domingo, 30 de janeiro de 2011

As bem-aventuranças na vida da Igreja


“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5, 3).

A Liturgia da Palavra do 4º Domingo do Tempo Comum oferece-nos o belíssimo texto das bem-aventuranças do Evangelho de Jesus segundo Mateus 5, 1 – 12. Os pobres ocupam o lugar central no conjunto das bem-aventuranças. Jesus diz que eles são bem-aventurados, ou seja, felizes. O que significam as bem-aventuranças? O que elas dizem à Igreja de nossos dias? Vamos pensar um pouco sobre cada uma delas, pois sua mensagem central motiva-nos a sermos construtores do Reino de Deus.

Onde e para quem Jesus fala

O início do trecho evangélico escolhido pela Igreja para este domingo situa Jesus num monte. Ele sobe ao monte e senta-se para ensinar. A subida é precedida pelo verbo ver: Jesus viu as multidões. Mateus apresenta Jesus como o novo Moisés, que sobe ao monte para promulgar a nova Lei. Naquele momento, o povo e os discípulos escutaram Jesus. Ele proclama a Boa Notícia para a vida e a liberdade das pessoas que ali se faziam presentes e para toda a humanidade de todos os tempos e lugares. O conteúdo do seu ensinamento leva-nos a pensar na alegria das pessoas que o escutarem. Ele reanima a esperança do povo mostrando que o Deus da vida está do lado dos empobrecidos e se faz presente nas suas lutas por libertação.

A bem-aventurança que resume todas as outras

“Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o Reino dos Céus”. Na interpretação que, comumente, se faz desta bem-aventurança aparece um equívoco perigoso: Alguns afirmam que Jesus não está falando das pessoas que padecem por causa da carência dos bens materiais, mas da pobreza espiritual. Assim, não importa se a pessoa é rica ou pobre, o importante é que ela ajude o próximo.

Na vida da Igreja esta perigosa interpretação só tem uma finalidade: Não incomodar os ricos. Em outras palavras, a Igreja sempre fez uma opção pelos ricos, ela sempre cai na tentação de acolher melhor os ricos em detrimento dos pobres. A sua história e a das antigas sociedades não nos deixam mentir. A opção pelos ricos foi tão forte na Igreja, que os pobres se convenceram de que são pobres porque não receberam as bênçãos de Deus, e que devem, por isso mesmo, respeitar e venerar os ricos; aceitando, assim, a pregação da Igreja.

Para os ricos a Igreja dizia e ainda diz: Os ricos podem ser salvos, para isto bastam ser piedosos e caridosos. Em outras palavras, os ricos sempre foram orientados pela Igreja não para viverem a justiça que constrói o Reino de Deus, mas para serem generosos com os pobres. Estes sempre foram assistidos pela generosidade dos ricos. Receber os sacramentos, participar da missa dominical, ter boa relação com o pároco da comunidade, contribuir com o Dízimo e outras ofertas, participar das construções dos prédios religiosos etc., sempre foram aspectos fundamentais da evangelização dos ricos. Eles sempre foram, são e continuarão sendo bem acolhidos. Deles nunca se exigiu que cessassem de explorar os pobres. Isto nunca foi considerado pecado que os impedissem de receber a Eucaristia.

Após o Concílio Vaticano II, a Igreja passou a falar da opção preferencial pelos pobres, principalmente na América Latina, através das reflexões realizadas nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e Caribenho. O Vaticano II ousou falar de comunhão e participação dos pobres na vida da Igreja. Mais de quarenta e cinco anos após a realização do evento conciliar a realidade tem mostrado que poucos passos foram dados para a conversão da Igreja.

Para os conservadores, que se dedicam à preservação da ortodoxia da Igreja e não tem tempo de fazer outra coisa senão celebrar Missas e administrar, fielmente, os sacramentos, os pobres são pedras de tropeço no caminho. Os pobres conseguem desacomodar a quem lhes dedica tempo e serviço. Evangelizá-los e deixar-se evangelizar por eles é um desafio constante à Igreja. Esta, apegada às suas pesadas e, muitas vezes, arcaicas estruturas tem encontrado sérias dificuldades. A realidade mostra que é mais fácil e mais cômodo evangelizar os ricos, pois estes têm riquezas, poder e prestígio; enquanto os pobres costumam não ter nada.

Os pobres são acusados de seres ignorantes, ingratos, preguiçosos, invejosos, desorganizados, mal educados, acomodados, revoltados, dados aos maus costumes e às práticas detestáveis. Muita gente afirma que é justamente por causa de tudo isso que eles não alcançam uma vida melhor, antes, envergonham a sociedade. No sistema capitalista, os pobres são descartáveis; quando se lembram deles é para o consumo exacerbado de bens baratos e de pouca e/ou péssima qualidade. Já ouvi um homem rico falar, estando à espera numa barbearia, que os pobres são a desgraça do mundo!

As demais bem-aventuranças também falam dos pobres, pois eles vivem na aflição, são mansos, tem fome e sede de justiça, são misericordiosos, puros de coração, promotores da paz, perseguidos e injuriados por causa da justiça, e vítimas das mentiras dos poderosos. Alguém pode discordar e acusar os pobres de serem violentos. Seria isso verdade? De modo algum! Tomemos o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como um exemplo para compreendermos melhor tal acusação falsa.

Quando o MST e outros movimentos de trabalhadores rurais sem terra aparecem nos jornais, principalmente nos da Rede Globo de televisão, são acusados de serem invasores. Os jornalistas não falam de ocupação, mas de invasão de terras. No Brasil, a mídia neoliberal e sensacionalista, que está a serviço dos latifundiários, trabalha pela criminalização dos movimentos sociais, principalmente do MST. Ocupações são, dissimuladamente, veiculadas como atos de violência contra a propriedade privada, como se a posse ilimitada da terra fosse um direito legítimo e natural.

Os pobres são acusados de serem violentos porque as pessoas que os acusam são cegas e ignorantes. Tal cegueira e ignorância são oriundas da alienação que o sistema consegue realizar em suas vidas. Pessoas alienadas não conseguem enxergar a realidade nem entender que a violência cometida pelas pessoas é oriunda da pobreza extrema, da fome, do desemprego, da falta de uma educação de qualidade que as capacite para o mundo competitivo do trabalho, de moradia e saúde de qualidade; enfim, da ausência daquilo que é considerado o básico e/ou necessário para a sobrevivência neste mundo.

Um pai de família desempregado, diante do choro ensurdecedor de seus filhos famintos, é capaz de saquear uma casa, pessoa ou um supermercado para trazer alimentos para os seus filhos. Está correta tal ação? De jeito nenhum! Mas, uma vez desesperado e sem saída diante da situação, não encontra alternativa senão agir dessa forma. Estaria esse cristão cometendo uma falta grave contra Deus? De modo algum! Até Jesus de Nazaré defendeu seus discípulos quando estes mexeram no campo de trigo alheio para colherem espigas ao sentirem fome (cf. Mc 2, 23 – 27).

Há um sistema que oprime os pobres tornando-os, muitos deles, violentos e criminosos. Um exemplo disso são os jovens envolvidos no tráfico de drogas. Cada jovem inserido no mundo das drogas tem uma história para contar, por trás de cada um deles há muito sofrimento e desamor. A realidade é tão grave e, portanto, violentamente imposta, que a inserção no mundo das drogas, na maioria dos casos, torna-se, infelizmente, irreversível. Tais jovens desconhecem os valores da vida, da liberdade, do amor, da solidariedade, da dignidade do ser humano. Os jornais que noticiam as práticas criminosas de tais jovens não falam da verdade de suas vidas, mas somente de seus crimes e desacertos.

As bem-aventuranças e a Igreja

Não é pequeno o número dos missionários, mulheres e homens, que trabalharam e tombaram na caminhada, na luta pela vida e pela liberdade do Povo de Deus, na opção preferencial pelos pobres. Estes missionários, enviados por Deus e instrumentos de libertação no meio do povo, anunciaram, anunciam e continuarão anunciando a construção do Reino de Deus. Eles também anunciam a ressurreição da verdadeira Igreja, como ensina e profetiza o teólogo Jon Sobrino. A verdadeira Igreja de Jesus é a Igreja dos Pobres, pois nela eles têm vez e voz.

Há uma Igreja preocupada com a liturgia que reforça a imagem piramidal da hierarquia, que é guardiã dos dogmas e das tradições, que tem a forte tendência de controlar as pessoas e o mundo, apegada ao poder, ao prestígio e à riqueza e que busca anunciar a si mesma. Esta Igreja está em crise, pois não está podendo se sustentar sem o fermento da massa que faz crescer o pão da justiça e da solidariedade. Na catacumba de Santa Flávia Domitila, em Roma, logo após o Vaticano II, Dom Hélder Câmara e outros poucos Bispos resolveram inaugurar um novo modelo de Igreja: a Igreja dos Pobres, ressurreição da Igreja primitiva. Trata-se de um modelo quase que esquecido, pouco mencionado, tido como arriscado e/ou perigoso.

É chegada a hora de retomarmos o Evangelho de Jesus. Estamos como que desorientados diante da suposta revolta da maioria dos católicos contra o modelo da Igreja tradicional. Os escândalos de pedofilia explodiram, muito se falou, pouco se fez para mudar as estruturas. A sensação atual é de um faz de conta de que nada aconteceu. Tudo está, aparentemente, bem. Nada precisa ser mudado. Ainda há quem participe das Missas e se faça presente na recepção dos sacramentos. Aos poucos, estamos nos acostumando e nos contentando com poucas pessoas. Já avisaram que a preocupação com o número é supérflua. Não sei se isto convence. Tudo terá seu desfecho. Esperar é preciso.

Retomar o Evangelho é procurar viver a bem-aventurança do amor. Este haverá de nos levar à plena participação no Reino de Deus. A Igreja precisa, urgentemente, lembrar de sua missão fundamental: a evangelização dos pobres. São Vicente de Paulo, missionário francês do séc. XVII ensinava que o trabalho de Jesus, o Filho de Deus, foi a evangelização dos pobres. Nós, desde o nosso batismo que nos faz missionários do Reino, somos chamados a realizar o mesmo trabalho. Fora deste trabalho não podemos falar de Igreja. Nesta, tudo deve convergir para a evangelização dos pobres; do contrário, estará sendo infiel ao mandato missionário de Jesus.


Tiago de França

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O silêncio como caminho para o encontro com Deus


Vivemos num mundo barulhento, onde as pessoas também se tornam barulhentas. Todos querem falar e serem escutados, infinitamente. Permanecer em silêncio hoje é não estar bem. Todos estranham uma pessoa silenciosa. Para uns, tal pessoa ou está doente, ou com raiva de alguém; para outros, ainda, tal estado pode ser sinônimo de timidez ou introspecção desmedida.

De fato, parece não ser agradável estar perto de uma pessoa que não fala com a voz. Para quem gosta de conversar, trata-se de uma situação esquisita. Mas não quero discorrer a respeito deste tipo de silêncio, mas do silêncio como caminho de encontro com Deus. Como ocorre, quando deve ocorrer e por que tem que haver tal silêncio na vida do discípulo missionário de Jesus de Nazaré?...

A experiência de Jesus de Nazaré deve ser o modelo por excelência. Jesus, missionário do Pai e evangelizador dos pobres, enquanto homem no mundo gostava de rezar. O Evangelho mostra que ele não recorria às sinagogas nem ao Templo de Jerusalém, mas às montanhas e lugares desertos. Esta é a dimensão contemplativa do missionário Jesus. No silêncio da madrugada conversava com o Pai a respeito da missão, recebia suas orientações e se reabastecia para a missão.

Alguém poderia perguntar: Mas Jesus precisava rezar? Apesar da oração não ser o tema da presente reflexão, é preciso responder positivamente: Sim, Jesus precisava. A oração não é coisa de pecador, mas diálogo filial com Deus. Dispensando as fórmulas, que também podem ser úteis, a oração é uma conversa amigável e livre com Deus. Amizade e liberdade devem caracterizar a relação filial do cristão com Deus, pois, assim, fazia Jesus.

Jesus rezava ao Pai no silêncio da madrugada. Isto fazia parte de sua vida, marcava-o, profundamente. Assim sendo, com toda clareza e segurança, podemos afirmar que Jesus se encontrava com o Pai no silêncio. Desde o antigo Israel, os patriarcas e profetas se encontravam com Deus no recolhimento orante do silêncio da montanha. O silêncio torna-se, assim, o lugar da intimidade com Deus. Em outras palavras, ele oportuniza um encontro fecundo e transformador.

Os antigos monges do deserto descobriram a riqueza do silêncio. Eles deixavam riquezas e prestígios para viver um eterno encontro com Deus. Com o passar do tempo, os monges descobriram que Jesus não se encontrava com Deus somente no deserto, no silêncio deste; mas no encontro com o semelhante, o próximo nosso irmão. Então, muitos deixaram os eremitérios e formaram comunidades de monges, a fim de se encontrar com o Senhor no encontro com o próximo.

A experiência dos monges ensina que o silêncio também oportuniza o encontro com os nossos demônios interiores. O ser humano tem demônios dentro de si. Trata-se do demônio da inveja, do ódio, da indiferença, da preguiça, da falta de solidariedade e tantos outros. No recolhimento orante de cada dia, o Espírito age, discreta e humildemente. Com a ajuda da graça divina, os monges se tornaram famosos na arte do conhecimento profundo da natureza humana.

O silêncio como caminho. Como entender isso? Antes de tudo, fazendo-o, livremente. O silêncio leva-nos ao mais profundo de nós mesmos, é um caminho de autoconhecimento. As pessoas que tem medo de si mesmas, de se descobrirem e de se amarem, evitam o silêncio. Para elas, trata-se de uma ameaça, um pesadelo e/ou uma experiência negativa. De fato, o caminho do silêncio é um caminho de morte, mas de uma morte que gera a vida.

Através do caminho do silêncio podemos chegar ao mais profundo de nós mesmos, lá onde se encontram as nossas misérias. Diante destas, contemplamos a grandeza de Deus. O encontro com nossas misérias pode parecer, à primeira vista, algo frustrante e desanimador. Inegavelmente, é o triste encontro com as forças da morte que residem e resistem em nós. No Evangelho, Jesus disse que o mal que nos torna impuros não está fora, mas dentro de nós.

O silêncio impele-nos ao reconhecimento de nossas misérias. Nós somos miseráveis! Descobrimos que em nossa humanidade somos, infinitamente, limitados; descobrimos também que boa parte das imperfeições que, facilmente, enxergamos no outro está dentro de nós mesmos. Inicialmente, sentimo-nos perdidos. Mas surge uma luz no fim do túnel: O reconhecimento de nossa miserabilidade já é um sinal certo do início de nossa transformação interior. Depois, o silêncio nos remete à certeza paulina que ensina, inspirada e libertadoramente, que em meio às fraquezas se manifesta a força divina. O Espírito está agindo.

Este processo tem um começo, mas não tem um fim nesta vida, estende-se à enternidade. Citemos um exemplo próximo de nós para compreendermos outra dimensão do silêncio: a dimensão profética. Desde os tempos de Seminário até sua morte, Dom Hélder Câmara (1909 – 1999) vivia a experiência orante do silêncio entre às duas e três da madrugada, cotidianamente. Durante o dia estava servindo ao povo, à noite subia a montanha do silêncio para o encontro com Deus.

O santo Bispo dizia que com o passar do tempo a experiência se tornou tão fecunda que passou a fazer silêncio estando no meio do povo. Este ficava admirado com suas palavras. Estas se revelavam palavras de Deus. Dom Hélder Câmara passou a ver, tocar, conversar e viver com Deus na pessoa dos empobrecidos num bairro pobre do Recife, PE. O curioso é que não apresentava sinais de anormalidades: visões, êxtases ou qualquer outro fenômeno paranormal. Ele aprendeu a contemplar a Deus estando no meio do povo.

Dom Hélder Câmara descobriu através da experiência de deserto de Jesus que o deserto é fértil, descobriu que a amizade com Deus é sinônimo de intimidade. Ele se tornou um amigo de Deus. Tornar-se amigo de Deus é uma experiência inexplicável, é um dom gratuito e transformador, é uma vocação libertadora. O santo Bispo passou a ver as pessoas e o mundo com os olhos de Deus. Diante dos que o perseguiam, ria numa paz admirável.

Quais os frutos que podemos colher do silêncio? A resposta é simples: Paz e alegria no Espírito Santo! Viver a paz e a alegria no Espírito significa ser totalmente do outro. O amigo de Deus não vive para si mesmo, mas para os outros; a sua vida pertence aos outros; torna-se, simples e humildemente, serviço permanente do outro. Assim, deixar-se conduzir pelo Espírito que nos conduz ao deserto (silêncio que nos faz encontrar conosco mesmos) é uma vocação. Infelizmente, nem todas as pessoas respondem a este divino chamado.

Infelizmente, as pessoas estão envolvidas pelo barulho que gera confusão, intriga, desilusão e tantos outros males. Vivemos num mundo atormentado. Atormentado não pelo demônio, mas pelo barulho ensurdecedor que nós mesmos provocamos. A TV, a Internet, o celular, a rua, as pessoas e tantas outras coisas nos perturbam dia e noite. Não temos tempo para nós mesmos, e caímos na tentação constante de vivermos sempre falando, demasiadamente.

Não estou condenando a expressão oral, pois somos seres falantes. A fala é, de fato, um valioso instrumento de humanização; mas a realidade tem demonstrado que não estamos tendo êxito na arte de falar. Fala-se muito e se constrói pouco. O excesso de fala desordenada tem causado ódio, que gera graves conflitos entre as pessoas e nações. A palavra mal dita tem levado muita gente à morte.

O silêncio que nos conduz a Deus no encontro com o outro impele-nos a ajudarmos o outro a se libertar por meio de palavras edificantes. O silêncio nos ensina a pensar naquilo que podemos e devemos falar; ensina-nos a palavra certa, na hora certa e para a pessoa certa. Se assim procedêssemos, o mundo estaria melhor, menos conflituoso e mais feliz. Certamente, o entendimento entre as pessoas seria maior.

Somos vocacionados à liberdade. O ser humano busca, consciente e inconscientemente, ser livre. “O homem é condenado a ser livre”, ensinava o filósofo Jean-Paul Sartre. Quem aprende a cultivar o silêncio descobre um valioso caminho de liberdade. Ele orienta-nos para a liberdade. Esta se mostra como uma conquista e são poucos os que a conseguem nesta vida. Em primeiro lugar, o silêncio nos liberta da alienação. Esta é a fonte de muitos outros males da vida humana. Quem consegue se livrar da alienação não está distante da liberdade, pois, gradativamente, vai se libertando das demais coisas que escravizam o ser humano.

Enfim, a experiência do silêncio que liberta é silenciosa. A experiência divina que daí decorre é mais ainda. O que dissemos nesta breve reflexão não chega nem à sombra da realidade feliz de quem experimenta o gozo inicial da plena liberdade. Trata-se de um caminho sagrado, trilhado por aquelas pessoas que ousam criar um mundo melhor a partir do encontro afetivo e efetivo com o Deus que cria e nos recria durante toda a nossa vida. O silêncio é uma experiência de encontro e de paz, de vida e de liberdade. Por isso, ouse silenciar e liberte-se de si mesmo e de tudo o que aliena e escraviza!


Tiago de França

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Chuvas e mortes na região serrana do Rio de Janeiro: resposta da natureza ou castigo divino?


Os brasileiros assistem, dolorosamente, à situação calamitosa da região serrana do Rio de Janeiro: muitas chuvas e centenas de mortes. O desespero diante da situação tem levado muita gente a pensar muitas coisas. Uns acham que a natureza está revoltada, outros que Deus está castigando o mundo. Cristãos que se deixam levar pelo dogmatismo e pelo fundamentalismo crêem que a mão de Deus está acabando com os iníquos.

A partir da experiência missionária de Jesus de Nazaré, o que pensar e dizer diante de tal situação? Se for Deus o culpado de tamanho número de mortos, não estaria ele contradizendo-se a si mesmo, uma vez que a Bíblia revela que Deus é amor e que do amor não procede o ódio? Se não é Deus o culpado, por que, então, que ele permite que aconteçam tamanhas desgraças? São questões que precisam ser pensadas à luz da razão iluminada pela fé.

Na verdade, não precisaríamos escrever um artigo tendo como questão o enunciado da presente reflexão, pois todos já sabemos da resposta: O que está acontecendo no Rio de Janeiro e em todo o mundo é a resposta da natureza à violência praticada pelo ser humano. As pesquisas científicas têm denunciado os diversos males que o ser humano tem causado à natureza. Desde a escola primária sabemos disso. Uma questão nos intriga: Por que será que mesmo sabendo que está violentando-se a si mesmo, o ser humano insiste num projeto socioeconômico que explora e destrói, impiedosamente, a natureza?... São inúmeros os avisos, constatações, previsões e estudos realizados por gente séria, que apontam para o fim trágico da humanidade, caso esta insista em continuar alimentando o capitalismo selvagem.

Assistindo e lendo os jornais percebemos, facilmente, a falácia que nunca convence e sempre se repete: As mortes poderiam ser evitadas se os governos planejassem melhor a edificação das moradias e das cidades. Asseguradamente, podemos afirmar que quando a natureza resolve responder às ações irresponsáveis dos seres humanos, não há cidade planejada nem equipada que suporte. Tudo é destruído. Não há inteligência que produza tecnologia suficiente que barre a revolta da natureza. Quando esta resolve se manifestar, num grito doloroso de socorro, infelizmente, muitas pessoas inocentes perdem a vida. É aqui que surge outra questão: Todos são responsáveis pela destruição da natureza? Claro que não!

Um trabalhador do campo, que cultiva respeitosamente a terra, não tem culpa nenhuma no processo contínuo de destruição da natureza. Afirmar que a culpa é do capitalismo selvagem não significa nada, não diz nada e não acusa ninguém. Então, de quem é a culpa? O capitalismo, expressão genérica que não diz quase nada, tem seus agentes; ou seja, é constituído por pessoas ambiciosas que detém o poder econômico que constrói empresas, que exploram e poluem a terra, a água e o ar. Os funcionários destas empresas, não tendo outra saída para sobreviver, aplicam-se às especializações das técnicas sofisticadas de exploração. Quem não aprende a lidar com as novas tecnologias, gradativa e silenciosamente, vai ficando para trás; tornando-se ultrapassado e, conseqüentemente, desempregado. E desemprego, por sua vez, só gera violência e mais mortes.

A partir de sua face enganosa e doentia, o capitalismo é um sistema que vicia e adoece as pessoas, chegando até a torná-las objetos de consumo. Trata-se de um sistema que envolve e compromete todos os aspectos da vida humana e que não permite outro projeto alternativo de economia. O segredo de tudo está no lucro e quem se envolve com o lucro não quer deixar mais de lucrar, torna-se escravo. No mundo capitalista todas as pessoas querem ter vantagens, ninguém aceita ser derrotado. A partir desta lógica, o exemplo de pessoa é aquela que conseguiu vencer, economicamente, na vida. Esta pessoa deve ser aplaudida, venerada e até adorada, pois os vencedores tornam-se ídolos.

O lucro não dá espaço para as pessoas pensarem no valor da natureza e de sua respectiva preservação. O lucro é incompatível com a idéia de cuidado. Cuidar da natureza, das pessoas e da vida como um todo, aos olhos do capitalismo, é coisa de gente alienada, coisa de quem não tem o que fazer. Para um empresário empreendedor é inadmissível renunciar ao lucro doentio e demasiado para cuidar e preservar a natureza. Para ele, isso se chama retrocesso e/ou prejuízo. Mesmo diante das catástrofes naturais, os grandes investidores e especuladores da economia capitalista não se convencem de que o mal não se encontra numa imaginária imperfeição da natureza nem numa intervenção divina, mas na busca insaciável do lucro que se dá na exploração criminosa dos recursos naturais.

Assim sendo, está mais que comprovado que Deus não tem nenhuma culpa no desequilíbrio da natureza. A tradicional teologia da criação ensina-nos que tudo foi, perfeitamente, criado por Deus e dado, gratuitamente, ao homem. Se não é o culpado, por que ele teria que intervir, evitando a destruição? A doutrina do livre arbítrio nos leva a entender que o homem é um ser livre e que pode fazer o que quiser de sua liberdade. Claro que Deus não nos chama para a irresponsabilidade, mas para o cuidado para com as pessoas e o mundo. Agora, se o homem resolve, livremente, destruir a natureza, a realidade tem mostrado que Deus respeita esta infeliz iniciativa. O ser humano precisa aprender a arcar com as conseqüências daquilo que faz. Infelizmente, tal aprendizado tem se mostrado doloroso.

É pecado afirmar que Deus não evita o mal? Seria Deus um ser frio e sem sentimentos? Mesmo sabendo que os sentimentos são da ordem da humanidade, cremos que Deus veio ao mundo na pessoa de Jesus de Nazaré e, compassivamente, agiu a favor das pessoas, especialmente das que se encontravam em situações desesperadoras. Assim sendo, Deus não é insensível e a história da salvação, que se encerra em Jesus Cristo demonstra, historicamente, que Deus se compadece do gênero humano e de toda a criação. Na verdade, não se trata de Deus evitar ou não o mal, mas de respeitar até as últimas conseqüências a liberdade concedida ao ser humano. A partir de Jesus de Nazaré, acertadamente, podemos afirmar que dói no coração divino ver tanta desgraça, mas a esperança cristã nos desperta para um novo céu e uma nova terra, que precisamos construir a cada dia.

É verdade que nossas explicações sobre a ação divina no mundo não conseguem abarcar uma realidade que é, por si mesma, misteriosa. Por que Deus não interferiu na morte de mais de setecentas pessoas no Rio de Janeiro e em outras tantas ocasiões?... Podemos apelar para várias hipóteses, mas temos que admitir que tudo se encerra no mistério daquilo que denominamos Deus. Ninguém consegue explicar, lógica e/ou racionalmente, a ação de Deus em nós e no mundo, porque Deus ultrapassa a nossa capacidade de imaginação e pensamento. O que falamos se pauta naquilo que nos foi revelado em Jesus de Nazaré e o mistério da vida deste também é inesgotável. As pessoas que pensam ser castigo divino a situação atual do RJ e do mundo inteiro se apegam às explicações mitológicas que precedem ao aparecimento das ciências e da técnica. Explicações que não explicam nada! Antes do aparecimento das ciências que explicam os fenômenos, tudo era culpa ou de Deus ou do demônio. Este, juntamente com os espíritos maus.

Apesar dos pesares da vida, cremos que Deus é amor e nos oportuniza compreendermos esta verdade salvífica. Diante daquilo que não compreendemos não nos resta outra alternativa senão o silêncio, mas não um silêncio omisso e irresponsável diante dos desafios da vida. Cremos no poder e na criatividade da inteligência humana, que deve buscar formas alternativas de subsistência, que não seja uma economia pautada somente no lucro. O ser humano precisa reaprender e/ou redescobrir o autêntico significado da palavra economia: do grego oikonomía, e significa a arte de bem administrar a casa. Oxalá se nossa economia tivesse como princípio fundamental o cuidado permanente de nossa Casa e Mãe comum, a Terra.


Tiago de França

domingo, 9 de janeiro de 2011

O Batismo de Jesus, o cristão e a missão


“Este é o meu Filho amado, no qual pus o meu agrado” (Mt 3, 17).

Após a Solenidade da Epifania (manifestação) do Senhor, a Igreja celebra a Festa do Batismo do Senhor. O título da presente reflexão resume aquilo que queremos refletir: Batismo, cristão e missão. Há uma íntima ligação entre estes conceitos que formam uma só realidade. Não há batizado que não seja cristão e missionário. Se houver, então temos um problema a resolver. Discorramos, conceitualmente, sobre cada parte daquilo que denominamos uma só realidade.

O Batismo de Jesus

Tendo em vista a doutrina tradicional da Igreja, que ensina a respeito da unidade consubstancial de Jesus com Deus Pai, tornando-o, assim, Deus feito homem, o Batismo é uma realidade desnecessária na vida de Jesus. Em outras palavras, duas indagações reveladoras se fazem necessárias: Se Jesus é o Filho de Deus, tendo, assim, a condição divina, por que foi ao encontro do profeta João Batista para ser batizado nas águas do rio Jordão? Para que servia o batismo realizado por João Batista?

O batismo realizado por João Batista tinha como fim a conversão dos pecadores. Estando diante do Messias (Ungido de Deus), o profeta não compreende o pedido de Jesus para ser batizado: “Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?” (Mt 3, 14). Mas como Jesus veio para cumprir toda a justiça, então pediu ao profeta que o batizasse. João concordou e o batizou. Uma vez que Jesus não precisava se converter, pois não era pecador; de fato, não precisava do batismo de João Batista. Este batizava as pessoas para que se convertessem para receber o Messias, aquele que viria para inaugurar o Reino de Deus.

No Batismo de Jesus temos dois aspectos que o diferencia dos demais batismos realizados por João Batista: A descida do Espírito Santo sobre Jesus e a voz reveladora de Deus. Jesus foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder (At 10, 38), foi ungido com o óleo da alegria e enviado para evangelizar os pobres (Prefácio – o batismo de Cristo no Jordão). A vinda do Espírito sobre Jesus, simbolicamente, na forma de pomba, é o sinal de que Jesus é o Messias e Filho de Deus, enviado a este mundo para a redenção da humanidade, redenção que se realizou por meio do anúncio da Boa Nova aos pobres e da inauguração do Reino de Deus.

Conforme a voz que revela a predileção de Deus por Jesus, seu amado Filho, o Ungido de Deus cumprirá fielmente a vontade divina através da missão. Impelido pelo Espírito, que sonda as profundezas de Deus, Jesus se torna o missionário do Pai, o libertador enviado, preferencialmente, para as ovelhas perdidas da casa de Israel. Jesus torna-se o centro da aliança do povo, luz das nações (Is 42, 6). A presença amorosa e salvífica de Jesus no meio do povo sinaliza a renovação da esperança de Israel, Deus continua cuidando e salvando o gênero humano. Jesus revela o cuidado de Deus por cada ser humano.

Este cuidado aparece nas palavras do Apóstolo Pedro: Ele [Jesus] andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos que estavam dominados pelo demônio, porque Deus estava com ele (At 10, 38). O povo de Deus sempre foi muito sofrido, abandonado e perseguido. Diante de tanto sofrimento e desalento, Deus se compadeceu e se compadece. A vinda de Jesus ao mundo é a maior prova do amor e do cuidado divinos.

O cristão e a missão

Toda pessoa batizada é chamada à condição cristã. Na Igreja, todos os batizados deveriam ser cristãos, mas, infelizmente, muitas pessoas estão longe de serem cristãs. O pior é que não se trata de pouca gente, mas da maioria. Há uma pergunta fundamental que nos auxilia na compreensão: Em que consiste ser cristão? Há duas respostas que, comumente, são dadas a esta pergunta. Utilizemo-nos, por exemplo, do cristão católico.

Muita gente acredita que o cristão é aquele que participa da Missa, recebe os sacramentos, paga o dízimo e pratica os demais atos de piedade (terços, novenas, promessas, romarias etc.). Na verdade, este também pode ser cristão, mas, antes de tudo, é um fiel praticante da religião, é um religioso. Não podemos confundir prática religiosa com prática cristã. É possível que religiosos sejam cristãos, mas é algo difícil. Uma coisa é ser um bom católico, outra é ser um bom cristão.

As pessoas que consideram que ser um fiel católico corresponde, de fato, a ser cristão costumam cometer um pecado gravíssimo: Julgar como infiéis a Deus aqueles que não possuem prática religiosa. Neste sentido, outra distinção necessária é sabermos que uma coisa é ser fiel a Deus, outra ser fiel à religião. Com isto não estou induzindo a pensarmos que a fidelidade à religião contradiz a fidelidade a Deus. Uma pode ou não contradizer a outra, tal contradição depende de como a pessoa vive as práticas religiosas. Se estas se apresentam como único caminho de se chegar a Deus, então a contradição é, visivelmente, presente.

Na verdade, de acordo com o Evangelho de Jesus, ser cristão ultrapassa toda e qualquer prática religiosa. Ser cristão não é, necessariamente, ser religioso. Ser cristão é seguir Jesus de Nazaré, tal seguimento se dá em meio às dificuldades e às infidelidades nossas de cada dia. Não se trata de uma mera busca pela perfeição pessoal, mas de engajamento na luta pela construção do Reino de Deus. Seguindo o exemplo de Jesus, o cristão deve passar no mundo fazendo o bem. Quando fazemos o bem estamos sendo operários da vinha do Reino. Esta é a vocação cristã, a missão do cristão.

As pessoas são batizadas para serem cristãs no seguimento de Jesus de Nazaré, e a missão da Igreja é anunciar esta Boa Notícia ao mundo. A Igreja nasceu para permanecer a serviço deste anúncio libertador, pois somente no seguimento de Jesus de Nazaré é que nos libertamos. A nossa libertação acontece na libertação do mundo. No seguimento de Jesus de Nazaré nos libertamos do egoísmo, do desamor, da alienação e de todas as demais formas de opressão. A nossa verdadeira vida está na conquista da liberdade dos filhos e filhas de Deus, é para isto que somos batizados. Esta conquista não acontece na mera luta contra os pecados pessoais, que quase não oferecem perigo algum; mas na luta contra os pecados estruturais e sociais, que geram fome, violência, discriminação, ódio e tantos outros males.

O Espírito Santo que desceu sobre Jesus e o guiou na missão é o mesmo que nos unge, consagra e guia na missão de cristãos. Somos assistidos pelo Espírito Santo em nossas dificuldades e fraquezas. A fidelidade de Deus nos motiva e nos chama à fidelidade e à confiança na sua Palavra. Só conseguimos cumprir a vontade divina quando nos deixamos conduzir pelo Espírito Santo, e o cumprimento da vontade de Deus se dá na realização da missão cristã. No batismo recebido na Igreja, somos escolhidos, consagrados e enviados em missão. Ninguém pode se autodenominar cristão fora desta missão.


Tiago de França

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Beata Lindalva Justo de Oliveira, virgem e mártir


A história da Igreja está repleta de mulheres que doaram suas vidas no exercício da caridade evangélica até a efusão do sangue. A mulher sempre foi um dos instrumentos mais valiosos de Deus na construção de seu Reino. Deus se serve da generosidade e da coragem de muitas mulheres que se dispõem a servir até as últimas conseqüências. Hoje, mais do que em outras épocas, a presença da mulher na vida eclesial é de fundamental importância. Ai da Igreja se não fosse a disponibilidade de muitas mulheres!

Em 1633, em Paris, na França, juntamente com São Vicente de Paulo, uma grande mulher chamada Santa Luísa de Marillac fundou a Companhia das Filhas da Caridade. Inicialmente, não passavam de pobres mulheres camponesas a serviço dos empobrecidos, dos marginalizados. Não eram freiras nem tinham convento, não eram ricas nem passavam pela formação intelectual, não eram filhas da nobreza nem estavam submetidas ao jugo das riquezas. Eram, simplesmente, pobres camponesas a serviço dos mais pobres entre os pobres.

Em Açu, no Rio Grande do Norte, aqui, no Brasil, no dia 20 de outubro de 1953, nasceu Lindalva Justo de Oliveira. Era filha do senhor João Justo da Fé, que tinha um pequeno sítio onde trabalha, incansavelmente; e de dona Maria Lúcia, doméstica dedicada à criação e educação de seus dezesseis filhos. Lindalva teve uma infância comum, sem anormalidades; cresceu no seio de uma família numerosa e muito religiosa. Aprendeu com os pais a ser piedosa, alegre e serviçal.

Em Natal, RN, morando com o irmão mais velho, Lindalva empregou-se como auxiliar de escritório e deu continuidade aos estudos. Ajudava à mãe e, nas horas vagas, prestava serviços como voluntária num abrigo para idosos, mantido pelas Filhas da Caridade. Ela não pensava em se casar e, pouco tempo depois, tendo iniciado o curso de enfermagem escreveu, em setembro de 1987, à Visitadora Provincial das Filhas da Caridade. Dois meses depois, foi admitida e enviada para fazer o Postulantado na comunidade do Educandário Santa Teresa, em Olinda, PE.

Após ter sido admitida no Seminário (Noviciado), na festa da Virgem do Carmo, no dia 16 de julho de 1989, recebeu o hábito e passou a ser chamada Irmã Lindalva. Terminado o Noviciado, em 26 de janeiro de 1991, foi enviada para o abrigo Dom Pedro II, em Salvador, BA, onde recebeu a missão de cuidar do pavilhão São Francisco, com 40 idosos, situado no primeiro andar do imponente edifício construído no séc. XIX. Além de ser responsável pelo pavilhão São Francisco, Lindalva, sempre que podia, visitava idosos e doentes na periferia da cidade com outras mulheres do Movimento de Voluntárias da Caridade Santa Luísa de Marillac.

Entre os idosos do pavilhão São Francisco, encontrava-se o senhor Augusto da Silva Peixoto, que não era idoso, pois contava, apenas, com 46 anos de idade. Por motivos, estranhamente, políticos este senhor foi acolhido em janeiro de 1993. Com a chegada do mesmo ao abrigo, começaram os problemas para a jovem Irmã Lindalva, que passou a ser assediada pelo mesmo. Diante das ameaças, a Irmã Lindalva reagiu, cautelosamente, avisando às demais Irmãs da Comunidade, assim como às amigas do Movimento de Voluntárias.

“Prefiro que meu sangue se derrame, do que ir embora daqui”, afirmou a Irmã Lindalva durante um recreio da Comunidade. Ela tinha um grande amor pelos idosos e por toda a Comunidade. Recusou-se, terminantemente, a fugir da realidade, dando continuidade ao exercício da caridade evangélica para com os pobres desvalidos. Esta firme, virtuosa e audaciosa coragem da Irmã Lindalva a conduziu para o derramamento de sangue, pois se recusava a satisfazer aos desejos inescrupulosos de seu perseguidor.

No dia 09 de abril de 1993, após ter participado da Via Sacra na Paróquia da Boa Viagem, a Irmã Lindalva se dirigiu ao abrigo para servir o café da manhã aos idosos. No jardim estava sentado Augusto, seu perseguidor. Este, que a esperava, subiu atrás dela, entrou pela porta dos fundos do salão e atacou-a pelas costas a golpes de facão, matando-a. O assassino matou-a com 44 golpes gritando as seguintes palavras: “Nunca cedeu! Está aqui a recompensa”. O criminoso foi julgado e preso, e a Irmã Lindalva foi proclamada Beata no dia 02 de dezembro de 2007. O solene rito de beatificação foi presidido pelo Cardeal José Saraiva Martins, que em nome do Papa Bento XVI veio realizá-lo em Salvador, BA. Foi uma festa linda de ver! Hoje, 7 de janeiro, é o dia escolhido pela Igreja para celebrar a memória do martírio da Beata Lindalva.

O que o martírio da Beata Lindalva diz ao cristão do mundo atual? Certamente, diz muitas coisas. Alegria, coragem e amor aos mais pobres são três qualidades marcantes da personalidade da Beata Lindalva. Para sermos, de fato, cristãos precisamos viver estas três qualidades, que são dons de Deus. Aos tristes, medrosos e aos mergulhados no desamor, a Beata Lindalva ensina que a caridade é o mandamento de Deus. Ela testemunhou com a vida o Cristo ressuscitado. Ela ensina, ainda, que a tristeza, o medo e o desamor tiram a vida do ser humano, desumanizam-no.

O que o martírio da Beata Lindalva diz à Igreja? A resposta é dura, mas tem que ser dada. O martírio desta santa Filha da Caridade recorda à Igreja sua missão fundamental: evangelizar. A Igreja nasceu para evangelizar. A Beata Lindalva foi assassinada no meio dos empobrecidos, ela chama a atenção da Igreja para o amor afetivo e efetivo aos empobrecidos. A partir desta verdade, podemos, acertadamente, afirmar que ela foi uma profetisa da caridade. A caridade é, em si mesma, profética. O sentido da missão da Igreja está no amor que se traduz no serviço aos empobrecidos, que são o rosto sofrido de Jesus de Nazaré. Fora do serviço aos empobrecidos, a Igreja se torna uma pedra de tropeço, uma instituição inútil no meio do mundo, digna do ódio e do desprezo das pessoas. A Beata Lindalva ensina que evangelizar é servir, servir com a palavra e com o suor do rosto.

O testemunho da Beata Lindalva Justo de Oliveira é uma prova amorosa da generosidade e do cuidado de Deus para com os sofredores deste mundo. Quando Jesus afirma no Evangelho que Deus continua trabalhando é porque ele se serve dos braços de pessoas disponíveis para a missão. A Igreja deve glorificar a Deus pelo testemunho desta santa Irmã de Caridade e pedir que o Espírito continue despertando mulheres e homens para o serviço amoroso e fraterno aos empobrecidos, que, na espiritualidade cristã e vicentina são os “nossos mestres e senhores”.


Tiago de França

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Ágape: o livro do padre Marcelo Rossi


Quando de passagem por uma livraria do aeroporto de Confins, em Belo Horizonte – MG, visivelmente, vi o livro Ágape, do padre Marcelo Rossi. O que me chamou a atenção foi o grande número de exemplares com um cartaz chamativo. Antes disso, li na revista Veja que tal livro se tornou um dos mais vendidos desde o seu lançamento. Algumas pessoas me pediram uma opinião sobre o citado livro. Pensemos sobre alguns aspectos.

O livro do padre Marcelo Rossi insere-se na lista dos livros de autoajuda, ou seja, não é uma obra teológica nem filosófica. O livro foi escrito tendo em vista os sentimentos dos leitores. O mercado editorial está marcado pelos livros de autoajuda. Estes são os que mais vendem, e por que vendem tanto? Porque estamos na era da depressão. A angústia, a ansiedade, a frustração e outros sentimentos que geram a depressão sempre existiram, mas nos últimos tempos tem aumentado o índice de pessoas com sintomas depressivos e com problemas sentimentais de toda ordem. Um especialista em psicologia sabe explicar, tecnicamente, a origem e a cura de tais sentimentos depressivos.

Estas situações levam as pessoas a procurarem ajuda. Esta pode ser encontrada, também, nos livros. Os autores, preocupados em ganhar dinheiro, escrevem para este público. As pessoas compram tais livros para se sentirem melhor, para aumentarem sua autoestima. Assim sendo, os livros de autoajuda estão direcionados para aquelas pessoas frustradas, desiludidas, angustiadas e ansiosas. Estas pessoas nunca se libertam destes livros, pois eles não as curam. Os autores escrevem de um jeito que gera dependência nos leitores. Estes sempre esperam o próximo livro do autor, para continuarem se “tratando”. São livros que exploram os sentimentos das pessoas, que se aproveitam das suas tristezas e doenças psicológicas.

O livro do citado padre não tem outra finalidade senão explorar os sentimentos das pessoas. O título é muito sedutor: Ágape, palavra grega que significa amor. De modo geral, os títulos dos livros de autoajuda costumam ser sugestivos, despertam a curiosidade. Esta entrelaçada com sentimentos de desespero leva à aquisição material de tudo aquilo que se propõe como cura. O livro do padre Marcelo Rossi não se utiliza de contos de fada nem de estórias, mas de interpretações superficiais e subjetivas do Evangelho de Jesus de Nazaré. O livro não é fruto da psicologia nem da teologia, mas do subjetivismo de um jovem padre da renovação carismática católica.

A capa do livro revela um pecado muito comum nos dias de hoje: a egolatria. A foto do padre é maior do que o nome do livro! Apesar de ser um padre diocesano, o mesmo aparece vestido num hábito religioso parecido com o dos franciscanos. De modo geral, os chamados “padres carismáticos” gostam de se destacarem a si mesmos nos livros, CDs e DVDs que lançam no mercado.

E por serem padres, costumam aparecer com gestos piedosos e com “cara de santo”, como diz o povo. Querem transmitir o espírito de santidade por meio da estética pessoal: cruz, hábito, cíngulo (cordão usado para prender hábito ou túnica na altura da cintura), casula (paramento usado por cima da túnica), mãos postas, olhar para o infinito, orando de joelhos, mãos para o céu etc. Estes gestos levam as pessoas a enxergarem o sagrado na pessoa do padre.

A maioria dos católicos não está preocupada com o seguimento de Jesus nem, conseqüentemente, com o Reino de Deus. Este é o motivo que explica o sucesso de livros como o Ágape. Trata-se de um livro que não fala nem conduz ao seguimento de Jesus. Se não fala do seguimento a Jesus, também não tem compromisso com o Reino de Deus, conseqüência do seguimento. Neste sentido, o livro não diz, absolutamente, nada.

O livro é mais um dos meios utilizados pelo padre Marcelo Rossi para ganhar muito dinheiro. Quando alguém pergunta para ele sobre o destino do dinheiro adquirido com a venda, ele responde: “Todo o dinheiro adquirido com a venda deste livro será destinado à construção do Santuário, em Santo Amaro, SP”. Na Igreja do Brasil, de uns tempos para cá, a construção de santuários tem se tornado uma grande fonte de renda! E o curioso é que a construção de tais santuários dura anos e, às vezes, décadas. Algumas construções se tornam eternas!

O que me chama a atenção é que não existe censura eclesiástica para livros como este. De fato, é compreensível a ausência de censura. O livro não fere a doutrina da Igreja nem a expõe. A censura eclesiástica existe para os livros dos chamados “teólogos da libertação”, que ousam repensar a Igreja e o seguimento de Jesus de Nazaré. Os livros destes teólogos não têm como destinatários pessoas frustradas nem deprimidas, mas mulheres e homens que desejam seguir Jesus de Nazaré e construir o Reino de Deus. Não são livros vazios nem sentimentalistas, mas de conteúdo profundo que refletem a verdadeira fé que nos coloca no caminho de Jesus de Nazaré.

Concluo com a indicação de mais um livro censurado pelo Vaticano. Trata-se da obra Outro cristianismo é possível – a fé em linguagem moderna, escrito pelo jesuíta Roger Lenaers, editado pela livraria Paulus. É muito bom ler os livros censurados pelo Vaticano, pois costumam estar entre os melhores.


Tiago de França