terça-feira, 29 de março de 2011

Padre José Comblin: profeta da Igreja dos Pobres


Falar sobre a vida e a obra do Padre José Comblin é uma atividade desafiadora, pois viveu, escreveu e profetizou por muito tempo no seio da Igreja e da sociedade. Foi um homem de uma inteligência rara e de um testemunho profético que ajudou muita gente a se colocar no caminho de Jesus. Meus pais e eu tivemos a graça de conhecê-lo. Para nós, era o profeta da Igreja dos Pobres. Homem autêntico e audacioso, teólogo perspicaz e cristão atento aos sinais dos tempos. O medo de falar a verdade nunca fez parte de sua vida, era de uma sabedoria e prudência admiráveis.

De onde veio, por onde andou e o que fez

Veio de Bruxelas (Bélgica), onde nasceu no dia 22 de março de 1923. Depois de cursar Filosofia e Teologia, no dia 9 de fevereiro de 1947 foi ordenado presbítero. Em Lovaina, doutorou-se em Teologia.

Foi vigário cooperador e professor de Teologia no centro de formação para seminaristas em serviço militar, em sua terra natal, de 1950 a 1958. Sentindo-se chamado para a missão Ad gentes, veio para o Brasil, em 1958. No Brasil, Chile, Equador e Bélgica, Padre José Comblin atuou como orientador de cursos para comunidades de base, professor de Universidades e Seminários, conferencista, pregador de retiros e fundador de experiências missionárias e de institutos de missionários para o meio popular.

Padre J. Comblin era amigo e assessor teológico do grande pastor e profeta Dom Hélder Câmara. Este o acolheu em 1965, em Recife – PE. Em Pernambuco, Padre J. Comblin se tornou, além de assessor do “Arcebispo vermelho” (apelido de Dom Hélder Câmara), professor do Seminário Regional do Nordeste.

Nosso teólogo trabalhou muito. Era incansável. Sua disposição e empenho na luta pela construção da Igreja dos Pobres o tornaram um teólogo respeitado e admirado na Igreja em todo o mundo. Os que faziam oposição à Igreja dos pobres o tinham como inimigo. Sua humildade, simplicidade e paciência no falar impressionavam a todos. Era requisitado por grupos, Igrejas, centros de formação, seminários e Universidades para discorrer sobre temas complexos. Muita gente ia ao seu encontro, pois sabia que a verdade ia ser dita com todas as letras, sem receios.

Seu jeito de fazer Teologia

Padre J. Comblin não escrevia tendo em vista dinheiro e prestígio, como fazem muitos teólogos na Igreja. Sua linguagem teológica era simples, não há dificuldades em compreendê-lo. Ele escrevia Teologia para todas as culturas e pessoas. Tinha uma facilidade incrível de discorrer sobre a história da Igreja, tecendo críticas fundamentadas na verdade dos fatos. Era conhecedor profundo da história da liberdade e da libertação na Igreja e no mundo, mestre da Sagrada Escritura e da tradição.

Não era teólogo de gabinete nem “teólogo papagaio”, mas original e possuidor de uma santa ousadia. Falava a partir da realidade dos empobrecidos porque vivia no meio deles. Por isso, não conhecia os pobres através das páginas ideológicas dos jornais e revistas, mas fazia Teologia vivendo pobremente entre os empobrecidos. Sua produção teológica tinha como preocupação fundamental a libertação integral dos empobrecidos. Era um militante nas lutas por liberdade.

A teologia combliniana era marcada pela ligação entre fé e vida, livre da alienação e da falsa ortodoxia. O seguimento de Jesus de Nazaré e o Reino de Deus eram seus temas preferidos e permeiam sua vastíssima obra teológica. História, política, sociologia e análises das conjunturas social, política, econômica e eclesial faziam parte do seu labor teológico e sempre caracterizaram o seu jeito de pensar a Teologia. Seus diversos artigos nas diversas revistas teológicas chamavam a atenção do leitor. Exemplos claros são seus escritos na Agenda Latino-americana, na REB – Revista Eclesiástica Brasileira e na Revista Concilium.

Padre J. Comblin: crítico da Igreja

Seguindo o exemplo de Jesus de Nazaré, que criticou a religião de seu tempo, Padre J. Comblin denunciava as infidelidades da Igreja: “Ora, a Cúria romana tem um programa que é semelhante ao de toda burocracia: não perder nada do seu poder, mas, à medida do possível, aumentá-lo sempre mais. A Igreja tornou-se cada vez mais burocrática, sem outros projetos que não sejam o fortalecimento do seu próprio poder. Da Cúria emanam, sem cessar, novos documentos que impõem novas regras, mais rigorosas do que as anteriores, com aplicações cada vez mais rigorosas do direito canônico. Nada disso tem utilidade. Tudo é simplesmente afirmação de poder, sem conteúdo real” (COMBLIN, José. A profecia na Igreja. São Paulo: Paulus, 2008, p. 282). Esta citação é apenas uma de suas críticas à Cúria Romana.

Alguém pode contradizê-lo? É mentira o que ele afirma? Estaria ele ressentido ou angustiado, como afirmou recentemente um prelado da Igreja? Será que Padre J. Comblin foi um crepúsculo de profeta? Jesus foi chamado de louco e blasfemador porque denunciava a hipocrisia e a corrupção dos religiosos de seu tempo. Padre J. Comblin foi um cristão que se colocou no caminho de Jesus e orientou a Igreja a fazer o mesmo. Para isto, com toda a liberdade de espírito não se cansou de denunciar a hipocrisia e a corrupção que existiram, que existem e que sempre existirão no interior da Igreja.

O profeta é o mensageiro divino que não permite que a Igreja se esqueça da sua missão fundamental: a construção do Reino de Deus. Padre J. Comblin ensinou que a Igreja nasceu para se colocar a serviço do Reino de Deus, mas não se trata de se colocar pela via do discurso ou do teatro (mimetização e uniformidade), mas através da prática do amor afetivo e efetivo para com os empobrecidos. Estes são os prediletos de Jesus e o Reino de Deus é construído a partir deles. Esta foi a mensagem fundamental da profecia combliniana.

Padre J. Comblin foi acusado de não amar a Igreja. Para os ultraconservadores de plantão, amar a Igreja significa não criticá-la, mas aceitar, passivamente, tudo o que ela proclama. Aqui não me refiro à Igreja Povo de Deus, proclamada pelo Vaticano II; mas à Igreja-hierarquia ou Igreja-poder. Esta última aprecia servos obedientes, que se enquadrem na uniformidade, que escutem e reproduzam, fielmente, suas orientações e normas.

Um profeta não consegue viver no enquadramento. O Espírito é livre e libertador, e a Escritura atesta que quem se deixa conduzir por ele não sabe de onde veio nem para onde vai. Padre J. Comblin pregava a liberdade e a libertação e sempre procurou pautar a sua vida naquilo que pregava, ou seja, na liberdade. Proclamava sobre os telhados a verdade porque era um homem livre, desapegado e constituído de autoridade espiritual e moral. Ele, a exemplo de Jesus, não falava o que as pessoas queriam ouvir, mas aquilo que o Espírito mandava falar. Foi uma testemunha fiel da Ressurreição de Jesus de Nazaré.

Na Bahia, num encontro de formação para animadores de comunidades de base, atividade corriqueira de seu ministério profético, aos 88 anos de idade, sentado numa cadeira, como Jesus sentado à beira do poço de Jacó, no III Domingo da Quaresma de 2011, na manhã do dia 27 de março, cinco dias após a celebração de seu aniversário natalício, Deus o chamou para junto de si, para o convívio dos eleitos. Parentes, amigos, alunos, leitores e admiradores choram de alegria e gratidão pelo seu testemunho missionário na Igreja e no mundo.

O Espírito está trabalhando, cotidianamente, para nos oferecer outras profetisas e profetas, a fim de que a Igreja não se desvie completamente do caminho de Jesus. Alguns ainda existem e estão profetizando. Há outros que estão surgindo, e outros, ainda, que surgirão. A profecia na Igreja é como a semente plantada na terra, que germina e ninguém sabe como. De uma coisa temos certeza: Na Igreja, alicerçada no sangue dos Apóstolos, a profecia jamais cairá. Por isso, os doutores da lei e fariseus hipócritas jamais estarão livres da verdade proclamada pelos profetas em todo tempo e lugar. A esperança dos pobres não pode morrer. Os profetas, com suas palavras e gestos, alimentam-na. Esta é a vontade de Deus. Quem ousa contrariar a vontade de Deus?...


Tiago de França

domingo, 27 de março de 2011

Jesus de Nazaré: fonte que sacia a nossa sede de Deus


“E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”.
(Jo 4, 14)

Na Liturgia da Palavra desde III Domingo da Quaresma nos encontramos com o famoso encontro de Jesus com a mulher samaritana no poço de Jacó (cf. Jo 4, 5 – 42). Antes disso, vemos Moisés com seu povo murmurando na caminhada rumo à terra prometida (cf. Ex 17, 3 – 7). Depois, o apóstolo Paulo escrevendo aos Romanos fala da nossa justificação por meio do mediador único e verdadeiro: Jesus Cristo.

A água, tanto na primeira leitura quanto no Evangelho ocupa lugar central. Inicialmente, a nossa sede é corporal; posteriormente, somos chamados a refletir que o ser humano tem outros tipos de sede: de amor e de realização, de justiça e de paz, de felicidade, enfim, sede de Deus. Por outro lado, há quem tenha sede de poder, de prestígio, de riqueza, de vingança, entre outras sedes destrutivas. Você que deu início à leitura deste texto: qual a sua sede mais profunda? O que você mais deseja para a sua vida? Com Jesus reorientaremos a/s nossa/s sede/s e buscaremos nos saciar nele, fonte de água viva que jorra para a vida eterna.

A sede do povo de Deus no deserto

O trecho do livro do Êxodo que se nos apresenta neste Domingo nos faz ter pena de Moisés, o líder do povo recém saído da escravidão no Egito. As pessoas sentem sede. Esta estava as maltratando em pleno deserto. De fato, deve ter sido uma experiência difícil. Diante da escassez de água e alimento, elementos básicos para a sobrevivência do ser humano, o povo reclama e se volta contra o Deus de Moisés. Este, sentindo-se impotente diante da situação clama a Deus dizendo: "Que farei por este povo? Por pouco não me apedrejam!”

Deus, que nunca abandona seu povo nos caminhos e descaminhos da vida, resolve se manifestar, providenciando água em pleno deserto: Moisés bate sua vara na rocha e desta sai água para o povo beber. Pronto! Resolvido, parcialmente, o problema. Depois, virão outras murmurações e a paciência divina vai acompanhando a incredulidade e a insatisfação de um povo fraco e pecador, povo escolhido por Deus para viver a experiência da vida e da liberdade numa terra onde corre leite e mel.

O texto selecionado termina com a seguinte indagação do povo: “O Senhor está no meio de nós ou não?” Esta pergunta nos remete àquelas pessoas que estão sufocadas em sua sede e sofrimentos, e que se perguntam: Onde está Deus? A nossa pouca fé oriunda de nossa cegueira nos leva a pensar na ausência de Deus neste mundo dilacerado de dor e sofrimentos, misérias e tragédias de toda ordem. No caso do povo da caminhada no deserto, Deus o escutou, imediatamente. Em outros momentos, a impressão que dá é a de que Deus é surdo, mudo e insensível, pois parece não ligar para a situação das pessoas.

A religião nos ensinou a acreditar num Deus que interfere na ordem natural do mundo. Esta crença tem levado muita gente à perda da fé e à frustração, pois como explicar o silêncio de Deus diante do massacre de seis milhões de judeus na Alemanha e da morte de milhares de pessoas nas catástrofes oriundas das ações irresponsáveis do ser humano para com a natureza. Há coisas que somente Deus explica.

Creio na verdade de que o ser humano arca, consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente, com as conseqüências de suas ações. Por isso, ao invés de perguntarmos pelo porquê de Deus não se manifestar, deveríamos perguntar pelos reais motivos que levam o ser humano à autodestruição de si mesmo. É duro aceitar, mas a verdade é que o ser humano procura, incansavelmente, a própria morte através da prática de muitas injustiças, dentre as mais graves se encontra a destruição da natureza, que tem causado desequilíbrio e mortes inumeráveis. Acusar a Deus de omissão é omitir nossa participação em nossa própria desgraça e/ou morte.

A experiência do encontro de Jesus com a samaritana

Há duas informações que aparecem no início do cap. 4 de João que nos interessam para compreendermos bem o encontro de Jesus com a samaritana. Primeira, que os fariseus ficaram sabendo que Jesus atraía discípulos e batizava mais do que o profeta João Batista. O evangelista corrige o boato dizendo que, “na verdade, não era Jesus que batizava, mas os seus discípulos”; segunda, que Jesus não tinha a intenção de ir para a Samaria, terra de não-judeus, mas para a Galiléia. Sua passagem e permanência na Samaria se deveram ao fato de que esta ficava no caminho que levava à Galiléia.

O texto em si traz vários pormenores que revelam muita coisa, mas para não nos estendermos muito, vamos àquilo que nos parece fundamental. Os especialistas em Bíblia possuem várias analogias e comentários sobre este texto, mas isto a gente deixa para um curso de teologia bíblica. Uma simples hermenêutica deseja, apenas, dizer a mensagem central do texto para a edificação da comunidade cristã. Ao povo interessa saber o que Deus quer nos dizer com as palavras e os gestos do profeta e Messias Jesus.

Os samaritanos não se davam bem com os judeus. O sistema religioso destes excluía aqueles. O povo samaritano é oriundo de uma mistura entre hebreus e assírios, e tinha uma concepção religiosa bem diferente da dos judeus. Quando de passagem pela Samaria, Jesus sente sede e se encontra no poço de Jacó. Para os judeus, o poço é garantia de abundância da água oferecida por Deus no deserto. Basta ver a importância da água na vida do povo guiado por Deus através de Moisés.

Pois bem, Jesus se encontra fora do campo religioso e social de seu povo. Ele se encontra com uma mulher samaritana, que o evangelista não nos diz o nome. A ausência do nome pode nos indicar não somente uma mulher (singularidade), mas um povo (samaritanos). Encontrando-se com ela, Jesus causa a admiração dos discípulos por causa de três questões curiosas: primeiro, porque estava conversando a sós com uma mulher, coisa incomum entre judeus; segundo, porque estava falando com uma samaritana, situação também não recomendável e terceiro, porque, além de mulher e samaritana, ela vivia com um homem que não era seu (seria ela adúltera?!)

Jesus rompe, radical e profeticamente, a separação entre judeus e samaritanos. Isto se apresenta como uma Boa Notícia, Evangelho da reconciliação que acaba com a exclusão e com a indiferença. Ao afirmar que todos devem adorar o Pai em espírito e verdade, Jesus descentraliza o culto do Templo de Jerusalém. Este era considerado o “poço da água viva”, lugar do encontro com a benção divina. Jesus afirma que Deus é espírito e que pode ser adorado em qualquer lugar e por qualquer pessoa e/ou povo. Diante disso, a mulher demonstra ter conhecimento da vinda do Messias, que é exposto como aquele que “nos vai fazer conhecer todas as coisas”.

Jesus não esconde três verdades fundamentais: a primeira, que os samaritanos adoravam o que não conheciam; a segunda, que a salvação vem dos judeus e a terceira, que ele tem a água e o alimento que jorra e dura para a vida eterna. Ele mesmo, diante da mulher samaritana, declara-se o Messias predito pelos profetas, mas o que chama a atenção dela é que ele falou de sua vida, de seus dilemas. Jesus se mostrou próximo dela, se interessou por sua vida e partilhou de seu sofrimento. Isto a marcou, profundamente.

Como acontece em quase todos os que se encontraram com Jesus, ao descobrir nele um grande profeta e o Messias prometido, a mulher torna-se evangelizadora. Ela proclama a Boa Notícia, ou seja, o próprio Cristo para o seu povo. Este vem ao encontro de Jesus e pede que permaneça na Samaria por mais tempo. O Messias atende ao pedido e fica durante dois dias. Depois de terem escutado a palavra libertadora de Jesus, os samaritanos creram e abraçaram a fé nele, confessando que Jesus é “verdadeiramente o salvador do mundo”.

Quando Jesus fala de uma água diferente da do povo de Jacó, a mulher se interessa em recebê-la. As palavras dela revelam não somente a sede corporal, mas uma sede por vida plena e dignidade. Isto a levou a anunciar Jesus para um povo sofrido e excluído. A alegria do anúncio foi um sinal de que Jesus saciou sua sede. Os samaritanos sentiram-se saciados com a palavra de Jesus, sentiram-se acolhidos pelo Ungido de Deus, abraçaram a fé a partir da experiência da escuta e do encontro com a fonte da água da vida.

Todo cristão e toda a Igreja são chamados a beber da fonte de água viva que é Jesus. A escuta de sua palavra leva-nos a aderir seu projeto. Este nos exige a acolhida e o respeito mútuos. Jesus não condenou os samaritanos. Assim, somos chamados a fazermos o mesmo: jamais condenar pessoas de outras religiões, povos e culturas. Com estes, devemos dialogar tendo como princípios o respeito, a tolerância, o amor, a justiça, que conduzem à verdadeira unidade. A diversidade de culturas existe e deve ser mantida e, sobretudo, respeitada.

Quais os samaritanos de nossos dias? Não seriam os homossexuais e as prostitutas, os espíritas e os que praticam o candomblé e outras culturas afro-brasileiras, as mulheres que sofrem preconceito em todas as culturas do mundo, os ciganos e imigrantes que estão sendo rechaçados na Europa e em outros lugares, os indígenas e quilombolas tidos como “bichos do mato”?... De fato, não são poucos os samaritanos de nossos dias.

Todo ser humano, no mais profundo de si, tem sede de Deus. Às vezes, este Deus não tem nome e quando tem, é diferente do nosso. Todas as religiões têm algo a nos ensinar. Não deve haver certa procura recíproca de erradicação e desvalorização, mas diálogo que nos leva à compreensão e à tolerância. Cada uma, à sua maneira e a partir daquilo que crê, deve procurar a Deus e atender o seu mandamento maior: o cuidado e o amor pela vida. Penso que não deva existir cultura autenticamente religiosa que não tenha como fim último a felicidade do ser humano. O caminho que nos leva a Deus não se encontra na uniformidade, mas na diversidade.

Para nós, cristãos, Jesus é a água que nos transforma em fonte de água que brota para a eternidade. Devemos viver saciados e inundados de Deus de uma forma que todas as pessoas que vierem ao nosso encontro possam viver a experiência da samaritana. As pessoas devem se encontrar com Jesus na pessoa de cada um de nós. Concluo esta reflexão citando um exemplo de um homem que bebeu na fonte que é Cristo e que se transformou a si mesmo num lugar de encontro com Deus.

Quem se encontrou alguma vez com Dom Hélder Câmara (1909 – 1999) sabe muito bem de sua paz de espírito e de sua generosidade. Sua presença irradiava a força e a presença divinas. As pessoas se alegravam com sua presença, palavras e gestos. Todos saíam edificados de sua presença. Isto acontecia porque aquele pobre Bispo vivia em comunhão com Deus através da fonte regeneradora da oração, da partilha e da justiça. Dom Hélder Câmara nos fez acreditar que, de fato, Deus habita em nós (cf. Jo 17, 23). Deus o constituiu profeta, homem da autoridade pacificadora e serviçal, do amor fecundo e verdadeiro. Isto significa ser fonte de água que jorra para a vida eterna. Água cristalina, que faz bem e que dá vida.


Tiago de França

sexta-feira, 25 de março de 2011

Dom Oscar Romero: pastor, profeta e mártir


“Se me matarem, ressuscitarei no povo salvadorenho”
(Dom Oscar Arnulfo Romero Galdemez)

Na Igreja, desde seus primórdios, o Espírito do Senhor fez surgir mulheres e homens que anunciaram a Boa Notícia do Reino de Deus até as últimas conseqüências, até o derramamento de sangue. Hoje é dia de um dos mais santos bispos da Igreja: Dom Oscar Arnulfo Romero Galdemez, assassinado há 31 anos, durante uma Missa no hospital da Divina Providência, em El Salvador. Este santo Bispo, impelido pelo Espírito do Senhor, foi ao encontro dos oprimidos do rebanho de Cristo e os amou até o fim, e a exemplo do mesmo Cristo, deu a sua vida por causa do Evangelho da vida e da liberdade.

Nasceu no dia em que a Igreja celebra a Assunção da Virgem Maria ao céu, em 15 de agosto do ano de 1917, foi ordenado padre em 1942, aos 25 anos de idade. Sua fidelidade à Igreja o fez Bispo no dia 22 de fevereiro de 1970, aos 53 anos. “Sentir com a Igreja”, este era o seu lema episcopal. Dez anos após, aos 63 anos recebeu a coroa do martírio no altar do Senhor, com o cálice e a patena nas mãos. Nesta reflexão vamos meditar sobre alguns aspectos da pessoa deste profeta da justiça do Reino de Deus a partir daquilo que ele foi: pastor, profeta e mártir.

Dom Oscar Romero, pastor

“Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (Jo 10, 11). Estas palavras de Jesus são apropriadas para falar do pastor Oscar Romero. Quando aceitou a nomeação episcopal, ele não sabia o que estava por vir. Sua biografia mostra claramente que o mesmo não desejava, inicialmente, ser um Bispo dos pobres, mas um homem fiel ao magistério da Igreja e obediente ao Bispo de Roma, o Papa. Assim ele era conhecido: homem rigoroso, ortodoxo, tradicional e, conseqüentemente, conservador.

Os apelos divinos são mais fortes do que qualquer doutrina ou ortodoxia na vida de uma pessoa atenta aos sinais dos tempos. No dia 03 de fevereiro de 1977, Dom Oscar Romero foi nomeado Arcebispo de San Salvador. O clero desta Arquidiocese, empenhado na luta pelos direitos humanos se viu perplexo, pois conhecia o conservadorismo do nomeado. Mais uma vez, Roma investiu em um Bispo que não entrasse em conflito com os governantes e demais autoridades. Neste tempo, os militares estavam ceifando a vida dos pobres e perseguindo clérigos e religiosos. Era tempo de ditadura.

O Arcebispo, de início, ficou assistindo a situação calamitosa de El Salvador, até que os militares assassinaram o padre Rutílio Grande, missionário jesuíta. Esta morte chamou a atenção de Dom Oscar Romero, que passou a entender que a política de segurança nacional era uma farsa e um crime inaceitável. Diante desta e de outras centenas de mortes e de tantas outras injustiças praticadas pelo regime militar, Dom Oscar Romeiro abriu os olhos e ouvidos e escutou o clamor dos oprimidos, que viviam como ovelhas sem pastor.

A partir daí morreu em Dom Oscar Romero a velha figura de Bispo insistentemente alimentada pela Igreja. Ele deixou de ser o amigo dos poderosos, o homem do gabinete e das rubricas, o mandatário e conservador, e passou a ser considerado pelos militares como o comunista e subversivo. Utilizando-se de todos os meios que lhe estavam ao alcance, Dom Oscar Romero se colocou a serviço dos pobres, desprotegidos e marginalizados.

O bom pastor é aquele que se preocupa com a vida de suas ovelhas, que as conhece e as cuida. O pastor zeloso vai ao encontro de suas ovelhas, especialmente daquelas afastadas e/ou transviadas. As ovelhas conhecem a voz de seu pastor e o escutam porque sabe que ele deseja somente a vida delas. Dom Oscar Romero conquistou o coração dos pobres de El Salvador e foi amado por eles. Ele nos ensinou com sua vida que o lugar do Bispo, do padre, do/a religioso/a e de toda e qualquer liderança religiosa é no meio do povo pobre.

Dom Oscar Romero, profeta

“Veja: estou colocando minhas palavras em sua boca. Hoje eu estabeleço você sobre nações e reinos, para arrancar e arrasar, para demolir e destruir, para construir e plantar” (Jr 1, 9 – 10). Em um depoimento sobre o testemunho de Dom Hélder Câmara, profeta da Igreja de Deus que está em Olinda e Recife, PE, disse Leonardo Boff: “O profeta não tem amor ao próprio pescoço”. Isto não quer dizer que o profeta não tenha amor à própria vida, mas significa que não tem apego à mesma. Amor é diferente de apego. Dom Oscar Romero foi um homem desapegado, despojado, ao ponto de doar-se a si mesmo até as últimas conseqüências na libertação integral do povo salvadorenho.

O profeta não tem medo da morte, mas crê na ressurreição. Esta fé na ressurreição leva-o à entrega total de si em prol da vida e da dignidade do ser humano. Dom Oscar Romero foi um Bispo da verdade, proclamava-a sobre os telhados. Ele foi, de fato, luz do mundo e sal da terra, conforme pede Jesus em seu Evangelho. Não tinha medo de expor a verdade contida no Evangelho, verdade que incomodava os militares corruptos e sanguinários. Em nenhum momento Dom Oscar Romero contou com proteção policial, pois entregou, plenamente, a sua vida nas mãos Daquele que o chamou ao ministério profético na Igreja de El Salvador.

Quanto mais aumentavam as perseguições e ameaças, mais o santo Bispo denunciava as injustiças cometidas pelo regime ditatorial militar. O contato com o sofrimento do povo, a Celebração Eucarística e sua experiência de oração pessoal ajudavam-no a se manter fiel à missão. Não cedia diante das recomendações contrárias oriundas de eclesiásticos medrosos que não compreendiam nem aceitavam a sua missão. Além destas recomendações, Dom Oscar Romero teve que enfrentar muitas inimizadas por parte de padres e Bispos contrários à luta pela libertação integral do povo de Deus daquele sofrido país.

Por isso, sua palavra profética estava, corajosa e incisivamente, contrária à ditadura e aos setores conservadores da Igreja. Seu testemunho estava em plena comunhão com a Igreja pensada pelo Concílio Vaticano II e confirmada pelas conferências de Medellín e Puebla: uma Igreja que é chamada a ser pobre entre os pobres trabalhando na libertação dos pobres, construindo, assim, o Reino de Deus. Austero consigo mesmo, Dom Oscar Romero é um testemunho profético de consagração radical ao serviço humilde e simples dos oprimidos de seu tempo.

Dom Oscar Romero, mártir

“Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. Contudo, não seja feito como eu quero, e sim como tu queres” (Mt 26, 39). Estas palavras de Jesus demonstram seu medo diante da morte. Certamente, o santo Bispo rezou muitas vezes esta oração, e a exemplo de Jesus não procurou fazer a própria vontade, mas a de Deus. É uma virtude divina o desapego da própria vida para doá-la em favor da vida e da liberdade de um povo aflito e sofredor.

Na vida da Igreja não são poucos os que procuram salvar a própria vida em detrimento da vida do povo de Deus, vivendo cômoda e tranquilamente. Estas pessoas se fazem de surdas e cegas diante do sofrimento dos pobres; são egoístas, pois só querem saber de si mesmas e de suas comodidades. São diversos os casos de clérigos e religiosos/as que se utilizam da condição de consagrados para viver uma vida burguesa, a custa do suor e do sangue dos mais pobres.

Por outro lado, existiu, existe e vai continuar existindo um pequeno número de mulheres e homens que se doam na defesa e promoção da dignidade do ser humano até o derramamento de sangue. Para citar um caso recente, basta-nos lembrar da Beta Lindalva Justo de Oliveira, Filha da Caridade de São Vicente de Paulo, brutalmente assassinada na Sexta-feira da Paixão do Senhor do ano de 1993, enquanto servia o café da manhã para idosos num asilo em Salvador, BA.

Dom Oscar Romero foi assassinado diante do altar do Senhor, durante uma Celebração Eucarística. Com Cristo, por Cristo e em Cristo se ofereceu a Deus. Ele acreditou na força do Evangelho de Cristo e se entregou por amor e pela vida do povo de Deus. Esta é a verdadeira imagem da Igreja de Deus: Igreja que luta pela vida do pobre até as últimas conseqüências, que fala a verdade e desmascara o mentiroso e opressor, Igreja da opção preferencial pelos pobres. A missão da Igreja é assumir a esperança dos pobres.

Com Dom Oscar Romero, o Espírito está exigindo a conversão integral da Igreja, a fim de que esta abandone de uma vez por todas o espírito de grandeza e de uniformidade, as riquezas e o conservadorismo que a tornam farisaica e hipócrita, e tantos outros vícios que a desviam do caminho de Jesus. É hora de todo cristão procurar viver segundo a verdade e a justiça do Reino de Deus. Deus nos chama para caminharmos com Jesus na contramão da história e seu Espírito habita em nós e entre nós, nos confirmando e conferindo-nos força, coragem e perseverança.


Tiago de França

sábado, 19 de março de 2011

A transfiguração de Jesus e a edificação do Reino de Deus


“A glória de Deus é a vida do pobre”.
(Dom Oscar Romero, bispo e mártir)

A Liturgia da Palavra desde II Domingo da Quaresma convida-nos à reflexão sobre o mistério da Transfiguração de Jesus (cf. Mt 17, 1 – 9). Juntamente com Abraão (cf. Gn 12, 1 – 4a) e com o apóstolo Paulo (cf. 2 Tm 1, 8b – 10) meditaremos sobre a importância da missão do cristão no mundo e suas inevitáveis conseqüências.

Abraão, peregrino obediente

No texto selecionado para a primeira leitura da Liturgia deste Domingo, encontramos a figura de Abraão, o grande patriarca do povo de Deus. Três verbos nos ajudam a compreender a vocação deste corajoso missionário. Façamos uma leitura hermenêutica de cada um deles.

“Sai da tua terra...” Sair da própria terra, da família e da casa do pai: eis o convite divino. O verbo está no imperativo, parece uma ordem, um mandamento. Sair é o primeiro passo. As palavras caminho e caminhada sempre fizeram parte da vida, da mística e da espiritualidade do povo de Deus.

Sair provoca rupturas inevitáveis. O primeiro movimento do sair é a saída de si mesmo. Há, no ser humano, certa tendência natural em centrar-se em si mesmo, fechar-se. Influenciados por uma cultura que conduz ao intimismo, somos levados ao isolamento de nós mesmos. Para constituir o povo de Deus, comunidade dos eleitos, Abraão precisou sair de seu mundo.

Quando alguém sai de algum lugar, certamente vai a outro. Portanto, o verbo sair indica destino; mas para sair, a pessoa precisa ir. Eis o segundo verbo que aparece no convite divino: “Vai para a terra...” Depois de ter enxergado e compreendido a necessidade de sair, a pessoa vai, se põe a caminho. Aqui aparece o terceiro verbo do texto, que indica e revela a obediência do servo e amigo de Deus: “Abrão partiu...”

Abraão obedeceu confiando nas promessas divinas: Deus lhe prometeu uma terra fértil e uma descendência numerosa. Deus o abençoou porque obedeceu. Na transfiguração, essa obediência é revelada na voz de Deus que nos chama para escutar Jesus, seu Filho amado. Ao sairmos de nós mesmos e irmos para onde Deus quer nos enviar estamos trilhando o caminho da obediência.

A vocação de Abraão nos ensina que Deus, às vezes, não é muito claro no ato de chamar. Ele simplesmente chama, desafia e mostra o que podemos denominar de coordenadas gerais. Nada além disso. Assim, a obediência ao chamado divino deve ser acompanhada da confiança. Certamente, Abraão não compreendeu plenamente o plano de Deus, mas obedecendo-lhe, confiou-lhe a sua vida. As promessas eram claras, mas a realização das mesmas era um mistério a ser descoberto durante toda a caminhada.

Depois de termos saído de nós mesmos, ingressamos no segundo movimento do sair, que é o partir. Ninguém sai de si para ficar na inércia. Há, de fato, pessoas que até conseguem sair de si mesmas, mas não ousam partir, ficam estagnadas. Estas pessoas não se sentem bem na planície, lugar do movimento e da luta; mas querem permanecer na montanha, lugar da contemplação.

Estão surgindo na Igreja um número significativo de grupos religiosos que se identificam mais com a contemplação do que com a ação. Eles são caracterizados pelo fervor na pregação e na oração, pelo misticismo de visões e êxtases, pela falta de caridade para com os pobres e amizade para com as pessoas ricas, pela obediência cega à doutrina da Igreja e seus Pastores maiores (Bispos e Papa), enfim, pela adoração do Cristo presente na hóstia e ausente do mundo.

O Cristianismo é a religião do caminho e da caminhada. Jesus era o evangelizador dos pobres, segui-lo exige o colocar-se, definitivamente, em seu caminho. Este caminho é como o de Abraão: incerto, arriscado, desafiador e radical. Trata-se de um caminho que exige decisão livre e consciente. Nele, a pessoa torna-se cada vez mais livre e encontra a verdadeira e plena vida.

Paulo, missionário de Jesus, convida Timóteo para sofrer com ele pelo evangelho. Quem deseja se colocar no caminho de Jesus não pode se esquivar do sofrimento, pois este faz parte da vida do fiel discípulo missionário. Sofrer pelo evangelho é a única forma de sofrimento válida, nenhuma outra pode ser legitimada nem aceita. O sofrimento por causa de Jesus e do Evangelho é sinônimo de fidelidade até as últimas conseqüências.

Jesus transfigurado: imagem da glória divina no ser humano

Jesus tomou consigo três de seus discípulos, levou-os a uma montanha e ficou transfigurado diante deles. Nesta visão aparecem Moisés e Elias, que simbolizam a Lei e os Profetas. Jesus conversa com eles algo que o texto não revela. Pedro, ousado, toma a palavra e diz: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”.

Estas palavras do apóstolo Pedro demonstram o bem-estar da experiência da visão. Ele gostou de estar ali. Aquela visão lhe proporcionou segurança, alegria e satisfação. Era ali, no alto da montanha e diante do Cristo transfigurado que Pedro queria construir as tendas. Estas indicam lugar seguro, fixo e confortável. A tendência do cristão e da Igreja é fazer a mesma coisa: apegar-se às seguranças oferecidas pelas tendas.

A voz de Deus que falava com os patriarcas entra em cena e revela quem é Jesus: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” A voz de Deus diz, claramente, que Jesus é o Filho amado. Ele é querido pelo Pai e este pede que o escutemos. Escutar Jesus significa observar o seu mandamento fundamental: o amor. Os discípulos ficaram assustados ao ouvir a voz de Deus que saía da nuvem luminosa que os cobria com sua sombra.

Vendo os discípulos com o rosto em terra, Jesus diz: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Levantar-se significa colocar-se à disposição, reerguer-se, libertar-se do medo que puxa para baixo e aprisiona. Quando erguem os olhos termina-se a visão, tudo volta ao normal, eles vêem somente Jesus. O episódio termina com a recomendação de Jesus, que pede para que não contem a ninguém a visão que tiveram, até que ele “tenha ressuscitado dos mortos”.

Por uma Igreja missionária, servidora e pobre

A Igreja precisa aprender com Abraão a ser missionária. Durante toda a cristandade, que durou até o Concílio Vaticano II e insiste em sobreviver em alguns lugares eclesiais atuais, a Igreja buscou permanecer na montanha, na contemplação e na visão do transfigurado. Desta experiência contemplativa surgiram espiritualidades, carismas, conventos, mosteiros, doutrinas e um jeito específico de ser Igreja. Neste modelo de Igreja, o povo era mero expectador das sagradas liturgias celebradas, pomposamente.

Neste mesmo período de cristandade criaram-se estruturas pesadíssimas que perduram até os dias de hoje. Elas foram edificadas de uma forma que até parecem eternas, pois causam um apego doentio tanto nos leigos quanto nos ordenados, sobretudo nestes últimos. Estruturas e mentalidades cristalizadas, que se colocaram como inquestionáveis. Os dogmas são das maiores heranças desta época.

Com a evolução do pensamento e a revisão do estilo de vida no mundo, as estruturas e mentalidades eclesiásticas foram sendo questionadas, incontrolavelmente. A própria Igreja passou a perceber que a maioria de suas estruturas não corresponde mais ao tempo presente, pois está ultrapassada. O problema não está na constatação das estruturas que não funcionam mais, mas na falta de coragem e ousadia profética para mudar. Este verbo nunca foi bem-vindo na vida da Igreja, pois ele traz sérias conseqüências. O medo e as seguranças não deixam a Igreja se libertar.

“A Igreja peregrina é missionária por natureza, porque tem sua origem na missão do Filho e do Espírito Santo, segundo o desígnio do Pai”, afirma o n. 2 do documento conciliar Ad gentes. Esta missionariedade da Igreja depende dentre muitas outras atitudes de sua coragem de se despojar das velhas estruturas. Este despojamento acompanhado do imprescindível ardor missionário fará que com “a Igreja se manifeste como mãe que vai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente de comunhão missionária” (Documento de Aparecida, n. 370).

A Igreja conhece as próprias limitações e infidelidades, mas anda a passos de tartaruga no caminho da conversão estrutural e pastoral. Isto acontece porque as estruturas promovem confortos e seguranças. O problema maior está no apego que não tolera o surgimento do novo. Este fez parte da vida de mulheres e homens que se deixaram conduzir pelo Espírito Santo ao longo de toda a história. São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Santa Rosa de Lima, São Bartolomeu de Lãs Casas, Dom Hélder Câmara, Dom Oscar Romero, Pe. Josimo e Pe. Cícero de Juazeiro entre tantos outros e outras, ordenados e leigos, foram, com suas palavras e gestos, protagonistas na transformação do mundo e da Igreja.

Acreditar na transfiguração de Jesus é trabalhar pela transfiguração da realidade dos pobres, auxiliando-os em seu processo de libertação integral. Precisamos subir à montanha da contemplação e descermos para sermos contemplativos na ação. Nossas tendas devem ser provisórias, somente para a recuperação necessária das forças físicas e espirituais no encontro com o Senhor, que acontece na oração e na reunião da comunidade em torno da palavra de Deus e da Eucaristia. Estas nos colocam nos tornam missionários do Reino de Deus.


Tiago de França

domingo, 13 de março de 2011

As tentações de Jesus e nossa fidelidade ao projeto de Deus


“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4).

Neste I Domingo da Quaresma, o Evangelho fala das três tentações de Jesus (cf. Mt 4, 1 – 11). Neste texto, encontramos Jesus sendo conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, onde foi tentado pelo diabo. Este significa as forças de divisão que há em nós e no mundo no qual vivemos. Nossa reflexão quer pensar e meditar as seguintes questões: O que são as tentações e por que nelas caímos? O que é o pecado e por que pecamos? Como Jesus venceu as tentações e como devemos vencer as nossas? Quais as tentações que nos desviam do caminho de Jesus e quebram nossa fidelidade ao projeto de Deus?

Desde o início, todos pecaram

A primeira leitura da Liturgia da Palavra deste Domingo (cf. Gn 2, 7 – 9; 3, 1 – 7) fala da criação do homem e da mulher à imagem e semelhança de Deus, assim como da desobediência deste primeiro casal. A narração coloca a “árvore do conhecimento do bem e do mal” no centro do jardim. O fruto desta árvore era proibido e, justamente por isso, instigado pela serpente (símbolo do mal), o casal atraído pela vontade de conhecer, resolve comer do fruto proibido. Isto é o que nos diz a letra do texto.

A exegese bíblica feita por Carlos Mesters, o maior biblista vivo da Igreja no Brasil, é de extraordinário valor para compreendermos bem este relato, mas já que nossa tentativa é de tirarmos uma mensagem breve do texto (hermenêutica) e não fazermos análise exegética do mesmo, então, queremos, juntamente com o citado biblista, destacar três aspectos e/ou verdades hermenêuticas que transparecem no texto: 1) Deus é bom e criou todas as coisas boas; 2) O homem é livre para obedecer ou não a Deus e 3) O Paraíso terrestre é uma possibilidade real.

Nós cremos que Deus é bom, pois como nos fala o apóstolo João: “Deus é amor” (1 Jo 4, 8). Por ser Deus plenamente amor, Ele é também perfeito. Assim, não podemos afirmar que Deus seja o autor do mal, pois o amor e a perfeição não dão origem ao mal. Longe de querer ser um relato realista, o relato da criação chama-nos a atenção para a bondade divina que criou todas as coisas boas para o nosso bem. A mulher e o homem foram criados para viverem em plena comunhão com Deus, participando da vida divina, portanto, livres do pecado e a morte.

O ser humano foi criado na liberdade e para a liberdade. Deus concedeu-lhe a liberdade de escutá-lo e obedecê-lo ou não. A presença simbólica do fruto proibido e da serpente mostra que há possibilidade para se desviar do projeto pensado por Deus. Abusando da liberdade concedida, a mulher e o homem resolvem optar por conhecer outra realidade oposta ao projeto de Deus e passaram, assim, a experimentar o pecado e a morte.

Deus não criou o pecado e a morte para o ser humano, mas a vida eterna. Em outras palavras, o ser humano não foi criado para sofrer e morrer, mas para viver, eternamente, em comunhão com a fonte da vida, que é o próprio Deus. Esta comunhão plena com a fonte da vida e esta realidade sem pecado e morte denominamos Reino de Deus. Este Reino é a possibilidade real do Paraíso terrestre, ou seja, a partir do momento em que Adão e Eva desobedeceram a Deus, este continuou acreditando no ser humano. A partir daí, deu-se início ao que chamamos de História da Salvação.

O pecado é algo que passou a fazer parte da vida do ser humano por sua própria escolha, ou seja, desde Adão e Eva escolhemos ser pecadores e pecamos. A respeito do pecado, precisamos considerar três questões: 1) Nenhum pecado tem o poder de nos tirar a filiação adotiva em Cristo Jesus, porque Deus nos ama, somente ele é bom e misericordioso; 2) Por ser bom e misericordioso Deus nos perdoa, incondicionalmente e 3) Em nossas experiências de pecado se manifestam o amor e a bondade de Deus, por isso, procuremos ser cada vez mais humanos por meio do reconhecimento de nossas fraquezas e limitações.

A experiência de Jesus no deserto

Antes de assumir publicamente sua missão, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, onde permaneceu durante quarenta dias. O número quarenta tem ligação com os quarenta anos da caminhada do povo de Deus rumo à terra prometida. No deserto, Jesus sofre três tentações. Vamos vê-las e atualizá-las.

A tentação do TER

Jesus sentiu fome e o diabo lhe sugeriu que transformasse pedras em pão. Jesus responde: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Se Jesus cedesse a esta tentação, estaria usando de seu poder para satisfação de suas próprias necessidades. Esta tentação sugere a aquisição e o apego aos bens materiais. Jesus não podia reduzir sua missão à satisfação de desejos por coisa alguma. Ele era um homem livre, despojado, desapegado de si mesmo e de tudo aquilo que poderia impedi-lo de exercer sua missão.

A resposta de Jesus nos revela que não podemos reduzir a nossa vida à satisfação desenfreada de nossos desejos e ao apego aos bens materiais. É verdade que somos seres de desejos e necessidades, que precisam ser satisfeitas para a sobrevivência neste mundo. O que Jesus nos ensina é que não vivemos somente de pão, ou seja, nele nos tornamos filhos de Deus e participantes da vida divina. Nossa filiação adotiva e participação na vida de Deus exigem que estejamos em comunhão com ele através da palavra que sai de sua boca. A dimensão material é uma das dimensões de nossa vida, não a única.

Jesus é a Palavra de Deus, nele está a nossa vida. Ninguém pode ser chamado de cristão sem a escuta e a prática da palavra que saiu da boca de Deus. Portanto, a exemplo de Jesus, somos chamados a vencer a tentação do TER fazendo uso somente das coisas que são necessárias à vida. Quando os bens comprometerem a nossa liberdade e a nossa relação com o Deus que nos criou é sinal de que precisam ser repensados. O acúmulo de bens gera apego e este tira-nos a liberdade.

A tentação do PRAZER

O diabo leva Jesus à parte mais alta do Templo da Cidade Santa e lhe pede que se jogue, a fim de que os anjos o protejam. Jesus responde: “Não tentarás o Senhor teu Deus”. Esta tentação sugere o prestígio e a autoglorificação de si mesmo. Jesus foi tentado a usar o poder que lhe foi concedido por Deus não para a construção do Reino, mas para a busca da fama.

Em outras ocasiões, os evangelistas afirmam que Jesus ficou famoso devido os sinais que realizava no meio do povo. Jesus não buscava a fama e/ou prestígio social, mas a autenticidade de seus sinais levava as pessoas a acreditar que ele era, de fato, o Messias prometido pelos profetas. Durante toda a sua vida, foi tentado a abandonar o projeto do Pai para enveredar-se no caminho do prestígio. Ele tinha de tudo para se tornar um homem extraordinariamente famoso e influente, capaz de tomar para si o poder imperial.

O Evangelho mostra, claramente, que Jesus optou por outro caminho, escolheu o lugar dos últimos: “Mas Jesus percebeu que iam pegá-lo para fazê-lo rei. Então ele se retirou sozinho, de novo, para a montanha” (Jo 6, 15). Jesus fugiu de toda mania de grandeza, prestígio, autogloficação, elogios etc. Sua missão era permanecer junto dos desprestigiados, dos esquecidos, dos mal afamados.

Numa sociedade que prega o culto da própria imagem, o cristão é tentado a viver segundo as aparências, portanto, na superficialidade. Não é difícil encontrarmos pessoas que procuram ser vistas buscando reconhecimentos, títulos, aplausos, elogios etc. O seguimento de Jesus propõe o inverso, sugere o anonimato, a humildade, a serenidade e a discrição. No caminho de Jesus, quem quiser ser grande, deve ser o servidor de todos (cf. Mt 20, 26).

A tentação do PODER

O diabo levou Jesus para um monte muito alto e lá lhe mostrou todos os reinos do mundo e sua glória e lhe sugeriu que se ajoelhasse e o adorasse. Jesus responde: “Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a ele prestarás culto”. Esta tentação sugere o poder, o domínio, o controle, o autoritarismo etc. Jesus é tentado a deixar de lado o Reino de Deus para construir um reino para si mesmo.

A tentação do poder é a pior de todas as tentações, porque suas conseqüências são mais desastrosas na vida do ser humano. Uma pessoa dominada pelo poder torna-se um demônio encarnado! Quando contaminado pelo vírus do poder, a pessoa é capaz de cometer as piores atrocidades para consegui-lo e para manter-se nele. A luta pelo poder tem causado muitas perseguições e mortes no mundo.

O poder pressupõe a manipulação e o controle do outro. Cria-se um regime de alienação e opressão. As piores opressões que existem são promovidas pelo poder religioso, pois se trata de opressão ora sutil, ora explícita em nome de Deus. A alienação e opressão religiosas conseguem controlar mais o ser humano, porque o espírito religioso lhe explora mais intimamente. Basta olharmos para a história do Cristianismo e de outras religiões e vermos a quantidade de sangue derramado em nome de Deus e da religião.

O apego ao poder é uma doença gravíssima que tem levado muita gente à morte. Quando assimila o espírito do poder, a pessoa nunca consegue se libertar. São pouquíssimos os casos de pessoas que renunciaram o poder; antes, procuram-no cada vez mais. O poder é capaz de tornar o ser humano perigoso e, portanto, noviço à sociedade. O ditador da Líbia, o general Muammar Kadafi, é um dos exemplos mais atuais de políticos que se apegam ao poder de uma maneira que transformam a democracia em ditadura.

As três tentações na vida da Igreja

Estas três tentações estão presentes na vida da Igreja. Leigos e clérigos são tentados pelo ter, pelo prazer e pelo poder. Às vezes, os clérigos pecam mais do que os leigos. A tentação que mais aflige a hierarquia eclesiástica é a do poder, isto porque a hierarquia é constituída de forma piramidal: diácono, presbítero, bispo, cardeal, papa. Além destes títulos há outros títulos que não valem a pena serem citados.

Houve uma época em que alguns destes títulos eram comprados, outros negociados. Com as reformas que foram se dando na linguagem e na organicidade da Igreja, estas compras e negociações foram extintas, mas a estrutura permaneceu. Nem o Concílio Vaticano II conseguiu mexer na estrutura eclesiástica da Igreja. Esta estrutura é mantida pelas relações de poder entre os membros e organizações.

A funcionalidade, às vezes, parece ser tão complexa que nem os próprios católicos a entendem. O povo sabe que existe, mas não sabe para que serve nem como funciona! O povo só conhece o diácono e o padre. Quanto ao bispo, se vê ocasionalmente, quando na celebração da Crisma; mas devido a muitas ocupações burocráticas (maioria dos casos), muitos bispos têm evitado o contato com o povo delegando cônegos e monsenhores para a administração do Sacramento da Crisma, posse de párocos e outras atividades.

Os mesmos pecados que encontramos nas relações de poder entre seculares acontecem, quase que igualmente, no mundo religioso. A ambição, o desejo e o apego ao poder são os mesmos. O que está em jogo é o poder e quem for politicamente fraco não consegue nada. Uma vez cristalizada e quase que intocável, a hierarquia é lugar desejado por muitos homens. Digo homens porque as mulheres não participam da hierarquia. Somente homens recebem o Sacramento da Ordem, que os constitui e legitima.

O perigo do poder é que o mesmo gera apego e desserviço, ou seja, uma vez apegada ao poder, a pessoa não quer servir, mas ser servida por aqueles que lhe são inferiores. Quando a autoridade constituída não coloca o poder a serviço, cai na tentação de usá-lo para alienar e oprimir. O verdadeiro discípulo missionário de Jesus de Nazaré é aquele que procura servir até as últimas conseqüências. Jesus serviu os pobres durante toda a sua vida e na morte de Cruz demonstrou amor e compaixão até para com seus algozes (cf. Lc 23, 34).

Para ser verdadeiro discípulo missionário de Jesus de Nazaré, o cristão precisa permanecer em estado de vigilância. “Vigiem e rezem, para não cair na tentação! Porque o espírito está pronto para resistir, mas a carne é fraca”, disse Jesus (Mc 14, 38). Vigiar significa permanecer acordado, estar de olhos abertos para enxergar o perigo. Quem vigia e reza nunca é pego de surpresa e dificilmente cai na tentação. Quaresma é tempo propício de vigilância e oração. Estas nos ajudam a nos mantermos fiéis ao projeto de Deus.


Tiago de França

quarta-feira, 9 de março de 2011

Convertei-vos e crede no Evangelho


“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes [...]” (Jl 2, 12 – 13).

O Senhor nosso Deus, cheio de bondade e misericórdia, mais uma vez nos fez chegar ao Tempo da Quaresma. Tempo de peregrinação e renovação, de graça e conversão, de escuta da Palavra de Deus e de reencontro consigo e com o próximo através do exercício santo da misericórdia. A conversão é como que a palavra de ordem do tempo quaresmal. Isto não significa que só devamos buscar nos converter neste período do ano litúrgico, mas que nele se manifesta mais fortemente o apelo divino à conversão do coração.

Rasgar o coração, e não as vestes

O profeta Joel, que viveu numa época calamitosa nas terras de Judá, exorta-nos à conversão utilizando-se da expressão metafórica rasgar o coração, que numa linguagem profética e espiritual significa abrir o coração, mudar de mentalidade, rever as atitudes, escutar o clamor de Deus que se manifesta nos acontecimentos cotidianos.

A mudança de mentalidade nos leva à revisão de vida. O apelo para a conversão é diário e constante na vida cristã e eclesial. Tal mudança pede-nos e exige, ainda, que nos convertamos a partir de dentro de nós mesmos, ou seja, a partir de nossas entranhas. Assim, a nossa conversão deve se dá de forma estrutural.

Não se trata de comer carne ou não, de deixar de fuma ou de beber, ou de deixarmos de fazer outras práticas que julgamos maléficas ou desnecessárias durante o tempo quaresmal. Isto não se chama conversão, mas aparência de conversão, ou tentativa frustrante e ilusória de mudança de vida. Isto significa, também e, sobretudo, rasgar a vestes. Quando rasgamos as vestes, todo mundo ver; do contrário, quando rasgamos o coração, somente Deus é quem conhece esta audaciosa iniciativa oriunda da manifestação do Espírito de Deus em nós.

O Espírito Santo: guia e doador

Deus nos chama à conversão, disto precisamos nos convencer. Aliás, mais do que convencimento, precisamos acreditar nesta verdade revelada em Jesus. A nossa união com Deus depende da nossa conversão. Ninguém se converte em função de si mesmo, nem em função da família ou da Igreja às quais pertencemos. Nós buscamos nos converter somente a Deus. Não me converto porque a Igreja me pede, mas porque desejo, no mais profundo de mim mesmo, viver em plena comunhão com Deus.

A Sagrada Escritura e o testemunho dos santos e mártires da Igreja nos revelam que a conversão é uma vocação divina, um chamado universal de Deus a toda mulher e a todo homem. Não se trata de uma conversão aparente, mentirosa e, portanto, superficial e enganadora; mas integral e/ou estrutural. A transformação do mundo depende de pessoas estruturalmente convertidas; do contrário, todos os males se perpetuam na história.

O Espírito de Deus tem participação efetiva e afetiva na conversão da pessoa, da Igreja e do mundo. Depois da atividade missionária de Jesus, o Espírito foi enviado para nos ajudar, fiel e livremente. A exemplo de Jesus, o Espírito Santo é fiel à missão que recebeu junto de Deus. Ele tem guiado a história, as pessoas e a Igreja no árduo ofício da construção do Reino de Deus.

Quando olhamos para figuras como João XXIII, o “Papa bom”, que iluminado pelo Espírito Santo convocou o Concílio Vaticano II ajudando, assim, a Igreja a avançar no seu processo de conversão, cremos que não estamos abandonados neste mundo dilacerado de discórdias e sofrimentos. Esta tentativa de aggiornamento só foi possível porque um cristão batizado, apesar do exercício pontifício, se deixou guiar pela força do Alto. Esta força do Alto nos coloca no caminho de Jesus.

Deixar-se guiar pelo Espírito Santo é uma atitude audaciosa que acarreta sérios riscos, é colocar-se com Jesus na contramão do mundo e de suas ideologias e forças antievangélicas. Não se trata de fuga mundi, mas de descer, guiado pelo Espírito, aos mais profundos porões da humanidade, lá onde as forças de morte tiram a vida do povo de Deus. João XXIII não deixou o luxo e as seguranças do Vaticano, mas a partir de lá ousou obedecer ao Espírito de Deus. Até hoje há quem diga que o Papa bom estava perturbado do juízo!

Deixar-se reconciliar com Deus

Paulo, apóstolo de Jesus que ousou pregar a Boa Nova aqueles que não eram judeus, também nos orienta para a reconciliação. Para ele, converter-se é reconciliar-se com Deus. Mas onde está Deus? Esta pergunta nos livra do pecado de ficarmos pedindo perdão a Deus olhando para o céu, como os discípulos no momento da ascensão do Senhor.

Nós tendemos a pedir perdão a Deus como se ele fosse um ser abstrato. Este pedido é fácil de ser realizado, pois não exige o encontro com o próximo. O difícil é pedirmos perdão a quem ofendemos e concedê-lo aqueles que nos ofendem. A nossa insensibilidade nos impede de fazermos isto, pois dominados pelo ódio a nossa vontade se volta para a vingança e destruição do outro. O desafio é crermos que Deus nos espera no outro, nosso ofensor ou ofendido (cf. Mt 25, 40).

A misericórdia é um santo ofício exigente e santificador, e Deus em sua bondade e amor escolheu nos salvar usando de misericórdia para conosco, porque sabe de que somos feitos. A penitência, a qual somos chamados neste tempo santo, antes de qualquer gesto exterior, trata-se de buscarmos ser misericordiosos com o próximo. Não há penitência maior do praticar a misericórdia, por ela nos reconciliamos com Deus.

A caridade acima de tudo

Anualmente, a Liturgia coloca Mt 6, 1 – 6.16 – 18 no centro da reflexão da Celebração da Quarta-feira de Cinzas. No texto, Jesus ensina a sermos discretos nas práticas da caridade (solidariedade), oração e jejum. Nada deve ser feito com o intuito de chamar a atenção ou de aparecer diante dos outros. Tudo deve ser vivido na simplicidade e humildade. Por que Jesus recomenda tal discrição?

Naquele tempo, havia religiosos (fariseus e mestres da lei) que se aproveitavam de tais práticas para alienar as pessoas e para conferir certa roupagem de piedade a si mesmos na tentativa de se esconderem, pois se davam à exploração dos pobres. Ao recomendar tal discrição, Jesus os desmascara. Percebe-se que Jesus não reprova a esmola, a oração e o jejum, mas lhes confere sentido e autenticidade, a fim de que não sejam praticadas com orgulho e hipocrisia.

A preocupação de Jesus não está voltada para o fiel cumprimento das práticas religiosas, que não passam de meios que devem nos conduzir à prática do amor, fim último da vida cristã. Se a esmola (solidariedade), a oração e o jejum não nos levam ao amor, melhor que não sejam praticadas. Nenhuma destas práticas pode se tornar ocasião de pecado ou de escândalo.

A esmola

A esmola ensina-nos a sermos solidários. Solidariedade é partilha. Ensina-nos, ainda, a busca da justiça e a erradicação do egoísmo. Numa sociedade onde as pessoas buscam cada vez mais a satisfação dos próprios interesses, o Evangelho pede-nos a partilha daquilo que nos é supérfluo. Não se trata de mero assistencialismo para nos livrarmos daqueles que nos pedem ajuda material, mas convite a sermos despojados e humildes. O acúmulo por parte de alguns em detrimento da vida de tantos outros é um gravíssimo pecado.

A oração

A oração verdadeira é aquela que brota do coração. Orar com o coração significa entregar-se a Deus por meio de um diálogo sincero e verdadeiro. O falar e o escutar fazem parte do diálogo. Por isso, na oração falamos e escutamos a Deus; e a experiência ensina que mais vale escutar do que falar; afinal de contas, Deus conhece o mais profundo de nosso ser e sabe de nossas necessidades, virtudes e limitações. O tempo quaresmal é um tempo propício para escutar a Deus por meio da oração.

Além de orar com o coração, também precisamos aprender a orar com os pés no chão. Ultimamente, apareceram na Igreja algumas maneiras esquisitas de oração, totalmente desvinculadas da realidade. Quando a nossa oração não tem ligação com o mundo no qual vivemos, tal prática passa a ser prejudicial, pois nos tornamos alienados. Nós estamos no mundo e quando estamos em oração não podemos falar de outra realidade senão de nossa vida que se dá no mundo.

Na oração ninguém se eleva até Deus, mas é Deus que desce até nós. Nós permanecemos aqui, pois somos daqui! Não adianta apelarmos para o Espírito, a fim de que nos transporte para outras dimensões, pois estas são oriundas de nossa imaginação e desejos desregrados e frustrados. Nós oramos ao Senhor a fim de que nos torne cristãos para a transformação do mundo. Se nos utilizamos da oração para fugir e negar o mundo, então estamos perdendo nosso tempo, pois Deus não nos escuta em nossa fuga. Nós oramos para sermos cada vez mais humanos.

O jejum

O jejum é uma prática quase em desuso na vida cristã. No tempo da cristandade era mais acentuada devido à concepção de pecado e penitência que se tinha até o evento Vaticano II. Apesar disso, o jejum ensina-nos a moderação no ato de comer. Diante de uma sociedade que prega o consumismo e o excesso de ingestão alimentar, o jejum, além de fazer bem à saúde do corpo, previne-nos do pecado da gula.

Assim, fiéis e abstendo-nos de tudo aquilo que nos impede de caminharmos com Jesus, peçamos a Deus que nos ajude com sua graça a sermos verdadeiros cristãos, discípulos missionários de Jesus Cristo. A Igreja do tempo presente necessita de mulheres e homens disponíveis e sinceros, abertos e audaciosos, despojados e humildes. A conversão do coração, proposta fundamental do Evangelho, leva-nos à aquisição destas virtudes necessárias que edificam a comunidade e o mundo em que vivemos.

O mundo está ameaçado pela ambição do ter em detrimento do cuidado para com os bens da criação. “A criação geme em dores de parto”, exorta-nos São Paulo (cf. Rm 8, 22). Esse versículo da carta paulina à Comunidade de Roma é o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, que tem como tema Fraternidade e Vida no Planeta. Nós precisamos interiorizar a seguinte verdade incontestável: Nós fazemos parte da natureza. Então, por que ousamos destruí-la com nossos projetos mortíferos? Por que não aprendemos a ter o necessário, sem a busca desmedida do acúmulo?

A busca excessiva do ter é o que está acabando com o ser humano. Esta busca leva-o à produção de bens materiais que dão lucros exorbitantes. Cria-se a síndrome do lucro infinito, do lucro acima de todas as coisas e em detrimento da vida do planeta. Mas para que acumular se nossa vida mal ultrapassa os oitenta anos? Em comparação com a proposta de vida de Jesus no Reino de Deus, a nossa vida neste mundo dura pouco. Por isso, não podemos dedicá-la à aquisição de bens supérfluos à sobrevivência.

Qual o sentido dessa falsa felicidade que desconsidera a vida do outro e da natureza? Por que não pensamos nas futuras gerações? Será que os atuais desastres naturais que matam milhares de pessoas não conseguem nos convencer de que estamos nos autoaniquilando a nós mesmos com nossa frieza e covardia para com a natureza? A Quaresma é tempo para muitas pessoas libertarem seus corações das riquezas, pois nestas não se encontra a nossa verdadeira vida.


Tiago de França da Silva
Campina Verde – MG, 09/ 03/ 2011.

sábado, 5 de março de 2011

A relação entre crer e praticar


“Nem todo aquele que diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7, 21).

No domingo passado, meditamos sobre a confiança que devemos ter em Deus, fruto de nossa fidelidade permanente ao seu projeto de amor. Vimos que este projeto, denominado Reino de Deus, deve permanecer no centro da vida cristã e eclesial (cf. Mt 6, 24 – 34).

Neste domingo (IX do Tempo Comum), estamos diante de Mt 7, 21 – 27, que encerra o famoso sermão da montanha. Jesus conclui sua pregação com o relevante tema da relação entre crer e praticar a vontade de Deus. Todo o Evangelho mostra que Jesus acreditou e praticou, fielmente, a vontade de Deus; por isso, crendo que ele não pecou, podemos professar a sua perfeição no cumprimento da vontade de seu Pai.

Jesus coloca-nos diante do paradoxo que existe entre o crer e o praticar, contradição que não deveria existir, mas existe porque somos limitados e, conseqüentemente, imperfeitos. Esta verdade já é o bastante para encerrarmos as nossas considerações, mas para que não corramos o risco de cairmos na tentação do desânimo e da alienação procuremos, pois, perscrutar as intuições da mensagem de Jesus nas entrelinhas de suas palavras.

Antes de acreditar em Deus e praticar a sua santa vontade é preciso que o cristão a conheça e entenda. Assim, podemos nos perguntar: É impossível praticar a vontade de Deus? Por que Jesus exige tal prática mesmo sabendo da condição limitada do ser humano? Como viver segundo a vontade divina na Igreja e no mundo de hoje? Vamos pensar, brevemente, sobre estas e outras questões suscitadas pelos textos da Liturgia deste domingo.

Os que dizem: ‘Senhor, Senhor’

Um dos maiores males do nosso tempo é o verbalismo, que se traduz num excesso de palavras destituído de substância e sentido. Em outras palavras, o ser humano, induzido pelos diversos meios de comunicação se põe a falar, demasiadamente. Os estudiosos falam que estamos vivendo numa sociedade do discurso, onde há primazia da palavra que se faz discurso. Há um excesso de notícias e um vastíssimo trabalho de multiplicação de idéias e ideologias que ninguém consegue acompanhar, sistematicamente.

Esta onda barulhenta do discurso invadiu o Cristianismo, que desde o surgimento das ciências sagradas, é marcado pela elaboração teórica de leis, normas, códigos, prescrições, orientações, doutrinas etc. Na Igreja Católica, multiplicam-se os discursos episcopais e pontifícios através de documentos que versam sobre quase todos os aspectos da vida humana. Multiplicam-se, ainda, a produção de músicas, livros, palestras, sites, blogs e tantos outros meios destituídos, na maioria dos casos, de conteúdo e sentido. Fala-se muito e comunica-se pouco ou quase nada.

Nas Igrejas não-católicas, os cultos e reuniões duram horas, marcados por longas pregações, curas, expulsões diabólicas e louvores que desatinam multidões sedentas de milagres. Tudo se encerra nisso. Não há nada que vá além desse excesso de palavras produtoras de um barulho que chega, às vezes, a ser insuportável. Tanto na Igreja Católica quanto nestas últimas, quando se pergunta pela origem e autoria de todas estas coisas, afirma-se, categoricamente: É coisa do poder de Deus que se manifesta na força do seu Espírito!

Na primeira leitura da Liturgia deste domingo (cf. Dt 11, 18.26-28.32), encontramos as seguintes palavras de Moisés: “Incuti estas minhas palavras em vosso coração e em vossa alma; amarrai-as, como sinal, em vossas mãos e colocai-as como faixas sobre a testa”. É assim que os judeus enxergavam a Lei: como palavras que devem ser incutidas no coração, na alma, nas mãos e na testa. Incutir é sinônimo de infundir, ou seja, imprimir no mais profundo do ser as palavras da Lei. Os fariseus e mestres da Lei faziam isso com todo o rigor possível.

Os judeus eram e continuam sendo profundos conhecedores da Lei do Senhor e procuram, na medida de suas forças, observá-la, irrestritamente. Eram e continuam sendo os guardiões da Lei dada por Moisés. No tempo de Jesus, o apego à Lei (legalismo) era tão extremo que somente os não-observantes compreenderam e aceitaram a Boa Nova anunciada por Jesus de Nazaré. Os puritanos, ou seja, aqueles que se mantiveram fiéis à Lei mosaica rejeitaram os ensinamentos de Jesus e seu projeto libertador. Para Jesus, naquele tempo, estes escravos da Lei são os que diziam: ‘Senhor, Senhor’.

Hoje, entre judeus e cristãos, que têm a Bíblia como livro sagrado da revelação da vontade divina, encontramos os escravos da lei: pessoas legalistas que só se preocupam com a observância hipócrita da Lei em detrimento da prática do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo que constrói o Reino de Deus. Na Igreja Católica, o maior número de legalistas e, portanto, de fariseus hipócritas está presente na hierarquia; costumam ser versados nas ciências bíblicas e canônicas e as utilizam para jogar pesados fardos nas costas do povo, são dados ao discurso e a pouca ou nenhuma prática daquilo que ensinam.

Até hoje, nunca conheci um ultraconservador, legalista ou alienado que não tenha sido problemático, interna e/ou externamente. Por trás do rigorismo que se manifesta mais comumente na aplicação das leis morais e na indiferença, sempre há pessoas desequilibradas. Em outras palavras, utilizam-se da interpretação e aplicação radical da Lei para esconder toda espécie de podridão, a exemplo dos fariseus e mestres da Lei que perseguiam Jesus (cf. Mt 23, 1 – 36). Por isso, desconfiemos de pessoas excessivamente rigorosas e piedosas!

Quanto mais forem acentuadas as leis e normas que procuram reger a conduta interna e externa das pessoas, mais difícil se torna o seguimento de Jesus de Nazaré, pois tal seguimento, que deve ser a missão do cristão, é incompatível com o apego à Lei e ao rigorismo que daí procede. Na Igreja Católica temos todo um conjunto de leis que mais dificulta do que facilita a vida das pessoas, basta lermos o CDC – Código de Direito Canônico, verificarmos as prescrições litúrgicas e sacramentais etc. e veremos que não somos muito diferentes dos judeus e de outras religiões que apreciam o cuidado excessivo para com as leis.

A prática da vontade de Deus

A vontade de Deus está acima de toda e qualquer legislação religiosa criada pelo homem. Nada deveria se colocar acima da vontade divina, mas, infelizmente, na maioria dos casos, o crente abandona a vontade divina para se apegar à Lei e às tradições religiosas. Este é o maior pecado que um crente pode cometer, pois a nossa participação no Reino de Deus nos é assegurada quando nos esforçamos em praticar a vontade divina.

Através da realidade do mundo e da nossa vida, da oração e da nossa participação na vida da Igreja, somos chamados a conhecermos a vontade de Deus. Ninguém a pratica sem antes conhecê-la. É Deus mesmo quem se deixa revelar e nos chama à prática de sua vontade. A nossa verdadeira felicidade está no cumprimento da vontade divina e nisto também se realiza a construção do Reino de Deus.

A condição humana dificulta a observância da vontade de Deus. Vejamos o que nos ensina São Paulo a partir de sua própria experiência: “O querer o bem está em mim, mas não sou capaz de fazê-lo. Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero” (Rm 7, 18 – 19). Uma coisa é o querer, outra é poder realizá-lo. Eis o que nos ensina um dos maiores santos da Igreja no séc. XVII: “O cristão submisso à vontade de Deus não tem mais que Deus e é Deus quem o conduz em tudo e por toda parte” (São Vicente de Paulo – XI, 46).

O culto que os cristãos rendem a Deus de nada vale se não for acompanhado pelo esforço e busca constantes da vontade de Deus. A mesma coisa se pode afirmar em relação às leis e/ou prescrições religiosas. Tudo deve ajudar a pessoa no seguimento de Jesus de Nazaré, pois é neste que se realiza a vontade divina.

Iluminado pelo Espírito Santo e auxiliado pela graça divina, o homem é capaz de conhecer e praticar a vontade de Deus. Para que isto aconteça, a abertura da mente e do coração é imprescindível, porque o chamado à fidelidade, à confiança e à obediência se dá na liberdade dos filhos e filhas de Deus. É no cumprimento da vontade divina que o homem se torna amigo de Deus, pois praticar a vontade do Pai é buscar o Reino de Deus e a sua justiça; desse chamado ninguém está excluído.

Viver segundo a justiça do Reino significa colocar-se a serviço do próximo amando-o, incondicionalmente. A espiritualidade cristã tem no amor o seu fundamento último, ou seja, procuramos obedecer à vontade divina quando nos arriscamos a viver por amor. A glória de Deus está na liberdade da pessoa humana que se concretiza através da prática do amor. Praticar o amor é praticar a vontade de Deus, disto jamais podemos duvidar porque assim nos ensina o testemunho de Jesus de Nazaré, que cumpriu a vontade do Pai amando as pessoas, preferencialmente as que eram marginalizados. Segui-lo nestas mesmas pegadas é a nossa vocação e missão.


Tiago de França

sexta-feira, 4 de março de 2011

Carnaval: celebração da vida ou da morte?


“Não se deixe dominar pela tristeza, nem se aflija com preocupações.
Alegria do coração é vida para o homem, e a satisfação lhe prolonga a vida”

(Eclo 30, 21 – 22).

A origem do carnaval remonta à Grécia dos meados dos anos 600 a 250 a.C. Tratava-se de uma festa de agradecimento aos deuses pela fertilidade do solo e pela produção. Com o passar do tempo, gregos e romanos introduziram bebidas alcoólicas e práticas sexuais na festa carnavalesca despertando, assim, a aversão por parte da Igreja.

Curiosamente, a história registra que no ano 590 d.C., a Igreja passou a adotar o carnaval. Este passou a ser comemorado através de cultos oficiais que baniam os “atos pecaminosos”. Esta modificação causou espanto no povo, que ignorava o fato de que a Igreja estava, com tal adoção, traindo a idéia original da festa.

Com o Concílio de Trento, em 1545, o carnaval voltou a ser uma festa popular. Sob forte influência européia, em 1723 (aproximadamente), o carnaval chegou ao Brasil, marcado pelo desfile de pessoas mascaradas e fantasiadas. A partir do séc. XIX, começaram a aparecer os blocos carnavalescos de forma semelhante aos que são vistos hoje.

O povo brasileiro adotou o carnaval, e este se tornou uma de suas maiores festas. As tradicionais escolas de samba e as marchas carnavalescas são frutos de exaustivo empenho de incontável número de pessoas, que trabalham dia e noite, para abrilhantar cada vez mais a festa.

O Evangelho de Jesus nos exige que façamos uma séria reflexão em torno deste grande momento nacional. Antes, porém, é preciso destacar a sua importância para a vida do povo brasileiro. A formação deste povo é marcada pela festa. Na verdade, esta faz parte da vida do ser humano, desde que o mesmo passou a viver em sociedade e em comunidade.

A festa é constitutiva da vida humana e necessária para uma convivência sadia e, conseqüentemente, feliz. Sem a festa, a vida humana perderia o seu gosto e ludicidade. A religião não nega a dimensão lúdica e festiva da existência do gênero humano. A celebração é em si uma festa, uma reunião de pessoas em torno do louvor e da gratidão pelos dons recebidos e pela vida vivida.

Infelizmente, dada a condição limitada do homem, a festa também tem se tornado lugar da manifestação da morte. Toda alegria que converge para a vida é sadia, louvável e bendita; mas há certa aparência de alegria na busca do prazer desenfreado que se manifesta todos os anos durante os dias de carnaval. O saldo de violência, tragédias e mortes é altíssimo e tem crescido a cada ano.

Há quatro males que preocupam e destroem a verdadeira alegria do carnaval: violência, drogas, bebida e sexo fácil. São quatro males que estão, intimamente, interligados; ou seja, um conduz ao outro. Pessoas que bebem, excessivamente, tendem a serem violentas e perdem facilmente o controle da sexualidade. Sob os efeitos de bebida alcoólica e das drogas o homem se torna, comumente, um ser perigoso.

Os católicos praticantes, ligados à RCC – Renovação Carismática Católica, que não querem deixar de festejar o carnaval inventaram, recentemente, o que se passou a ser chamar Carnaval com Cristo. Trata-se de festejar buscando se preservar dos excessos e mantendo-se fiéis aos valores morais e cristãos. De maneira sadia, os “renovados em Cristo” procuram celebrar a vida; mas mesmo assim, também constatamos certos “desvios de conduta” em alguns que estão se “divertindo com Cristo”.

Um dos equívocos do Carnaval com Cristo, e que parece ser o pior deles, é a prática farisaica do indiferentismo em relação ao semelhante; ou seja, quem se diverte nesta modalidade de carnaval sente-se, na maioria das vezes, melhor do que as demais pessoas que optam pelo “carnaval do mundo”. O pecado da indiferença leva ao desprezo e à condenação do próximo. Fariseus hipócritas são, na verdade, aquelas pessoas que, por trás de uma festa camuflada de adereços e valores cristãos, aproveitam-se para julgar e condenar o outro. Neste sentido, o evento Carnaval com Cristo pode ser considerado um gesto de profunda indiferença.

Outro mal que se tornou comum no carnaval é a banalização do corpo. Basta olhar as fantasias carnavalescas das escolas de samba. Não somente nestas, a nudez se tornou marca comum do carnaval em todos os lugares. Homens e mulheres investem em academias, medicamentos e cirurgias para expor, sem pudor algum, um corpo “sarado”. Assim, o corpo perde a sua dimensão autenticamente bela, saudável, natural e sagrada e passa a ser objeto de desejo sexual, mais um produto entre outros a ser cobiçado.

Assim sendo, é pecado assistir ou participar do carnaval? De maneira alguma! Bíblica e teologicamente, não existe nenhuma condenação ou recomendação contrária à participação nas festas produzidas pela vontade humana de ser feliz. Desde as origens, o povo de Deus celebrou com muitas festas o dom da vida e os dons concedidos por Deus. Diante de uma nação marcada pelas diversas formas de corrupção que geram gritantes injustiças sociais, a participação no carnaval é uma ótima oportunidade para recobrar o ânimo para continuar lutando por dias melhores.

Que o carnaval seja mais uma oportunidade para nos alegrarmos juntos e para sermos, coletivamente, irmãos que se querem bem alimentando o sonho de um país mais justo e fraterno. Como nos ensina a citação bíblica acima, não nos deixemos dominar pela tristeza, que tem a força de nos tirar a vida; nem de nos afligir pelas preocupações, porque na vida tudo passa. Só Deus, que dá alegria e sentido à nossa vida é quem permanece para sempre.

Quero concluir com mais uma citação bíblica: “Não siga suas paixões. Coloque freio nos seus desejos. Se você permite satisfazer a paixão, ela tornará você motivo de zombaria para seus inimigos” (Eclo 18, 30 – 31). Não se trata de reprimir os desejos, pois faz mal à saúde física, metal e psíquica; mas de controlar os impulsos interiores, que podem nos envergonhar, prejudicar e nos afastar do próximo e de Deus. A você que leu esta mensagem, meus sinceros votos de um ótimo e feliz carnaval!


Tiago de França