segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O Natal de Jesus


“E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória: glória do Filho único do Pai, cheio de amor e fidelidade” (Jo 1, 14).

O Natal não é a festa de aniversário de Jesus de Nazaré, mas a celebração de um acontecimento histórico que marcou a história da humanidade: a encarnação do Filho de Deus. Nossa breve reflexão parte desta afirmação. De fato, conforme reza as Escrituras, na cidade de Davi nasceu para nós um Salvador, que é o Messias, o Senhor (cf. Lc 2, 11). O mercado que promove o consumismo tenta ofuscar e marginalizar esta Boa Notícia. Infelizmente, falar de Natal é o mesmo que falar de presentes e de festas pouco ou quase nada cristãs. Há muita alegria e comemoração, mas sem nenhuma referência com o mistério da encarnação de Jesus de Nazaré.

Quem professa de verdade a fé em Jesus deve se recusar a esta deturpação do verdadeiro sentido do Natal. Este não tem nenhuma ligação com o dar presentes, com o tal Papai Noel, com enfeites etc. Como, então, celebrar o Natal de Jesus? Toda celebração deve ser precedida e/ou acompanhada de uma reflexão a respeito do sentido daquilo que estamos celebrando ou queremos celebrar. A celebração litúrgica do Natal em nossas igrejas, nos ofícios solenes das vésperas e do dia, falam do mistério da encarnação do Verbo de Deus, Jesus, o Cristo de Deus. Para que não pensemos que o Natal é somente liturgia, vamos meditar a respeito de três aspectos do mistério da encarnação do Verbo de Deus.

Primeiro aspecto: Jesus nasceu pobre entre os pobres para evangelizar os pobres. Desde o Antigo Testamento, o Senhor Deus prometeu, por meio dos profetas, o envio do Messias. Este nasceu na pobreza de Belém, terra de Judá, deitado numa manjedoura. Não houve lugar para que ele nascesse. Jesus nasceu na periferia do mundo, ou seja, Deus escolheu se encarnar na pobreza deste mundo. Toda a sua vida foi marcada pela pobreza material. A partir da pobreza, Deus confundiu aqueles que viviam entregues às riquezas e exploram seu povo. Deus desceu para libertar seu povo a partir do estado de miséria, exploração e pobreza deste mesmo povo.

Crer no Cristo pobre e indefeso requer assumirmos uma postura e um compromisso: a postura de pobre, ser como os pobres, viver pobremente, despojando-nos de tudo aquilo que nos impede de seguir este Cristo. O compromisso é o de trabalharmos na edificação do Reino de Deus, centro da mensagem cristã, sentido último da promessa divina. Trabalhar pelo Reino de Deus significa se opor a toda forma de mentira e exploração do povo de Deus, colocar-se a serviço da libertação integral dos que mais sofrem, denunciar as injustiças e anunciar a Boa Notícia que salva e liberta.

Segundo aspecto: Jesus nasceu para restituir a vida e a liberdade ao ser humano. Todas as palavras e gestos de Jesus promoveram a vida e a liberdade do ser humano. Este está sempre em primeiro lugar. Nada nem ninguém têm o direito de agredir a vida e tirar a liberdade humanas. A vida humana se realiza na liberdade: esta é um bem inalienável e um valor imprescindível a ser permanentemente buscado. O Cristo é o Salvador porque é o Libertador, ou seja, Ele nos salva nos libertando do medo e do poder da morte. Por isso, o compromisso de toda pessoa que se dispõe a seguir Jesus é centrar todo o esforço na promoção e na defesa da vida e da liberdade.

A espiritualidade cristã ensina que ninguém pode se colocar na condição de senhor da vida do próximo. Este tem o direito de ser livre para ser verdadeiramente feliz. Neste sentido, Jesus ensinou que quem quiser ser o maior ou o senhor deve se tornar o servidor de todos. Na comunidade cristã não deve haver grandes e pequenos, senhores e escravos, aqueles que mandam e os que obedecem, ricos e pobres, os que controlam e os que são controlados: todas estas realidades são de um mundo que desconhece a mensagem evangélica. O Reino de Deus é o oposto de tudo isto, ou seja, no Reino de Deus todos são filhos de um mesmo Pai, irmãos uns dos outros, submetidos ao amor e no amor sendo felizes.

Terceiro aspecto: Jesus nasceu para nos ensinar que no amor está a salvação do ser humano. O Evangelho mostra que Jesus não pediu um culto para si mesmo nem fundou uma religião para ser adorado, mas ensina que no seguimento a Cristo podemos e devemos viver no amor. A religião com suas práticas religiosas pode ser útil, mas se praticadas com espírito farisaico e/ou com hipocrisia pode nos desviar do caminho que leva ao Reino de Deus.

A celebração do Natal não pode priorizar o culto. Não adianta celebrarmos bem o culto se nos recusamos ao amor, que é o mandamento fundamental de Jesus, o enviado do Pai. O mundo atual está profundamente marcado pelo desamor. Este se manifesta nas guerras, nas diversas formas de violência, na intolerância, no preconceito, na fome, na prostituição, no desrespeito, na indiferença etc. Todos estes males são atitudes e fatos realizados por quem se esqueceu que o amor é que verdadeiramente confere sentido à existência humana.

Por isso, prezado/a irmão/ã em Cristo, peçamos a Deus, nosso Pai amoroso, que com seu Espírito torne fecundo o nosso coração para vivermos o amor, pois neste está a nossa salvação e a salvação do mundo. Não tenhamos medo do amor, entreguemo-nos a ele, pois somente ele é capaz de nos libertar do medo e do poder da morte. Para que a vida surja e se mantenha é preciso que nos entreguemos ao amor. O amor é a fonte da vida. Deus é amor e é a nossa vida.

Nesta solene celebração do Natal do Senhor, desejo a você e sua família meus sinceros votos de um Feliz Natal!

Em Cristo nascido na manjedoura de Belém,

Tiago de França, CM
Desde Colônia Leopoldina – AL, 26 de dezembro de 2011.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Ser testemunha de Jesus


“O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu, enviou para dar a boa-nova aos humildes” (Is 61, 1).

Ser testemunha de Jesus: eis o chamado de Deus para o ser humano. O que significa ser testemunha de Jesus? O texto evangélico deste III Domingo do Advento (cf. Jo 1, 6 – 8.19 – 28) nos mostra a figura do profeta João Batista, aquele que “veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz”.

É o Espírito de Deus que suscita no mundo e na Igreja as testemunhas de Jesus de Nazaré, e para testemunhá-lo é preciso se colocar no seu caminho, caminho estreito, pedregoso e perigoso. Toda testemunha de Jesus age ungida e/ou inspirada pelo Espírito, portanto, não fala de si mesma nem para si mesma. A testemunha de Cristo existe em função da adesão ao projeto libertador de Jesus, em função do Reino de Deus. Ter fé em Jesus é aderir seu projeto. Não adianta o contrário: engana-se quem afirma ter fé em Jesus, mas se recusa a ser operário de sua vinha. Quem assim procede não tem fé, mas vive iludindo-se.

João Batista foi enviado ao mundo por causa de Jesus, veio dizer para as pessoas que o Messias estava chegando, e o disse com toda verdade e liberdade. Como Jesus, era um homem do deserto, ou seja, livre para ajudar na libertação de quem quisesse seguir o cordeiro de Deus. Sua liberdade o levou ao martírio. Com sua morte, mostrou que o caminho de Jesus é o da libertação integral e plena, vida abundante para todos. Era homem da palavra e do gesto fundamentados na verdade e na liberdade: características do autêntico profeta do Senhor.

“Eu batizo com água; mas no meio de vós está aquele que vós não conheceis, e que vem depois de mim. Eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias”. Com estas palavras, João Batista reconhece e fala de sua missão. Antes delas, ele afirmou ser apenas uma voz. Não era a voz, mas uma voz que não falava de si mesmo, mas apontava para o verdadeiro Messias, o Cristo. Este estava no meio do povo, misturado com os pecadores, à espera do batismo. Ambos eram homens que estavam no meio da gente pobre, misturados com os pecadores, sinais de contradição para muitos em Israel, especialmente para os líderes da religião oficial.

João Batista é um modelo de pessoa que escuta a voz do Espírito do Senhor e se entrega à missão profética. Trata-se de um chamado universal, que é para todos, mas nem todos estão dispostos a assumi-lo. A missão profética tem algumas exigências e é profundamente marcada pela humildade, simplicidade, verdade, ousadia, coragem, perseguição, confiança plena na vontade divina e martírio. Estas características tornam o profeta uma pessoa livre, integrada, disposta a dar a vida pelo Reino de Deus. Assim era João Batista.

A profecia é necessária à Igreja, esta não existe sem aquela. Os profetas ajudam a Igreja a converter-se, a colocar-se no caminho de Jesus, a ser, verdadeiramente, instrumento de salvação e não motivo de escândalo e confusão para o mundo. Para testemunhar Jesus, a Igreja precisa escutar o que o Espírito fala por meio dos profetas. Escutá-los é muito difícil porque eles não falam “pela metade”, mas falam a palavra de Deus, que por si mesma é exigente e orienta para a conversão. Eles não ocultam nem manipulam a palavra de Deus, mas a proclamam até as últimas conseqüências.

Por fim, é preciso recordar que os profetas reforçam a esperança dos pobres. Estes, em todas as épocas e lugares, são os que mais sofrem, são as maiores vítimas das injustiças sociais: a corrupção se intensifica; o capitalismo, apesar de convalescente, continua ceifando vidas; a fome continua matando milhões de pessoas em todo o mundo, principalmente no continente africano; a indiferença e o ódio causam mortes e conflitos entre nações e pessoas; a exploração desmedida da Amazônia assusta, deixa centenas de famílias sem rumo na vida e ameaça a biodiversidade; a Europa está incrédula, perturbada e sem futuro garantido etc. Em meio a tudo isso, os pobres são os mais vulneráveis e, conseqüentemente, os que mais sofrem.

Apesar de tudo, a esperança dos pobres vive! Os profetas são as mulheres e homens que, na Igreja e fora dela, com palavras e gestos que anunciam e denunciam, reforçam a luta dos pobres rumo à libertação plena, que acontecerá no Reino de Deus. Neste, eles têm lugar garantido, porque confiam na promessa do Deus da vida e da liberdade, promessa que garante a felicidade para aqueles que não perderam a esperança num outro mundo possível. Por não perder a esperança, o povo de Deus é um povo que caminha perseverantemente até a volta daquele que proclamou que a vontade de Deus é que o ser humano e toda a criação sejam recriados e tenham vida plena.


Tiago de França

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O risco de pensar


O homem é um ser que pensa, que sabe que sabe e que dá sentido às coisas, aos fatos e à própria existência. Somente o ser humano é assim. Na difícil arte de pensar há inúmeras dificuldades, dentre as quais enumero três para uma breve reflexão: 1) o pensar no que os outros pensam; 2) o pensar por si mesmo e 3) a liberdade: conseqüência inevitável do pensar autônomo.

Pensar no que os outros pensam é uma preocupação de muita gente. Penso que pensamos no que os outros pensam a respeito de tudo e de todos. Aqui se questiona a falta de liberdade no pensar, ou seja, é preciso que pensemos diferente. É comum o pensamento comum: “Eu penso como fulano pensa”. É verdade que não há problema nisso, mas é verdade também que não é possível que todo mundo pense igualmente, sem diferença alguma.

Há pessoas que não se dão o trabalho de pensar diferente. Elas dizem que pensar diferente dá trabalho e gera sofrimento. Por isso, se contentam com o senso comum, com aquilo que está estabelecido e normatizado, considerado correto e normal. No fundo, estas pessoas não querem questionar as próprias certezas que adquiriram durante os dias até então vividos. Elas têm medo de perder a segurança oriunda das convicções arraigadas e intocáveis.

Há outras que vivem preocupadas em saber sobre o que os outros pensam delas e quando tomam conhecimento de alguma opinião a seu respeito, elas consomem suas energias no pensar no que estes outros pensam. Isso significa que tais pessoas vivem em função daquilo que os outros dizem. Mostram que não possuem opiniões formadas a respeito de si mesmas dependendo, assim, da opinião alheia. Pessoas que assim procedem acostumam-se ao sofrimento e nele sobrevivem até não suportarem mais.

O pensar por si mesmo é uma arte bela e perigosa. Bela porque confere ao ser pensante uma sensação daquela liberdade que se alcançará plenamente numa outra vida que não é essa; perigosa porque pode levar à morte. Todos os sistemas de organização social e religiosa nunca admitiram que as pessoas pensassem por si mesmas. O pensar por si mesmo sempre foi considerado como caminho para a desordem. Para evitar a desordem, o sistema pensa pelas pessoas, dando-lhes respostas prontas para seus anseios e problemas.

Todo sistema, quer civil, quer religioso tem a solução pronta para todo problema e para qualquer tipo de pessoa. Tudo funciona quando as pessoas aceitam as recomendações, orientações, prescrições e obrigações impostas sem nenhuma abertura e diálogo. O leitor poderá chamar isso de ditadura, e eu afirmo que, de fato, é. Há ditaduras escondidas por detrás de pseudodemocracias. É ilusão pensar que as pessoas são livres para fazer o que quiser de suas vidas. Isto nunca foi verdade. Esta liberdade ainda não existe. Os sistemas são tão bem pensados e seu funcionamento é tão eficaz que se procura até controlar o pensamento das pessoas.

Quem procura pensar por si mesmo é alvo da perseguição e da falsa compreensão. Perseguição porque pensar diferente não é normal, pois vai contra aquilo que está estabelecido e aceito como ordenadamente correto e normal; falsa compreensão porque os que pensam diferentes são compreendidos, só não são aceitos. Na verdade, podem ser tolerados, jamais aceitos, porque seu pensar representa, em menor ou maior grau, uma ameaça à ordem estabelecida. As ideologias e os mecanismos de controle que as produzem e as asseguram são os instrumentos necessários para que tudo se perpetue.

A vida só vale a pena ser vivida na busca constante da liberdade, e somente a busca quem se arrisca a pensar por si mesmo. Diante dos mecanismos de controle e manipulação da consciência é preciso encontrar as brechas que existem, ou seja, com jeito e ousadia procurar criar espaços de liberdade. Estes são poucos, mas existem em todo lugar do mundo. O primeiro espaço de liberdade é a própria consciência humana, livre do controle e da subordinação. A consciência livre é o maior instrumento de conquista da liberdade. O pensar por si mesmo ensina o agir por si mesmo e a coragem torna-se a virtude daquelas pessoas que lutam pela conquista da liberdade, direito inalienável de todo ser humano. Não há verdadeira felicidade fora da conquista pela liberdade. Esta é a conseqüência inevitável do pensar autônomo.


Tiago de França

domingo, 13 de novembro de 2011

Servir na bondade e na fidelidade


“Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!” (Mt 25, 21)

O texto evangélico deste XXXIII Domingo Comum (cf. Mt 25, 14 – 30) apresenta a parábola dos talentos: trata-se da história de um homem rico que antes de viajar para o estrangeiro entregou seus bens para três empregados. Depois de muito tempo retorna e acerta as contas com eles: o que havia recebido cinco talentos prestou conta de mais cinco; o que tinha recebido dois prestou conta de mais dois e o que tinha recebido um apresentou o mesmo valor, pois enterrou o talento no chão, sem ter multiplicado nem colocado no banco. Os dois primeiros empregados foram louvados pelo patrão e o terceiro foi considerado mau, preguiçoso e inútil, e foi jogado na escuridão. Esta é a parábola. O que ela diz para o cristão e para a Igreja de hoje?

Jesus contou esta parábola tendo em vista o serviço na construção do Reino de Deus. Este está no centro da mensagem cristã e tudo converge para ele. O serviço em função do Reino de Deus é diferente do serviço a uma empresa com espírito capitalista. O espírito capitalista tem suas leis: lucro, eficiência, agilidade, competência, produtividade, competitividade, concorrência etc. Se a parábola dos talentos for lida na ótica capitalista, todos estes elementos que caracterizam o espírito capitalista podem ser encontrados nela; mas na perspectiva do Reino de Deus tudo muda, tudo é oposto àquilo que prega o capitalismo.

Na perspectiva do Reino de Deus o serviço é, antes de tudo, gratuito. Na ótica do mundo dominado pelo individualismo não há espaço para a gratuidade. No serviço do Reino não há competição nem preocupação com produtividade nem concorrência. A norma é servir no amor, na liberdade, na gratuidade, na paciência, na perseverança e com fé no Deus da vida: estas são as características do servidor bom e fiel, que mesmo em meio às imperfeições inerentes à condição humana se esforça e se empenha porque aderiu ao projeto libertador de Jesus de Nazaré.

O projeto libertador de Jesus de Nazaré exige mulheres e homens que queiram servir na bondade e na fidelidade. É verdade que não há pessoa que seja completamente bom e fiel, pois somente Deus é bom e fiel. Este mesmo Deus, em sua infinita sabedoria nos concede dons para o serviço de seu Reino. Cada pessoa é chamada a servir de acordo com suas capacidades e possibilidades. Deus quis que nos tornássemos seus colaboradores: esta é sua dinâmica salvadora. O ser humano não é mero destinatário da salvação divina, mas participante do processo salvífico. É verdade que em Cristo todos já estamos salvos, mas é do querer de Deus que participemos na edificação do seu Reino.

Em meio às luzes e trevas, a Igreja procura servir ao seu Senhor. Ora se avança, ora se regride: às vezes, a impressão que se tem é que se avançam cinco passos e se regridem dez! O que não nos faz cair no desespero é a certeza de que o Espírito do Senhor está presente no mundo e na Igreja. Ele é livre e libertador: impulsiona, no silêncio e na discrição, mulheres e homens para questionar e fazer desabar aquilo que julgam moralmente certo e que está estabelecido acima de tudo e de todos. É este mesmo Espírito que dá força e coragem aos discípulos de Jesus do momento presente para usarem seus talentos e fazer crescer, em meio às luzes e trevas, a liberdade e a vida.

Os EUA estão em crise e a Europa pior ainda. Depois de anos de escândalos de corrupção, Sílvio Berlusconi é obrigado a deixar o cargo de primeiro-ministro da Itália. No Oriente, as ditaduras estão cessando. Na Europa, o número de mulçumanos aumenta e o de cristãos católicos diminui. Na Espanha, o Cardeal Arcebispo de Madri proíbe, sem dar nenhuma justificativa, uma conferência do teólogo Juan José Tamayo numa paróquia madrienha de Villaverde Alto. Em Bilbao, fez a mesma coisa o bispo Mario Iceta, proibindo o teólogo Andrés Torres Queiruga de dar um curso no Instituto de Teologia de Bilbao.

Estas coisas não estão acontecendo pela força do acaso. São situações históricas, contextualizadas. Há pessoas envolvidas, a maioria sem muita visibilidade. Os velhos sistemas opressores estão minando, a esperança está vencendo o medo. Há fogo debaixo das cinzas. A vida insiste em sobreviver!... Em meio a tudo isso, o que o Espírito está dizendo às Igrejas?...


Tiago de França

sábado, 5 de novembro de 2011

Vocação à santidade


“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5, 3).

Neste Domingo, a Igreja celebra a Solenidade de Todos os Santos. Muito se tem falado a respeito do significado da santidade. Na história da Igreja encontramos inúmeros santos e santas. Há os que foram canonizados e há os que até hoje continuam no anonimato. Vamos falar de algumas características que falam do significado da santidade. Antes, precisamos fazer três considerações que nos ajudam a compreender os santos.

Primeira consideração: todo santo vive numa época e num contexto específico. Não há santo fora do mundo. Portanto, está situado num contexto histórico, marcado por aquilo que é próprio do mundo. Ninguém é alheio ao tempo e ao espaço. O santo é alguém que vive, simples e humildemente, no mundo. Humano, não pode ser visto como alguém que foi agraciado com o privilégio da santidade. Esta não é privilégio de alguns, mas vocação universal, chamado para todos.

Segunda consideração: todo santo é um ser humano. A verdadeira santidade consiste em ser verdadeiramente humano. Assim, não se pode esperar que o santo tenha alguns poderes sobrenaturais que o transforme num semideus e/ou num ser especial. Os santos não têm poder para nada, pois somente Deus é o Todo-poderoso. Não se pode querer ser santo esperando que Deus confira poderes especiais para ajudar outras pessoas.

Terceira consideração: nenhum santo pode ser colocado acima ou no lugar devido somente a Deus; do contrário, comete-se o pecado da idolatria. Os santos não são auxiliares de Deus, não são representantes de Deus, não são dispensadores das graças divinas. Jesus de Nazaré, o Santo de Deus, nos ensinou a irmos diretamente a Deus, sem medo e com alegria filial. Recebemos de Deus um presente de amor, que consiste na graça de sermos chamados filhos de Deus (cf. 1 Jo 3, 1). Um filho não precisa de intermediários para viver em comunhão com o Pai.

Explicitadas as considerações, discorramos sobre três características fundamentais da vocação à santidade.

A santidade acontece no seguimento de Jesus de Nazaré. A santidade consiste em se colocar no caminho de Jesus de Nazaré: caminho estreito e pedregoso. Este caminho passa pela cruz e esta são as realidades sofridas deste mundo. A cruz simboliza os crucificados da história. Por isso, o santo é alguém que vive unido aos crucificados deste mundo através da misericórdia, da fome e da sede de justiça. Misericórdia e justiça: práticas permanentes dos que se arriscam permanecer no caminho de Jesus. Fora deste caminho não há santidade nem salvação.

A santidade acontece na pobreza. Ser pobre é ter acesso às condições necessárias a uma vida digna. Segundo Jesus de Nazaré, isto nos basta. Portanto, toda pessoa que acumula, que se apega, que vive em função das riquezas não entrará no Reino de Deus. O pecado destas pessoas consiste na insensibilidade, na falta de compaixão para com aqueles que não têm o mínimo para sobreviver. Quem for escravo das riquezas deve procurar nelas a sua salvação, jamais no Deus e Pai de Jesus de Nazaré, que é o Deus da solidariedade e da partilha. Neste sentido, o santo é alguém despojado, que se contenta somente com o necessário para viver; é alguém livre do apego às riquezas.

A santidade acontece no amor e na liberdade. O testemunho de Jesus de Nazaré descrito no seu Evangelho é um testemunho de amor. Amar a Deus e ao próximo é a lei que deve reger a vida de quem deseja seguir Jesus e ser santo. O amor é o único meio para humanizar e salvar o ser humano: fora do amor não há realização nem verdadeira felicidade. Porém, é preciso ter cuidado para não confundir amor com apego. Toda pessoa que estiver vivendo a aventura do amor deve se perguntar: o que estou vivendo é amor ou apego?...

O amor conduz à liberdade e o apego à escravidão. Quem ama quer ver o outro livre e quem se apega, apodera-se do outro. Quem ama, mesmo não “tendo” o outro próximo a si, sente-se feliz, porque sabe que o amor ultrapassa o tempo e o espaço; quem se apega depende necessariamente da presença, do querer, do gosto, da vontade e de tudo aquilo que o outro é. No apego, a morte do outro é a minha própria morte. Somente no amor há caminho de liberdade e de libertação: no amor os seres humanos conseguem ser livres e, conseqüentemente, felizes. O santo é alguém que ama na liberdade e para a liberdade.


Tiago de França

sábado, 29 de outubro de 2011

A autenticidade cristã


“O maior dentre vós deve ser aquele que vos serve. Quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado” (Mt 23, 11 – 12).

O texto evangélico desde XXXI Domingo Comum (cf. Mt 23, 1 – 12) mostra claramente o conflito entre Jesus, os mestres da lei e fariseus. Jesus fala abertamente às multidões e a seus discípulos a respeito da hipocrisia das autoridades religiosas de seu tempo. Não se trata de mero comentário nem de conversa ao pé do ouvido, mas de denúncia contra as injustiças cometidas por pessoas que tinham autoridade para interpretar a lei de Moisés. Jesus as reconhece e até recomenda que o povo as escutem, mas em seguida adverte: “Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam”.

Falar e viver em plena contradição com aquilo que se fala: eis o mal dos mestres da lei e fariseus. Conscientemente, insistiam em permanecer vivendo na hipocrisia. Eles tinham o poder, mas eram destituídos da verdadeira autoridade. Eles tinham medo de Jesus porque sabiam que ele era diferente: não tinha poder, mas autoridade. A autoridade de Jesus estava na sua coerência de vida, pois suas palavras e ações eram uma só realidade. Jesus não ensinava a partir da lei, mas a partir do ensinamento recebido de seu Pai.

Jesus enumera quatro pecados graves dos mestres da lei e fariseus, pecados que continuam sendo cometidos pelas autoridades religiosas de hoje. Estas são todas as lideranças de nossas comunidades, especialmente os membros da hierarquia da Igreja. Penso que a mensagem evangélica deste Domingo destina-se especialmente a estes. Vamos, brevemente, transcrevê-las e, com prudência e caridade, atualizá-las.

“Amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los nem sequer com um dedo”. A lei de Moisés era muito pesada. Eles a interpretavam perfeitamente e exigiam que as pessoas a observassem fielmente. Eram excessivamente exigentes para com os outros e relaxados consigo mesmos. Utilizavam-se da lei para explorar o povo, impiedosamente.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: utilizam-se dos preceitos e práticas religiosas para explorar as pessoas. Ao invés de libertá-las, direta ou indiretamente, as alienam por meio do rubricismo, do moralismo, do sentimentalismo, do formalismo, da mentira e tantos outros excessos.

“Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros. Eles usam faixas largas, com trechos da Escritura, na testa e nos braços e põem na roupa longas franjas”. Eles gostavam de aparecer, preocupavam-se com a estética, pois sabiam que as roupas impressionavam os ouvintes. Muita gente julgava-os perfeitos por causa das roupas que vestiam, por conta das inscrições bíblicas que carregavam.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: ainda há quem se utilize da batina e do hábito, de túnicas e casulas caras e belas e outros usos para transmitir sentimentos de santidade. Atualmente, os que mais se destacam, além das ordens religiosas e dos diocesanos conservadores, os padres cantores investem muito na estética. Basta observar suas casulas e as capas de seus livros, CDs e DVDs. São tidos como modelos a serem imitados, porque são ortodoxos, não se metem com política, não questionam nada, só ensinam o amor de Jesus!...

“Gostam de lugar de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas”. Toda autoridade goza de privilégios e há quem os exija, indiscriminadamente. Eles gostavam sempre dos primeiros lugares nos banquetes e nas sinagogas, ou seja, queriam ser vistos, considerados e respeitados. Quem não fica nos primeiros lugares não é visto, e se não é visto é facilmente esquecido, ou passa despercebido. Os primeiros lugares são para pessoas importantes, honradas, para as que estão mais próximas do altar do Senhor (sinagogas) e daquele que fez o convite (banquetes). Todo mundo enxerga quem está nos primeiros lugares.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: há autoridades religiosas (diácono, presbítero, bispo, papa e tantos outros) que vivem a procura de privilégios. Sempre foi assim, desde a institucionalização da Igreja. Onde há instituição, há privilégios e privilegiados. A história da Igreja está cheia de excessos em matéria de privilégios. Após a separação entre Igreja e Estado, muitos privilégios caíram, mas alguns permaneceram e hão de permanecer até quando a institucionalização for mantida e houver homens interessados em viver uma vida tranqüila e materialmente próspera.

Mesmo com a eclesiologia do Concílio Vaticano II, o presbítero continua ocupando o centro da comunidade eclesial. Há realidades em que isto quase não existe, mas são raras. Há um esforço para que se tomem as decisões por meio da colegialidade, que se expressa na comunhão e na participação, mas há ainda muita centralização de poder, desde Roma até as bases da Igreja. Toda centralização de poder legitima os privilégios e todo aquele que se opõe aos privilégios torna-se vítima de quem os detêm através do poder.

“Gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de ser chamados de mestres”. Por entenderem da lei e a interpretarem para o povo, eles exigiam ser considerados mestres. Gostavam de ser reconhecidos como homens doutos na lei e na cultura judaica. O cumprimento nas praças públicas é outra forma de serem reconhecidos. Nas praças, quem é muito cumprimentado mostra ser importante: eis como eles queriam ser vistos.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: há certa dificuldade em fazer as coisas com discrição. Infelizmente, chamar a atenção para si mesmo é um grave problema na comunidade cristã. A vaidade intelectual é um dos males que mais afetam a vida de muitos clérigos. Trata-se de um mal que cega e as transforma em pessoas insuportáveis. Há muitos que são afetivamente mal resolvidos e no exercício da missão correm o risco de satisfazer suas carências. Tal satisfação tem ocasionado muitos escândalos na vida da Igreja.

Por fim, Jesus pede que ninguém considere as autoridades religiosas mestre, pai e guia; pois o Mestre e Guia é o Cristo e o Pai é Deus. Isto significa que todos somos irmãos, Deus não faz acepção de pessoas e o amor é a lei que deve reger a vida cristã. Contra os pecados acima mencionados, Jesus recomenda o serviço e a humildade. Na comunidade cristã, quem quiser ser grande, seja aquele que serve a todos; e quem abraçar a virtude da humildade será exaltado por Deus. Servir ao Senhor na pessoa do próximo com humildade: eis a vocação de todo cristão.


Tiago de França

domingo, 23 de outubro de 2011

O amor a Deus e ao próximo


“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento! Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (Mt 22, 37 – 40).

Falar do amor não é fácil e vivê-lo é mais difícil ainda. A dificuldade do falar está no risco que se pode ter, no risco da infinita possibilidade da contradição; ou seja, no falar que não corresponde ao agir. O testemunho de Jesus de Nazaré não é sinônimo de um discurso sobre o amor. Certamente ele falou do valor do amor, mas não disse dizendo, mas disse amando. Por isso, até os confins dos séculos foi, é e continuará sendo o modelo por excelência de pessoa essencialmente amorosa, portanto, plenamente humano.

Toda reflexão honestamente cristã deve sempre partir de Cristo Jesus, o Filho do Amor. Se pudéssemos encontrar Jesus por aí e perguntar-lhe sobre a missão recebida de seu Pai a ser desempenhada no mundo, certamente responderia: Eu vim ao mundo para amar os seres humanos e pelo amor salvá-los de sua escravidão e solidão. Toda a mensagem evangélica resume-se no amor: este consiste na lei de Cristo. Conduzido pelo amor, o ser humano encontra a salvação.

O amor fundamentou e deu sentido a todas as palavras e gestos de Jesus de Nazaré. Tudo fez e disse por amor ao ser humano. Portanto, amar é sair de si, é transbordar-se, doar-se, abrir-se, entrar em comunhão, expandir-se, é encontrar-se com Deus no próximo. Toda pessoa que procurar Deus no mais profundo de si e dedicar toda a sua vida numa relação ensimesmada sem o contato com o outro, pensando que encontrou a Deus, engana-se a si mesmo. Não se pode dizer que Deus está dentro de cada homem e por isso cada ser humano basta-se a si mesmo.

A vida de Jesus de Nazaré sempre foi um constante encontro com as pessoas, com estas e suas circunstâncias. O outro sempre está no seu contexto. O outro é vida e suas relações, suas histórias, dramas, traumas, complexos, cultura, pensamento e expressões variadas de comportamentos. Eis que se nos apresenta um dos maiores desafios para amar o próximo: amá-lo na sua singularidade, nunca segundo o meu querer. O querer sobre o outro é sempre uma violência contra a sua liberdade. Nem a vontade de Deus se impõe, porque ele sempre propõe, jamais impõe nada a quem quer que seja. É uma falta de respeito e de amor querer que o outro atenda aos nossos caprichos satisfazendo, assim, as nossas vontades.

Assim sendo, só existe amor onde há liberdade. Toda pessoa precisa da liberdade para amar de verdade. Logo, não há amor em toda relação pautada na dominação e/ou controle do outro. Também não há amor onde existe o apego: amar não é apegar-se. Ama-se quando se promove a liberdade do outro. O amor deve ser caminho de liberdade. A liberdade está intimamente ligada à gratuidade e esta, por sua vez, se traduz nas relações desinteressadas. O amor é livre e libertador e quem ama começa a experimentar já nesta vida o gozo da plena liberdade.

O maior inimigo do amor não é o ódio, mas a indiferença. Muita gente se convence disso, mas insiste na prática da indiferença, que se manifesta na frieza, no esquecimento do outro, na insensibilidade. A intolerância, a perseguição, a incompreensão, o desprezo, a hostilidade e tantos outros males são manifestações da indiferença. Estes males escravizam as pessoas tornando-as infelizes. Não há autêntica felicidade fora do amor que se faz doação.

O amor a Deus não quer dizer que Deus esteja carente e necessitado do nosso amor. Deus nos ama porque sabe que nós necessitamos do seu amor para vivermos, sermos salvos e felizes. Somente Ele é completo e é a fonte do verdadeiro amor. Com Deus aprendemos a amar o próximo; por isso que o amor a Deus de todo o coração, alma e entendimento é o maior e o primeiro mandamento. Deus nos ama na liberdade para nos tornar livres, na incondicionalidade para amarmos incondicionalmente o próximo.

Inseridos na religião precisamos tomar cuidado com os sistemas religiosos. Estes são constituídos de leis, normas, códigos, regras, disciplina e de múltiplas orientações a respeito de tudo. Nada pode impedir a prática do amor. Nenhum sistema religioso pode se colocar acima do mandamento do amor. Ninguém está obrigado a obedecer a qualquer que seja a lei que se oponha ao amor a Deus e ao próximo. Nenhuma lei salva, mas somente o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (cf. Rm 5, 5). O fiel cumprimento dos preceitos religiosos não nos assegura felicidade nem salvação, mas somente o amor.

Neste sentindo, ensina-nos o apóstolo Tiago: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção deste mundo” (Tg 1, 27). Socorrer os órfãos e as viúvas em aflição significa colocar-nos a serviço dos empobrecidos e marginalizados; manter-se livre da corrupção deste mundo quer dizer que não devemos nos comprometer com as estruturas injustas, que geram as diversas formas de opressão existentes no mundo. O amor ao próximo consiste neste socorro do outro e neste manter-se (permanecer) livre da corrupção.

A verdadeira felicidade do ser humano se encontra no amor, dom gratuito de Deus para ser vivido entre nós, seres humanos: é caminho de humanização. Por isso, é tempo perdido buscarmos nossa felicidade fora do amor. O que existe fora deste é a ilusão de tudo aquilo que passa, porque somente o amor permanece para sempre.


Tiago de França

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A Igreja e os jovens


“Os jovens são sensíveis a descobrir sua vocação a ser amigos e discípulos de Cristo. São chamados a ser ‘sentinelas da manhã’, comprometendo-se na renovação do mundo à luz do Plano de Deus. Não temem o sacrifício nem a entrega da própria vida, mas sim uma vida sem sentido” (Documento de Aparecida, n. 443).

Nunca foi promissora a relação entre a Igreja e os jovens. É verdade que na história recente da América Latina, os jovens se identificaram com as lutas que foram travadas contra os governos ditatoriais. Colégios católicos, pastoral da juventude, associações de jovens, sindicatos e outros movimentos se manifestaram contra a repressão e a tortura. Sem os jovens, tais manifestações não teriam acontecido. Um exemplo disso foi o caras-pintadas, que consistiu no movimento estudantil que protestou contra o Governo Collor, tendo como desfecho a impugnação do mandato (impeachment) do presidente Fernando Collor de Mello.

Neste período os jovens se identificaram com os movimentos eclesiais de cunho libertador (Comissão Pastoral da Terra, Pastoral da Juventude do Meio Popular, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Comissão de Justiça e Paz e outros). Tais movimentos estavam inseridos nas lutas sociais por libertação, e os jovens tinham ideais claros e convicções profundas. Com o apoio da Igreja, os jovens enfrentavam muitas situações complexas, que exigiam disposição, coragem, inteligência e estratégias eficazes de ação política.

Atualmente, a situação é bem diferente: há certa separação entre fé e política. Isto explica a ausência da maioria dos cristãos nas lutas políticas que ainda existem na sociedade. Desconfia-se que a fé não tem repercussão política. Os cristãos decidiram-se pelas práticas religiosas. Estas são mais fáceis, cômodas, menos complexas. A preocupação está na reta celebração do culto, sendo que este tem pouco vínculo com os problemas do mundo pós-moderno. Há certo esforço por parte de pessoas, grupos e movimentos; mas, de modo geral, o desinteresse pelo político e pelo social é evidente.

Os jovens estão decepcionados com a política. Esta decepção leva-os ao desinteresse. Isto poderia inseri-los num modelo de Igreja apolítico, mas não é o que acontece. Por que não acontece? Porque eles não se identificam com as práticas religiosas, principalmente com a Celebração Eucarística. Basta escutá-los para ver que consideram tais práticas “coisa de velho”! Certo dia, quando indaguei a um jovem a respeito de sua ausência nas celebrações, eis o que respondeu: “Não gosto dessa parada de missa, acho estranho, cansativo; o padre fala coisa que não tem nada a ver, mas não tenho nada contra”. Este jovem representa bem a maioria dos demais.

Há dois extremos opostos entre si que precisam ser considerados e evitados na relação entre Igreja e jovem: primeiro, que a Igreja sempre está correta e os jovens sempre estão errados, pois são rebeldes, recusam-se a escutar e obedecer; segundo, que são eles que estão corretos, pois a Igreja é atrasada, não se atualiza, é moralista e autoritária. Se a situação for encarada a partir destes extremos, jamais haverá evangelização de jovens. Todo extremismo é equívoco, desrespeito e agressão à liberdade; portanto, não constrói nada.

Para pensar na evangelização dos jovens é preciso considerar, antes de qualquer coisa, que eles não são crianças, não são adultos nem idosos. É necessário, portanto, pensar no jovem a partir de sua realidade. É perda de tempo e há muito desgaste quando tratam o jovem como se ele fosse criança. Isto significa infantilizá-lo. Também não adianta exigir dele pensamentos e atitudes de adulto e idoso, pois não haverá correspondência. Adulto e idoso não tem nada que ver com o jeito jovem de ser. Assim sendo, é preciso rever a linguagem e os métodos para evangelizar o jovem.

Festas, banalização do corpo, violência, drogas, falta de interesse pelos problemas sociais e pelos estudos, frustrações, forte carga de alienação, carência afetiva, vazio existencial (perda de sentido da vida), ausência de perspectivas e ideais etc. são alguns dos mais graves problemas que afetam a vida dos jovens de hoje. Não é fácil falar para jovens que se encontram afetados por estes males. O discurso tradicional da Igreja não funciona. Eles já sabem de cor o que pensa a Igreja a respeito de suas vidas, por isso não param para escutá-la; sabem que ela sempre parte daquilo que é negativo em suas vidas.

Segundo o jovem, a Igreja é a moral instituída. Ela lembra ordem, proibições, leis, pouca ou nenhuma liberdade, autoridade. De modo geral, os jovens não se dão bem com a figura da autoridade (pais, políticos, padres, professores, polícia, patrão). Há sérias dificuldades em conciliar autoridade e liberdade. De fato, historicamente, a figura da autoridade sempre ameaçou a liberdade do ser humano. Falar de autoridade é falar de um modelo tradicional de obediência no qual há um que manda e outro que obedece; o que manda sempre está certo, por isso, o súdito precisa obedecer. Dentro deste modelo não há liberdade.

Para evangelizar os jovens, a Igreja precisa rever três questões: 1) suas estruturas; 2) sua linguagem e 3) sua moral sexual. A revisão deve levá-la a ser uma instituição mais humana, com abertura, diálogo, dinamismo, alegria, espontaneidade, audácia e profetismo. Sem esta revisão tudo não passará de tentativas frustradas e a realidade continuará do mesmo jeito.

A Igreja precisa se atualizar (aggionamento), se quiser realmente evangelizar os jovens, pois num mundo onde tudo evolui e se transforma, toda realidade que apresenta resistências à atualização termina por ser rejeitada por aqueles que não se contentam em permanecer do mesmo jeito. O permanecer do mesmo jeito está ligado à rotina, que consiste na repetição irrefletida de hábitos e costumes (esquemas fixos e estabelecidos). Por outro lado, a rotina confere segurança porque tudo está no seu devido lugar, no seu devido horário e regido conforme regras fixas e, às vezes, inquestionáveis. Os jovens têm dificuldades para se inserir em instituições com estilos de vida regrados e quase que imutáveis.

Por fim, é preciso considerar a necessária mudança de mentalidade, pois sem esta nenhuma outra é possível. A abertura ao novo que questiona e desafia é de fundamental importância para que haja mudança de mentalidade; do contrário, pode-se até admitir os equívocos, mas as reais mudanças não acontecem. O ser humano age segundo suas concepções, e se estas não são devidamente atualizadas (recicladas), a conversão não acontece.


Tiago de França

domingo, 16 de outubro de 2011

Dar-se a Deus


“Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21).

O texto evangélico deste XXIX Domingo Comum (cf. Mt 22, 15 – 21) fala da tentativa frustrada dos fariseus de “apanhar Jesus em alguma palavra”. Jesus de Nazaré era perseguido tanto pelas autoridades civis quanto religiosas de seu tempo: os fariseus eram os que mais o perseguiam. Eles não perdiam nenhuma oportunidade para pegar Jesus em algum gesto ou palavra. Eis a primeira característica do fariseu hipócrita: observar as práticas religiosas para acusar os que não a praticam. Além disso, esconder-se por detrás das mesmas para tramar a desgraça do próximo.

As práticas religiosas não libertavam os fariseus. Aparentemente, eram bons; mas por trás da aparência piedosa, eram lobos ferozes, capazes de tramar a desgraça e a morte de seu semelhante. Em outras partes do evangelho Jesus os acusa de mentirosos, de sepulcros caiados, de ladrões, de assassinos, de serem filhos do diabo. Jesus não tinha medo deles e não perdia nenhuma oportunidade para desmascará-los. Eis uma primeira mensagem do texto evangélico: ter cuidado com os que são apegados às práticas religiosas, mas que são incapazes de amar o próximo.

Nas comunidades cristãs há pessoas que são extremamente religiosas: cultuam a Deus, pagam o Dízimo, são devotas dos santos e do rosário de Maria, participam das pastorais e movimentos etc., mas não perdem a oportunidade de prejudicar o próximo. Tais pessoas são como os fariseus: vivem preocupadas com a vida alheia tendo em vista a perseguição e a difamação do próximo; gostam de impor pesados fardos nas costas dos outros, fardos que elas mesmas não conseguem mexer com um só dedo; mostram-se excessivamente exigentes para serem reconhecidas como responsáveis e caridosas.

Outra característica do fariseu é a falsidade. “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências”. Estas palavras dos fariseus são verdadeiras, mas a intenção deles é falsa, portanto, hipócrita. De fato, Jesus era verdadeiro, ensinava o caminho de Deus, não se deixava influenciar pela opinião dos outros e não julgava as pessoas pelas aparências: tudo isto é verdade. O problema é que os fariseus se utilizaram destas verdades para elogiar Jesus e tentar pegá-lo em alguma palavra. Frustraram-se.

Há pessoas que fazem a mesma coisa: utilizam-se de elogios para prejudicar o próximo. Elas sabem que os elogios envaidecem facilmente, por isso, utiliza-os para deixar o outro alegre, levando-o a pensar que a intenção é verdadeira e, portanto, honesta. Jesus descobriu a falsidade dos fariseus, escondida por trás do elogio. Eles eram tão maus que se utilizavam da verdade daquilo que é a pessoa de Jesus para matá-lo! Na comunidade cristã, tomemos cuidado com os falsos elogios, com o excesso de palavras bonitas que nos dirigem, principalmente, oriundas daqueles que sabemos que não se identificam com nosso jeito de ser.

Os fariseus perguntaram a Jesus se é lícito pagar o imposto ao imperador César ou não. Esperavam sim ou não como resposta. Diferentemente daquilo que esperavam, respondeu-lhes Jesus: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Se Jesus tivesse respondido sim, seria um erro, pois o imposto a César explorava os pobres; se tivesse respondido não, teria sido imediatamente acusado de ser agitador político contra o Império. Jesus denunciou o imposto injusto ao Imperador sem precisar cair em contradição consigo mesmo, sendo que isto era o que os fariseus e os partidários de Herodes queriam que acontecesse. A maneira como Jesus respondeu o livrou da morte repentina: ele precisava viver mais um pouco para cumprir sua missão.

O imposto é uma das formas de participação cidadã. No atual modelo de sociedade, a arrecadação de impostos continua sendo uma injustiça: arrecada-se muito dinheiro e reverte-se pouco em serviços públicos de qualidade à população. Além disso, escandalizam e causam indignação os desvios das verbas públicas por parte de governantes desonestos em todas as instâncias dos poderes legislativo, executivo e judiciário. A arrecadação de impostos foi pensada de tal maneira que não há quem escape: em tudo, explícita ou implicitamente, há impostos. Isto significa “dar a César o que é de César”. O mercado, os governos injustos e todas as formas de poder opressor são os Césares dos nossos dias.

Dar-se a Deus: eis a atitude que liberta integralmente o ser humano. Impelido pelo Espírito do Senhor, o cristão assume a missão de Cristo sendo sal e luz do mundo. Dar-se a Deus não é mera atitude subjetivista ou intimista, mas presença amorosa junto às pessoas que sofrem, preferentemente os pobres. “Dar a Deus é o que é de Deus” significa a oferta de nós mesmos na obra divina da salvação do mundo. Abertos e disponíveis, o Senhor nos chama para a missão de criar novo céu e nova terra: Reino de Deus, justiça e paz. Atender ao chamado divino é dar-se, sem reservas, a Deus.


Tiago de França

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O dia quer nascer


Hélder Câmara, boca de Deus
Disse um dia
Que depois de uma prolongada noite nasce
O dia

Noite:
Escuridão, dúvidas, solidão, deserto, escassez, falta...
Medo, covardia, silêncio omissivo, traição
Estagnação

Há homens ilustres da noite
Amantes daquilo que é noite, não daquilo que parece noite...
Nas caladas planejam...
Planejam silêncios, ameaças, distorções, sutil e maliciosamente

Dia:
Claridade, transparência, grito, abundância, coragem...
Rostos suados, movimento, transformação
Liberdade

Há filhos do dia
Amantes daquilo que é dia, não daquilo que parece dia...
Gritando, clamando, caminhando, arriscando-se, perseguidos em meio aos gemidos...
Livres

E o dia não vem,
Que agonia!
E a noite não passa,
Que calamidade!...

Poucos gostam do dia,
Muitos amam a noite...
E a criação geme em dores de parto
E a criança não nasce!...

E o novo quer respirar
O velho que se impor...
E as pessoas olham, gritam, choram
Estão com fome.

Fome
De justiça, de pão, de paz.
Fome
De amor, de liberdade, de vida.

A vida,
Quer, ousada e sufocadamente,
Viver.
Porque sobreviver é pequeno, é pouco, é nada...

A vida,
Escondida, sufocada, maltratada, perseguida,
Morta,
Viverá. Sempre e permanentemente,
Virá, sobreviverá e, enfim, viverá...


Tiago de França

terça-feira, 27 de setembro de 2011

São Vicente de Paulo: um místico a serviço dos pobres


“Lembre-se, padre, de que vivemos em Jesus Cristo pela morte em Jesus Cristo, e que temos de morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo e que nossa vida tem que estar oculta em Jesus Cristo e cheia de Jesus Cristo, e que para morrer como Jesus Cristo, tem que se viver como Jesus Cristo”. (P. Coste I, 295, 320).

Os místicos são pessoas que vivem mergulhadas em Deus. A Igreja da época de São Vicente era marcada pela vida monástica, pois o Concílio de Trento tinha enclausurado os religiosos. A meta era alcançar a perfeição na vida puramente contemplativa, separada do mundo. A reflexão teológica e a piedade ajudavam a cultivar uma vida santa. A leitura das Regras Comuns deixadas por São Vicente mostra claramente o rigor disciplinar e ascético a que estavam submetidos os religiosos.

São Vicente percebeu que a vida de clausura não levava à verdadeira santidade, que tal estilo de vida não tinha fundamentação evangélica, pois lendo o Evangelho descobriu que Jesus foi enviado para evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18); descobriu que Jesus não viveu uma vida enclausurada, distante das pessoas. A meditação evangélica e a triste situação da vida dos pobres de seu tempo levaram-no a concluir que Jesus é o missionário Pai, o evangelizador dos pobres.

Neste sentido, São Vicente percebeu que o ministério presbiteral na Igreja só tem sentido se o presbítero se colocar a serviço dos pobres, porque este foi o ofício do Filho de Deus. Aqui está a centralidade do carisma e da espiritualidade vicentina. Fora deste ofício divino não há missão verdadeiramente cristã e vicentina. Na Igreja, a Família Vicentina tem a missão profética de desempenhar este ofício divino. Certa vez, Karl Rahner, um dos maiores teólogos da Igreja do séc. XX afirmou que no séc. XXI não haveria separação entre ser cristão e ser místico.

Para entender o jesuíta Karl Rahner seria necessário discorrer a história dos grandes místicos nos diversos períodos da história do Cristianismo. Aqui não é lugar para isto, mas, a partir do testemunho de São Vicente podemos ousar algumas afirmações, pois graças ao Espírito do Senhor, no séc. XVII, fora da vida monástica ele conseguiu ser um místico no serviço dos pobres.

Anthony de Mello, SJ, um místico cristão de espiritualidade oriental falecido em junho de 1987, aos 56 anos de idade, em sua obra Apelo ao amor, falando da santidade afirma: “O segundo atributo da santidade é a ausência de esforço” (p. 50). Ser místico é ser santo a partir do amor, no amor e para o amor. Segundo A. de Mello, a santidade não é fruto do esforço humano, não pode ser desejada, não é fruto da consciência da pessoa nem pode existir juntamente com os apegos.

O místico é uma pessoa livre dos apegos. Ele só precisa do amor para viver. O apego às pessoas, às coisas e a si mesmo é causa de impedimento para que exista o místico. Este não se preocupa com nada, a não ser com o amor; amor que não é posse do outro, mas abertura permanente para o outro. Abertura não para a dependência do outro, mas para o amor para com o outro. O místico não depende de ninguém para ser feliz. Ele não é especial para ninguém nem pessoa alguma lhe é especial.

Para o místico, o outro é simplesmente pessoa. Esta não lhe representa superioridade nem inferioridade. Neste sentido, o medo deixa de existir em sua vida. As ameaças, os condicionamentos, constrangimentos, perseguições, incompreensões e até a morte não significam nada para o místico: nada disso tira a sua vida. Elogios, aplausos, críticas, premiações, honras e tantas outras coisas tidas como boas e que são oferecidas aos homens também não significam nada para o místico: ele não depende destas coisas para viver. A isto chamamos liberdade.

No interior da Paraíba aprendi com um místico a seguinte verdade: “Tu não dependes do louvor nem da crítica para viver, mas somente do amor. Ama e serás verdadeiramente livre. O que importa é Jesus e a força de Deus, o Espírito. Quando estiveres convicto disto nada mais te interessará, mas somente o amor, pois é o amor que permanece para sempre, o resto é apego e passa”. Viver segundo esta verdade é ser místico. O Evangelho mostra que Jesus foi assim: livre. Por isso que sua mensagem pode ser chamada Evangelho da liberdade.

Para viver num estado místico de vida é preciso cultivar a atenção ao essencial, deixando de lado tudo aquilo que tenta desviar e/ou desvirtuar. Há muitas coisas neste mundo que não levam à verdadeira felicidade, o místico se despoja de todas estas coisas. Neste sentido, o místico é uma pessoa livre das ilusões, da alienação e da agonia provocada pela pressa e pela busca desgastante de ser feliz. Quando percebeu que a verdadeira felicidade se encontra na fonte da vida, que é Deus, o místico não perde o seu tempo com coisas supérfluas e/ou futilidades.

Assim foi São Vicente, não fez outra coisa na vida senão amar o próximo, preferencialmente os pequenos e sofredores. Nestes encontrou a felicidade, encontrou Deus. As autoridades religiosas e civis, assim como as mulheres e homens ricos da época ficavam admirados ao vê-lo e escutá-lo; assim como as multidões ficavam admiradas diante de Jesus de Nazaré. Quem viu São Vicente esteve diante de homem entregue a Deus e aos irmãos. A isto chamamos santidade.

Infelizmente, o barulho e as coisas produzidas pelo homem têm levado à perturbação e ao consumismo. As pessoas perdem a paz de espírito consumindo, incansavelmente. A doutrina mercadológica é: consuma e seja feliz! Esta doutrina invadiu as Igrejas cristãs e estas manejam grandes somas de dinheiro. O mercado religioso oferece todas as bênçãos e milagres que as pessoas precisam para serem escravas e perturbadas da cabeça. É uma verdadeira maldição! No fundo, as pessoas nunca se libertam, e não se libertam porque foram buscar a libertação no lugar errado.

Felizmente, no silêncio da vida das Igrejas e do mundo há mulheres e homens místicos. Eles não aparecem porque o aparecer lhes é incompatível. São tão simples que, na maioria das vezes, morrem sem ser percebidos. Isto lhes é motivo de alegria, sinal de foram fiéis ao princípio evangélico da humildade, que exige discrição e simplicidade. Os místicos são pessoas de ações singelas e palavras profundas, quando discursam incomodam bastante, porque aproveitam para proclamar Jesus, Boa Nova do Pai para a vida e a liberdade do gênero humano.

São Vicente permite-nos dizer, finalmente, que a mística vicentina se dá numa vida que se encerra no amor aos pobres, numa vida que é pleno estado de caridade. Ele nos ensina que deixar-se conduzir pelo Espírito nos leva irresistivelmente ao encontro rosto do outro. E como dizia o filósofo francês E. Lévinas, o rosto do outro me fala, me interpela, me incomoda, clama por socorro, liberta-me. A isto chamamos alteridade. Não há prática do amor sem a alteridade. Que São Vicente interceda a Deus por nós!


Tiago de França

sábado, 24 de setembro de 2011

A religião e a humanização do ser humano


“Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21, 31).

Houve uma época em que se dizia que a religião era o único caminho que levava a Deus: fora da religião não existia salvação. O tempo passou e descobriram que continuar afirmando isso não daria certo, pois se constatou que muitas pessoas estavam fora da religião e a cada dia que se passa acentua-se cada vez mais a secularização e o abandono da religião tem se tornado claro e evidente. Ninguém ousa negar tal fato histórico.

O papa Bento XVI está na Alemanha, sua terra natal. Alguns católicos entusiasmados estão felizes ao reencontrá-lo e pedem socorro. Na Alemanha como em outros tantos lugares, os próprios católicos, em sua maioria, não acreditam mais a religião: estão cansados dos escândalos de pedofilia, querem a aprovação do casamento gay, a ordenação de mulheres, o fim do celibato obrigatório, a legalização do aborto e exigem uma Igreja mais humana e aberta às questões da vida pós-moderna.

Diante de tantos anseios, a Igreja se encontra sem saber muito o que dizer, simplesmente recorre ao seu sistema doutrinal tradicional. As pessoas param para escutar já sabendo o conteúdo do discurso papal. Elas sabem da dificuldade da Igreja no diálogo com questões pós-modernas, sabem que a Igreja mal assimilou o Concílio Vaticano II e que este precisa ser lido e atualizado, pois o mesmo não possui respostas para os problemas surgidos posteriormente à sua realização.

Neste sentido, o texto evangélico da Liturgia da Palavra deste XXVI Domingo Comum ousa nos apontar um caminho alternativo para a resolução desse impasse histórico que está levando à morte da religião. No texto (cf. Mt 21, 28 – 32), Jesus entra em conflito com as autoridades religiosas de seu tempo, autoridades que tinham os mesmos defeitos de muitas da religião atual: fechadas em si mesmas, puritanas, legalistas, autoritárias, prepotentes e inimigas da verdade e da liberdade.

Os religiosos do tempo de Jesus não o acolheram porque se decepcionaram com seu jeito de ser: livre e libertador. Todas as palavras e ações de Jesus de Nazaré entravam em contradição com aquilo que eles viviam. Assim, jamais poderiam chegar a um consenso nem viver unidos, pois Jesus não aceitava a hipocrisia e a exploração dos pequenos que se davam através das práticas religiosas. Estas práticas julgavam, condenavam e excluíam os pequenos e pecadores.

Os pequenos e pecadores viviam à margem da religião judaica. Para os religiosos, o problema de Jesus foi ter se enturmado com essa gente, se colocado definitivamente ao lado deles, vivido entre eles. Os religiosos queriam um Messias fiel à lei e que vivesse no Templo de Jerusalém, morada do Deus santo e puro, lugar dos sacrifícios de expiação pelos pecados. Apesar disso, era também lugar de humilhação, suborno e exploração. Jesus não era sacerdote nem levita, logo não se identificou com o Templo. O lugar de Jesus era no meio da raça pecadora, pois veio primeiro para as ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 15, 24).

Fica evidente, então, que Jesus aponta para os últimos. Estes são os seus prediletos. Para sobreviver no mundo, a religião precisa não somente estudar e olhar para os últimos, mas assumir seus clamores e lutas. Imediatamente após o Concílio Vaticano II houve certa efervescência na Igreja. Na América Latina, apareceu a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base, a Igreja se identificou com as lutas do povo contra as ditaduras, contra o neoliberalismo e contra todas as formas de opressão. Muitas pessoas foram martirizadas. As pessoas ficavam admiradas com muitos Bispos, Padres e leigos profetas. Nesta época, a Igreja era não somente respeitada, mas temida pelos poderosos.

E hoje, como estamos? O que aconteceu? Acabaram-se as lutas e a opressão? Basta assistirmos aos noticiários e olharmos à nossa volta para percebermos que a vida dos pequenos continua sendo massacrada. O que se questiona é a ausência da Igreja nas lutas dos pobres. É verdade que há Bispos, Padres, Religiosos e Religiosas, leigas e leigos inseridos nas lutas por libertação; mas, infelizmente, é verdade também que o número destas pessoas é pequeno.

Esta é uma constatação feita no Documento de Aparecida. Os Bispos sentiram a necessidade de alertar a Igreja para um maior compromisso com os empobrecidos (DA, 397 – 399). Desde a Conferência de Medellín se fala deste compromisso e o que assistimos é a crise deste mesmo compromisso. Assistimos a uma profunda crise de responsabilidade em todos os segmentos da sociedade, inclusive na Igreja. A maioria das pessoas só aceita uma religião de satisfação dos desejos na qual Deus não passa de uma mera fonte de milagres.

A situação do clero não é diferente, pois, infelizmente, há inúmeros “presbíteros mais preocupados com seu caráter e poder sagrados do que com uma presença significativa no mundo, com o diálogo com a sociedade, com serviço competente ao homem de hoje. No meio de tudo isso há presbíteros high-tech, uma espécie de sacralização pós-moderna: combinação de um discurso mágico-fundamentalista (apologético) com os recursos mercadológicos da comunicação de massa” (L. R. Benedetti, O “novo clero”: arcaico ou moderno?, in REB 49 [1999], p.89).

Eis o desafio atual: ou a Igreja se coloca definitiva e integralmente a serviço da humanização do ser humano, ou não irá sobreviver à crise interna que a definha aos poucos. Os cobradores de impostos e prostitutas estão aí, no mundo, à espera da Igreja. Lançar as redes para as águas mais profundas é mais do que uma necessidade, é uma urgência eclesial. Neste sentido, cultivar o diálogo, a abertura, a honestidade e acolher o novo que o Espírito faz surgir são atitudes fundamentais para que tenhamos uma Igreja mais humana e solidária.


Tiago de França

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Evangelho: Boa Notícia para quem?


“Deus amou tanto nosso mundo que nos deu o seu Filho. Ele anuncia a boa nova do Reino aos pobres e pecadores. Por isso, nós, como discípulos e missionários de Jesus Cristo, queremos e devemos proclamar o Evangelho, que é o próprio Cristo”. (Documento de Aparecida, n. 30)

O Evangelho em si é uma Boa Notícia para a libertação integral do homem e do mundo. Não é uma mensagem criada pela inteligência humana, não é uma ideologia, não é um tratado teológico, não é doutrina da Igreja, o Evangelho é Jesus Cristo, Filho de Deus Pai enviado por amor a este mundo. Toda pessoa que aceitar o chamado divino para o anúncio deve ter a plena convicção disso: deve-se anunciar Jesus Cristo tendo em vista a vida e a liberdade integrais do gênero humano.

Há um gravíssimo pecado no processo de evangelização: misturar Evangelho com discursos humanos. Estes possuem suas finalidades, que são sempre humanas, finalidades alicerçadas no interesse pessoal e grupal. Quando isto acontece, infelizmente, há certa deturpação da mensagem cristã. Esta deturpação consiste na manipulação da mensagem evangélica tendo em vista a alienação das pessoas. Apesar disso, o importante é que o acobertamento da verdade dura pouco, pois quando esta vem à tona, não há alienação que resista.

Quando a verdade contida no Evangelho, que é o próprio Cristo, é proclamada ao mundo, o Evangelho torna-se uma má notícia para muitas pessoas. Todos escutam a Boa Notícia do Reino, mas são poucos que a aderem com convicção e alegria: são os cristãos da beira do caminho, que ficam contentes ao escutar, acham bonita a proclamação da verdade que liberta, mas recusam-se a se libertar. As Igrejas estão lotadas destas pessoas e, de modo geral, elas só querem milagres e/ou escutar uma mensagem que reconforte o espírito.

Certo dia, parei para assistir a uma Missa em uma das TVs católicas: fiquei profundamente decepcionado! Até então, nunca tinha escutado tamanha deturpação da Palavra de Deus numa ação litúrgica. Admirou-me a capacidade do padre ocultar a verdade da mensagem cristã utilizando-se de historinhas infantis para, simplesmente, fazer os fiéis rirem e sentirem-se bem na Celebração. No fim daquilo que chamou de homilia, disse o padre: “Gosto de brincar na homilia porque sinto que as pessoas querem mesmo é se sentir bem!”

A Conferência de Aparecida constatou a necessidade de acolhermos melhor os fiéis na Igreja, uma vez que os cristãos não católicos sabem acolher melhor, mas isto não significa que devamos infantilizar nossas liturgias com recursos apelativos que chegam ao ridículo. O cristão praticante sério e comprometido sente-se, certa e profundamente ofendido, e com muita facilidade e razão se recusa a se fazer presente em atos litúrgicos como este. Coisas como estas acontecem porque fazem de tudo para ocultar Jesus Cristo e sua proposta.

A falta de formação cristã leva as pessoas a aceitarem certos absurdos. A maioria, além de aceitar, participa ativamente! Cai por terra todo projeto que visa construir uma Igreja missionária comprometida com as grandes causas do Reino de Deus. Acolher bem as pessoas e negar-lhes a Boa Notícia é um pecado que compromete seriamente a edificação do Reino de Deus. O chamado divino não está para o sentir-se bem, mas para o compromisso efetivo e afetivo com o amor e a justiça.

Jesus Cristo, o Nazareno, e o Reino de seu Pai devem ser o centro do processo de evangelização da Igreja; do contrário, não há missão. Quando se tira Jesus e o Reino do centro, todas as formas de infidelidade e pecado acontecem no seio eclesial.

A busca dos interesses pessoais e institucionais é uma gravíssima traição ao Evangelho. A Igreja nunca se deu bem quando marginalizou a Boa Notícia de Jesus de Nazaré, os resultados sempre foram confusão, perseguição não por causa do Reino, e morte de inocentes e de profetas. Muitos destes últimos chegaram a ser perseguidos e mortos pela própria Igreja. Esta sempre teve dificuldades para aceitar o Evangelho a que é chamada a anunciar, incessantemente.

A história não nos deixa mentir. Um exemplo disso foi o caso de santa Joana d’Arc (França, 1412 – 1431), acusada injustamente de ser assassina, embusteira e herege; foi queimada viva em praça pública. Mais de 500 anos depois, reconhecendo o grave erro e interessada em estreitar os laços políticos com o governo francês, a Igreja canonizou Joana d’Arc e a declarou padroeira da França. Ela foi elevada às honras dos altares pelo papa Bento XV, em 1920.

De fato, os poderosos deste mundo, as instituições descomprometidas com a vida e com a liberdade, e as pessoas que almejam o poder não conseguem aceitar o Evangelho de Jesus de Nazaré. Isto acontece porque a missão de Cristo estava centrada na promoção e defesa da vida dos pequenos e oprimidos. Os cristãos realmente comprometidos com esta missão de Cristo passam pelo mesmo Calvário que ele passou: experimentam o desprezo, o escárnio, a perseguição, a incompreensão e a morte.

A mensagem cristã é uma Boa Notícia para os pobres e oprimidos, que tem em Deus sua esperança e alegria. Em sua infinita bondade e misericórdia, Deus enviou Jesus Cristo ao mundo para evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18). Jesus é o Cristo, missionário do Pai e evangelizador dos pobres: esta é a Boa Notícia que incomoda os poderosos e opressores deste mundo. Todo cristão, discípulo e missionário do Reino, é chamado a anunciar esta Boa Notícia ao mundo. Este anúncio é a missão fundamental da Igreja. Fora deste anúncio não há seguimento de Cristo e não havendo seguimento não há missão.


Tiago de França

sábado, 17 de setembro de 2011

Reino de Deus: liberdade e gratuidade


“Buscai o Senhor, enquanto pode ser achado; invocai-o, enquanto ele está perto” (Is 55, 6).

É muito difícil para o ser humano compreender e aceitar o projeto de Deus, principalmente no mundo atual, marcado pelo jogo de interesses pessoais e corporativistas. Os espaços da liberdade e da gratuidade quase não existem, pois a escravidão e a indiferença dominam as relações interpessoais. Diante disso, Jesus nos apresenta Deus como um Pai bom e misericordioso, que age na liberdade e na gratuidade; um Pai que não impõe condições, que ama incondicionalmente o ser humano e neste amor liberta-o da escravidão e da indiferença. Vamos pensar a liberdade e a gratuidade a partir de Mt 20, 1 – 16, texto evangélico da Liturgia da Palavra deste XXV Domingo Comum.

Deus é o dono da vinha e chama para trabalhar. Há um campo vasto para a ação. O mundo é o lugar do encontro com Deus e da construção do seu Reino. Assim, Deus chama para trabalhar na edificação do seu Reino a partir das realidades mundanas. Este é o desejo divino. Por isso, a religião não pode se refugiar noutro mundo a não ser este, no qual habita conflituosamente o gênero humano. Quem fugir deste mundo, pensando e esperando a salvação num outro, vai perder-se eternamente. A vocação cristã é para o trabalho.

Há pessoas que não param de trabalhar, mas trabalham para si mesmas, em função de si mesmas. Os capitalistas de plantão não pensam em outra coisa a não ser o enriquecimento que, na maioria dos casos, acontece de forma desonesta e, portanto, ilícita. Estas pessoas passam pela vida e se perdem. Elas nunca param para pensar que tal vida não é vida, mas pura ilusão. O mundo está cheio dessa gente corrompida e alienada. Elas vivem iludindo-se pensando que são felizes. Não são trabalhadoras da vinha do Senhor.

Há pessoas que trabalham na vinha do Senhor, trabalham em função do Reino de Deus: são pessoas livres e generosas. São livres não porque não sofrem os condicionamentos da condição humana, mas o são porque depositam toda a confiança no Deus que as chamou para trabalhar. Quem se coloca a serviço de Deus tem nele a sua riqueza, segurança, alegria, proteção, salvação. Deus é a felicidade de seus operários. Ele não tem nada para recompensá-los, porque ele próprio é a recompensa. O ofício divino tem em Deus a sua plenitude.

Os que não trabalham na vinha do Senhor agem conforme a lógica humana e mundana, conforme a política das recompensas e das promoções. O mercado capitalista é marcado pela competição, onde o mais fraco não tem vez. A competência, a agilidade, a qualificação, a atualização são alguns dos valores que regem as relações trabalhistas. Assim, é visível que não há lugar para todos: são excluídos todos aqueles e aquelas que não conseguem acompanhar as exigências tidas como legais e fundamentais para o pleno funcionamento do sistema. Desse modo, como ficam os empobrecidos, que não têm condições para corresponder a tais exigências? São, impiedosamente, excluídos.

Há pessoas que aceitam o convite, comparecem na vinha, mas se recusam a trabalhar, só atrapalham porque querem levar vida fácil: não opinam, não participam, não se interessam com nada, gostam da crítica pela crítica, fechadas em si mesmas, são acomodadas e alienadas. Infelizmente, na vinha do Senhor não é pequeno o número desse tipo de gente. O trabalho não progride por conta da ociosidade destas pessoas. E como o estado ocioso de vida costuma levar a uma vida desonesta e corrompida, elas costumam ser motivo de escândalo e confusão.

Deus é livre, chama na liberdade e propõe a igualdade entre as pessoas. Enquanto o homem explorar seu semelhante não haverá liberdade nem igualdade. Por isso, liberdade e igualdade plenas somente no Reino de Deus, mas isto não significa que não se deva lutar pela dignidade do gênero humano promovida por estes dois valores fundamentais. O que Deus quer é o contrário daquilo que homem pensa, prega e tenta tornar legítimo: “Meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são os meus caminhos, diz o Senhor” (Is 55, 8).

A vontade divina é a liberdade do ser humano, pois somente na liberdade há verdadeira felicidade. Portanto, sem equívoco algum podemos afirmar que o homem pós-moderno está com sua liberdade totalmente comprometida pela ambição do ter, do poder, do prestígio e do saber. Há excessos em tudo, há gente desequilibrada em toda parte, principalmente dentro da religião. No saber, costuma ser vaidoso; no poder, quer dominar o próximo; no prestígio, sente-se superior aos demais; no ter, não se contenta com o necessário. O ser humano está gravemente enfermo e juntamente com todas as instituições por ele criadas e mantidas.

Assim como o patrão da parábola, que se mostra condescendente com os que chegaram por último, igualando-os com os que chegaram primeiro à vinha, o cristão deve aprender e cultivar o espírito da igualdade. Esta é dom da liberdade. O homem livre busca se conhecer e nunca se julga superior nem se impõe sobre os demais. As idéias, as palavras e as atitudes do homem livre são sempre propostas; somente assim a acolhida do outro é livre.

Deus é livre e libertador. Diante dele ninguém tem o direito de exigir tratamento diferenciado. Para Deus não há hierarquia nem titulação, todos são iguais porque ama a todos, incondicionalmente. Quem não aceitá-lo dessa forma corre o risco de construir um falso deus a partir das próprias projeções. Quer aceite, quer não, o ser humano é imagem e semelhança da bondade, da misericórdia e da liberdade divinas. Assim Deus o quis para a felicidade de todos.

Segundo o apóstolo Paulo, procurar viver a vida a partir destes valores é viver “à altura do Evangelho de Cristo” (Fl 1, 27). A Igreja precisa, urgentemente, de leigos e ordenados que cultivem um estilo de vida livre, generoso e misericordioso, a fim de que o mundo veja e creia na Boa Notícia de Jesus de Nazaré; do contrário, a crise na qual vivemos agravar-se-á sem esperanças de recuperação.


Tiago de França

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A cruz de Jesus


“Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, do mesmo modo é preciso que o Filho do Homem seja levantado. Assim, todo aquele que nele acreditar, nele terá a vida eterna”. (Jo 3, 14 – 15)

No dia 14 de setembro de cada ano, a Igreja celebra a festa da exaltação da Cruz de Cristo. Qual o significado desta festa? Ainda tem sentido falar de cruz após as Cruzadas realizadas pela Igreja? Por que falar de cruz após a presença de tal símbolo religioso ter sido questionada nas repartições públicas da Europa secularizada? Quem são hoje os crucificados da história? Vamos pensar a respeito do sentido da cruz na vida cristã.

Sem Jesus, a cruz perde seu sentido. Ela era sinal de maldição, mas Cristo a tornou sinal de liberdade, de vida, de salvação. O Crucificado é a expressão máxima do amor de Deus. Na cruz, Jesus assumiu sua missão até as últimas conseqüências. A cruz é também sinal da obediência de Jesus à vontade de seu Pai: entendeu e viveu sua vocação.

A vocação de Jesus se expressa no amor, amor que se manifesta na doação da própria vida; doação plena, livre e libertadora. Na cruz, Jesus participou misericordiosamente da sorte dos injustiçados deste mundo, a sorte dos pecadores públicos e das vítimas do Império Romano. Os judeus ficaram escandalizados diante do Crucificado, não o aceitaram como o Messias prometido. Eles pensavam: Como pode o Messias ser um fracassado na cruz, um maldito, motivo de vergonha pública?...

Na cruz, quis Deus entregar-se pela vida do mundo. Para entrar em comunhão com o sofrimento dos empobrecidos, Jesus entregou-se à morte na cruz. Assim, o Crucificado é também expressão da opção de Deus pelos empobrecidos e sofredores. Durante toda a história, os poderosos deste mundo crucificaram e crucificam muitas pessoas do povo de Deus. Por isso, o Crucificado entrou não somente em comunhão com estas pessoas, como também foi solidário.

Numa passagem do seu Evangelho, Jesus afirma que toda pessoa que quiser segui-lo terá que tomar a cruz. Não há seguimento sem cruz. A participação na cruz é exigência fundamental no seguimento de Cristo Jesus. Tal participação passa pela comunhão com os empobrecidos e sofridos, ou seja, somente quando estamos em comunhão de amor com toda pessoa atribulada pelo sofrimento é que estamos, de fato, em comunhão com a cruz de Cristo Jesus.

Na história da Igreja encontramos os profetas e os mártires, mulheres e homens que participaram dos sofrimentos de Cristo através da comunhão com os injustiçados deste mundo. O Espírito continua soprando e inspirando muitas pessoas dentro e fora da Igreja. No silêncio do anonimato há muitas testemunhas da cruz de Cristo: pessoas que lutam incansavelmente para que haja mais liberdade e vida no mundo. Estas pessoas não querem nem podem aparecer. Elas sabem que a profecia é ação, nunca estrelismo.

Essas testemunhas da cruz de Cristo não são bem vistas pela mídia, pelos governantes, por religiosos fariseus, pelas corporações que exploram e matam, por quem gosta da mentira e da falsidade e por tantos outros agentes das forças do anti-Reino que atuam neste mundo. São sal e luz do mundo, por isso, perseguidas, odiadas e, muitas vezes, assassinadas. Essas testemunhas anunciam a Palavra de Deus, nunca ideologia humana. A Palavra dói na consciência dos que se entregam à iniqüidade.

Anunciar esta Palavra pressupõe arrancar e destruir as forças do anti-Reino, sem medo, sem recuos, sem hipocrisia, com mansidão, com perseverança e com verdade. Esta Palavra é a única riqueza, é o sentido da vida, é o bem maior, é a última palavra sobre a vida terrena das testemunhas. Os inimigos da cruz de Cristo riem dos corpos ensangüentados das testemunhas que tombaram na luta incansável pela vida sem entender que elas ressuscitam com Cristo porque foram fiéis a ele até o fim, até as últimas conseqüências.

A pessoa que se recusa a assumir a cruz de Cristo não pode dizer que segue Jesus, não pode dizer que é cristã. Os que não são testemunhas da morte e da ressurreição de Jesus costumam se aproveitar do nome de cristão e da condição religiosa para ser alguma coisa neste mundo: são pessoas que querem ganhar a própria vida, vivendo no conforto, numa vida tranqüila, sem a mínima preocupação com a vida sofrida do próximo. Infelizmente, não é pequeno o número destas pessoas, tanto na Igreja quanto fora dela. Muito facilmente estas pessoas também se tornam inimigas da cruz de Cristo.


Tiago de França

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O anúncio da Palavra de Deus


Estamos no Mês da Bíblia. Anualmente, a Igreja recorda a necessidade do anúncio da Palavra de Deus. Na verdade, durante todo o ano anuncia-se a Palavra. Há três indagações que nos ajudam a pensar e/ou repensar o anúncio da Palavra: O que é a Palavra? Quem deve anunciar a Palavra? Por que anunciar a Palavra? Vamos pensar estas questões.

O que é a Palavra de Deus?

A Palavra é de Deus. Por isso, quem deseja anunciá-la não pode anunciar idéias ou uma ideologia, mas a Palavra. A Palavra de Deus é Jesus de Nazaré. Toda a Escritura Sagrada converge para ele. Jesus de Nazaré é a manifestação humana do amor de Deus para a salvação da humanidade. Esta Boa Notícia tem a força de libertar o ser humano da opressão do pecado e da morte. Quando a Palavra é anunciada, dissipam-se as forças que destroem o mundo e o homem.

Na Bíblia, algumas pessoas escreveram, por inspiração divina, a mensagem da salvação. É o livro sagrado dos cristãos e contém a revelação divina que se completa na pessoa de Jesus de Nazaré. Todo o livro sagrado foi escrito para comunicar a vida e a liberdade ao gênero humano. Não há outra finalidade senão essa. Este é o conteúdo verdadeiro da Bíblia: escrita para a liberdade.

Seus autores eram pessoas pecadoras, situadas em vários lugares e em diversas culturas. Por isso, não se pode exigir perfeição da redação bíblica. A mensagem da salvação está presente no conjunto elaborado por mãos e mentes humanas. Foi Deus que quis assim, não adianta sermos contra. A perfeição da vontade divina manifesta-se nas obras oriundas das mãos humanas. Assim, a Bíblia não conta histórias, não contém biografias, não tem cientificidade, não foi escrita para normatizar a conduta humana.

Quem deve anunciar a Palavra de Deus?

Quem nunca parou para escutar, entender e acolher a Palavra de Deus não pode anunciá-la. Como posso anunciar o que desconheço? Como levarei outras pessoas a crer naquilo que não creio? O anúncio é precedido pela experiência da escuta, do entendimento e da acolhida da Palavra. Não se trata de mera leitura, interpretação, conhecimento científico, que pode ser transmitido sem ser vivido. Trata-se do anúncio da Palavra de um Deus que nos ama e com seu amor quer nos salvar.

A consagração batismal autoriza e confirma o cristão para que anuncie a Palavra. O batismo é o sinal da acolhida da Palavra. Portanto, todo batizado é chamado a ser missionário da Palavra. Esta só chega à humanidade quando proclamada por aqueles que a acolheram. Acolher a Palavra significa não somente lê-la e entendê-la, mas esforçar-se em vivê-la, pois foi escrita para a vida. Quem verdadeiramente a acolhe não se contenta em guardá-la para si, mas anuncia-a com convicção e alegria ao mundo.

Quem não se dispõe a anunciar a Palavra ao mundo não pode afirmar que crê e vive a Palavra. Quando se busca vivê-la, isto já é anúncio. É possível viver a Palavra? Sem o auxílio da graça divina não se pode nem escutá-la, com o mesmo auxílio é possível vivenciá-la. O que é viver a Palavra? É, antes de tudo, compreendê-la; do contrário, tornar-se-á fariseu aquele que fizer uma leitura fundamentalista (ao pé da letra). O fariseu entende a Bíblia como um conjunto de leis e proibições e busca observá-las. A Bíblia não foi escrita com esta finalidade.

Por que anunciar a Palavra?

O mundo de hoje está ameaçado por diversas forças de morte que se manifestam de forma cada vez mais cruéis: guerras, miséria, fome, prostituição, preconceito, violência, intolerância, indiferença, ódio etc. A vida e a liberdade estão ameaçadas. O capitalismo agonizante continua ceifando vidas e, como a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, então os pobres são os que mais sofrem em todos os lugares do mundo, principalmente em muitos países do continente africano. Somente na Somália são 12 milhões de pessoas ameaçadas, que poderão morrer de fome nos próximos meses se ninguém as socorrer. Aquele país está sofrendo a pior seca dos últimos 60 anos.

O homem pós-moderno é um sujeito iludido, que não pensa no próximo, é egoísta. Afetado pela competitividade e pela indiferença cria um mundo para si e exclui seu semelhante. A cegueira é tão grave que mesmo ameaçado não se dá conta de que está vivendo numa constante autodestruição. Tal insensibilidade manifesta-se nas diversas formas de violência, na omissão dos países ricos em relação à situação calamitosa dos países pobres. Enquanto os EUA e a União Européia gastam bilhões de dólares mantendo guerras no Oriente Médio, milhares de pessoas morrem de fome na África e em diversas partes do mundo.

O anúncio da Palavra é anúncio da vida e denúncia das forças da morte. O missionário da Palavra é toda pessoa que se arrisca a revelar ao mundo a vontade divina através da pregação e do testemunho da própria vida. O martírio é a experiência de quem realmente corre tal risco. A realidade de nossas Igrejas tem mostrado que a omissão da verdade tornou-se prática comum. Fala-se de muitas coisas, mas foge-se daquilo que é essencial: a verdade que liberta. Mesmo dentro das Igrejas, a verdade continua sendo rejeitada. Há pessoas que anunciam a verdade, mas a maioria não aceita nem sequer escutá-la.

“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Vivemos num mundo quase que dominado pela mentira e pela confusão. A conseqüência disso é a crescente alienação e escravidão do ser humano. Jesus de Nazaré, verdade divina enviada ao mundo, inaugurou o Reino da vida, da verdade e da liberdade. Portanto, toda pessoa que aceitar anunciá-lo ao mundo, necessariamente, está aderindo à vida, à verdade e à liberdade. O Espírito Santo, força amorosa de Deus que age em nós, nunca nos abandona e nos coloca no caminho da fidelidade a este anúncio tão necessário para a vida do mundo e do gênero humano.


Tiago de França