sábado, 26 de fevereiro de 2011

A centralidade do Reino de Deus


“Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6, 33).

No domingo passado (VII do Tempo Comum), refletimos sobre o mandamento do amor ao próximo, sobretudo aquele que é considerado nosso inimigo (cf. Mt 5, 38 – 42). Hoje, somos convidados a pensar a respeito da centralidade do Reino de Deus. O texto evangélico deste VIII Domingo Comum (cf. Mt 6, 24 – 34) ainda pertence ao discurso do sermão da montanha. Jesus está falando para os discípulos e para as multidões. Juntamente com as palavras do profeta Isaías e as de São Paulo, a Liturgia convida-nos, também, à confiança em Deus. Para ajudar em nossa reflexão, duas perguntas nos são essenciais: Em quem ou em que depositamos a nossa confiança? Qual o lugar de Jesus e do reino de Deus em nossas vidas?

A idolatria do dinheiro

Vivemos num mundo marcado pelo regime capitalista selvagem, sistema socioeconômico que tem como fim último a busca exacerbada do lucro a qualquer custo. Para obter vantagens econômicas, o capitalista destrói a natureza e o seu semelhante. Quem não produzir e consumir está excluído, ou seja, esquecido e descartado. A lógica do ter cada vez mais orienta a vida econômica.

A palavra de ordem é desenvolvimento. Este à custa do suor e do sangue dos mais vulneráveis. Muita gente trabalha, mas são poucos os que crescem e ficam ricos. A ascensão social pertence aqueles que procuram se especializar e servir ao mercado. Atrasada e excluída é a pessoa que não procurou acompanhar os avanços da técnica e das novas tecnologias.

Tal sistema relativiza os valores autenticamente humanísticos, porque o seu fim não está no bem estar geral da população humana. Interesses de pessoas e grupos sobrepõem-se ao bem comum. Tentam-nos convencer do contrário, mas a verdade é esta, quer aceitemos, quer não.

As desigualdades, as catástrofes ambientais, as guerras, a violência, o esgotamento psicológico do ser humano e tanto outros males que poderíamos citar são as conseqüências inaceitáveis do sistema capitalista. O sistema é tão forte e persuasivo que as numerosas reflexões e declarações em favor da humanização realizadas em todo o mundo (Fórum Social Mundial, Carta da Terra, Declaração Universal dos Direitos do Homem, Legislações Ambientais etc.) não conseguem convencer o ser humano para a construção de um mundo melhor.

As recentes catástrofes ambientais ocorridas no Brasil e no mundo, mesmo matando milhares de pessoas, também não conseguem chamar a atenção do ser humano para o cuidado com o planeta. O deus dinheiro torna o homem cego, mudo e surdo. A espiritualidade do cuidado para com a natureza não faz parte da vida dos capitalistas, porque tal espiritualidade os convida à preservação e à promoção do planeta Terra, nossa Casa comum.

O problema não está somente nos empresários, donos das grandes corporações e autores dos grandes investimentos, mas também nas demais mulheres e homens, que são vítimas da ideologia capitalista. Infelizmente, até os governos, que deveriam ser os primeiros promotores da justiça ambiental, também investem na exploração da natureza por meio de obras faraônicas. Um exemplo claro disso é a insistente e injusta construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Estado do Pará; que consiste num dos maiores crimes ambientais da história da Amazônia. Isto mostra que não passam de governos manipulados e impulsionados pela ideologia do desenvolvimento desenfreado.

Há pessoas que não conseguem viver em paz, porque não pensam em outra coisa senão em ganhar dinheiro: dormem e se levantam pensando no que tem e na possibilidade de acumular cada vez mais. O grande medo é perder o que tem, ou seja, a perda daquilo que tem equivale à perda do sentido da vida. Há ricos que ficam depressivos quando perdem as riquezas. Há outros, ainda, que se suicidam, porque não suportam viver na simplicidade da vida dos pobres. Para os sedentos de dinheiro, a felicidade consiste no ter em detrimento do ser.

Afirmei logo acima que o sistema capitalista relativiza os valores humanísticos, ou seja, os valores que constroem e promovem a dignidade da pessoa. Pois bem, o ter em detrimento do ser significa esta relativização de tais valores. A solidariedade é um dos valores mais afetados pelo ter.

Quem é rico não costuma ser solidário com quem é pobre, pois a solidariedade exige a experiência da partilha. Esta, dificilmente, faz parte da vida dos abastados. Certa vez, escutei um homem rico dizer: “Esse negócio de partilha é coisa de gente tola!” Será que este homem conseguiria partilhar o que tem sem antes converter-se ao Evangelho da partilha e da solidariedade?...

O servir a Deus ou ao dinheiro

Para todos aqueles que colocam o dinheiro no centro de suas vidas e o tem como valor absoluto, diz Jesus: “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Não há meio termo: ou se deve servir a Deus, ou ao dinheiro. Jesus é claro e não deixa margens para falsas interpretações. Servir ao dinheiro não é receber o salário e comprar o necessário para a manutenção da vida, mas colocar o dinheiro no lugar de Deus, ou seja, viver em função do dinheiro, acumulando-o.

Jesus recomenda, ainda, que não fiquemos preocupados com o que comer, vestir e beber, pois, “vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso”. Somos, comumente, dominados pela preocupação exacerbada com os bens necessários à vida. No texto evangélico deste Domingo aparece três vezes a expressão “não vos preocupeis”, que não pode ser interpretada como um convite à ociosidade, mas de um chamado à confiança filial em Deus. Confiar em Deus é tê-lo como o absoluto e centro de nossa vida.

A confiança existe quando conhecemos as pessoas, pois, dificilmente, se confia em estranhos. Por isso, precisamos nos tornar íntimos de Deus, porque é na intimidade que se constrói a confiança. Quanto mais conhecermos e amarmos a Deus tanto mais lhe confiaremos o cuidado de nossa vida. Ninguém pode dizer que acredita em Deus se a ele não se confia, porque o acreditar está, intimamente, ligado ao confiar. A plena segurança de nossa vida não está naquilo que temos e somos, mas em Deus, que é nosso rochedo e salvação, a fortaleza onde encontramos refúgio em meio às adversidades de nossa existência (cf. Sl 61).

Por fim, Jesus chama-nos a atenção para a centralidade do Reino de Deus em nossa vida cristã e eclesial: “buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça”. O reino de Deus é aberto a todos, portanto, todos podem buscá-lo. Assim como Jesus anunciou a chegada do reino e o inaugurou, toda pessoa que deseja seguir Jesus deve viver, durante toda a vida, a experiência de anúncio e construção do reino de Deus. As nossas limitações não podem nos eximir de tal missão: “Os discípulos de Jesus não podem deixar de fazer a experiência de sua fraqueza. Mas Deus quer usar a fraquezas de seus servidores para construir o seu reino. A sua força acompanha a fraqueza dos seus servidores” (COMBLIN, José. A profecia na Igreja. São Paulo, Paulus, 2008, p. 71).

Buscar o reino de Deus é, em meio às fraquezas que nos são inerentes, buscar construí-lo, incansavelmente, neste mundo dilacerado por injustiças de toda ordem. Portanto, a missão do cristão e da Igreja deve ser a de se colocar a serviço da libertação integral dos injustiçados, das vítimas de instituições e pessoas que não se cansam de perseguir, destruir e matar a natureza e o próprio ser humano. Tudo deve convergir para o reino de Deus, do contrário, a nossa religiosidade é vã e medíocre, não servindo para nada senão para alienar e legitimar as forças do anti-reino que operam neste mundo.


Tiago de França

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O amor aos inimigos


“Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!”
(Mt 5, 44)

A Liturgia da Palavra deste VII Domingo Comum tem como tema central o amor ao próximo. No domingo passado discorremos a respeito da observância da lei, agora somos chamados a pensar no amor ao próximo, principalmente o próximo inimigo. Será que é possível, efetivamente, amar os inimigos? Quem são estes inimigos? Para quem Jesus está falando? Quais as implicações da inimizade e do amor aos inimigos na comunidade cristã? É possível ser cristão e ao mesmo tempo odiar o próximo? À luz da fé e da palavra de Jesus vamos refletir sobre estas questões.

DEUS É SANTO E NOS CONVIDA À SANTIDADE

Na primeira leitura (Lv 19, 1 – 2. 17 – 18), Deus revela-se a si mesmo como Santo e nos chama à santidade. Em seguida, faz quatro exigências para que tal santidade, de fato, seja efetivada: 1) Não ter ódio no coração contra o próximo, nosso irmão; 2) Repreender o próximo; 3) Não procurar vingança nem guardar rancor e 4) Amar o próximo como a si mesmo.

1) Não ter ódio no coração contra o próximo, nosso irmão. O ódio é um sentimento negativo e de morte que tem a força de destruir pessoas e comunidades, e que provoca na pessoa uma profunda vontade de destruir o outro. Quem se deixa dominar por aquele perde a capacidade de amar este. Valores como solidariedade, respeito, compreensão etc. deixam de fazer parte da vida de quem procura cultivar o ódio.

O próximo deve ser visto e considerado como irmão, pois o verdadeiro irmão não se torna inimigo. Este é visto como um ser que precisa ser banido, perseguido e eliminado. O irmão é aquele que compreende, que é solidário, que está junto nas alegrias e adversidades da vida. O cultivo da verdadeira amizade erradica a possibilidade do surgimento do inimigo. O valor por excelência que caracteriza a autêntica amizade é o amor. Somos chamados a confiar nos amigos porque sabemos que nos amam, e, justamente porque nos amam não devem se tornar nossos inimigos.

A partir do Evangelho, aprendemos que em Cristo somos irmãos. Aprendemos, também, que o amor que impulsionou Jesus a dar a sua vida para salvação do mundo (cf. Jo 3, 16 – 17) deve ser o mesmo que nos faz irmãos e amigos. O amor de Deus nos convence, orienta e capacita a amarmos o próximo, porque em Cristo este é nosso irmão. Em outras palavras, a prática do amor a Deus se dá através do amor ao próximo.

Conforme a segunda leitura (2 Cor 3, 16 – 23), o próximo é, ainda, o santuário de Deus. O santuário é o lugar do culto. Este é ação de graças ao Deus fonte de toda bondade. Assim, bendizemos o amor que Deus tem por nós através do amor, do respeito, da solidariedade e da justiça que devemos ter para com os irmãos. Assim, o próximo é sagrado, porque é lugar da presença de Deus, templo do Espírito Santo. Somos sagrados porque a nossa origem e nosso fim último se encontram em Deus. Esta compreensão leva-nos à erradicação plena do ódio.

A profanação do ser humano é um desrespeito e uma luta contra o próprio Deus.

2) Repreender o próximo. A repreensão do próximo é, realmente, uma linguagem um pouco forte e, talvez, inconveniente. O livro do Levítico resume-se num conjunto de leis e normas para orientar a conduta e a santidade do povo de Deus. Portanto, a linguagem é direta e um pouco seca. A partir de Jesus de Nazaré podemos compreender tal repreensão como correção fraterna. Esta evita que o conflito entre as pessoas se prolongue e chegue a dimensões piores e, muitas vezes, insuperáveis.

A correção fraterna deve ser humilde e simples. Quem corrige deve ter a sensibilidade necessária para o respeito e a compreensão do próximo. A correção fraterna não está para a satisfação do próprio ego, mas para o bem comum. Deve-se corrigir porque o bem da pessoa e da comunidade é o objetivo fundamental a ser alcançado.

Não se corrige o próximo para humilhá-lo e/ou escandalizá-lo, mas para ajudá-lo a se converter. É bom lembrar que a idoneidade é necessária para que tenhamos respaldo para corrigirmos o próximo que, porventura, errou; pois disse Jesus: “Hipócrita, tire primeiro a trave do seu próprio olho, e então você enxergará bem para tirar o cisco do olho do seu irmão” (Mt 7, 5). A correção fraterna ajuda-nos a vivermos o amor ao próximo.

3) Não procurar vingança nem guardar rancor. A vingança é filha do ódio e tem como aliado o rancor. São três terríveis sentimentos que tiram a vida do ser humano e podem comprometer a sua salvação. A leitura e meditação evangélicas nos asseguram que o Deus e Pai de Jesus não está preocupado com o pouco ou muito que podemos e devemos realizar, nem com o nosso espírito de piedade nas práticas religiosas, nem com o cumprimento fiel das leis e prescrições tidas como sagradas; mas com a intensidade do nosso amor para com o próximo.

Seremos julgados pelo amor. Para Deus, pouco importa os nossos títulos e capacidades, mas somente o empenho de tudo isso na construção do seu Reino. A vinda e a entrega de Jesus de Nazaré na Cruz, assim como a sua Ressurreição dentre os mortos é a prova maior de que Deus quer nos tornar plenamente humanos no amor e para o amor. Deus é amor e a nossa realização e salvação encontram-se nele. Portanto, a nossa vocação última é o amor. Este e somente este é capaz de nos libertar do ódio e do rancor.

4) Amar o próximo como a si mesmo. O fato de encontrarmos o mandamento do amor ao próximo como a si mesmo no livro de Levítico leva-nos a entender que este mandamento não era novo para os judeus. Estes já o conheciam. O chamado à santidade é anterior à vinda de Jesus de Nazaré, o Messias. Desde a escolha e eleição de Israel como povo de Deus, o Senhor (Javé) já o chamava a ser um povo constituído por mulheres e homens santos.

O povo de Deus é chamado a se santificar não segundo a lei, mas segundo o amor ao próximo. Jesus nasce e torna-se herdeiro desta tradição, pois foi educado na escola judaica que tinha como orientação fundamental a lei dada por Moisés. A este é atribuída a redação do livro de Levítico; neste, os capítulos 17 – 26 traduzem a Lei de Santidade e trazem orientações e/ou prescrições para o povo, a fim de que aprenda a sabedoria divina que conduz à santidade. Assim sendo, qual a novidade trazida por Jesus no que se refere ao mandamento do amor ao próximo?

O AMOR AOS INIMIGOS: NOVIDADE TRAZIDA POR JESUS

No seguimento de Jesus há algumas exigências fundamentais, uma delas é o amor aos inimigos. De fato, esta exigência parece impossível quando consideramos a natureza do ser humano, que o leva à ofensa quando é ofendido. No início do capítulo cinco do Evangelho segundo Mateus, Jesus afirma: “Felizes os mansos, porque possuirão a terra”, e no texto evangélico da Liturgia deste Domingo (Mt 5, 38 – 48), diz: “Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo: não enfrenteis quem é malvado!”

Jesus convida-nos à mansidão, que nos leva a evitarmos o conflito pelo conflito. Este gera violência e o cristão não pode se tornar um promotor da discórdia. Isto não quer dizer que a paz é ausência de conflito. Há uma nítida diferença entre conflito e violência. Comumente, esta se apresenta como um fim em si mesma; enquanto que o conflito pode ser um meio para se alcançar a paz. Quando revidamos uma ofensa recebida estamos sendo violentos do mesmo jeito.

“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’ Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!” O que significa amar os inimigos? Diante daqueles que nos ofendem, costumamos agir de duas maneiras: ou revidamos a ofensa recebida com outra bem pior, ou nos afastamos, imediatamente. Jesus não recomenda nem uma coisa, nem outra. Então, como devemos proceder?

Na verdade, Jesus está chamando a atenção para aquilo que ensinou na oração do Pai nosso: “Perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6, 12). Perdoar a quem nos ofende não significa sujeição; mas não ter ódio no coração, não procurar vingança, nem guardar rancor. Estas são as condições para recebermos o perdão divino. Amar os inimigos não é fazer-lhes falsas declarações de amor, mas perdoá-lo, verdadeiramente.

Muita gente pensa que amar o inimigo significa, após a ofensa recebida, sujeitar-se ao mesmo ou implorar-lhe que seja retomada a amizade perdida. É verdade que devemos procurar a reconciliação com aqueles que nos ofendem, mas se isto se mostra impossível, ou seja, se o outro se recusa, o Evangelho pede-nos, simplesmente, que rezemos por ele. Amar os inimigos significa não odiá-los, mas entregá-los nas mãos de Deus que sabe, pode e conhece todas as coisas. Esta entrega acontece na experiência da oração.

Com o mandamento do amor aos inimigos, Jesus ensina-nos, também, a vermos o mundo e as pessoas com os olhos de Deus. Deus não nos ver, nem nos trata com rancor e ódio, mas com amor paternal. Ele não se cansa de nos perdoar e amar. O amor que Deus tem por nós é sem fim (cf. Sl 118, 1). Amar a Deus é amar o próximo, porque neste se manifesta a sua presença amorosa.

Não se ama a um Deus concebido pela razão, mas aquele que está entre nós, cotidianamente presente na vida do mundo e das pessoas (Mt 1, 23). Com a vinda de Jesus de Nazaré aprendemos que Deus não é uma idéia, nem uma ideologia, mas uma realidade salvífica presente no mundo. O convite é para amarmos a Deus na pessoa de nossos inimigos. Isto é possível, arrisquemo-nos!


Tiago de França

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Saber controlar a língua


“Se alguém pensa que é religioso e não sabe controlar a língua,
está enganando-se a si mesmo, e sua religião não vale nada”
( Tg 1, 26).

Mais do que em outras épocas, vivemos numa sociedade que preza o discurso. Hoje, fala-se, demasiadamente. A Internet e o celular são os maiores meios de comunicação, pois quase ninguém deixa de utilizá-los. A competição entre as operadoras facilitam a vida do consumidor, levando-o à adesão daquela que oferece um tempo maior e mais barato nas ligações. A regra é falar muito e pagar menos. Tem-se a impressão de que as pessoas estão se comunicando mais e melhor. Mas será que é verdade?

Nas férias, me encontrei com um amigo canadense que depois de termos conversado um pouco sobre as novidades da vida, disse: “Tiago, que bom te ver! Já estava mesmo cansado dessa comunicação virtual que a Internet nos oferece”. Estas palavras do meu amigo nos revelam o grande equívoco ocasionado pelo mau uso dos meios de comunicação acima mencionados: as pessoas estão evitando se encontrar pessoalmente, e estão cultivando cada vez mais o contato virtual.

virtualidade das relações nos leva a um pecado gravíssimo, que está se tornando comum em nossos dias: refiro-me às relações superficiais e, conseqüentemente, pouco duradouras. As relações tornam-se, aos poucos, descartáveis. De modo geral, relações virtuais são marcadas pelo excesso de palavras e pela mentira. As pessoas se escondem por trás de perfis imaginários e/ou inventados, ou seja, criam ou um personagem para a satisfação dos interesses momentâneos, ou o estilo de pessoa que desejam ser (idealização).

Há uma confusão no contato com as pessoas que assim procedem porque é difícil saber se elas, de fato, corresponde aquilo que está expressando. Isto é mais comum no uso da Internet (Orkut, Twitter, Facebook, MSN etc.). Através desses meios, as pessoas dizem que se amam e se consideram, que são amigas umas das outras até as últimas conseqüências. Quando tais expressões de amor não são precedidas do contato pessoal que alimenta a verdadeira amizade, tudo não passa de superficialidade. Com isto não estou afirmando a inviabilidade ou a ineficácia dos meios citados, mas ressalto o valor do bom uso dos mesmos.

Iniciei falando das formas atuais de comunicação porque é através delas que costumamos pecar com a língua. A citação do apóstolo Tiago acima descrita chama-nos a atenção para o valor do controle da língua. A sabedoria indiana ensina: “Ao falares, cuida para que tuas palavras sejam melhores do que o teu silêncio”. O mundo seria diferente se este provérbio fosse, rigorosamente, observado. Certamente, haveria menos violência entre pessoas, grupos e nações, e teríamos uma convivência mais saudável.

A verdadeira prudência no falar ensina-nos a falar e a calar na hora certa e nos locais oportunos. A nossa fala deve ser precedida do ato racional, ou seja, devemos pensar antes de falar. A confusão existe quando isto não acontece. A mentira e a difamação são os piores males da fala irrefletida. A palavra que edifica é aquela oriunda da reflexão pessoal e constituída de reta intenção. Quando não temos o que falar, calar é a justa e reta opção.

A falsa prudência nos fala do silêncio como pecado de omissão. Há pessoas que não falam porque são omissas, pois têm medo de falar, recusam-se à verdade. Elas dão a impressão de serem prudentes, mas como disse Jesus no seu Evangelho, estão procurando salvar a própria vida em detrimento da vida do próximo (cf. Mt 16, 25). O pecado de omissão é a covardia que se expressa no silêncio, característica de quem se recusa a se comprometer com a verdade que liberta (cf. Jo 8, 32).

A disciplina da língua auxilia, também, no autoconhecimento de si mesmo e na promoção de uma sociedade alicerçada na justiça e na paz. Uma palavra mal-dita tem o poder de provocar uma guerra no mundo. A maioria dos conflitos entre os povos, poderes constituídos e religiões deriva de palavras mal-ditas. Vejamos um exemplo para compreendermos melhor.

No séc. XIV, o imperador bizantino Manuel II escreveu a respeito do profeta Maomé acusando-o de ter trazido à humanidade uma religião (Islamismo) má e desumana. As palavras do imperador causaram sérios conflitos com os povos islâmicos. Quando o Papa Bento XVI proferiu seu discurso Fé, razão e universidades: Memórias e reflexões na Universidade de Regensburg (Alemanha) citou, repetidamente, o argumento do imperador Manuel II. Na ocasião, disse o Papa referindo-se ao profeta Maomé e ao Islã: “A violência é incompatível com a natureza de Deus e a natureza da alma”.

A expressão papal em si está correta. De fato, toda forma de violência é incompatível com a natureza divina e com a da alma, mas ao afirmar isso se referindo ao profeta Maomé naquela ocasião, infelizmente, ofendeu os povos islâmicos dificultando, assim, o diálogo inter-religioso. O pedido de desculpas foi exigido pelas principais autoridades religiosas do Islã, mas, como sempre acontece, a secretaria de imprensa do Vaticano publicou nota tentando se explicar. O Papa se equivocou e o padre Federico Lombardi, responsável pela mencionada secretaria tentou amenizar a situação. Não conseguiu.

Assim sendo, a palavra que verdadeiramente edifica tem como fundamento a humildade e a verdade. Falar com humildade significa reconhecer que o outro também tem algo a falar. Isto implica a escuta e a valorização daquilo que este outro está falando. No que concerne à veracidade da fala, disse Jesus: “Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e vosso ‘não: ‘Não’” (Mt 5, 37). Não precisamos nem devemos ocultar a verdade das coisas, basta-nos dizê-las como são. Ensina-nos, ainda, Shakespeare, em sua obra Hamlet, ato I, cena 3: “Isto antes de tudo: sê verdadeiro contigo mesmo e sucederá, como a noite ao dia , que não serás mentiroso com ninguém”.

Seguindo o exemplo de Jesus de Nazaré, que veio a este mundo para dar testemunho da verdade (cf. Jo 18, 37), o cristão é chamado a edificar o mundo e as pessoas com palavras que geram vida e liberdade. O autêntico discípulo missionário de Jesus de Nazaré não se torna motivo de tristeza e ódio de ninguém. Se isto acontecer, que seja por causa de atitudes que reflitam a verdade. Na ausência de uma palavra que edifique a comunidade à qual estamos inseridos, o silêncio é necessário e oportuno. Se não pudermos ajudar na edificação do outro, nosso irmão, com palavras verdadeiras, não lho prejudiquemos com mentiras descabidas; pois, como diz o ditado popular: “mentira tem pernas curtas”.

A sabedoria dos Padres do deserto ensina-nos que falar, demasiadamente, faz mal à saúde do corpo e da alma. Portanto, cuidemos, pois, do nosso falar; e que este esteja em plena sintonia e coerência com o nosso agir.


Tiago de França

sábado, 12 de fevereiro de 2011

O cristão e a observância da lei


“Se quiseres observar os mandamentos, eles te guardarão; se confias em Deus, tu também viverás” (Eclo 15, 16).

O discurso sobre a lei está no centro da Liturgia da Palavra deste VI Domingo Comum. Somos chamados ou não à observância da lei? Devemos obedecer a Deus ou à lei? Qual a sua finalidade? Jesus instituiu uma nova lei? A comunidade cristã é chamada a refletir a respeito destas questões à luz da fé e da palavra de Jesus. Este é apresentado pelo evangelista Mateus como aquele que ensina a prática da justiça e a realização da vontade de Deus. O texto evangélico deste Domingo (Mt 5, 17 – 37) está inserido no discurso do sermão da montanha, onde Jesus ensina aos discípulos e à multidão reunida em torno dele.

A lei e a justiça

Jesus começa dizendo que não veio abolir a lei e os profetas. Logo, não podemos acusá-lo de ser mais um revolucionário desobediente entre os judeus. A palavra de Jesus revela que ele aprovou e reforçou o texto da lei judaica dada aos antigos, mas este reforço exigiu a realização de alguns “reparos”. Somos levados a pensar que o problema não está na lei em si mesma, mas na prática da lei. Os fariseus e mestres da lei observavam-na, rigorosamente; ou seja, se preocupavam com a letra da lei, não com seu espírito. Assim, mostravam-se ultraconservadores e legalistas, pois cumpriam a lei pela lei.

O cumprimento da lei pela lei tem como conseqüência o esquecimento ou a marginalização da justiça. Os fariseus e os mestres da lei não estavam preocupados com a prática da justiça que preserva e promove a vida do ser humano, mas, somente, com observâncias minuciosas da lei através de uma burocracia escravizante que não considera a dignidade da pessoa. Quando fala sobre a lei e os profetas, que resumem todo o Antigo Testamento, Jesus quer chamar a atenção para a prática da lei que deve colocar o ser humano em primeiro lugar.

Colocar a pessoa em primeiro lugar significa que esta é maior do que a lei, ou seja, não é a pessoa que deve viver em função da lei, mas esta em função daquela. Tanto no aspecto social quanto religioso, ninguém está obrigado à obediência de leis que oprimem e/ou que não promovem a justiça. Jesus cumpriu a lei levando-a a perfeição. Ele nos ensina que a prática da lei corresponde, necessariamente, à prática da justiça. O contrário disso se expressa na opressão oriunda do farisaísmo e da alienação.

Na sociedade e na Igreja temos as leis, que deveremos observá-las seguindo o exemplo de Jesus. Tanto numa quanto noutra há o risco de nos tornarmos escravos. As leis não são produções divinas, mas humanas; portanto, sujeitas a reparos. Nas constituições e códigos civis temos as chamadas “emendas”, ou seja, aperfeiçoamentos necessários para o pleno cumprimento das leis que devem promover a justiça social. Todas as leis devem ter como fim a promoção da justiça social.

As leis eclesiásticas devem ter o mesmo tratamento, ou seja, não foram ditadas por Deus, mas são oriundas da inteligência humana, e devem convergir para a prática da justiça que constrói o Reino de Deus. Na Igreja temos fariseus e mestres da lei, que a interpretam segundo interesses, meramente, institucionais e/ou grupais. Na vida eclesial, as leis canônicas e litúrgicas devem ter como princípio fundamental a vida do ser humano. Quando ocorre o contrário, assistimos humilhações, exclusões, julgamentos injustos e condenações, hipocrisia, alienação e toda espécie de opressão religiosa.

Os fundamentalismos bíblico, teológico e religioso são frutos da interpretação equivocada e da aplicação exacerbada das leis e/ou prescrições canônico-religiosas. Portanto, peca contra Deus toda Igreja e/ou autoridade religiosa que se utiliza da lei para julgar e condenar as pessoas. A Igreja nasceu para trabalhar, incansavelmente, na construção do Reino de Deus, não para reforçar a opressão que os poderosos exercem sobre as pessoas, principalmente sobre os empobrecidos.

Ofensa e reconciliação

Em segunda, Jesus fala, também, dos valores que dignificam as relações interpessoais: além de não devermos matar, não devemos odiar nem difamar o próximo; somos chamados à reconciliação e ao diálogo. Tudo isto nos remete a uma sadia convivência na comunidade. Aliás, não podemos viver nem construir comunidade sem vivermos o respeito, a reconciliação e o diálogo. Somos seres humanos, falantes e racionais, portanto, chamados a construir um mundo de justiça e de paz.

Jesus não dita códigos e/ou normas de conduta. O amor deve ser a norma que deve reger a conduta do discípulo missionário de Jesus. Ele não fez nenhum acréscimo ao conjunto das leis que encontrou na comunidade judaica, pois esta não foi a sua missão. A missão de Jesus de Nazaré, missionário do Pai, foi a de reconciliar as pessoas com Deus, reconciliação que acontece na relação sadia com o próximo. A prática da justiça do Reino de Deus é o ensinamento fundamental de Jesus de Nazaré, esta justiça supera a dos fariseus e mestres da lei.

O mundo padece pela falta da prática da justiça do Reino de Deus, pois as injustiças tornaram-se coisa comum entre as pessoas. Ser justo virou motivo de escândalo. Aos poucos, o povo está se acostumando com as injustiças. A situação é tão gritante que ser injusto é normal, ser justo é anormal!

A pessoa inteligente e esperta é aquela que é desonesta e que pauta sua vida na desonestidade, seu progresso material é certo numa sociedade regida pelo capitalismo selvagem; enquanto que a pessoa justa, que pauta sua vida na prática da justiça que promove o Reino de Deus é tida como atrasada, e seu progresso material é, muitas vezes, ínfimo. Esta é lógica do mundo.

Jesus nos ensina que ter vantagens em detrimento da vida do próximo é um pecado gravíssimo que se mostra quase que imperdoável. A realidade nos mostra que não tem futuro a pessoa que assim procede; cedo ou tarde todos descobrem a falsidade das aparências e a corrupção das atitudes.

O enriquecimento ilícito é prática comum em nossos dias e tem levado ao empobrecimento cada vez mais agravante de muitas pessoas: uns cada vez mais ricos em detrimento de outros cada vez mais pobres. Um exemplo atual disso está no Egito: enquanto o ditador Hosni Mubarak, durante quase trinta anos no poder, desviou bilhões dólares dos cofres públicos para as próprias contas em outros países, metade da população padece pela falta daquilo que é básico para sobreviver; mas graças ao Deus da vida e à luta incansável da maioria jovem daquele país, a libertação está se tornando possível.

Adultério e fidelidade

Jesus legitimou a legítima união entre o homem e a mulher. O matrimônio é, de fato, um dom de Deus. A traição desta união chama-se adultério. Jesus ensina que a fidelidade alimenta a verdadeira união entre os cônjuges. Fidelidade é sinônimo de confiança, ou seja, a pessoa que, verdadeiramente, ama a outra na relação conjugal é chamada à confiança que gera a fidelidade.

As experiências conjugais de nossos dias estão cada vez mais escassas. As pessoas se casam, mas tal casamento dura pouco. A desconfiança é um dos fatores que tem levado à separação de muitos casais. O homem e a mulher precisam aprender que a recíproca confiança gera comunhão. Assim, pessoas extremamente desconfiadas, que têm dificuldades de construir relações duradouras costumam não ser felizes na relação matrimonial, porque não conseguem confiar no/a outro/a.

Jesus recomenda que a pessoa se separe da outra no caso de fornicação, ou seja, ninguém está obrigado a viver com o cônjuge traidor. A traição quebra, às vezes, definitivamente, a confiança entre as pessoas. Depois da experiência da traição, as pessoas nunca voltam a ser o que eram. É verdade que há casais que se perdoam, mutuamente; mas isto tem acontecido muito pouco. Recomenda-se que aconteça, mas as pessoas tem se mostrado cada vez indispostas.

Em matéria de matrimônio e adultério é preciso que tenhamos em mente a seguinte sentença: Não há neste mundo a mulher e o homem ideais, justos e santos na relação. O ser humano é fraco, que tende para o pecado; e quando este último está diretamente relacionado ao corpo, às faculdades sexuais, tende, portanto, ao desequilíbrio. Não é à toa que Jesus declarou em outra oportunidade: “o espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26, 41). Por isso, orar e vigiar devem ser práticas constantes do casal que deseja ser feliz.

A confiança no Deus que nos conhece (cf. Eclo 15, 20) e que nos concede e nos revela a sabedoria que nos conduz à vida (cf. 1 Cor 2, 7. 10) é um valor evangélico imprescindível na vida do cristão. Devemos pedir a Deus que nos ensine a viver seus preceitos (Sl 118, 33), a fim de que nos faça alcançar aquilo que foi preparado para cada um de nós deste a eternidade: “algo que os olhos jamais viram nem os ouvidos ouviram nem coração algum jamais pressentiu” (1 Cor 2, 9). Este algo é, certamente, a vida feliz do Reino de Deus que devemos, cotidianamente, construir com a prática do amor e da justiça.


Tiago de França

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Fides ex auditu et ex operato


“A fé depende, portanto, da pregação, e a pregação é o anúncio da palavra de Cristo”.
(Rm 10, 17)

Jesus é a Palavra de Deus e a missão de todo cristão batizado é anunciá-lo ao mundo, mas para que este anúncio seja autêntico e frutuoso, necessariamente, precisamos atender a três exigências básicas:
1 – Para ser missionário é preciso, antes de tudo, conhecer Jesus Cristo;
2 – Conhecendo Jesus Cristo é preciso aderir ao seu projeto e
3 – Tendo aderido ao seu projeto pode-se proclamá-lo ao mundo.

Digamos algumas palavras a respeito de cada exigência explicitando algumas implicações para o atual momento eclesial.

1. Para ser missionário é preciso, antes de tudo, conhecer Jesus Cristo.

Ninguém fala do desconhecido, pois este, por sua vez, está como que invisível à razão e à compreensão humanas. Portanto, para ser missionária, a pessoa precisa CONHECER Jesus de Nazaré. Mas como conhecê-lo?

Para conhecer Jesus é necessário respondermos a uma pergunta fundamental: Onde mora Jesus hoje? Poderíamos responder, incansavelmente, através de enunciados cristológicos, mas podemos, seguramente, afirmar: Jesus vive na pessoa dos empobrecidos. O próprio Evangelho de Jesus assegura-nos esta verdade. A partir daí, surge a necessidade de conhecermos e de nos envolvermos com a realidade dos empobrecidos.

O conhecimento da realidade dos empobrecidos pode ser oferecido pelas infinitas análises sociológicas. Isto não quer dizer que precisamos estudar Sociologia e/ou sermos sociólogos! Se o fizermos, não será um mal; mas o contato com a realidade é a melhor e mais segura forma de conhecimento. Eis o desafio.

O contato com a realidade dos empobrecidos pode ser vivido de duas formas: a primeira, podemos chamá-la de contato descomprometido. Trata-se, apenas, de ver a realidade sem o devido envolvimento. O missionário que assim procede, conhece a situação, mas se recusa a comprometer-se. O compromisso vai além do mero conhecimento das causas que geram o empobrecimento das pessoas.

A segunda forma de contato com a realidade pode ser denominada contato efetivo e/ou contato comprometido. Neste, o missionário se envolve com a situação. Tal envolvimento passa pelo compromisso que gera vida e liberdade. O missionário sabe que não tem a missão de libertar as pessoas, mas, apenas, de ser presença fraterna que anima, organiza, orienta e dinamiza o processo de libertação.

O contato descomprometido não gera o missionário, ou seja, quem quiser ser missionário de Jesus precisa se comprometer com a realidade dos empobrecidos, e tal comprometimento se dá de várias maneiras. São diversas as formas de opressão e, consequentemente, diversas as formas e caminhos de libertação. Na Igreja de hoje, o número de autênticos missionários são poucos. Mas por que o são?

2. Conhecendo Jesus Cristo é preciso aderir ao seu projeto.

O conhecimento de Jesus de Nazaré implica o conhecimento de seu projeto: o Reino de Deus. Este se traduz em vida e liberdade para todas as pessoas. A Sagrada Escritura ensina que a glória de Deus se encontra na liberdade de seu povo. Portanto, a construção do Reino inaugurado por Jesus é a construção da liberdade do gênero humano.

O problema da opressão sempre fez parte das preocupações divinas que levam ao trabalho salvífico de Deus no mundo. Ele investiu e investe todo o seu poder para a restituição da vida e da liberdade do ser humano. O envio de Jesus, missionário e evangelizador dos pobres, ao mundo é a prova maior de que Deus acredita na libertação integral e plena do gênero humano e de toda a criação corrompidos pelo pecado.

Mas é preciso que tomemos cuidado para não confundirmos a construção do Reino de Deus com a luta contra o pecado. Esta confusão é muito comum na vida da Igreja, desde suas origens até os dias de hoje. A nossa luta é contra as estruturas que geram a morte do ser humano, portanto, estruturas pecaminosas. Construir o Reino de Deus é lutar contra as estruturas de opressão presentes no mundo.

Se reduzirmos a construção do Reino de Deus à luta contra o pecado cairemos no antigo pecado cometido pela cristandade, que entendia o Reino de Deus como combate espiritual contra as forças diabólicas. Esta compreensão levou às diversas práticas ascéticas praticadas naquela época. Hoje, compreendemos que o demônio é o próprio homem que não sabe cuidar de si nem do mundo em sua volta.

A adesão ao Reino de Deus é uma exigência do seguimento de Jesus de Nazaré, ou seja, quem não aderir à construção do Reino de Deus não pode dizer que é discípulo e missionário de Jesus. A mesma coisa se pode afirmar quanto ao ser cristão, quem não aderir ao projeto de Jesus não pode ser chamado de cristão.

Na Igreja, há pessoas, ordenados e leigos, que insistem em pensar e se autoafirmar cristãos a partir de suas práticas religiosas. Se estas não as conduzem à prática de atitudes afetivas e efetivas que constroem o Reino de Deus, não passam de práticas farisaicas. Quem quiser participar do Reino de Deus terá que arregaçar as mangas e construí-lo.

3. Tendo aderido ao projeto de Jesus pode-se proclamá-lo ao mundo.

O anúncio do Evangelho de Jesus é a proclamação do Reino de Deus, e este anúncio só é verdadeiro quando o missionário, pregador da Boa Nova, adere, afetiva e efetivamente, o projeto de Jesus. Assim sendo, o anúncio do Evangelho torna-se testemunho de vida e de liberdade. O missionário, na pregação, testemunha Jesus de Nazaré a partir de suas palavras e de sua vida.

Quando o anúncio não é acompanhado pelo testemunho, tudo se resume a discursos vazios, palavras jogadas ao vento. Tal atitude deixa de ser anúncio porque se mostra infrutuosa, palavras que não geram conversão. A escuta e a pregação da palavra de Cristo provoca a conversão do fiel ouvinte e praticante.

A pregação da palavra de Cristo não pode eximir-se do conteúdo libertador do Reino de Deus. Quando o cristão e a Igreja se esquecem do Reino de Deus e de sua centralidade no anúncio da Boa Nova, a conseqüência é a total desorientação; ou seja, perde-se o foco norteador da missão. O kérygma, ou seja, o núcleo central da mensagem cristã é o Reino de Deus. O anúncio da palavra de Cristo desperta a fé nas pessoas, e esta fé deve levá-las à ação.

No anúncio da palavra de Cristo, o missionário pode cair em duas tentações: a primeira, a de anunciar a si mesmo; a segunda, a de colocar a Igreja no centro do anúncio. O que estas tentações significam? Vejamos.

Consciente ou inconscientemente, muitos missionários se projetam a si mesmos na missão. Quando isto acontece, o Evangelho fica obscurecido porque o missionário não o anuncia às pessoas, mas anuncia-se a si mesmo. Neste sentido, o missionário cresce e o Evangelho diminui. As pessoas passam a seguir aquele em detrimento deste. Missionários que tem carência de atenção, que possuem frustrações e/ou que são autoritários costumam agir dessa forma: colocam-se no centro de tudo, idolatram-se a si mesmos.

A Igreja não pode nem deve permanecer no centro do processo de evangelização. Ela não é o Reino de Deus nem proprietária do mesmo, mas instrumento de salvação no mundo, conforme ensinou o Concílio Vaticano II. A centralidade da mensagem e da vida cristã não pertence à Igreja nem ao conjunto da hierarquia eclesiástica que a compõe juntamente com o povo, mas a Jesus e seu projeto libertador.

Jesus de Nazaré e seu projeto estão no centro de tudo. Portanto, a missão do cristão é anunciá-los ao mundo. Na Igreja, tudo deve convergir para este anúncio, pois sua missão essencial é “evangelizar com renovado ardor missionário na opção preferencial pelos pobres, a serviço do Reino de Deus”, canta o Pe. Zezinho, SCJ em uma de suas músicas. No batismo recebemos esta missão e devemos assumi-la até as últimas conseqüências, numa fidelidade que deve perdurar por toda a vida.

Não devem interessar à Igreja as seguintes ambições: ser a maior Igreja cristã do mundo (espírito hegemônico); cultivar alianças com os poderosos, a fim de influenciá-los em benefício próprio; estruturar-se, materialmente, e aumentar cada vez mais suas riquezas; buscar controlar as liberdades pessoais e coletivas dos povos etc. A riqueza e o poder da Igreja devem ser o Evangelho de Jesus. Nada deve ser mais importante do que o anúncio da pessoa e do projeto de Jesus de Nazaré.


Tiago de França

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O clamor do povo egípcio


A antiga civilização egípcia era marcada pela opressão causada pelos impérios faraônicos. Hoje, a situação não é diferente. O Egito é rico, mas seu povo é pobre (mais da metade da população). De maioria mulçumana (90%), a população resolve clamar por justiça, porque sofre a opressão de um governo que dura mais de trinta anos. É tanto tempo no poder, que o Presidente Hosni Mubarak chega a afirmar que está “farto do poder” e que, ironicamente, teme deixá-lo. Mas como em todo tempo e lugar, chega um momento em que as pessoas se cansam, se revoltam e resolvem dá um basta na situação. É o que está acontecendo no Egito.

O clamor do povo egípcio é marcado pela participação significativa da juventude, que representa dois terços da população do país. Jovens oprimidos, sem perspectiva de vida, revoltados por terem seu futuro incerto; derramam, corajosamente, o sangue pela vida e liberdade da nação. Certamente, o corrupto Presidente do Egito não terá outra saída a não ser renunciar, diante das pressões nacional e internacional. O desenrolar da revolução mostra, claramente, que é impossível nos dias de hoje privar a população de seus direitos básicos mantendo um sistema de governo injusto e criminoso.

Em todo o mundo, as pessoas estão tomando consciência do valor da liberdade. O silêncio diante do desrespeito dos direitos humanos fundamentais está sendo, corajosamente, erradicado. Os jovens egípcios não estão sendo violentos nem estão correspondendo a motivações religiosas, mas, conscientes da importância da verdadeira democracia que promove e preserva os direitos e as liberdades particular e coletiva, lutam por uma sociedade melhor. Trata-se de uma luta justa e democrática pelo bem comum.

Está acontecendo no Oriente Médio o que aconteceu na América Latina: a erradicação das ditaduras. A marcha histórica dos povos vai nos revelando que a liberdade é um dom que se conquista na luta, no derramamento de sangue até as últimas conseqüências. Cada povo e cada nação, a seu modo e a partir de seu contexto, vai se libertando. Todos vão descobrindo que a vocação humana está para a liberdade. A fé cristã afirma que fomos libertos para vivermos na e para a liberdade (cf. Gl 5, 1). O gênero humano, independentemente de cor, sexo, condição social e religião, realiza-se na liberdade.

A atual revolução promovida pela juventude egípcia quer chamar a atenção da juventude do mundo todo para o valor da liberdade. Jovens que não tem a coragem de lutar por seus direitos só servem para legitimar o poder opressor. O silêncio dos jovens é a desgraça de um povo e de uma nação. As crianças não têm consciência política de nada, os idosos já não têm mais força, os adultos estão ocupados com seus afazeres; portanto, cabe aos jovens lutar por um mundo melhor. Estes são mais livres do que aqueles.

O capitalismo neoliberal que reina no mundo não acredita nem promove a liberdade do ser humano, antes, escraviza-o. O sistema capitalista corrompe a juventude através da mídia, que os excita, prazerosamente. A busca demasiada do prazer (idolatria do dinheiro, do sexo, do poder, da fama etc.) compromete a juventude, tornando-a superficial. Jovens sem ideais e sem causa não chegam a lugar nenhum. Mergulhada no imediatismo e na fantasia, a juventude torna-se irresponsável, ignorante, mesquinha e desonesta. A conseqüência inevitável é o surgimento de gerações de adultos frustrados, desmotivados, corruptos, irresponsáveis etc.

Será que estou sendo pessimista ou exagerado? Vejamos a realidade da juventude: envolvida nas drogas, não gosta de estudar, odeia religião e política, recusa-se a participar de projetos humanitários e/ou solidários, não pensam em outra coisa a não ser baladas e sexo. É verdade que temos as exceções, disto não se duvida; mas a grande maioria só pensa no hoje em detrimento do amanhã. O curioso é que apesar de tudo isso, as instituições tradicionais não têm projetos consistentes para a libertação integral da juventude. Tudo caminha como se nada estivesse acontecendo. Tais instituições só se pronunciam para julgar, reprimir e condenar. Se há algum projeto, este se mostra insuficiente.

Apesar da crise da Escola, da Família, da Religião e do Estado, estas instituições podem e devem promover a juventude, pois desistir dos jovens é desistir do futuro de todas estas instituições, que errando e/ou acertando, são as responsáveis pelo verdadeiro progresso do ser humano. Educar para a liberdade através do cultivo dos autênticos ideais éticos e humanos é o papel da Escola. Para isso, é preciso rever os projetos e propostas educacionais. A mesma coisa refere-se ao papel da Família, que precisa retomar o diálogo que gera a comunhão entre pais e filhos.

O Estado precisa reconquistar o interesse dos jovens pela política através de políticas públicas voltadas para os mesmos e da erradicação da desonestidade e da corrupção políticas. No Brasil, isto poderá acontecer quando fizerem, de fato, a tão esperada Reforma Política, que, gradativamente, porá um fim na vergonhosa presença de agentes políticos que pautam suas vidas na corrupção. No atual Governo espera-se que isto aconteça.

Como a Religião, especificamente, a Igreja pode ajudar na libertação integral de nossos jovens? Educando-os para a liberdade. Para que isto aconteça, a Igreja precisa ser um espaço de liberdade, não de repressão do jeito jovem de ser e de viver; o que, infelizmente, costuma acontecer. Os jovens tendem a observar a conduta dos adultos, e no caso da Igreja, a conduta de seus pastores. Portanto, estes devem procurar viver de acordo com aquilo que ensinam, pois os jovens não se simpatizam com a incoerência.

Quando há contradição entre palavra e ação, o jovem não acredita mais na Igreja. Os recentes escândalos de pedofilia afetaram, gravemente, a pouca confiança que os jovens depositavam na Igreja. Portanto, se esta quiser reconquistar os jovens, precisa abandonar o arcaico discurso dogmatista, principalmente, nos aspectos morais de sua doutrina. A juventude não aceita discurso nem atitudes moralistas e não escuta mais julgamentos e condenações oriundas da hierarquia eclesiástica. Não adianta mais querer proibir os jovens de fazer sexo antes do casamento. Eles não obedecem! Pensar o contrário é iludir-se, profundamente.

Voltar o olhar, procurando resgatar a juventude é uma emergência. Todos devem saber que os jovens têm o poder de transformar o mundo, mas para que isto aconteça precisam ser auxiliados em sua própria transformação. A mudança de mentalidade que leva à re-educação das atitudes é, urgentemente, necessária. Se isto não acontecer, não adianta almejarmos um futuro melhor para o mundo e para seus habitantes.


Tiago de França

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A inveja na vida cristã e eclesial


“É o que sai da pessoa que a torna impura. Pois é de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultérios, ambições sem limite, maldades, malícia, devassidão, inveja [...]” (Mc 7, 21 – 22).

A palavra inveja vem do latim invidia, e significa desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. O mundo está cheio de pessoas invejosas. Qual a origem da inveja? Não sabemos qual foi a primeira pessoa invejosa da face da terra! Na Bíblia, a inveja aparece em várias circunstâncias: um exemplo que ilustra bem este perverso sentimento é a morte de Abel, provocada pelo seu irmão Caim. Este sentiu inveja daquele e o matou (cf. Gn 4, 1 – 16).

Quais as conseqüências da inveja na vida cristã e eclesial? O Evangelho de Jesus deve ser a norma que deve reger a conduta e a vida dos cristãos. A compreensão e a prática evangélicas não permitem que o cristão se deixe dominar pela inveja, pois, como vemos nos versículos acima mencionados, Jesus de Nazaré a considerou abominável. De fato, um cristão que se preza não se deixa levar pela inveja.

Trata-se de um sentimento que causa ódio e divisão entre as pessoas e grupos. O invejoso ver o outro como um inimigo que deve ser eliminado, pois este outro lhe causa repugnância. O invejoso odeia aquele que está sendo vítima de sua inveja. De modo geral, os invejosos são aqueles que não conseguem desenvolver uma aptidão ou o jeito de ser do outro que está sendo invejado. Em outras palavras, por não conseguir fazer o que o outro faz ou ser do jeito que o outro é, então tal indivíduo é tomado pela inveja.

O invejoso age, repentinamente e sem pensar naquilo que vai fazer. Ele procura, de todas as formas, eliminar o outro, seu adversário. Uma das estratégias mais comuns é a difamação da vítima: a utilização da mentira e da calúnia com o intuito de oferiorizar e denegrir a imagem do outro. Há invejosos mais ousados, que ferem não somente com a palavra, mas também com a ação. Estes últimos são os piores.

É verdade que a calúnia é, por si mesma, considerada uma ação má; mas a partir da calúnia, se esta não se mostrar, suficientemente, exitosa, o invejoso intensifica sua ação partindo para outros recursos audaciosos, que põem em risco a vida do outro. No caso do Abel, não houve discussão nem difamação, Caim o matou sem escrúpulo algum. Tal sentimento revela que o invejoso sente ódio ao ver o outro bem e/ou feliz. A felicidade da vítima lhe causa inquietação.

O invejoso é uma pessoa insatisfeita, inquieta, impaciente e infeliz. Ele não tem paz de espírito e não consegue viver a fraternidade. Esta nos exige que sintamo-nos felizes com a felicidade do outro. Certa vez, numa entrevista, disse Dom Luciano Mendes de Almeida (in memoriam): “O céu é a gente se sentir feliz com a felicidade dos outros”. Este conceito está, evangelicamente correto, logo o invejoso precisa, urgentemente, de conversão.

Quem se sente feliz com a felicidade do próximo é sinal de que está bem consigo mesmo. Pessoas mal integradas, portanto, desestruturadas, não conseguem desejar o bem ao outro nem sentir-se bem ao vê-lo feliz. Assim sendo, viver em comunidade é algo impossível a um invejoso. Ele pode até tentar, mesmo conseguindo, não será feliz, porque o bem do outro lhe incomoda.

Quando a crítica infundada contra o próximo torna-se insistente, isto pode ser sinal de inveja. Quando o outro me incomoda, demasiadamente, eu posso está com inveja dele. Por isso, na maioria das vezes, o invejoso precisa ser alertado de sua inveja, pois quando a mesma se torna patológica, ele pensa ser seu espírito de destruição do próximo a coisa mais normal do mundo. Em outros termos, o invejoso costuma negar sua condição argumentando que o problema está no outro, jamais nele mesmo. Assim, sem aceitar-se a si mesmo, jamais se libertará deste terrível mal.

Quem convive com o invejoso pode ajudá-lo a se libertar ou estimulá-lo a ser cada vez pior, isto depende da maneira como nos recusamos ou não a aceitá-lo. Recusar-se a aceitar a inveja não pressupõe eliminar o invejoso da comunidade ou do grupo, pois ele precisa ser ajudado. Não ajuda quem o escuta e apóia em sua sede de vingança. O bloqueio de seus sentimentos através da verdade que liberta é essencial, ou seja, torna-se necessário que se diga ao invejoso que o mesmo está equivocado e que está pecando contra a caridade, contra o amor ao próximo.

Ser invejoso é faltar com a caridade para com o próximo, pois a caridade nos exige que, apesar de nossas limitações, busquemos amar o próximo como ele é. Buscar amar um invejoso não significa aceitar a sua inveja, mas, em nome da caridade, corrigi-lo, fraternalmente. Convencê-lo de que a superação dos próprios limites e o aperfeiçoamento dos dons recebidos de Deus são oportunidades de libertação integral da inveja.

Quando a inveja se faz presente numa paróquia, se o padre é o invejoso, certamente, buscará eliminar da comunidade todo e qualquer leigo que se destaque nas atividades pastorais, pois o medo de ser superado não o permite deixá-lo trabalhar. Quando não há eliminação do leigo, há total redução de sua atuação comunitária, o mesmo pode ser colocado numa situação onde não possa, jamais, receber qualquer destaque. Quando a situação é oposta, o padre sofre calúnias e é perseguido a partir de suas fraquezas, assim como a partir de seus acertos e/ou êxitos.

Há também inveja entre os Bispos, os Padres, as Irmãs, os Seminaristas, enfim, entre todos os cristãos, participantes ou não da hierarquia eclesiástica. Quando a inveja acontece entre leigo e ordenado ou entre este e outro da mesma condição, o poder costuma ser utilizado como ferramenta de destruição do outro. Citemos um exemplo para ilustrar: Por que Dom Luciano Mendes de Almeida foi transferido da grande Arquidiocese de São Paulo para a Arquidiocese de Mariana, impedido, assim, de ser o Arcebispo titular e Cardeal da Igreja em São Paulo? A inveja e outros motivos explicam a ocorrência de fatos como este. Dado um dos motivos, o leitor procure saber quem foi invejoso nessa história!

Sejamos vigilantes, pois, como disse Jesus, a inveja pode sair de dentro de nós. Não permitamos que ela nos domine, pois não dá para ser operário da vinha do Senhor sentindo inveja dos outros. Quando isto acontece, caímos na tentação de esquecermos-nos da construção do Reino de Deus e nos ocuparmos com a morte do outro, nosso irmão. Será que é lícito ao cristão participar do banquete eucarístico, sendo que, ao mesmo tempo, esteja planejando o mal do seu próximo? A partir do Evangelho de Jesus, certamente, podemos afirmar que tal participação se traduz na recepção da própria condenação.


Tiago de França