domingo, 22 de agosto de 2010

Quem entrará no Reino de Deus?


“Afastai-vos de mim, todos vós, que praticais a injustiça!” (Lc 13, 27).

A obtenção da salvação trazida por Jesus sempre foi motivo de grande preocupação para muitas pessoas neste mundo. Não é pequeno o número daquelas que vivem pensando se serão salvas ou condenadas. Mas será que estas mesmas pessoas já pararam para se perguntar sobre a salvação que almejam? Em que consiste a salvação oferecida por Jesus? Há algumas idéias equivocadas sobre esta salvação, que precisam ser urgentemente corrigidas. Vejamos uma descrição breve.

Refere-se ao fato de que vivemos no corpo e no espírito. Somos constituídos de matéria e espírito (dualismo). Quando morrermos, a matéria ficará e o espírito subirá até Deus. Diante de Deus o espírito será julgado e receberá a sua recompensa: perdição (inferno, condenação) ou salvação (céu, paraíso). Por isso, a pessoa, neste mundo, precisa fazer o bem, pois Deus recompensa a cada um conforme as obras. Quanto mais coisas boas a pessoa fizer, mais chance terá de ser salva. Criou-se até a estória de que cada gesto concreto realizado neste mundo corresponde a um tijolo na construção da morada eterna. Quem não praticar o bem, já tem seu destino certo: o inferno!

Assim sendo, não é difícil de perceber que este é um modelo facilitado de se obter a salvação que vem de Deus, ou seja, bastam as obras praticadas isoladamente e todas as pessoas serão salvas. Mesmo concordando com o Apóstolo Tiago, que ensinou que sem as obras a fé torna-se morta (cf. Tg 2, 24), não podemos aceitar este modelo de salvação. E não podemos aceitar pelo seguinte motivo: Porque não exige compromisso com a construção do Reino de Deus. É um modelo de salvação desvinculado do Reino de Deus, pois nele as pessoas estão preocupadas com a salvação de suas almas. É uma salvação particular, individualista, cada pessoa vive a sua fé numa relação intimista com Deus (Deus e eu), sem nenhum compromisso com a situação do mundo.

A Igreja ensinou este modelo de salvação durante séculos. Até hoje as pessoas têm dificuldades de aceitar a verdade da salvação em Jesus Cristo relacionada diretamente com a construção do Reino de Deus. Se observarmos o ensinamento da Igreja (Magistério) ao longo da história até o Concílio Vaticano II, veremos que o tema Reino de Deus sempre foi esquecido e/ou marginalizado. Os temas pecado e purificação sempre vigoraram no ensinamento magisterial. A catequese sempre levou as pessoas a se preocuparem mais com o pecado do que com a vivência da solidariedade. Nesta linha de pensamento, a Celebração Eucarística é sacrifício de expiação dos pecados e não Ação de graças, e o padre é o sacerdote do sacrifício, homem do altar.

Tal corrente de pensamento sempre causou e causa medo nas pessoas, porque estas vivem na perspectiva da condenação; preocupam-se, excessivamente, com a absolvição dos próprios pecados, pois sabem que, se morrerem em pecado mortal, vão diretamente para o inferno. A idéia de pecado e de inferno causou o que podemos chamar de trauma espiritual na vida das pessoas. Inúmeros cristãos viveram toda a sua vida espiritual preocupados com a condenação eterna. Não lhes foi oferecida a oportunidade de pensar em outra coisa. Os que escutaram os sermões na Igreja pré-Vaticano II sabem contar melhor esta triste situação. Metia-se medo nas pessoas e no medo elas obedeciam fielmente às orientações doutrinais e morais da Igreja. Vivia-se uma obediência forçada, não-livre, portanto, antievangélica.

Na Igreja pós-Vaticano II apareceu o ainda significativo fenômeno do neopentecostalismo. Trata-se de uma corrente religiosa que gera pessoas altamente piedosas, dadas à devoção e aos sacramentos, mas que não passam disto. Devoção e sacramentos fazem a vida dos neopentecostais. Para estes, o que vale é a devoção à Virgem Maria e aos santos e a participação nos sacramentos, especialmente os da Eucaristia e da Reconciliação (no caso dos católicos). As Novas Comunidades de Vida Apostólica, com exceção de poucas, vem recuperar na Igreja as velhas concepções de pecado e de salvação acima descritas. Trata-se de um movimento pietista marcado por uma fé fervorosa, mas que se mostra descomprometida com as grandes causas do Reino.

Citemos algumas características deste movimento pietista católico e não-católico: Cultos e Missas longas, constituídas de músicas pouco litúrgicas e sermões fervorosos, que apelam para a emoção das pessoas; grandes marchas e caminhadas (exposição do povo na rua para mostrar quantidade em detrimento da qualidade); mercado religioso dos objetos da fé: bênçãos, água benta, óleos, CDs e DVDs; festas que tem por objetivo a mera arrecadação; Missas-shows; shows musicais acompanhados de gritos, lágrimas, êxtases, repousos no Espírito, efervescência; preocupação exacerbada com o Dízimo e outras arrecadações financeiras; confissão constante dos pecados e comunhões diárias da Eucaristia; culto às pessoas, preferencialmente aos padres e pastores que cantam e que simulam curas e prodígios etc.

Nada de todas estas coisas tem ligação com o Reino de Deus. Estas manifestações têm como objetivo o fortalecimento financeiro e ideológico das instituições religiosas através da edificação espiritualista das pessoas. Quem assimila e/ou está inserido neste jeito espiritualista de ser Igreja não está preocupado com a fome, com a violência, com a prostituição, com a ecologia nem com as demais causas do Reino de Deus. Antes, tais pessoas estão preocupadas com a purificação da alma, tendo em vista a salvação particular. Elas dizem que os problemas da sociedade são de responsabilidade direta e única dos governantes. A idéia de Igreja que prevalece é a de que a Igreja deve se preocupar com as realidades espirituais, com os problemas do espírito. Assim, o lugar do cristão é na igreja e o do padre é na sacristia.

No texto evangélico deste 21º Domingo do Tempo Comum (cf. Lc 13, 22 – 30) encontramos a verdadeira proposta de salvação oferecida por Jesus. Alguém pergunta: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” A pessoa que faz esta pergunta parece já ter certa idéia de salvação. Percebe-se também que a salvação não é algo fácil de conseguir. Jesus não responde sim nem não, mas fala da porta estreita, como que concordando com a idéia de que não é fácil ser salvo. Ele continua, depois de ter falado da porta e de certo dono de uma casa, que tem domínio sobre a porta, mencionando as figuras de Abraão, Isaac, Jacó e os profetas do Antigo Testamento. Jesus fala da participação destes no Reino de Deus. Depois ele fala da universalização da mesa do Reino, ou seja, dela participarão gente de todos os povos de todas as partes da Terra: do ocidente e do oriente, do norte e do sul.

Há uma pergunta que revela a proposta salvífica de Jesus neste texto: Por que quando perguntado sobre os que se salvam, Jesus menciona a participação no Reino de Deus? A resposta é divinamente simples: A salvação dos cristãos está na participação no Reino de Deus. Em outras palavras, o Reino de Deus é a nossa salvação. Em outra passagem evangélica, o próprio Jesus disse que ele próprio seria o Reino de Deus chegando ao mundo (cf. Lc 17, 21). Com isto, ele inaugura a construção do Reino. Ele veio a este mundo para construir o Reino. A Igreja, Povo de Deus e Assembléia dos chamados, tem como missão colocar-se no caminho de Jesus. O que se faz neste caminho é construir o Reino.

Portanto, a salvação oferecida por Jesus está no Reino de Deus. Ser salvo significa participar deste Reino. Quem será lançado fora do Reino de Deus? O desejo divino é a participação de todos no seu Reino, mas vejamos o que diz o texto: “Afastai-vos de mim, todos vós, que praticais a injustiça!” Com estas palavras, Jesus está dizendo que os que praticam injustiças não participarão do Reino de Deus. O que seriam estas injustiças? Seguramente, não são os nossos pecados de ordem pessoais. Expliquemos o porquê.

Os pecados que geram injustiças não são os de ordem pessoal. Estes costumam nos prejudicar no aspecto particular de nossa existência. Os pecados que geram injustiças são os chamados pecados estruturais, aqueles praticados pelos sistemas de poderes que regem este mundo. E estes sistemas são oriundos da inteligência humana. Eles não são frutos do acaso nem da vontade de Deus. Por trás dos sistemas opressores deste mundo encontramos pessoas que vivem à custa do suor e do sangue de tanta gente sofrida: São os ricos e poderosos, donos do capital opressor, que não se cansam de matar e explorar as pessoas. E já que estamos no ano eleitoral, não podemos esquecer que a grande maioria de nossos políticos se enquadra no número dos exploradores. São desses opressores que Jesus está falando.

Sem medo algum de errar, confiando na palavra de Jesus podemos afirmar com todas as letras: Os exploradores do povo de Deus, se não se converterem, serão lançados fora, não participarão do Reino de Deus. Hoje, estes exploradores são os primeiros em tudo, possuem de tudo, gozam de uma vida “feliz”. E aqueles que são hoje os últimos, os empobrecidos da sociedade, serão os primeiros no Reino de Deus. Os empobrecidos de todos os tempos e lugares são os bem-aventurados do Reino de Deus (cf. Mt 5, 1 – 12). Somente no Reino de Deus é que os empobrecidos terão plenamente a vida, porque em nossa realidade regida por interesses corporativistas, a sua dignidade é infinitamente ferida.

Então, fica claro o ensinamento de Jesus: Quem quiser participar do Reino de Deus, portanto, ser salvo, precisa praticar a justiça. Esta constrói verdadeiramente o Reino. Não se trata da justiça dos doutores da Lei e fariseus, a justiça dos homens, que mais explora do que promove, mas da justiça do Reino pautada na solidariedade para com o próximo, amor que se faz solidariedade. Nesta perspectiva, ser santo significa ser justo, e ser justo significa praticar o amor na solidariedade. Como dizia Dom Hélder Câmara, o profeta da justiça do Reino: “Não se trata de um amor de palavras, de aplausos, mas de atos, de gestos concretos”. Apesar de suas proféticas e sábias palavras, das multidões que o aplaudiam, Dom Hélder Câmara foi e continua sendo um dos modelos de solidariedade evangélica na opção preferencial pelos pobres.

O Espírito, enviado por Deus a este mundo, é a força divina que está atuando na vida cristã. Este mesmo Espírito nos faz instrumentos do amor gratuito e solidário de Deus. Peçamos, pois, ao Deus da vida e da liberdade que nos conduza com seu Espírito no caminho de Jesus, caminho da justiça que se manifesta na solidariedade.


Tiago de França

2 comentários:

Anônimo disse...

Tiago, estou passando para dizer que foi muuuito bom este fim de semana com você e nossos
Amigos vicentinos.
Obrigada por todo!!!

Tiago de França disse...

Apesar de não ter se identificado, agradeço à leitora pelo recado. Também sinto-me feliz em saber que contribuí com a formação dos vicentinos, despertando-os para uma visão crítica da Igreja, da sociedade e si mesmos.
Abraços!