sábado, 19 de março de 2011

A transfiguração de Jesus e a edificação do Reino de Deus


“A glória de Deus é a vida do pobre”.
(Dom Oscar Romero, bispo e mártir)

A Liturgia da Palavra desde II Domingo da Quaresma convida-nos à reflexão sobre o mistério da Transfiguração de Jesus (cf. Mt 17, 1 – 9). Juntamente com Abraão (cf. Gn 12, 1 – 4a) e com o apóstolo Paulo (cf. 2 Tm 1, 8b – 10) meditaremos sobre a importância da missão do cristão no mundo e suas inevitáveis conseqüências.

Abraão, peregrino obediente

No texto selecionado para a primeira leitura da Liturgia deste Domingo, encontramos a figura de Abraão, o grande patriarca do povo de Deus. Três verbos nos ajudam a compreender a vocação deste corajoso missionário. Façamos uma leitura hermenêutica de cada um deles.

“Sai da tua terra...” Sair da própria terra, da família e da casa do pai: eis o convite divino. O verbo está no imperativo, parece uma ordem, um mandamento. Sair é o primeiro passo. As palavras caminho e caminhada sempre fizeram parte da vida, da mística e da espiritualidade do povo de Deus.

Sair provoca rupturas inevitáveis. O primeiro movimento do sair é a saída de si mesmo. Há, no ser humano, certa tendência natural em centrar-se em si mesmo, fechar-se. Influenciados por uma cultura que conduz ao intimismo, somos levados ao isolamento de nós mesmos. Para constituir o povo de Deus, comunidade dos eleitos, Abraão precisou sair de seu mundo.

Quando alguém sai de algum lugar, certamente vai a outro. Portanto, o verbo sair indica destino; mas para sair, a pessoa precisa ir. Eis o segundo verbo que aparece no convite divino: “Vai para a terra...” Depois de ter enxergado e compreendido a necessidade de sair, a pessoa vai, se põe a caminho. Aqui aparece o terceiro verbo do texto, que indica e revela a obediência do servo e amigo de Deus: “Abrão partiu...”

Abraão obedeceu confiando nas promessas divinas: Deus lhe prometeu uma terra fértil e uma descendência numerosa. Deus o abençoou porque obedeceu. Na transfiguração, essa obediência é revelada na voz de Deus que nos chama para escutar Jesus, seu Filho amado. Ao sairmos de nós mesmos e irmos para onde Deus quer nos enviar estamos trilhando o caminho da obediência.

A vocação de Abraão nos ensina que Deus, às vezes, não é muito claro no ato de chamar. Ele simplesmente chama, desafia e mostra o que podemos denominar de coordenadas gerais. Nada além disso. Assim, a obediência ao chamado divino deve ser acompanhada da confiança. Certamente, Abraão não compreendeu plenamente o plano de Deus, mas obedecendo-lhe, confiou-lhe a sua vida. As promessas eram claras, mas a realização das mesmas era um mistério a ser descoberto durante toda a caminhada.

Depois de termos saído de nós mesmos, ingressamos no segundo movimento do sair, que é o partir. Ninguém sai de si para ficar na inércia. Há, de fato, pessoas que até conseguem sair de si mesmas, mas não ousam partir, ficam estagnadas. Estas pessoas não se sentem bem na planície, lugar do movimento e da luta; mas querem permanecer na montanha, lugar da contemplação.

Estão surgindo na Igreja um número significativo de grupos religiosos que se identificam mais com a contemplação do que com a ação. Eles são caracterizados pelo fervor na pregação e na oração, pelo misticismo de visões e êxtases, pela falta de caridade para com os pobres e amizade para com as pessoas ricas, pela obediência cega à doutrina da Igreja e seus Pastores maiores (Bispos e Papa), enfim, pela adoração do Cristo presente na hóstia e ausente do mundo.

O Cristianismo é a religião do caminho e da caminhada. Jesus era o evangelizador dos pobres, segui-lo exige o colocar-se, definitivamente, em seu caminho. Este caminho é como o de Abraão: incerto, arriscado, desafiador e radical. Trata-se de um caminho que exige decisão livre e consciente. Nele, a pessoa torna-se cada vez mais livre e encontra a verdadeira e plena vida.

Paulo, missionário de Jesus, convida Timóteo para sofrer com ele pelo evangelho. Quem deseja se colocar no caminho de Jesus não pode se esquivar do sofrimento, pois este faz parte da vida do fiel discípulo missionário. Sofrer pelo evangelho é a única forma de sofrimento válida, nenhuma outra pode ser legitimada nem aceita. O sofrimento por causa de Jesus e do Evangelho é sinônimo de fidelidade até as últimas conseqüências.

Jesus transfigurado: imagem da glória divina no ser humano

Jesus tomou consigo três de seus discípulos, levou-os a uma montanha e ficou transfigurado diante deles. Nesta visão aparecem Moisés e Elias, que simbolizam a Lei e os Profetas. Jesus conversa com eles algo que o texto não revela. Pedro, ousado, toma a palavra e diz: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”.

Estas palavras do apóstolo Pedro demonstram o bem-estar da experiência da visão. Ele gostou de estar ali. Aquela visão lhe proporcionou segurança, alegria e satisfação. Era ali, no alto da montanha e diante do Cristo transfigurado que Pedro queria construir as tendas. Estas indicam lugar seguro, fixo e confortável. A tendência do cristão e da Igreja é fazer a mesma coisa: apegar-se às seguranças oferecidas pelas tendas.

A voz de Deus que falava com os patriarcas entra em cena e revela quem é Jesus: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” A voz de Deus diz, claramente, que Jesus é o Filho amado. Ele é querido pelo Pai e este pede que o escutemos. Escutar Jesus significa observar o seu mandamento fundamental: o amor. Os discípulos ficaram assustados ao ouvir a voz de Deus que saía da nuvem luminosa que os cobria com sua sombra.

Vendo os discípulos com o rosto em terra, Jesus diz: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Levantar-se significa colocar-se à disposição, reerguer-se, libertar-se do medo que puxa para baixo e aprisiona. Quando erguem os olhos termina-se a visão, tudo volta ao normal, eles vêem somente Jesus. O episódio termina com a recomendação de Jesus, que pede para que não contem a ninguém a visão que tiveram, até que ele “tenha ressuscitado dos mortos”.

Por uma Igreja missionária, servidora e pobre

A Igreja precisa aprender com Abraão a ser missionária. Durante toda a cristandade, que durou até o Concílio Vaticano II e insiste em sobreviver em alguns lugares eclesiais atuais, a Igreja buscou permanecer na montanha, na contemplação e na visão do transfigurado. Desta experiência contemplativa surgiram espiritualidades, carismas, conventos, mosteiros, doutrinas e um jeito específico de ser Igreja. Neste modelo de Igreja, o povo era mero expectador das sagradas liturgias celebradas, pomposamente.

Neste mesmo período de cristandade criaram-se estruturas pesadíssimas que perduram até os dias de hoje. Elas foram edificadas de uma forma que até parecem eternas, pois causam um apego doentio tanto nos leigos quanto nos ordenados, sobretudo nestes últimos. Estruturas e mentalidades cristalizadas, que se colocaram como inquestionáveis. Os dogmas são das maiores heranças desta época.

Com a evolução do pensamento e a revisão do estilo de vida no mundo, as estruturas e mentalidades eclesiásticas foram sendo questionadas, incontrolavelmente. A própria Igreja passou a perceber que a maioria de suas estruturas não corresponde mais ao tempo presente, pois está ultrapassada. O problema não está na constatação das estruturas que não funcionam mais, mas na falta de coragem e ousadia profética para mudar. Este verbo nunca foi bem-vindo na vida da Igreja, pois ele traz sérias conseqüências. O medo e as seguranças não deixam a Igreja se libertar.

“A Igreja peregrina é missionária por natureza, porque tem sua origem na missão do Filho e do Espírito Santo, segundo o desígnio do Pai”, afirma o n. 2 do documento conciliar Ad gentes. Esta missionariedade da Igreja depende dentre muitas outras atitudes de sua coragem de se despojar das velhas estruturas. Este despojamento acompanhado do imprescindível ardor missionário fará que com “a Igreja se manifeste como mãe que vai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente de comunhão missionária” (Documento de Aparecida, n. 370).

A Igreja conhece as próprias limitações e infidelidades, mas anda a passos de tartaruga no caminho da conversão estrutural e pastoral. Isto acontece porque as estruturas promovem confortos e seguranças. O problema maior está no apego que não tolera o surgimento do novo. Este fez parte da vida de mulheres e homens que se deixaram conduzir pelo Espírito Santo ao longo de toda a história. São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Santa Rosa de Lima, São Bartolomeu de Lãs Casas, Dom Hélder Câmara, Dom Oscar Romero, Pe. Josimo e Pe. Cícero de Juazeiro entre tantos outros e outras, ordenados e leigos, foram, com suas palavras e gestos, protagonistas na transformação do mundo e da Igreja.

Acreditar na transfiguração de Jesus é trabalhar pela transfiguração da realidade dos pobres, auxiliando-os em seu processo de libertação integral. Precisamos subir à montanha da contemplação e descermos para sermos contemplativos na ação. Nossas tendas devem ser provisórias, somente para a recuperação necessária das forças físicas e espirituais no encontro com o Senhor, que acontece na oração e na reunião da comunidade em torno da palavra de Deus e da Eucaristia. Estas nos colocam nos tornam missionários do Reino de Deus.


Tiago de França

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