segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O significado dos 350 anos da morte de São Vicente e Santa Luísa (1660 - 2010)


“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres” [i].

A Família Vicentina em toda a Igreja tem a alegria de celebrar o Jubileu dos 350 anos da morte de São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac (27 de setembro de 2009 a 27 de setembro de 2010). De fato, é uma data feliz porque é uma oportunidade de não somente fazer a memória dos santos fundadores, mas de rever os passos dados durante todos estes anos. A presente reflexão pretende abordar, brevemente, sobre algumas intuições do carisma vicentino que traduzem com perfeição e ousadia profética o significado deste Jubileu. Buscar o significado da morte dos fundadores da Família Vicentina significa retomar a centralidade do carisma, a fim de que o mesmo permaneça aceso na vida da Igreja e do mundo.

O carisma vicentino

Ninguém melhor do que São Vicente para falar claramente sobre o sentido verdadeiro do carisma. Aos Padres da Missão ele diz:


Fazer os pobres conhecerem a Deus, anunciando-lhes Jesus Cristo, dizer-lhes que
o reino dos céus já chegou e que este reino é para os pobres. Como isto é
grande! E que fomos chamados para ser companheiros e para participarmos dos
planos do Filho de Deus, é algo que supera nossa compreensão. Que! Fazermos...
não me atrevo a dizer sim; evangelizar os pobres é um serviço tão grande, que é
por excelência o ofício do Filho de Deus! Somos instrumentos para que o Filho de
Deus continue fazendo no céu o que fez na terra. Que grande motivo para louvar a
Deus, meus irmãos, e agradecer incessantemente esta graça.
[ii]


Pontuemos alguns aspectos desta citação vicentina:

1) Fazer os pobres conhecerem a Deus, anunciando-lhes Jesus Cristo. Anunciar a pessoa de Jesus e seu Evangelho: eis a missão de todo cristão. Com isto, percebemos que São Vicente de Paulo era um homem sintonizado com o Evangelho e profundamente cristológico. Os seus escritos revelam que sua preocupação fundamental era o anúncio da Boa Notícia aos pobres. Era um homem preocupado com os pobres, a exemplo de Jesus. O santo fundador recorda à Igreja o anúncio do Evangelho aos pobres numa realidade em que estes eram praticamente esquecidos.[iii] Tendo em vista a evangelização dos pobres, São Vicente funda as confrarias da caridade (1617), a Congregação da Missão (1625) e a Companhia das Filhas da Caridade (1633). Estas Comunidades nasceram com destinação especial e fundamental: os pobres.

2) Dizer-lhes que o reino dos céus já chegou e que este reino é para os pobres. O Evangelho mostra claramente que Jesus veio a este mundo para inaugurar o Reino de Deus. Na citação de Lc 4, 18 encontramos as primeiras palavras de Jesus ao assumir publicamente a missão. O autêntico sentido do texto revela que o Ungido do Pai[iv] assegura que a Boa Notícia é para os pobres. Jesus faz tal proclamação porque sabia que os pobres sempre foram as maiores vítimas das opressões produzidas pelos sistemas que governaram e governam este mundo. É justamente por isso que a Igreja latino-americana tomou a iniciativa de tomar para si esta opção de Jesus: opção preferencial pelos pobres.[v]

3) Evangelizar os pobres é um ofício tão grande, que é por excelência o ofício do Filho de Deus. São Vicente nos ensina que ser missionário é participar da missão do Filho de Deus, ou seja, evangelizar. Evangelizar, segundo São Vicente, é servir aos pobres: “Não há melhor modo de assegurar nossa felicidade eterna do que viver e morrer no serviço dos pobres, nos braços da Providencia e numa verdadeira renúncia a nós mesmos em seguimento de Jesus Cristo".[vi] Este viver e morrer no serviço dos pobres, para São Vicente, significa evangelizar. Assim, não podemos entender evangelização fora do serviço dos pobres. Com mais ênfase podemos afirmar: Se não há serviço afetivo e efetivo aos pobres não há evangelização. O chamado de Deus é para que todos os batizados sejam continuadores da ação missionária de Jesus, participantes de sua missão.

Fidelidade ao carisma

Em Paris, França, entre os dias 18 de junho e 16 de julho do corrente ano, a Congregação da Missão celebrou a sua 41ª Assembléia Geral. Eis o que diz o Documento conclusivo:


Fidelidade a nosso carisma significa continuar o amor de Cristo e o serviço dos
Pobres. Os Pobres chegaram até nós, de modo impactante, através dos vídeos que
marcaram cada sessão. Os Pobres não são meras categorias, são pessoas reais, com
necessidades e sofrimentos reais. Falam-nos porque esperam que os escutemos, que
ouçamos suas histórias e não lhes viremos as costas. Nossa resposta irá além do
minuto de interiorização, da oração pessoal e das celebrações litúrgicas. Como
São Vicente, que contemplou o rosto de Cristo nos Pobres de seu tempo e procurou
remediar seus sofrimentos, também nós devemos ser suficientemente valentes para
partilhar sua pobreza. Movidos pelo amor, iremos aonde os Pobres nos chamarem,
inclusive aonde outros não se atrevem a ir, e sempre encontraremos formas
criativas para remediar as necessidades deles.
[vii]


A humildade leva-nos ao reconhecimento da condição humana e suas inerentes fraquezas. Partindo desse pressuposto, é preciso admitir que há uma crise carismática em todas as famílias religiosas que formam a Igreja. Com muita facilidade e de maneira pecaminosa, os carismas dos fundadores são esquecidos e/ou relativizados em nome de algumas releituras e atitudes que se mostram cada vez mais equivocadas. Por outro lado, é preciso admitir, também, que há significativo esforço por parte de muitos membros das famílias religiosas para reacender ou ressuscitar tais carismas, tão necessários para a construção do Reino de Deus. Os carismas que visam tal construção são verdadeiros frutos da ação do Espírito Santo na vida de mulheres e homens que se deixaram conduzir pelo amor que se faz serviço gratuito e generoso ao próximo.

No caso da Família Vicentina, composta por dezenas de ramos chamados ao serviço fraterno dos pobres, trata-se de zelar por aquilo que diz a citação acima. Frisemos, pois, alguns pontos relevantes para nossa reflexão, a saber:

1) Fidelidade ao nosso carisma significa continuar o amor de Cristo e os serviço dos Pobres. Continua-se o amor de Cristo no serviço dos Pobres, ou seja, não podemos entender o amor de Cristo fora do serviço aos Pobres, pois Jesus não fez outra coisa em sua passagem no mundo senão servir os pobres.[viii] Nenhum ramo da Família Vicentina pode se deixar levar pela onda espiritualista que invadiu a Igreja de nossos dias, afastando-a do seguimento de Jesus de Nazaré. Os espiritualismos produzem superficialidade e alienação e é um mal constante na Igreja.[ix] Trata-se de uma alienação que distancia do serviço e da “vivência” de uma fé sem caridade. Sem esta, a Família Vicentina perde o seu sentido de existir na Igreja.

2) Como São Vicente, que contemplou o rosto de Cristo nos Pobres de seu tempo e procurou remediar seus sofrimentos, também nós devemos ser suficientemente valentes para partilhar sua pobreza. A conversão de São Vicente aconteceu no encontro com o pobre.[x] Para ele, o pobre foi o lugar de encontro com Cristo. Hoje, a própria Igreja resolveu tentar assumir o pobre como lugar teológico e declarou que a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica[xi] da Igreja. Para que tal opção se torne afetiva e efetivamente presente na vida da Família Vicentina e na vida da Igreja é necessário que sejamos suficientemente valentes, ou seja, trata-se de uma opção de vida. Optar pelos pobres exige coragem e ousadia profética, pois é uma missão difícil, que exige sacrifícios e renúncias e, muitas vezes, a entrega total da própria vida.[xii]

Participar da pobreza dos pobres é um desafio imenso, pois o mundo demoniza a pobreza e a produz constantemente. São Vicente e Santa Luísa nos ensinam que participar da missão de Jesus é participar da vida dos pobres e esta participação consiste no despojamento total de nós mesmos para o seguimento de Jesus evangelizador dos Pobres. Em termos práticos significa abraçar um estilo de vida humilde e simples como o dos pobres; participar de suas lutas e esperanças; reivindicar, defender e promover seus direitos e sua dignidade; denunciar as injustiças que lhes são cometidas e celebrar o cotidiano desafiador de suas vidas. Isto significa colocar-se ao lado dos pobres e com estes trabalhar na construção do Reino, que é lutar por uma sociedade onde todos tenham vida plena.

Fidelidade ao carisma é não perder de vista a verdade incontestável de nossa opção preferencial pelos pobres. Neste sentido, há certa destinação exclusiva na missão, ou seja, somos chamados somente para o serviço dos pobres. Numa reflexão muito lúcida, atual e oportuna, o Pe. Getúlio Mota Grossi, C.M. prioriza esta questão.[xiii] Sinteticamente, podemos afirmar que a fidelidade ao carisma será mantida no serviço dos pobres. Se estes forem marginalizados na reflexão e na prática eclesial da Família Vicentina, o carisma, certamente, deixará de existir. Mas o Espírito do Senhor, que faz a missão acontecer, não permitirá que isto aconteça, pois o projeto de Deus ultrapassa os limites do homem e da história.

O que o Jubileu diz à Igreja

A Celebração da morte de São Vicente e Santa Luísa tem uma profunda mensagem para a Igreja. A leitura histórica da vida do santo e da santa remete-nos à caridade. Esta se encontra na centralidade da mensagem de Jesus: caridade que constrói o Reino.[xiv] O testemunho de São Vicente e Santa Luísa chama a atenção da Igreja para a caridade para com os pobres. Trata-se de um sério convite: reavivar a chama do amor que defende e promove a dignidade da pessoa humana. A caridade não vê o outro como objeto, alguém que não pode nem sabe de nada, mas vê-lo como filho amado de Deus que nasceu para viver e construir o bem. O carisma da caridade vem nos recordar o outro, lembra-nos que não somos uma ilha no mundo e que a fraternidade é uma exigência evangélica que se manifesta no seguimento de Jesus de Nazaré.

Diante de uma sociedade que cultiva nas pessoas o egoísmo, o competitivismo, o isolamento, o ódio, o preconceito, a intolerância e tantos outros sentimentos destrutivos, a Igreja precisa aprender a ser cada vez mais acolhedora e misericordiosa. A frieza no ser humano está se tornando tão presente e comum que quando encontramos pessoas dadas à caridade para com os que padecem os males da vida cotidiana, principalmente a fome, ficamos admirados com tais exemplos. O ser humano tornou-se tão perigoso que há pessoas que não conseguem ser caridosas com o próximo, pois têm medo da sua reação imediata. Isto leva ao individualismo e à superficialidade da fé, ou seja, as pessoas procuram viver, isoladamente, a sua fé assumindo atitudes anticomunitárias. Outras pessoas comportam-se assim porque julgam ser o caminho mais fácil.

O outro, segundo São Vicente e Santa Luísa, é o pobre. Este é empobrecido pelo sistema opressor vigente, que explora e mata, sistematicamente. Mais do que em outras épocas, os empobrecidos estão submetidos a sofrimentos cada vez mais desumanos. Assistimos a certa “sofisticação” da crueldade, mata-se sutil, cruel e exacerbadamente a dignidade da pessoa, desfigurando-a. Para ilustrar, basta-nos ver o número assustador de jovens assassinados nos grandes centros urbanos, envolvidos com as drogas e a prostituição. A maioria deles é pobre. Outro vergonhoso exemplo da criminalização do pobre é o sistema carcerário brasileiro: Quase meio milhão de pobres encarcerados no Brasil, muitos sobrevivendo a um estado animalesco de vida nas prisões. No mundo, segundo os dados recentes da ONU, aproximadamente 925 milhões de pessoas passam fome todos os dias.

A Celebração deste Ano Jubilar vem dizer à Igreja: Volte-se para os pobres! Voltar-se para os pobres é assisti-los, material e espiritualmente. Se os empobrecidos não são evangelizados, as solenes liturgias realizadas nas igrejas perdem seu sentido, tudo não passa de aparência e mera satisfação dos sentidos. Não se pode falar de santidade fora da evangelização dos empobrecidos, pois o Cristo nos santifica neles; é servindo aos empobrecidos que encontramos a santidade como dom gratuito de Deus. Não existe santidade fora do amor que se faz doação, fora deste amor não existe salvação para o gênero humano nem para toda a criação.

Conclusão

A prática do carisma vicentino constrói o Reino de Deus. Assim, a Família Vicentina na Igreja deve ser um sinal da ação amorosa do Deus que não quer a morte do pecador, mas que o mesmo se converta e viva.[xv] A Celebração do Jubileu motiva-nos a continuarmos de “mangas arregaçadas” na vinha do Senhor. Os empobrecidos estão aí, diante de nossos olhos, não podemos virar-lhes as costas.[xvi] O lugar dos empobrecidos é o último lugar. Ir ao seu encontro é uma exigência evangélica desafiadora, pois quase ninguém quer ir.

A experiência missionária de Jesus revela que o mesmo nasceu, viveu e morreu no meio dos empobrecidos de seu tempo. Revela, ainda, que sempre estava rodeado daquelas pessoas mal afamadas da comunidade.[xvii] Permanecer junto dos empobrecidos, participando de suas vidas é exigência fundamental do exercício da caridade. A Igreja é chamada a permanecer junto dos empobrecidos e se deixar evangelizar por eles, porque “aquele que foi evangelizado, por sua vez, evangeliza”. [xviii]

Concluo esta reflexão com uma prece vocacional do próprio São Vicente e juntamente com ele peço ao Espírito do Senhor que não abandone a Igreja Povo de Deus à mercê da desesperança e do desamor:

Senhor, enviai operários à vossa Igreja,
mas que sejam bons;
enviai bons missionários, tais como devem ser,
para bem trabalhar em vossa vinha,
pessoas, ó meu Deus,
que sejam desapegadas de si mesmas,
de suas próprias comodidades e dos bens terrenos,
que sejam mesmo pouco numerosos,
mas sejam bons de verdade.
concedei, Senhor, esta graça à vossa Igreja.
[xix]

Tiago de França da Silva

Notas:
[i] Lc 4, 18.
[ii] Coste – XI, 387.
[iii] Na época de São Vicente a maioria dos padres estava em Paris, pois se recusavam a trabalhar nas pequenas cidades e povoados pobres.
[iv] O Messias esperado, anunciado pelos profetas.
[v] Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, n. 392.
[vi] Coste – III, 359.
[vii] Documento conclusivo da 41ª Assembléia Geral da Congregação da Missão, n. 3.
[viii] Lc 4, 42 – 44.
[ix] Para um melhor aprofundamento sobre o problema do crer no mundo moderno ver LIBÂNIO, J.B. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo: Paulinas, 2003.
[x] Quando decidiu ser padre, Vicente de Paulo não tinha boas intenções para com o sacerdócio, pois almejava ficar rico e ajudar sua pobre família.
[xi] Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, n. 392 e 393.
[xii] O testemunho de vida das Irmãs Dorothy Stang e Lindalva Justo de Oliveira (Filha da Caridade) é um exemplo sublime disso.
[xiii] GROSSI, Getúlio Mota. Um místico da Missão, Vicente de Paulo. Contagem: Santa Clara, 2001, cap. 2.
[xiv] Mt 5, 43 – 48; 1 Cor 13, 13.
[xv] Cf. Ez 33, 11; Lc 15, 32.
[xvi] Documento conclusivo da 41ª Assembléia Geral da Congregação da Missão, n. 3.
[xvii] Cf. Lc 15, 1 – 2.
[xviii] Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi do Papa Paulo VI sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1999, n. 24.
[xix] Coste – XI, 357. In: Congregação da Missão no Brasil. Orações e Invocações. Curitiba: Gráfica Editora Vicentina Ltda. EPP, 2004, p. 87 – 88.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Bíblia, Palavra de Deus para a vida do povo


“Tua Palavra é lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho” (Sl 119, 105).

À maneira de introdução

No mês de setembro de cada ano, a Igreja prioriza a reflexão sobre o sentido e o valor da Palavra de Deus na vida eclesial. O objetivo é resgatar a leitura e a interpretação das Escrituras Sagradas na caminhada da Igreja. Nesta, há o ministério da Palavra, um serviço querigmático que lhe dá sentido e existência. Ou seja, a Igreja nasceu para o anúncio da Boa Nova de Jesus (cf. Mt 28, 19). O Concílio Vaticano II veio recordar o valor das Sagradas Escrituras: “[...] A Sagrada Escritura dos dois Testamentos, são como que um espelho no qual a Igreja, peregrina na terra, contempla a Deus, de quem tudo recebe, até chegar a vê-lo face a face tal qual ele é (cf. 1Jo 3, 2)” (Dei verbum, n. 7). A contemplação divina passa pela leitura orante da Palavra de Deus, leitura pautada na íntima ligação entre fé e vida. É Deus que se revela a si mesmo na sua Palavra. Em Cristo, plenitude da revelação, Deus se encarna na história e renova a esperança do povo que caminha rumo à libertação plena, o Reino de Deus.

O acesso à Palavra

Antes da Reforma Protestante do século XVI, os católicos não tinham acesso à Bíblia. Com Martinho Lutero, a Bíblia vai se tornando Palavra de Deus para o povo. Antes disso, toda a Bíblia estava escrita em latim, reservada aos estudiosos desta língua. Nas liturgias, o povo escutava, mas não compreendia nada. A compreensão passava pelo sermão do padre. Assim, não se sabia se o padre estava falando a verdade ou negando a verdade das Escrituras. Tal situação perdurou até o Concílio Vaticano II. Neste, o latim deixou de ser obrigatório, e a Palavra de Deus foi traduzida em várias línguas.

Mesmo com as traduções na língua de cada povo, os católicos mais do que os não-católicos, continuam não tendo acesso à Palavra de Deus. Muitos têm a Bíblia, mas não fazem leitura nem meditação alguma sobre a mesma. No caso dos não-católicos, muitos lêem, mas desconhecem o autêntico conteúdo. A verdade é que a maioria dos cristãos desconhece a Palavra de seu Deus. Aqui percebemos e entendemos a ingenuidade da fé de muita gente, pois como posso ter uma fé madura e profunda se desconheço a Palavra de Deus?...

Aqui aparece a situação daquelas pessoas que não sabem ler. Elas desconhecem a Palavra de Deus? Algumas, sim; outras, não. A leitura do texto não é a única maneira de ter acesso à Palavra de Deus. Nas comunidades primitivas do Cristianismo, a evangelização se dava pela transmissão oral. A Bíblia é fruto das traduções orais do povo de Deus. Uns contavam os fatos, outros escreviam. É por isso mesmo, que a Bíblia não pode ser vista como um livro científico nem de histórias. Quem procurar ler a Bíblia do ponto de vista científico poderá até se escandalizar, pois a cientificidade pode mostrar, claramente, sérias contradições textuais e históricas. A Bíblia está para ser lida, interpretada e rezada. É a Palavra do Deus que se revela na história de seu povo. Ela foi escrita para mostrar a ação misericordiosa de Deus junto a seu povo. A ação divina não pode ser medida pela visão científica dos dados históricos nem por meio da razão instrumental criada pelo homem.

Instrumento da libertação integral

Deus falou e fala tendo em vista a liberdade da pessoa. A Bíblia revela a ação libertadora de Deus no mundo. Por isso, Deus é libertador, e sua palavra é libertadora. Assim, peca contra o Deus libertador do gênero humano e da Criação aquela pessoa que se utiliza de sua Palavra para alienar e escravizar. O anúncio da Palavra visa à humanização do ser humano, não sua escravização. Se tal anúncio não tem como conseqüência a libertação integral da pessoa, então não pode ser considerado autêntico. Mais do que em outras épocas, a Palavra de Deus está sendo cada vez mais falsificada. Esta falsificação da Palavra passa pelo ocultamento da verdade e o anúncio desmedido da mentira, que aliena e causa confusão. As pessoas mentem, descaradamente, com a Bíblia na mão.

Trata-se de uma mentira sistemática, ou seja, elaborada de tal forma que se confunde com a verdade evangélica. A verdade das Escrituras desmascara a mentira sistemática e sistêmica, ou seja, desmascara a mentira intencional das pessoas, das instituições e do sistema opressor. A experiência de Jesus de Nazaré fala bem desta perspectiva. Sendo ele mesmo a Verdade e se utilizando da verdade dos gestos e das palavras, Jesus denunciou a mentira das tradições judaicas e do sistema opressor do Império romano, a falsa e opressora ordem social estabelecida e legitimada pelas tradições e pelas leis judaicas. Conseqüentemente, foi brutalmente assassinado pelos respectivos responsáveis pelas Leis: a religião oficial e o injusto tribunal cívico-religioso da época. A morte de Jesus não pode ser entendida pela via da predestinação, mas como conseqüência da adesão ao projeto libertador de Deus.

Desta forma, o compromisso da Palavra de Deus é com a libertação das pessoas, em todo tempo e lugar. Comprometer-se com a Palavra de Deus é assumir com a vida o projeto libertador de Jesus, o Reino de Deus. Portanto, o/a missionário/a da Palavra é alguém que se coloca a serviço da libertação integral das pessoas, a serviço do bem do outro. Estar a serviço da libertação do outro é permanecer atento às necessidades dos que padecem neste mundo. Somente quem está atento às necessidades do outro é quem está apto a viver o amor (caridade, solidariedade). A vivência desta passa pela sensibilidade e esta passa pelo estar atento. Trata-se de certa vigilância permanente em relação ao padecimento das vítimas do sistema opressor que reina no mundo de hoje. A Palavra gera a caridade.

Instrumento da unidade cristã

Eis o que diz o n. 247 do Documento de Aparecida: “Encontramos Jesus na Sagrada Escritura, lida na Igreja. A Sagrada Escritura, ‘Palavra de Deus escrita por inspiração do Espírito Santo’(DV 9), é, com a Tradição, fonte de vida para a Igreja e a alma de sua ação evangelizadora. Desconhecer a Escritura é desconhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo”. O Documento está ensinando que a Sagrada Escritura é um dos lugares de encontro com Jesus Cristo. Quando lemos e meditamos a Palavra estamos nos encontrando com Jesus. Este deseja a unidade dos cristãos (cf. Jo 17, 21). Como explicar o fato de que os cristãos, professando a fé no mesmo Deus e lendo a mesma Escritura Sagrada, serem tão desunidos?...

Até hoje a Palavra não conseguiu plenificar a unidade dos cristãos. No mundo, os cristãos são um verdadeiro exemplo de gente desunida. É vergonhoso afirmar, mas é a verdade! Penso que, enquanto os cristãos não se unirem, não conseguirão dialogar com as demais religiões, pois o diálogo com as outras religiões pressupõe, em primeiro lugar, diálogo entre os próprios cristãos. Somos um povo desunido e que se desune cada vez mais. Quanto mais se multiplicam as denominações cristãs, mais desunidos se tornam os cristãos. Na maioria das vezes, a Bíblia é utilizada como tentativa de legitimação de tal desunião. O resultado disso é a confusão que causa conflitos e descrenças cada vez mais acentuadas. Muitas pessoas não aceitam a fé cristã por causa das escandalosas divisões entre os cristãos.

Por outro lado, encontramos o corporativismo que está na base das instituições religiosas. A busca e a manutenção de interesses pessoais e grupais têm causado o descrédito da religião. As instituições brigam até as últimas conseqüências pela defesa e promoção de seus próprios interesses. Estas brigas envolvem muita corrupção e morte: roubos, sonegações, adulterações, perseguições, manipulação, lavagem de dinheiro, assassinatos etc. Neste contexto de confusão e de interesses corporativistas, a Palavra de Deus é totalmente deixada de lado. Ela não tem lugar nestas circunstâncias, pois nelas não há valores evangélicos que geram vida e dignidade, mas somente as forças do anti-Reino que geram a morte do ser humano.

Os cristãos precisam aprender que a Palavra de Deus constrói a caridade e a verdade, porque é a sublime revelação de um Deus que é amor e verdade. Acreditar no Deus que a Bíblia revela é procurar viver, apesar da condição humana, os valores da caridade e da verdade. Se estas estiverem presentes nas relações entre os cristãos, conseqüentemente, teremos a tão sonhada unidade cristã. Somente é cristão aquele que pautar toda a sua existência na verdade e na caridade, do contrário, são pessoas que se iludem umas às outras numa divisão sem fim. Só há verdade unidade na caridade e na verdade.

Instrumento de conversão

A Palavra de Deus orienta-nos para a conversão. Ela foi escrita tendo em vista a conversão do ser humano para o Reino de Deus, ou seja, a Bíblia nos ensina o caminho de Jesus, e este caminho tem como conseqüência o Reino de Deus. Tudo converge para o Reino de Deus. A pessoa começa a se converter quando se decide pelo seguimento de Jesus de Nazaré. Tal seguimento é o que chamamos de processo de conversão. Não existe conversão fora do caminho de Jesus. Ninguém se converte seguindo fielmente os preceitos da religião, mas colocando-se no caminho de Jesus. É importante insistir nesta importante questão porque é comum encontrarmos pessoas que seguem fielmente os preceitos da religião (participação no culto, contribuição do Dízimo, participação nos eventos religiosos, devoção aos santos, confissões e comunhões constantes etc.), mas que são incapazes de se colocar no caminho de Jesus através da autêntica caridade (solidariedade).

A Palavra nos ensina que a conversão de nossa vida é o voltar-se para a vida do outro, ou seja, ver o Deus de Jesus na vida do outro. Ir ao encontro das reais necessidades dos que sofrem e assisti-los, gratuita e fraternalmente; buscar participar da vida dos empobrecidos, feridos em sua dignidade; denunciar as injustiças que geram miséria e morte; comprometer-se, afetiva e efetivamente com a transformação da sociedade, visando um mundo mais humano. Isto é conversão. Esta é uma atitude madura e, portanto, consciente e livre de lutar pela vida do mundo. A conversão nos leva a sermos continuadores da ação missionária de Jesus.

Vive-se na Igreja uma equivocada idéia de conversão. A maioria dos neopentecostais vê a conversão como uma experiência pessoal de Deus. O conceito está correto, mas a prática se mostra equivocada. A prática tem mostrado a conversão como algo mágico na vida das pessoas. Estas participam de um momento de oração, de um retiro, de uma reunião ou culto, de um curso ou orientação, e ao terminarem estas experiências momentâneas e isoladas afirmam que já estão convertidas. Afirmam, iludindo a si mesmas e aos outros: “Encontrei Jesus! Estou salvo! Sou um convertido!” Não sabem o que estão falando, somente sabem que se sentem bem. O sentir-se bem está na base das atuais “conversões” de muitas pessoas. São “conversões” que não visam a comum-unidade nem a justiça do Reino de Deus.

Para ilustrar o conceito de conversão que a Palavra nos ensina e que foi acima explicitado cito um exemplo de conversão na Igreja: A vida e a ministério episcopal de Dom Hélder Pessoa Câmara (Fortaleza – CE,1909 /Recife – PE,1999). Dom Hélder se colocou no caminho de Jesus e iniciou seu processo de conversão quando descobriu Jesus na pessoa dos pobres. Esta descoberta radical ocorreu aos 56 anos de idade, quando era Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, no encontro com as necessidades dos pobres das grandes favelas daquela cidade. Aos pobres serviu até o último dia de sua vida, vivendo pobre, no meio dos pobres e para os pobres. Tornou-se o modelo de Bispo que a Igreja precisa ter. Homem de oração e ação, contemplativo na ação, Dom Hélder foi um autêntico cristão, ouvinte e praticante da Palavra do Deus libertador. Foi justificado pela caridade vivida na verdade, morreu humildemente santo.

À maneira de conclusão

A Bíblia é a palavra de um Deus que quis ser amigo do homem encarnando-se neste mundo para a salvação de todos. Todo cristão é chamado a ser um anunciador da bondade, da justiça e da misericórdia deste Deus amigo. O Espírito Santo, que conhece as profundezas de Deus e sonda todas as realidades humanas e mundanas revela-nos a face amorosa deste Deus agindo, cotidiana e incansavelmente, no meio de nós. Este mesmo Espírito, na liberdade dos filhos e filhas de Deus, age em nós e por meio de nós para a libertação integral da pessoa e do mundo. Concluo esta breve reflexão implorando ao Espírito, força e presença amorosa de Deus em nós e entre nós, que nos torne sensíveis e disponíveis para vivermos o mandamento maior, a lei do cristão, o fundamento da nossa vida: O amor a Deus e ao próximo como a nós mesmos. Anunciemos isto às pessoas e ao mundo para que o Reino de Deus vá se tornando uma realidade no meio de nós.

Tiago de França da Silva
Belo Horizonte – MG, 19/ 09/2010.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Servir a Deus ou ao dinheiro


“Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16, 13).

O texto evangélico deste 25º Domingo Comum (cf. Lc 16, 1 – 13) trata do perigo do dinheiro na vida cristã. Durante o texto Jesus fala de alguns temas interessantes, a saber: atitude prudente na administração (vv. 1-8), uso da riqueza em favor dos pobres (v. 9), a fidelidade nas pequenas coisas (vv. 10-12) e a escolha entre o serviço a Deus e o serviço às riquezas (v.13). O atual momento político-eleitoral é muito oportuno para se falar destes temas. A situação atual exige um olhar crítico e conscientizador, uma vez que todos somos chamados a contribuir na construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

Deus criou todas as coisas boas para o bem-estar do ser humano. Tudo foi posto para todos. Com a formação das sociedades, sistemas e organizações humanas, alguns foram constituídos governantes das nações. As sociedades são regidas pelos poderes legitimamente constituídos a partir do consenso das leis e dos acordos entre os humanos. O homem estratificou a vida social.

Na administração daquilo que é público, ou seja, do que é do povo, sempre existiram mulheres e homens que colocaram seus próprios interesses e/ou os interesses grupais (corporativismo) acima do bem comum. Quando isto ocorre temos a corrupção do bem comum, ou seja, o bem comum é esquecido e a sociedade vira um caos. Daí decorre crises que geram conflitos e desordens. Quando o Governo e demais autoridades juridicamente constituídas perdem a credibilidade, aquilo que chamam de ordem social fica comprometida. Torna-se, então, comum o surgimento incontrolável de crises seguidas de crises cada vez mais agravantes, que prejudicam toda a população, principalmente a parcela empobrecida da sociedade.

No texto evangélico aparece um administrador desonesto, e sua desonestidade é marcada pela esperteza: “Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz”, afirma Jesus. Os espertos são aqueles que possuem habilidades, manhas, astúcia. “O mundo é dos espertos”, diz um ditado popular. As pessoas espertas são dadas às vantagens em si mesmas, que se preocupam em ter vantagens em tudo, que não admitem perder nada pra ninguém. No mundo de hoje, mais do que em outras épocas, para muita gente, ser esperto é uma questão de sobrevivência. Para outros, ainda, a esperteza ajuda na corrupção. A maioria de nossos políticos é um forte exemplo de mulheres e homens espertos, que se utilizam da esperteza para mentir, manipular e roubar o que é do povo. Desviam os recursos públicos, descaradamente.

As pessoas ricas são conhecidas pelo que tem e não pelo que são. Elas fazem questão de mostrar que tem fortunas. Quem se recorda do “deputado do castelo”? O homem é tão rico que fez um castelo para si, dada a sua mania de grandeza e apego aos bens. Quem se recorda de Michael Jackson? Levou até as últimas conseqüências o apego aos bens materiais e a egolatria (adorar-se a si mesmo). E há quem diga que ele continua sendo um exemplo de vida a ser seguido! Os atores e atrizes de Hollywood são exemplos de pessoas dadas às riquezas. Chega um momento na vida em que alguns se sentem tão mal em meio a tanto luxo e riqueza que resolvem reorientar a vida na perspectiva dos pobres, como ocorreu com Angelina Jolie, que se tornou embaixatriz da ONU após adotar crianças africanas com o esposo Brad Pitt.

O Evangelho vem falar da necessidade de se usar o dinheiro a favor da promoção da dignidade humana. Não é pequeno o número de pessoas que precisariam de um pequeno investimento para sair da triste situação de miséria. O dinheiro deve ser instrumento de oportunidade para a vida das pessoas, não mero meio de satisfação desenfreada dos desejos. O homem precisa aprender a educar seus próprios desejos, a fim de que possa se tornar cada vez mais livre em relação a si mesmo e às riquezas. A satisfação exacerbada dos desejos causa escravidão e miséria no ser humano. Há pessoas muito ricas, materialmente, mas que são paupérrimas, espiritualmente. Quando falo espiritualmente, não estou falando de pertença à religião ou crença numa entidade superior, mas de paz de espírito, tranqüilidade, bem-estar mental, saúde do espírito.

Jesus fala também de fidelidade nas pequenas coisas da vida. Esta nos exige que sejamos responsáveis por algumas coisas básicas, a fim de que se possa viver bem a vida. Uma vida saudável é uma vida pautada na responsabilidade. Este é um valor que se encontra em crise na sociedade atual. Está na moda ser irresponsável! Encontramos exemplos alarmantes de irresponsabilidade em todos os campos da vida humana: na economia, na política, na saúde, na educação, na família, na cultura, na religião etc. As pessoas estão tendo cada vez mais dificuldade de serem responsáveis pelas atividades que constroem uma sociedade sadia para todos. A falta de responsabilidade trava o progresso integral e autêntico da vida humana. Pessoas irresponsáveis não são dignas de confiança, porque não tem coragem de assumir a vida e suas respectivas exigências.

Finalmente, o Evangelho vem falar de uma séria escolha: a de servir a Deus ou ao dinheiro. A conjunção ou designa alternativa ou exclusão, segundo o dicionário Aurélio. “Vós não podeis...”, afirma, categoricamente, Jesus. O dinheiro tem sido o grande problema da humanidade, por causa do mesmo cometem-se atrocidades. O dinheiro tem contribuído e muito para a desumanização do ser humano, pois leva à competição, ao apego, à desonestidade, e a tantos outros crimes. Não são poucas as pessoas brutalmente assassinadas por causa do dinheiro. No caso dos políticos mencionados nos recentes escândalos e de tantos outros ainda não descobertos, a sede (ambição) pelo dinheiro é incontrolável. O dinheiro faz perder o medo e a vergonha, pois desviam o que é do povo com a certeza da impunidade.

Assim sendo, é urgente que cada cidadão, principalmente aquele que vai exercer o direito e o dever do voto nas urnas, seja responsável com o seu voto. Votar é uma questão de compromisso com o bem comum da sociedade. Ao votar, não podemos pensar somente em nós mesmos, mas no bem do outro, principalmente no bem daqueles que mais precisam dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. Três questões são essenciais quando se fala de eleições: 1. Que o/a candidato/a tenha história, tenha vida pregressa comprometida com o bem comum; 2. Que o/a candidato/a tenha propostas sérias (compatíveis) e que sejam apresentadas com seriedade e abertura; 3. Que o/a candidato/a demonstre, claramente, preocupação sincera com a situação dos empobrecidos e marginalizados da sociedade, apresentando propostas que visem solucionar, estruturalmente, seus respectivos problemas. Neste sentido, o voto é, também, um ato conscientemente político e cristão.


Tiago de França

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O Padre e o dinheiro


No dia 05 do corrente mês, a Polícia Federal prendeu no aeroporto Tom Jobim (RJ) o Monsenhor Abílio Ferreira da Nova, 77 anos, quando tentava embarcar para Portugal com 52,8 mil euros mais 778 dólares. Da remessa em euros, 45 mil eram levados sem declaração alguma à Receita Federal. Segundo a lei vigente, quantias acima de R$ 10 mil devem ser declaradas. Ele falou que não fez o procedimento porque já “era tarde” quando chegou ao aeroporto. O mesmo foi liberado na manhã seguinte. De imediato, afirmou que o dinheiro não era da Igreja, mas dele. Concedeu uma entrevista que foi publicada no caderno Poder da Folha de São Paulo desta sexta-feira (10/09). As respostas do Monsenhor ao jornalista são curiosas. Vejamos.

O senhor suspeita quem tenha sido o denunciante? Perguntou o jornalista. “Quem me dera saber. Se você quiser descobrir para mim, eu agradeço. Nem a minha sobrinha, que vive comigo, sabia o dinheiro que eu levava. Só sei que Deus vai, de fato, vingar. Deus tem os seus caminhos e, portanto, eu deixo na mão dele”, respondeu o Monsenhor.

Analisando as palavras do Monsenhor percebemos a equivocada imagem que o mesmo tem de Deus (Deus vingador). Mas antes disso, é preciso se perguntar: Onde um Padre de 77 anos de idade foi adquirir mais de 115 mil reais para levar para parentes pobres em Portugal? Não quero acusá-lo de nada. Mas analisemos uma evidência: O citado Monsenhor investigava os excessos de gastos na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Ele é o Ecônomo (responsável pela administração dos bens) da Arquidiocese. Ele sucede ao Padre Edvino Alexandre Steckel, que teria autorizado despesas de 15 milhões de reais em apenas dezesseis meses. Valores que demonstram, claramente, que a mencionada Arquidiocese não é nada pobre. Por motivo de doença, o Mons. Abílio, já havia pedido renúncia do cargo, seu mandato termina em outubro. Vejamos outra resposta do Monsenhor.

O senhor não sabia que tinha que declarar o dinheiro? Eis a resposta do religioso: “Sabia. Mas eu pensava em fazer isso lá dentro [do aeroporto]. Quando foi lá dentro, já era tarde. E, afinal de contas, o dinheiro não era roubado, era meu. [...] Era para os meus [parentes] pobres em Portugal. Eu já tinha posses, que vieram de família. Declaro tudo no Imposto de Renda”.

Se não tivesse sido denunciado, certamente o Mons. Abílio teria levado o dinheiro sem declaração à Receita. Tal ação é criminosa e rotineira no Brasil e o fato de um Monsenhor ter enveredado por este caminho mostra que até os clérigos tendem a incorrer em tal irregularidade. Ele afirma que o dinheiro seria para parentes pobres em Portugal, e depois afirma, também, que já tinha posses, “que vieram de família”. Ele passa a idéia de que tem duas famílias: uma pobre, que precisa de sua ajuda e outra rica, que lhe deu uma herança. Bem irônico, o Monsenhor! O mesmo obteve liberdade provisória. Espero que a Polícia Federal descubra a origem do dinheiro, tão mal explicada pelo Monsenhor. O Arcebispo do Rio de Janeiro também deve ter cuidado com as finanças de sua Arquidiocese, pois os últimos ecônomos têm decepcionado bastante. Espero que não seja mais um caso a cair no esquecimento e na impunidade.

Partindo da reflexão teológica que a Igreja faz do ministério sacerdotal, a situação do Monsenhor é pecaminosa, inaceitável e vergonhosa. Na Igreja, o presbítero é chamado a se configurar ao Cristo bom Pastor. Este nasceu, viveu e morreu pobre entre os pobres. Jesus veio para servir aos pecadores deste mundo e não ser servido por eles. Do mesmo modo, o presbítero tem por vocação o serviço do povo de Deus. O serviço aos empobrecidos deste mundo, através da caridade e da administração dos sacramentos, está na centralidade da espiritualidade e da vocação do presbítero católico.

Longe de condenar o Monsenhor, sabendo que o mesmo não é o primeiro nem será o último a se comportar dessa maneira na Igreja, olhemos, teologicamente, a situação: Padre rico, pois não encontramos uma pessoa pobre carregando mais de 115 mil reais para a Europa. Apego aos bens materiais: Se, de fato, recebeu herança da família, não a renunciou por amor ao Reino de Deus; se os bens pertencem à Igreja, a situação piora ainda mais: uso indevido dos bens da Igreja para benefício próprio e familiar. Ironicamente, se utiliza do nome de Deus para acobertar, ameaçar e legitimar o crime praticado, apresentando, assim, uma idéia falsa do Pai de Jesus e nosso Pai. O Monsenhor envergonha a Igreja e se coloca como um mau exemplo para aqueles que aspiram ao ministério ordenado.

Outro aspecto precisa ser salientado: Se um ecônomo consegue, em dezesseis meses, manobrar 15 milhões de reais, como foi o caso do predecessor do Mons. Abílio, é sinal de que a Igreja precisa revisar sua condição no mundo. Se há uma fortuna que não está a serviço dos empobrecidos, então, pode-se afirmar, seguramente, que está a serviço do clero e da manutenção da instituição. Se há desvios, é porque há dinheiro. É verdade que vivemos num mundo onde quase tudo é submetido ao mercado. Uma vez que a Igreja está no mundo, precisa de recursos financeiros para sobreviver, materialmente. O problema está no acúmulo de bens e no uso indevido dos mesmos. Somente o necessário basta às pessoas e à Igreja. O problema das riquezas sempre dificultou o anúncio do Evangelho de Jesus. A Igreja tem dificuldade de fazer a opção preferencial pelos pobres por causa das riquezas que possui.

Pecados como esses precisam ser constantemente denunciados. Não adianta denunciarmos os desvios da sociedade, se ocultamos os que acontecem no interior de nossas Igrejas. O compromisso com a verdade, com a justiça e com a solidariedade nos confere autoridade moral para que o anúncio da Boa Nova tenha êxito neste mundo. O Evangelho é a verdade que nos liberta da mentira das aparências e das superficialidades. Para ser escutada pela sociedade, a Igreja precisa de testemunhos autênticos de pessoas que se comprometam com a justiça e com a solidariedade. Não podemos aceitar a realidade de certas pessoas, destituídas de integridade e humildade, que se aproveitam do ministério ordenado para o enriquecimento ilícito. Ser presbítero é ser discípulo e missionário do Cristo evangelizador dos pobres, é ser testemunha da verdade e da justiça do Reino de Deus. Fora disso, o que existem são funcionários do altar, mercenários do templo do Senhor.


Tiago de França

domingo, 12 de setembro de 2010

A misericórdia divina e a conversão


“Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15, 7).

O tema da misericórdia ocupa a centralidade da mensagem de Jesus. Este é a expressão máxima da misericórdia de Deus para com o ser humano. A sua vinda a este mundo é a prova maior de que Deus ama a cada pessoa e deseja a salvação de todos. É a misericórdia de Deus que salva o gênero humano, libertando-o do poder das trevas. É a misericórdia divina que converte a pessoa e a coloca no caminho de Jesus. O cristão é perdoado e restaurado pela graça divina para o seguimento de Jesus. Eis o convite do texto evangélico deste 24º Domingo Comum (cf. Lc 15, 1 – 32): viver a experiência da misericórdia divina no seguimento de Jesus de Nazaré. Em outras palavras, o perdão nos liberta para o perdão, somos perdoados para perdoarmo-nos mutuamente.

Jesus conta três parábolas para convencer os fariseus e os mestres da Lei da necessidade de acolher os pecadores. Os fariseus e os mestres da Lei eram as autoridades religiosas do tempo de Jesus que, apesar de conhecerem a Lei e os preceitos divinos, julgavam, condenavam e desprezavam as pessoas consideradas pecadoras públicas. Eles se julgavam melhores do que estas. Portanto, é necessário entender que as três parábolas são dirigidas às elites religiosas do tempo de Jesus. É muito importante situar as palavras e os gestos de Jesus, para que se possa compreender com clareza seu sentido e intenção.

As parábolas são: A da ovelha perdida, a da moeda perdida e a do filho pródigo. São três elementos perdidos e recuperados: ovelha, moeda e um filho. São três manifestações de alegria nas respectivas recuperações: A do pastor que coloca a ovelha nos ombros e convida os amigos e vizinhos para se alegrarem juntos; a da mulher que reúne as amigas e vizinhas para se alegrarem juntas e a do pai misericordioso que vai ao encontro do filho pródigo, cobre-o de beijos, reveste-o de roupas novas e anel novo, mata um novilho gordo e faz festa. A alegria é o sentimento comum as três parábolas. A alegria de poder reencontrar e recuperar alguma coisa ou alguém que nos é valioso/a é algo gratificante.

Jesus estava falando para pessoas que tinham no rigor das tradições e da Lei a legitimação para a vida. Fariseus e mestres da Lei viviam em função das tradições e da Lei. Eles zelavam pelo cumprimento das mesmas. Os pecadores, reconhecidos como transgressores da Lei e das tradições eram rejeitados, pois eram considerados indignos da atenção e dos favores divinos. Jesus, “homem que acolhe os pecadores e faz refeição com eles”, muda a sorte dos rejeitados e indignos, libertando-os da condenação das tradições e da Lei. Jesus está preocupado com a dignidade da pessoa, com sua humanização. Ele restitui a dignidade ferida, ameaçada e perdida.

“Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”, criticavam as citadas autoridades. Na crítica encontramos o ensinamento: Acolher os pecadores. É verdade que todos somos pecadores e devemos acolhermo-nos, mutuamente. Além desta necessária acolhida, Jesus está falando de outro tipo de acolhida. Descobrimo-la quando levamos em consideração a posição social dos destinatários das palavras: fariseus e mestres da Lei, representantes autorizados da religião judaica. Desta forma, indagamos: O que este texto fala para os representantes autorizados da religião cristã de hoje? A realidade da religião, neste aspecto, exige um olhar mais detalhado. Os teólogos têm refletido bastante sobre a temática do poder nas estruturas da religião, aqui só me aterei em expressar, sinteticamente, o que penso sobre o ensinamento do texto em relação ao papel das autoridades religiosas de hoje.

A religião cristã tem suas doutrinas, suas organizações religiosas (Igrejas e/ou denominações), suas leis e seus representantes autorizados. No caso da Igreja Católica, há uma hierarquia a ser considerada. A hierarquia eclesiástica é composta por homens constituídos de poder religioso, que regem e administram os bens e asseguram a ortodoxia da fé, são pastores que organizam o serviço eclesial e ajudam o povo a organizar-se. Conceitualmente, também são considerados servidores do povo de Deus. Afirmei homens porque a mulher não participa do poder hierárquico da Igreja. Por que não participam? Porque a mulher não poder ordenada.

Jesus também fala para as autoridades religiosas de hoje a mesma coisa que falou para as dos judeus: Acolher os pecadores. O que significa acolher os pecadores? Significar ir ao encontro dos filhos pródigos do mundo de hoje: aquelas pessoas que por vários motivos perderam a sua dignidade. Os excluídos e empobrecidos de nossa sociedade, injustiçados pelo poder opressor, devem ser acolhidos pela Igreja. Nesta, os injustiçados devem se sentir em casa. Além de acolher os pecadores, a Igreja deve também fazer refeição com eles, ou seja, participar dos seus sofrimentos. Dom Hélder Câmara, profeta do Reino de Deus, ensinava que o Evangelho de Jesus aponta para a construção da Igreja dos Pobres: uma Igreja não somente de palavras, mas de atos, profeticamente despojada e comprometida com as grandes causas do Reino de Deus.

Assim sendo, as autoridades religiosas precisam tomar consciência da urgente necessidade de serem, essencial e profeticamente, servidoras dos empobrecidos. O poder que oprime, o luxo, os títulos, as honrarias, os privilégios, as isenções, a fama, o dinheiro, o autoritarismo e tantas outras concessões têm atrapalhado bastante a vida de muitos que compõem a hierarquia da Igreja. Os que se deixam levar por tais concessões se desviam do caminho de Jesus e não passam de fariseus e mestres da Lei. Fariseus porque separados, sem querer se misturar com os pecadores; mestres da Lei, porque conhecedores de doutrinas, normas, códigos, leis etc., que, muitas vezes, legitimam a opressão comprometendo gravemente a liberdade dos filhos e filhas de Deus.

O texto evangélico nos traz, ainda, três advertências: Primeira, que não podemos julgar os pecadores. Há pessoas que não sabem fazer outra coisa que não seja julgar e condenar as pessoas que erram. Há uma dificuldade de se reconhecer o que o outro tem de melhor e uma facilidade de lhe apontar o dedo indicador da condenação fria e covarde. Segunda, que todos somos pecadores. A absolvição sacramental, que nos confere o perdão de Deus, não nos liberta da condição de pecadores. Se todos são pecadores, isso significa que ninguém tem autoridade de julgar nem condenar as pessoas. Mas é preciso considerar que isto não significa omissão diante da verdade dos fatos e dos pecados cometidos pelo outro. A correção fraterna existe como instrumento de ajuda mútua. Terceira, apesar de sermos pecadores, o Deus e Pai de Jesus, justo e misericordioso perdoa-nos, infinitamente.

O Espírito do Senhor nos dá a humildade que nos faz conscientes de quem verdadeiramente somos: frágeis e limitados. Este mesmo Espírito intercede por nós junto ao Pai e nos concede, também, a graça de sermos misericordiosos com nossos irmãos e irmãs. Somos assistidos pela misericórdia de Deus quando somos misericordiosos com o próximo.


Tiago de França

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Intolerância religiosa


O pastor Terry Jones, ultraconservador que dirige uma Igreja evangélica no interior da Flórida (EUA) teve uma infeliz idéia: Queimar o Alcorão, livro sagrado dos mulçumanos, no dia 11 próximo. Segundo ele, a idéia é fazer do dia 11 de setembro “o dia internacional de queimar o Alcorão”. Tal atitude seria, na visão dele, um protesto contra os radicais islâmicos que causaram os atentados há nove anos. Quando a notícia chegou ao Afeganistão, país mulçumano, centenas de pessoas gritaram: “Morte à América!” O Irã se manifestou afirmando que o insulto ao livro sagrado vai provocar reações incontroláveis nas nações mulçumanas.

A atitude deste pastor envergonha os cristãos e o Cristianismo. Trata-se de uma idéia inaceitável e diabólica. Inaceitável porque contradiz o Evangelho, que é a mensagem de Jesus, mensagem de justiça e de paz. Diabólica porque causa divisão e conflito. Diante da notícia fiquei pensando no que se passa na cabeça de um pastor evangélico, homem que possui contato permanente com a Palavra de Deus, e que resolve agir dessa forma. O que o motiva a fazer isso? Vingança? Fama? Patriotismo? Nada disso justifica a idéia de queimar o livro sagrado de outra religião. Será que esse pastor já pensou na possibilidade de um mulçumano queimar a Bíblia, livro sagrado dos cristãos?

Ações como estas deveriam ser proibidas e condenadas por lei, pois se trata de uma ação criminosa. Criminoso dessa espécie deveria responder juridicamente por tal ato. Ninguém tem o direito nem a autoridade de insultar a religião alheia. Num mundo marcado pelas guerras motivadas pela religião precisamos de mulheres e homens que promovam a paz pelo diálogo e pelo respeito. A idéia do citado pastor é criminosa e preconceituosa. A violência do 11 de setembro não justifica nem legitima tal ofensa. Não podemos condenar os mulçumanos porque alguns terroristas resolveram contra-atacar os EUA. É verdade que tais terroristas não podem ser isentos do repúdio internacional, mas, repito, eles não podem servir de justificativa para o preconceito contra os islâmicos.

Se compararmos a violência dos terroristas do 11 de setembro com a indiferença do pastor Terry Jones veremos que os efeitos são os mesmos. Em outras palavras, se o pastor efetuar tal idéia muitas pessoas serão assassinadas devido às reações incontroláveis das nações mulçumanas, que responderão violentamente ao insulto. Queimar o Alcorão dos mulçumanos não vai resolver os conflitos existentes entre norte-americanos e islâmicos, não vai fazer justiça aos que morreram com a destruição do World Trade Center, antes, causará a morte de outros civis inocentes, que não tem nenhuma ligação com os conflitos ideológicos, políticos e econômicos entre as citadas nações.

O pastor Terry Jones demonstra, claramente, que não compreendeu a mensagem de Jesus. Jesus de Nazaré foi proclamado Príncipe da Paz já no Antigo Testamento da Sagrada Escritura cristã. Os gestos e as palavras de Jesus de Nazaré são símbolo da justiça que gera a paz. Ninguém pode usar o nome de Jesus nem sua mensagem para legitimar violência contra quem quer que seja. O projeto de Jesus, o Reino de Deus, supera toda e qualquer desigualdade e intolerância religiosa, pois, independentemente de religião, ele foi enviado para a remissão de todos. A salvação oferecida por Jesus se dá na liberdade e na paz, sem imposições nem preconceitos.

Por isso, o fundamentalismo religioso que gera intolerância e, conseqüentemente, violência não deve ser tolerado. Nenhuma forma de fundamentalismo pode construir um mundo melhor. A paz é fruto da justiça e do diálogo entre as diferenças. Somente assim, a indiferença e o preconceito podem ser superados. Independentemente de credo religioso, a paz é uma necessidade do ser humano, e para que ela exista, é urgente combatermos as idéias e ações ultraconservadoras daqueles que se declaram inimigos da paz.


Tiago de França

domingo, 5 de setembro de 2010

As exigência do seguimento de Jesus


“Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!” (Lc 14, 33).

O texto evangélico deste Domingo (cf. Lc 14, 25 – 33) nos fala do valor da renúncia como exigência do seguimento de Jesus de Nazaré. Tal seguimento não se dá de qualquer modo, mas segundo algumas exigências que o caracterizam. Quando falamos em renúncia no seguimento a Jesus de Nazaré estamos nos referindo ao valor da liberdade. Não se trata de renunciar por renunciar, mas tendo em vista a liberdade de filhos e filhas de Deus. O seguimento nos assegura a plena liberdade, e para que esta exista, é preciso renunciar a tudo o que impede a realização plena do seguimento.

Falando para grandes multidões que o acompanhava, Jesus exige o desapego em relação a pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até da própria vida. Além disso, pede, ainda, que cada um carregue a sua cruz e caminhe atrás dele. O que ele está querendo dizer com isso? Será que está pedindo para desprezarmos aquelas pessoas que nos são mais queridas? Será que a nossa vida perde a sua importância quando decidimos seguir Jesus? De fato, não nos parece boa coisa seguir Jesus se fizermos uma leitura ao pé da letra deste texto. O que a letra está dizendo não motiva nem causa ânimo em ninguém! A letra está para a interpretação.

Jesus fala para grandes multidões. Certamente, muitas pessoas se entusiasmaram com o jeito de ser de Jesus. Este surpreendia a todos, dada a sua origem humilde. Muitas pessoas se escandalizaram com ele, principalmente os ricos e poderosos. Para os pobres foi motivo de alegria e de libertação. As multidões acompanhavam-no, mas não o seguiam. Segui-lo sempre foi missão de poucos.

As exigências do seu seguimento não permitem que grandes multidões o sigam. Jesus não parece preocupado com o número de pessoas, apesar de ter sido enviado para a salvação de todos. Todos são chamados para participar do Reino inaugurado por ele. Somente os inimigos do povo de Deus, que não se convertem, estão excluídos. Na verdade, ninguém está excluído, as pessoas é quem se excluem a si mesmas do Reino de Deus. Elas são livres para isso. A participação no Reino é livre e comprometedora. Quem deseja continuar escravo dos desejos, das coisas e das pessoas não pode participar do Reino de Deus, pois a liberdade em relação a todas estas coisas é exigência fundamental.

Jesus pede-nos para desapegarmo-nos de nossa família e da nossa própria vida. O que isso significa? O apego nunca foi algo bom para o ser humano. Pessoas, demasiadamente apegadas nunca sabem construir a própria vida. Esta se constrói quando buscamos ser livres em meio aos condicionamentos que a vida nos impõe. Independentemente de querermos ou não seguir Jesus, o apego é prejudicial. No fundo, ninguém gosta de pessoas “pegajosas”.

Amar alguém não pressupõe apego, mas liberdade. No amor nos construímos, no apego nos entravamos mutuamente. O amor não tira nem interfere na liberdade do outro, antes, a defende e promove. Assim sendo, o apego só pode ser admitido se o compreendermos como sinônimo de gostar e amar o outro na e para a liberdade deste outro. Em outras palavras, quero dizer o que disse num poema que escrevi sobre o amor:

Amo-te porque quero te ver feliz, e assim, também sou feliz.
A tua felicidade é a minha felicidade.
Tu não és objeto de minha satisfação nem de minha felicidade, reciprocamente. Somos felizes na gratuidade.


Jesus não quer nos ver livres de nossa família nem de nossa vida, mas nos quer ver livres em relação a nossa família e a nossa vida, o que é muito diferente. Nossa família e nossa vida não podem ser empecilhos no seguimento de Jesus. Ninguém pode nos impedir de seguir Jesus, pois o sentido pleno de nossa vida está neste seguimento. Ele nos quer inteiramente, não pela metade em seu seguimento. Estar pela metade implica dúvida, insatisfação, recusa etc., apesar de tudo isso fazer parte do ser humano. Este é um ser que sempre duvida, que está sempre insatisfeito, que recusa todo desconforto e dificuldade. Jesus pede que renunciemos a tudo isto se quisermos segui-lo na caridade e na verdade.

A partir desta compreensão aprendemos que seguir Jesus não é fácil. Não encontramos facilidades e comodidades no seu seguimento. O caminho de Jesus é ardoroso e exige, além das citadas renúncias, coragem e audácia. Pessoas medrosas e que não ousam além do necessariamente necessário não servem para seguir Jesus. O seguimento de Jesus se dá no caminho do trabalho incessante que constrói outro mundo possível. Quem está satisfeito com as realidades do mundo presente e nele procura, isolada e individualmente ser feliz, não serve para ser discípulo de Jesus. O autêntico discípulo do divino Mestre permanece insatisfeito com a situação do mundo.

Num mundo onde as pessoas, induzidas pelo capitalismo neoliberal, procuram a satisfação de seus desejos e pautam suas vidas no TER em detrimento do SER, a mensagem de Jesus torna-se inaceitável. A maioria dos cristãos acredita em Jesus, mas sem aceitar sua proposta. São pessoas que querem acreditar sem seguir. O Evangelho mostra, claramente, que isto é impossível. Quem ousa acreditar em Jesus precisa, necessária e livremente, segui-lo. Logo, quem se recusa a segui-lo não pode dizer que acredita nele. Acreditar e seguir são partes de uma mesma realidade.

Jesus usa o termo categórico não pode ser três vezes no texto. Isso mostra a radicalidade do seguimento. De uns tempos para cá, certas reflexões sobre o Evangelho tem inibido ou ocultado tal radicalidade. Com Jesus não existe meio termo, ele exige pessoas maduras em seu caminho. Pessoas indecisas não podem se colocar no caminho de Jesus, pois não dá certo. Seguir Jesus implica decisão pessoal, consciente e livre. Trata-se de uma missão, não de uma aventura; de uma experiência permanente, não de um momento de êxtase ou de gozo espiritual.

O que este texto diz para as Igrejas cristãs? Nossas Igrejas costumam denunciar o materialismo e o relativismo, principalmente a Igreja Católica, que tem um discurso mais elaborado, sistematicamente. Tal denúncia é louvável e necessária, mesmo que não seja ouvida pelos materialistas e relativistas de plantão. Mas é preciso denunciar também que no interior destas mesmas Igrejas encontramos os citados males denunciados. Por trás do discurso religioso encontramos, no interior das estruturas eclesiásticas, o apego aos bens materiais e o relativismo. O apego aos bens é legitimado pelas seguranças. Para manter as grandes estruturas, as Igrejas precisam TER.

Ao longo da história, no caso da Igreja Católica, percebemos que a mesma acumulou muitas riquezas e privilégios. Muitos destes últimos caíram, outros permanecem. Há certa preocupação exacerbada em relação à manutenção e multiplicação das riquezas. As pessoas devem ser pobres, a instituição jamais. O voto de pobreza também reforça o sistema: o religioso está na instituição, mas nada da mesma lhe pertence. O voto assegura os bens da instituição, do contrário, ela já teria falido. Nas Igrejas não-católicas o processo é semelhante. O Dízimo está na centralidade da pregação. Quase tudo converge para o Dízimo! Portanto, para todas as Igrejas cristãs também serve a exigência radical de Jesus: Renunciar a tudo o que tem, do contrário, não podem ser discípulas dele.

Que o Espírito do Senhor nos converta em pessoas cada vez mais desapegadas de si mesmas e de tudo aquilo que nos impede de seguir Jesus.


Tiago de França

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Onde estão as propostas?


Eis uma breve constatação do momento político da campanha eleitoral para o cargo de Presidente da República. As recentes pesquisas de intenção de votos têm revelado as eleições para o cargo de Presidente da República serão decididas no primeiro turno. De um lado, temos Dilma Rousseff, a candidata do Governo Lula e do outro, José Serra, do PSDB. Está cada vez mais clara a idéia de que a Dilma é a candidata do Presidente Lula e José Serra é o candidato do ex-presidente FHC. Isso é evidente e incontestável.

Desde o primeiro debate entre os presidenciáveis, promovido pela TV Bandeirantes, percebe-se que ambas as candidaturas têm espírito de continuidade: Dilma elogia e defende o Governo Lula e José Serra elogia e defende o governo do ex-presidente FHC. Não há uma discussão sistemática de idéias e propostas, mas acusações de um lado e defesa por parte do outro.

José Serra optou por atacar a candidata Dilma, os números das pesquisas de intenções de votos reprovaram tal opção. O candidato não passa dos 29% em todas as pesquisas. Isso mostra que os entrevistados não gostaram dos ataques de José Serra. Isto não é novidade, pois ele fez o mesmo nas eleições passadas e saiu derrotado. Lula foi eleito e reeleito!

Diante dos números, que podem ou não significar alguma coisa, José Serra muda de estratégia: Agora está falando de uma “virada”. Com isto, parece está preocupado com os números. Sem o carisma e o jeito popular de Lula, resolve cair no meio do povo, mas não abandona a estratégia do ataque. Comentaristas e analistas políticos afirmam que, se for derrotado, a culpa será do próprio candidato, por insistir na “política do ataque”.

O povo quer propostas, discussões políticas, não politicagem. Campanha eleitoral pautada na violência contra pessoas é prova cabal de que o/a candidato/a não tem propostas e ousa ganhar o poder confiando na força. Mesmo sabendo que a violência é uma coisa quase que normal na vida do brasileiro, graças a Deus e à consciência política, tal violência ainda é considerada abominável. É inaceitável que vivamos numa sociedade violenta e, ainda por cima, escutarmos discursos violentos, vazios de conteúdo e de verdade.

A leitura de dois importantes meios de comunicação vigentes no país, Folha de São Paulo e revista Veja, tem demonstrado que o povo dos intelectuais não estão convencidos nem estão aceitando a candidatura de José Serra. Digo povo dos intelectuais porque o povo das massas, os pobres de nosso país, não tem acesso a tais veículos de comunicação. A citada Folha e a Veja são oposição ferrenha ao Governo Lula. Todo mundo sabe disso! Mas mesmo assim, as pessoas não estão engolindo as críticas, pois diminui cada vez mais o índice de aceitação de José Serra.

Particularmente, creio que, seja quem for o eleito, terá que dar continuidade aos acertos políticos ocorridos na história recente da política brasileira. O Brasil não pode regredir: a ânsia pelo desenvolvimento econômico é incontrolável. O que os candidatos devem refletir é sobre seus planos de governo, a fim de que tenhamos um desenvolvimento sustentável, mesmo diante da vigência do neoliberalismo capitalista no mundo inteiro, com exceção da Cuba sobrevivente.


Tiago de França