sábado, 5 de março de 2011

A relação entre crer e praticar


“Nem todo aquele que diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7, 21).

No domingo passado, meditamos sobre a confiança que devemos ter em Deus, fruto de nossa fidelidade permanente ao seu projeto de amor. Vimos que este projeto, denominado Reino de Deus, deve permanecer no centro da vida cristã e eclesial (cf. Mt 6, 24 – 34).

Neste domingo (IX do Tempo Comum), estamos diante de Mt 7, 21 – 27, que encerra o famoso sermão da montanha. Jesus conclui sua pregação com o relevante tema da relação entre crer e praticar a vontade de Deus. Todo o Evangelho mostra que Jesus acreditou e praticou, fielmente, a vontade de Deus; por isso, crendo que ele não pecou, podemos professar a sua perfeição no cumprimento da vontade de seu Pai.

Jesus coloca-nos diante do paradoxo que existe entre o crer e o praticar, contradição que não deveria existir, mas existe porque somos limitados e, conseqüentemente, imperfeitos. Esta verdade já é o bastante para encerrarmos as nossas considerações, mas para que não corramos o risco de cairmos na tentação do desânimo e da alienação procuremos, pois, perscrutar as intuições da mensagem de Jesus nas entrelinhas de suas palavras.

Antes de acreditar em Deus e praticar a sua santa vontade é preciso que o cristão a conheça e entenda. Assim, podemos nos perguntar: É impossível praticar a vontade de Deus? Por que Jesus exige tal prática mesmo sabendo da condição limitada do ser humano? Como viver segundo a vontade divina na Igreja e no mundo de hoje? Vamos pensar, brevemente, sobre estas e outras questões suscitadas pelos textos da Liturgia deste domingo.

Os que dizem: ‘Senhor, Senhor’

Um dos maiores males do nosso tempo é o verbalismo, que se traduz num excesso de palavras destituído de substância e sentido. Em outras palavras, o ser humano, induzido pelos diversos meios de comunicação se põe a falar, demasiadamente. Os estudiosos falam que estamos vivendo numa sociedade do discurso, onde há primazia da palavra que se faz discurso. Há um excesso de notícias e um vastíssimo trabalho de multiplicação de idéias e ideologias que ninguém consegue acompanhar, sistematicamente.

Esta onda barulhenta do discurso invadiu o Cristianismo, que desde o surgimento das ciências sagradas, é marcado pela elaboração teórica de leis, normas, códigos, prescrições, orientações, doutrinas etc. Na Igreja Católica, multiplicam-se os discursos episcopais e pontifícios através de documentos que versam sobre quase todos os aspectos da vida humana. Multiplicam-se, ainda, a produção de músicas, livros, palestras, sites, blogs e tantos outros meios destituídos, na maioria dos casos, de conteúdo e sentido. Fala-se muito e comunica-se pouco ou quase nada.

Nas Igrejas não-católicas, os cultos e reuniões duram horas, marcados por longas pregações, curas, expulsões diabólicas e louvores que desatinam multidões sedentas de milagres. Tudo se encerra nisso. Não há nada que vá além desse excesso de palavras produtoras de um barulho que chega, às vezes, a ser insuportável. Tanto na Igreja Católica quanto nestas últimas, quando se pergunta pela origem e autoria de todas estas coisas, afirma-se, categoricamente: É coisa do poder de Deus que se manifesta na força do seu Espírito!

Na primeira leitura da Liturgia deste domingo (cf. Dt 11, 18.26-28.32), encontramos as seguintes palavras de Moisés: “Incuti estas minhas palavras em vosso coração e em vossa alma; amarrai-as, como sinal, em vossas mãos e colocai-as como faixas sobre a testa”. É assim que os judeus enxergavam a Lei: como palavras que devem ser incutidas no coração, na alma, nas mãos e na testa. Incutir é sinônimo de infundir, ou seja, imprimir no mais profundo do ser as palavras da Lei. Os fariseus e mestres da Lei faziam isso com todo o rigor possível.

Os judeus eram e continuam sendo profundos conhecedores da Lei do Senhor e procuram, na medida de suas forças, observá-la, irrestritamente. Eram e continuam sendo os guardiões da Lei dada por Moisés. No tempo de Jesus, o apego à Lei (legalismo) era tão extremo que somente os não-observantes compreenderam e aceitaram a Boa Nova anunciada por Jesus de Nazaré. Os puritanos, ou seja, aqueles que se mantiveram fiéis à Lei mosaica rejeitaram os ensinamentos de Jesus e seu projeto libertador. Para Jesus, naquele tempo, estes escravos da Lei são os que diziam: ‘Senhor, Senhor’.

Hoje, entre judeus e cristãos, que têm a Bíblia como livro sagrado da revelação da vontade divina, encontramos os escravos da lei: pessoas legalistas que só se preocupam com a observância hipócrita da Lei em detrimento da prática do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo que constrói o Reino de Deus. Na Igreja Católica, o maior número de legalistas e, portanto, de fariseus hipócritas está presente na hierarquia; costumam ser versados nas ciências bíblicas e canônicas e as utilizam para jogar pesados fardos nas costas do povo, são dados ao discurso e a pouca ou nenhuma prática daquilo que ensinam.

Até hoje, nunca conheci um ultraconservador, legalista ou alienado que não tenha sido problemático, interna e/ou externamente. Por trás do rigorismo que se manifesta mais comumente na aplicação das leis morais e na indiferença, sempre há pessoas desequilibradas. Em outras palavras, utilizam-se da interpretação e aplicação radical da Lei para esconder toda espécie de podridão, a exemplo dos fariseus e mestres da Lei que perseguiam Jesus (cf. Mt 23, 1 – 36). Por isso, desconfiemos de pessoas excessivamente rigorosas e piedosas!

Quanto mais forem acentuadas as leis e normas que procuram reger a conduta interna e externa das pessoas, mais difícil se torna o seguimento de Jesus de Nazaré, pois tal seguimento, que deve ser a missão do cristão, é incompatível com o apego à Lei e ao rigorismo que daí procede. Na Igreja Católica temos todo um conjunto de leis que mais dificulta do que facilita a vida das pessoas, basta lermos o CDC – Código de Direito Canônico, verificarmos as prescrições litúrgicas e sacramentais etc. e veremos que não somos muito diferentes dos judeus e de outras religiões que apreciam o cuidado excessivo para com as leis.

A prática da vontade de Deus

A vontade de Deus está acima de toda e qualquer legislação religiosa criada pelo homem. Nada deveria se colocar acima da vontade divina, mas, infelizmente, na maioria dos casos, o crente abandona a vontade divina para se apegar à Lei e às tradições religiosas. Este é o maior pecado que um crente pode cometer, pois a nossa participação no Reino de Deus nos é assegurada quando nos esforçamos em praticar a vontade divina.

Através da realidade do mundo e da nossa vida, da oração e da nossa participação na vida da Igreja, somos chamados a conhecermos a vontade de Deus. Ninguém a pratica sem antes conhecê-la. É Deus mesmo quem se deixa revelar e nos chama à prática de sua vontade. A nossa verdadeira felicidade está no cumprimento da vontade divina e nisto também se realiza a construção do Reino de Deus.

A condição humana dificulta a observância da vontade de Deus. Vejamos o que nos ensina São Paulo a partir de sua própria experiência: “O querer o bem está em mim, mas não sou capaz de fazê-lo. Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero” (Rm 7, 18 – 19). Uma coisa é o querer, outra é poder realizá-lo. Eis o que nos ensina um dos maiores santos da Igreja no séc. XVII: “O cristão submisso à vontade de Deus não tem mais que Deus e é Deus quem o conduz em tudo e por toda parte” (São Vicente de Paulo – XI, 46).

O culto que os cristãos rendem a Deus de nada vale se não for acompanhado pelo esforço e busca constantes da vontade de Deus. A mesma coisa se pode afirmar em relação às leis e/ou prescrições religiosas. Tudo deve ajudar a pessoa no seguimento de Jesus de Nazaré, pois é neste que se realiza a vontade divina.

Iluminado pelo Espírito Santo e auxiliado pela graça divina, o homem é capaz de conhecer e praticar a vontade de Deus. Para que isto aconteça, a abertura da mente e do coração é imprescindível, porque o chamado à fidelidade, à confiança e à obediência se dá na liberdade dos filhos e filhas de Deus. É no cumprimento da vontade divina que o homem se torna amigo de Deus, pois praticar a vontade do Pai é buscar o Reino de Deus e a sua justiça; desse chamado ninguém está excluído.

Viver segundo a justiça do Reino significa colocar-se a serviço do próximo amando-o, incondicionalmente. A espiritualidade cristã tem no amor o seu fundamento último, ou seja, procuramos obedecer à vontade divina quando nos arriscamos a viver por amor. A glória de Deus está na liberdade da pessoa humana que se concretiza através da prática do amor. Praticar o amor é praticar a vontade de Deus, disto jamais podemos duvidar porque assim nos ensina o testemunho de Jesus de Nazaré, que cumpriu a vontade do Pai amando as pessoas, preferencialmente as que eram marginalizados. Segui-lo nestas mesmas pegadas é a nossa vocação e missão.


Tiago de França

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