, discípula do próprio filho. Isto, sim, é correto afirmar, crer e proclamar.

Maria não está no centro da mensagem cristã. Afirmar isso seria marginalizar a pessoa de Jesus, que é o centro da vida e da espiritualidade cristãs. Ela aponta para Jesus e pede-nos que o escutemos e o obedeçamos (cf. Jo 2, 5). Maria é modelo de obediência à vontade divina, e isto já a torna Bem-aventurada aos olhos de Deus e dos homens. Mesmo não compreendendo bem as coisas de Deus, conservando-as no coração (cf. Lc 2, 51), ela aceitou a proposta, acreditou na palavra de Deus e a praticou em sua vida.

Maria é um modelo de entrega total a Deus. Ela ensina-nos o serviço fiel a Deus na pessoa de nossos irmãos e irmãs que padecem neste mundo. Trata-se de um serviço simples, humilde, paciente e perseverante. Entregar-se sem reservas ao serviço divino, que é a caridade, significa aderir ao projeto de Jesus (Reino de Deus) até as últimas conseqüências. A devoção mariana com suas manifestações religiosas não pode ocupar o lugar do seguimento de Jesus de Nazaré, mas confirmá-lo e reforçá-lo. Se não nos legitimam no seguimento, tal devoção torna-se ilegítima, portanto, antievangélica.

Que o Espírito que fecundou o seio da Virgem Maria nos torne obedientes à Palavra de Deus, que é o próprio Cristo, iluminando-nos e orientando-nos na prática da solidariedade.


Tiago de França

Nenhum comentário: