quarta-feira, 9 de março de 2011

Convertei-vos e crede no Evangelho


“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes [...]” (Jl 2, 12 – 13).

O Senhor nosso Deus, cheio de bondade e misericórdia, mais uma vez nos fez chegar ao Tempo da Quaresma. Tempo de peregrinação e renovação, de graça e conversão, de escuta da Palavra de Deus e de reencontro consigo e com o próximo através do exercício santo da misericórdia. A conversão é como que a palavra de ordem do tempo quaresmal. Isto não significa que só devamos buscar nos converter neste período do ano litúrgico, mas que nele se manifesta mais fortemente o apelo divino à conversão do coração.

Rasgar o coração, e não as vestes

O profeta Joel, que viveu numa época calamitosa nas terras de Judá, exorta-nos à conversão utilizando-se da expressão metafórica rasgar o coração, que numa linguagem profética e espiritual significa abrir o coração, mudar de mentalidade, rever as atitudes, escutar o clamor de Deus que se manifesta nos acontecimentos cotidianos.

A mudança de mentalidade nos leva à revisão de vida. O apelo para a conversão é diário e constante na vida cristã e eclesial. Tal mudança pede-nos e exige, ainda, que nos convertamos a partir de dentro de nós mesmos, ou seja, a partir de nossas entranhas. Assim, a nossa conversão deve se dá de forma estrutural.

Não se trata de comer carne ou não, de deixar de fuma ou de beber, ou de deixarmos de fazer outras práticas que julgamos maléficas ou desnecessárias durante o tempo quaresmal. Isto não se chama conversão, mas aparência de conversão, ou tentativa frustrante e ilusória de mudança de vida. Isto significa, também e, sobretudo, rasgar a vestes. Quando rasgamos as vestes, todo mundo ver; do contrário, quando rasgamos o coração, somente Deus é quem conhece esta audaciosa iniciativa oriunda da manifestação do Espírito de Deus em nós.

O Espírito Santo: guia e doador

Deus nos chama à conversão, disto precisamos nos convencer. Aliás, mais do que convencimento, precisamos acreditar nesta verdade revelada em Jesus. A nossa união com Deus depende da nossa conversão. Ninguém se converte em função de si mesmo, nem em função da família ou da Igreja às quais pertencemos. Nós buscamos nos converter somente a Deus. Não me converto porque a Igreja me pede, mas porque desejo, no mais profundo de mim mesmo, viver em plena comunhão com Deus.

A Sagrada Escritura e o testemunho dos santos e mártires da Igreja nos revelam que a conversão é uma vocação divina, um chamado universal de Deus a toda mulher e a todo homem. Não se trata de uma conversão aparente, mentirosa e, portanto, superficial e enganadora; mas integral e/ou estrutural. A transformação do mundo depende de pessoas estruturalmente convertidas; do contrário, todos os males se perpetuam na história.

O Espírito de Deus tem participação efetiva e afetiva na conversão da pessoa, da Igreja e do mundo. Depois da atividade missionária de Jesus, o Espírito foi enviado para nos ajudar, fiel e livremente. A exemplo de Jesus, o Espírito Santo é fiel à missão que recebeu junto de Deus. Ele tem guiado a história, as pessoas e a Igreja no árduo ofício da construção do Reino de Deus.

Quando olhamos para figuras como João XXIII, o “Papa bom”, que iluminado pelo Espírito Santo convocou o Concílio Vaticano II ajudando, assim, a Igreja a avançar no seu processo de conversão, cremos que não estamos abandonados neste mundo dilacerado de discórdias e sofrimentos. Esta tentativa de aggiornamento só foi possível porque um cristão batizado, apesar do exercício pontifício, se deixou guiar pela força do Alto. Esta força do Alto nos coloca no caminho de Jesus.

Deixar-se guiar pelo Espírito Santo é uma atitude audaciosa que acarreta sérios riscos, é colocar-se com Jesus na contramão do mundo e de suas ideologias e forças antievangélicas. Não se trata de fuga mundi, mas de descer, guiado pelo Espírito, aos mais profundos porões da humanidade, lá onde as forças de morte tiram a vida do povo de Deus. João XXIII não deixou o luxo e as seguranças do Vaticano, mas a partir de lá ousou obedecer ao Espírito de Deus. Até hoje há quem diga que o Papa bom estava perturbado do juízo!

Deixar-se reconciliar com Deus

Paulo, apóstolo de Jesus que ousou pregar a Boa Nova aqueles que não eram judeus, também nos orienta para a reconciliação. Para ele, converter-se é reconciliar-se com Deus. Mas onde está Deus? Esta pergunta nos livra do pecado de ficarmos pedindo perdão a Deus olhando para o céu, como os discípulos no momento da ascensão do Senhor.

Nós tendemos a pedir perdão a Deus como se ele fosse um ser abstrato. Este pedido é fácil de ser realizado, pois não exige o encontro com o próximo. O difícil é pedirmos perdão a quem ofendemos e concedê-lo aqueles que nos ofendem. A nossa insensibilidade nos impede de fazermos isto, pois dominados pelo ódio a nossa vontade se volta para a vingança e destruição do outro. O desafio é crermos que Deus nos espera no outro, nosso ofensor ou ofendido (cf. Mt 25, 40).

A misericórdia é um santo ofício exigente e santificador, e Deus em sua bondade e amor escolheu nos salvar usando de misericórdia para conosco, porque sabe de que somos feitos. A penitência, a qual somos chamados neste tempo santo, antes de qualquer gesto exterior, trata-se de buscarmos ser misericordiosos com o próximo. Não há penitência maior do praticar a misericórdia, por ela nos reconciliamos com Deus.

A caridade acima de tudo

Anualmente, a Liturgia coloca Mt 6, 1 – 6.16 – 18 no centro da reflexão da Celebração da Quarta-feira de Cinzas. No texto, Jesus ensina a sermos discretos nas práticas da caridade (solidariedade), oração e jejum. Nada deve ser feito com o intuito de chamar a atenção ou de aparecer diante dos outros. Tudo deve ser vivido na simplicidade e humildade. Por que Jesus recomenda tal discrição?

Naquele tempo, havia religiosos (fariseus e mestres da lei) que se aproveitavam de tais práticas para alienar as pessoas e para conferir certa roupagem de piedade a si mesmos na tentativa de se esconderem, pois se davam à exploração dos pobres. Ao recomendar tal discrição, Jesus os desmascara. Percebe-se que Jesus não reprova a esmola, a oração e o jejum, mas lhes confere sentido e autenticidade, a fim de que não sejam praticadas com orgulho e hipocrisia.

A preocupação de Jesus não está voltada para o fiel cumprimento das práticas religiosas, que não passam de meios que devem nos conduzir à prática do amor, fim último da vida cristã. Se a esmola (solidariedade), a oração e o jejum não nos levam ao amor, melhor que não sejam praticadas. Nenhuma destas práticas pode se tornar ocasião de pecado ou de escândalo.

A esmola

A esmola ensina-nos a sermos solidários. Solidariedade é partilha. Ensina-nos, ainda, a busca da justiça e a erradicação do egoísmo. Numa sociedade onde as pessoas buscam cada vez mais a satisfação dos próprios interesses, o Evangelho pede-nos a partilha daquilo que nos é supérfluo. Não se trata de mero assistencialismo para nos livrarmos daqueles que nos pedem ajuda material, mas convite a sermos despojados e humildes. O acúmulo por parte de alguns em detrimento da vida de tantos outros é um gravíssimo pecado.

A oração

A oração verdadeira é aquela que brota do coração. Orar com o coração significa entregar-se a Deus por meio de um diálogo sincero e verdadeiro. O falar e o escutar fazem parte do diálogo. Por isso, na oração falamos e escutamos a Deus; e a experiência ensina que mais vale escutar do que falar; afinal de contas, Deus conhece o mais profundo de nosso ser e sabe de nossas necessidades, virtudes e limitações. O tempo quaresmal é um tempo propício para escutar a Deus por meio da oração.

Além de orar com o coração, também precisamos aprender a orar com os pés no chão. Ultimamente, apareceram na Igreja algumas maneiras esquisitas de oração, totalmente desvinculadas da realidade. Quando a nossa oração não tem ligação com o mundo no qual vivemos, tal prática passa a ser prejudicial, pois nos tornamos alienados. Nós estamos no mundo e quando estamos em oração não podemos falar de outra realidade senão de nossa vida que se dá no mundo.

Na oração ninguém se eleva até Deus, mas é Deus que desce até nós. Nós permanecemos aqui, pois somos daqui! Não adianta apelarmos para o Espírito, a fim de que nos transporte para outras dimensões, pois estas são oriundas de nossa imaginação e desejos desregrados e frustrados. Nós oramos ao Senhor a fim de que nos torne cristãos para a transformação do mundo. Se nos utilizamos da oração para fugir e negar o mundo, então estamos perdendo nosso tempo, pois Deus não nos escuta em nossa fuga. Nós oramos para sermos cada vez mais humanos.

O jejum

O jejum é uma prática quase em desuso na vida cristã. No tempo da cristandade era mais acentuada devido à concepção de pecado e penitência que se tinha até o evento Vaticano II. Apesar disso, o jejum ensina-nos a moderação no ato de comer. Diante de uma sociedade que prega o consumismo e o excesso de ingestão alimentar, o jejum, além de fazer bem à saúde do corpo, previne-nos do pecado da gula.

Assim, fiéis e abstendo-nos de tudo aquilo que nos impede de caminharmos com Jesus, peçamos a Deus que nos ajude com sua graça a sermos verdadeiros cristãos, discípulos missionários de Jesus Cristo. A Igreja do tempo presente necessita de mulheres e homens disponíveis e sinceros, abertos e audaciosos, despojados e humildes. A conversão do coração, proposta fundamental do Evangelho, leva-nos à aquisição destas virtudes necessárias que edificam a comunidade e o mundo em que vivemos.

O mundo está ameaçado pela ambição do ter em detrimento do cuidado para com os bens da criação. “A criação geme em dores de parto”, exorta-nos São Paulo (cf. Rm 8, 22). Esse versículo da carta paulina à Comunidade de Roma é o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, que tem como tema Fraternidade e Vida no Planeta. Nós precisamos interiorizar a seguinte verdade incontestável: Nós fazemos parte da natureza. Então, por que ousamos destruí-la com nossos projetos mortíferos? Por que não aprendemos a ter o necessário, sem a busca desmedida do acúmulo?

A busca excessiva do ter é o que está acabando com o ser humano. Esta busca leva-o à produção de bens materiais que dão lucros exorbitantes. Cria-se a síndrome do lucro infinito, do lucro acima de todas as coisas e em detrimento da vida do planeta. Mas para que acumular se nossa vida mal ultrapassa os oitenta anos? Em comparação com a proposta de vida de Jesus no Reino de Deus, a nossa vida neste mundo dura pouco. Por isso, não podemos dedicá-la à aquisição de bens supérfluos à sobrevivência.

Qual o sentido dessa falsa felicidade que desconsidera a vida do outro e da natureza? Por que não pensamos nas futuras gerações? Será que os atuais desastres naturais que matam milhares de pessoas não conseguem nos convencer de que estamos nos autoaniquilando a nós mesmos com nossa frieza e covardia para com a natureza? A Quaresma é tempo para muitas pessoas libertarem seus corações das riquezas, pois nestas não se encontra a nossa verdadeira vida.


Tiago de França da Silva
Campina Verde – MG, 09/ 03/ 2011.

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