domingo, 10 de abril de 2011

O Espírito: vida e liberdade


“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá.
E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais. Crês isto?”
(Jo 11, 25 – 26)

A vida que vence a morte está na centralidade da Liturgia da Palavra deste V Domingo da Quaresma. Com o profeta Ezequiel, que profetizou junto ao povo do exílio da Babilônia por volta de 580 a.C. somos chamados a refletir a respeito da ação amorosa de Deus em favor de seu povo (cf. Ez 37, 12 – 14). Com São Paulo vamos aprender a viver segundo o Espírito. Este nos conduz a uma vida nova (Cf. Rm 8, 8 – 11). No Evangelho, vamos acompanhar a ressurreição de Lázaro, um grande amigo de Jesus de Nazaré (cf. Jo 11, 1 – 45).

Senhor Deus, libertador

A profecia de Ezequiel se deu numa época difícil da vida do povo de Deus. Um povo exilado é um povo sem vida e sem liberdade. Deus se compadece e não o abandona: “vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel”. Isto significa que Deus estava com seu povo para libertá-lo das sepulturas, ou seja, da ausência de vida e liberdade. “A glória de Deus é a vida do pobre”, dizia Dom Oscar Romero. Este Bispo certamente entendeu a opção preferencial pelo pobre, manifestada pelo próprio Deus durante toda a história da salvação.

A história do povo de Israel nos mostra, claramente, que Deus sempre trabalhou pela vida e liberdade dos oprimidos, exilados, enfraquecidos e explorados. Há uma identificação divina para com os que sofrem. O povo de Deus sempre foi marcado pela opressão, expressa pelas diversas formas de escravidão e desrespeito à vida. Neste contexto, a presença de Deus se manifestou através das palavras e dos gestos dos profetas. Estes eram a boca de Deus, reanimando a esperança dos oprimidos e denunciando as injustiças cometidas pelos que exploravam o povo.

“Porei em vós o meu espírito, para que vivais”. A vida do povo de Deus é restituída através da efusão do Espírito do Senhor. Este é a vida do povo a caminho e que confere força, ânimo, coragem, disposição e ousadia para continuar caminhando apesar das dificuldades. Sem o Espírito do Senhor, força que se manifesta na gratuidade para a liberdade, o povo de Deus tinha desistido e perecido. O Espírito do Senhor faz a pessoa ressurgir das profundezas da morte, ou seja, não há nenhuma realidade de morte que o Espírito não possa fazer brotar a vida.

O Espírito e a liberdade

Este mesmo Espírito aparece na Carta de São Paulo aos Romanos. O texto da Liturgia deste Domingo fala da oposição entre viver segundo a carne e viver segundo o Espírito. Na caminhada rumo à terra prometida, o povo de Deus fraquejou algumas vezes: reclamava, demorava a acreditar no poder de Deus, praticava a idolatria; enfim, era um povo difícil, que tendia para o imediatismo, que não compreendia a dinâmica de Deus. Este sempre se mostrou paciente, bondoso, misericordioso, atento e providente.

O que significa viver segundo a carne e viver segundo o Espírito? Os neopentecostais gostam muito desta parte da Carta de Paulo aos Romanos, apesar de compreenderem pouco o que ela quer realmente dizer. A verdade que transparece pode ser resumida na seguinte sentença: Nós somos chamados a viver segundo o Espírito vivendo na carne. Vamos compreender bem o que isso quer dizer, para que não nos escandalizemos.

O ser humano é corporeidade. Esta não é coisa do demônio como muita gente pensa, mas criação divina. Jesus tinha corpo e exerceu sua missão sem negar, em nenhum momento, sua corporeidade. Os espiritualistas tendem a considerar o corpo como origem de todo o pecado, ou seja, como o filósofo Platão, eles crêem que o corpo aprisiona a alma. Na Idade Média esta mentalidade era tão forte que os/as religiosos/as maltratavam o corpo, porque o viam como causador do pecado.

Jesus nunca exigiu das pessoas autoflagelação ou qualquer espécie de ascese corpórea. O fato é que ele era considerado comilão e beberrão (cf. Mt 11, 19), pois comia e bebia com os cobradores de impostos e pecadores. Estes eram considerados pecadores públicos, ou seja, pessoas que não se davam ao respeito, que maltratavam seus corpos. Em nenhum momento encontramos Jesus censurando-os por conta de seu “estado pecaminoso”. O que Jesus fez foi permanecer no meio deles e partilhar de suas vidas.

Com isto não queremos afirmar que seja saudável uma pessoa se entregar aos vícios que tiram a vida do corpo. O cuidado para com o corpo é necessário e recomendável para uma vida sadia e equilibrada. São Paulo não está se referindo ao cuidado corpóreo, mas está chamando a atenção para aquilo que costumam chamar de viver segundo os instintos egoístas. Quando escreve aos Gálatas, São Paulo fala, claramente, a respeito dos pecados da carne: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira etc. (cf. Gl 5, 19s).

Estes pecados da carne são maus não porque a lei os condena, mas porque tiram a vida do ser humano. Em outras palavras, eles desumanizam a pessoa, desfigurando-a. Ninguém está livre destes pecados. A vigilância e a abertura ao Espírito Santo nos ajudam a lidar com eles. Somos concupiscentes e a todo o momento somos tentados a praticá-los. Deus não nos livra de tais tentações, mas nos socorre em nossa fraqueza. O pecado é uma realidade humana e ninguém pode negar nem fugir disso.

O místico Anthony de Melo, SJ, ensinava que tais pecados, ligados diretamente à nossa natureza concupiscente, não podem ser combatidos; ou seja, precisamos aprender a lidar com nossas limitações. Nós morremos limitados, pecadores. Aceitar esta condição é necessário para nos colocarmos no caminho da liberdade. O autoconhecimento de si mesmo se dá por meio do reconhecimento da condição humana, marcadamente limitada. O citado jesuíta nos ensina o valor do desapego de pessoas, de coisas, do mundo e da própria vida como caminho para a liberdade.

Os Padres do deserto nos ensinam o autocontrole de nós mesmos através da disciplina. O mundo pós-moderno se opõe a toda disciplina. Somos impulsionados ao desequilíbrio, a vivermos sem regras, sem leis, sem limites. Tal situação mostra-se desastrosa, portanto, sem futuro. Disciplina não significa repressão dos instintos, mas educação dos mesmos para que os tenhamos à nossa disposição como forças em potencial. O Espírito Santo não anula em nós os nossos instintos.

“Certa ocasião, pai Poimen [monge do deserto] perguntou ao patriarca José [outro monge]: ‘Que devo fazer quando as paixões se aproximam de mim? Resistir a elas ou deixá-las entrar?’ E o ancião lhe respondeu: ‘Deixa que entrem e luta com elas’. Depois de indagado, completou: ‘Quando as paixões entrarem e lutarem contra elas, dando a elas e delas recebendo, tornar-te-ão mais provado’”.

O Espírito Santo nos concede o dom da vigilância em relação a nós mesmos. Vigiar a si mesmo significa permanecer atento às próprias limitações e às tentações que nos entram pelos sentidos. Este mesmo Espírito nos concede a força necessária para sabermos lidar com nossos limites. “Vocês não foram tentados além do que podiam suportar, porque Deus é fiel e não permitirá que sejam tentados acima das forças que você têm” (1 Cor 10, 13). As tentações devem ser oportunidades de autoconhecimento e do discernimento da presença do Espírito Santo em nós.

Ressurreição: vida que vence a morte

No texto evangélico de hoje Jesus ressuscita Lázaro. O nome Lázaro significa Deus ajuda. Jesus era muito próximo dele e de suas irmãs, Marta e Maria. “Senhor, aquele que amas está doente”: este recado das irmãs de Lázaro mostram que, de fato, Jesus o tinha como grande amigo. O amor é característica fundamental da verdadeira amizade. Jesus, quando escuta o recado afirma que a doença do amigo não era motivo de preocupação, pois não levava à morte. Segundo ele, tal doença é caminho de glorificação do Filho de Deus e lugar da manifestação da glória de Deus.

Dois dias após ter recebido o recado, Jesus resolve voltar à Judéia, onde foi quase apedrejado. Os discípulos recordaram-lhe o perigo, mas Jesus não teve medo. Ele compara a morte de Lázaro ao sono, simplesmente iria acordá-lo. A ingenuidade dos discípulos levou-os a entender que Jesus estava falando de sono mesmo, mas tudo fica esclarecido: “Lázaro está morto. Mas, por causa de vós, alegro-me por não ter estado lá, para que creiais”. Fica, então, claro que Jesus irá restituir a vida ao corpo de Lázaro, em estado de putrefação há quatro dias.

O desespero das irmãs Marta e Maria era tão cruel que nem Jesus suportou ver: “E Jesus chorou”. Aqui aparece a humanidade de Jesus. Ele se compadece do sofrimento de mulheres que não tinham mais a presença do irmão. Na cultura judaica, as mulheres que viviam sozinhas, sem marido nem irmão, não viviam bem. O irmão era a alegria e a segurança das irmãs. Marta declara a sua fé na ressurreição do último dia quando Jesus afirma que Lázaro iria ressuscitar: “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”.

“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais”. Estas palavras falam daquilo que Jesus é: a ressurreição e a vida. Quem acredita nesta verdade, mesmo experimentando a morte corporal jamais morrerá. A morte não consegue tirar a vida que Jesus concede aquele que nele crê. E as irmãs de Lázaro reconheceram a messianidade e a filiação divina de Jesus.

Antes de mostrar, factualmente, que era a ressurreição e a vida naquela situação, Jesus reza ao Pai: “Pai, eu te dou graças porque me ouviste. Eu sei que sempre me escutas. Mas digo isto por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste”. Este colóquio de Jesus com o Pai nos ensina a sua unidade amorosa com o Pai. Ele tinha a plena certeza que o Pai o escutava. Esta certeza o levou a realizar o sinal, para que as pessoas acreditassem que ele era o enviado de Deus.

“Lázaro, vem para fora!” O pobre amigo estava aprisionado no terrível sono da morte. Estava aprisionado e ganhou a liberdade, estava morto e lhe foi restituída a vida neste mundo. “Desatai-o e deixai-o caminhar!” As pobres irmãs devem ter sentido uma alegria muito grande, ao ver seu irmão voltar à vida e tê-lo de novo junto de delas. Era isso que Jesus queria, que as pessoas vivessem, se libertassem, caminhassem, se alegrassem. O Deus e Pai de Jesus não o abandonou em sua oração. E o texto termina revelando o objetivo alcançado: “Então, muitos dos judeus que tinham ido à casa de Maria e viram o que Jesus fizera creram nele”. Tudo isto aconteceu para que as pessoas acreditassem em Jesus.

A ressurreição de Lázaro não foi uma ressurreição propriamente dita, pois o mesmo reviveu e morreu novamente. A autêntica ressurreição, aquela que vai se dá no último dia, vence a morte de uma vez por todas; ou seja, quem passa pela ressurreição recebe o que chamam de corpo glorioso, que não morre jamais. Após a ressurreição do último dia a morte deixará de existir. O que ocorreu com Lázaro foi reanimação de cadáver. Jesus devolveu-lhe o sopro da vida neste mundo. Lázaro morreu e certamente aguarda a ressurreição no último dia. Quem duvidar disto, então nos diga onde ele está, para que o entrevistemos a respeito da experiência do reavivamento!

Os Lázaros de hoje

A experiência de retorno à vida de Lázaro nos chama a atenção para o reavivamento cotidiano de nossas vidas, ou seja, somos chamados a ressuscitar, cotidianamente, para uma vida melhor. Lázaro estava doente e morreu. Quais as doenças que estão nos tirando a vida? Um fato recente merece a nossa atenção.

Na semana passada, no bairro Realengo, zona oeste da cidade do RJ, ocorreu uma tragédia que marcou a história do país: um jovem de 23 anos entra numa escola e dispara sessenta tiros contra crianças em plena sala de aula e mata, covardemente, doze delas. Além destas, muitas outras ficaram feridas e traumatizadas. Após receber dois tiros de um policial, o assassino se suicida. Isto aconteceu no aniversário de 40 anos da Escola Municipal Tasso da Silveira.

Nada justifica a violência contra o ser humano. Toda forma de violência é antievangélica e deve ser repudiada; mas somente nosso repúdio não resolve tal situação. O desamor que gera indiferença, o desemprego que gera fome, a corrupção que causa miséria e retrocesso, a poluição que agride a natureza, o preconceito que causa intolerância; enfim, tantos outros males precisam ser erradicados, para que tenhamos uma sociedade justa e fraterna.

Crimes como este não ocorrem sem motivações. Quais as causas que levam a isto? Nossa inteligência e capacidade de ação devem ser suficientes para compreendermos o que está acontecendo e trabalharmos para que isto não se repita. Esta situação não pode ser considerada nem se tornar coisa comum em nossa sociedade. Não podemos nos acostumar com isto. Não podemos nos deixar dominar pela indiferença oriunda da insensibilidade.

A fé em Jesus exige que defendamos e promovamos a vida. Há muitos Lázaros doentes que precisam ser reanimados. Muitos de nossos jovens são Lázaros que merecem nossa atenção e cuidado, do contrário, tornam-se pessoas altamente perigosas ao convívio social. Não adianta crermos que Jesus irá nos ressuscitar no último dia se não nos ajudarmos mutuamente a sermos pessoas vivas e conscientes do valor da vida. “...vamos para junto dele”, disse Jesus em relação a Lázaro. Eis nossa missão: Permanecer junto daqueles que sofrem, que estão doentes e perdendo, aos poucos, o sentido da vida.

O isolamento fazia parte da sobrevivência do jovem que se tornou assassino na Escola do RJ. Todos sabemos que somos seres relacionais, que nos realizamos no encontro com o outro. Por isso, tenhamos cuidado com o isolamento, pois tira a nossa alegria de viver. Não somos ilhas para vivermos isolados. A construção sadia de nossa personalidade se dá na relação com o próximo. Nossa relação com o próximo não deve ser somente por telefone e internet (meios mais utilizados), mas através do encontro pessoal, do toque, do abraço, do sorriso, da convivência. Comunicação virtual e, portanto, superficial não constroem personalidade sadia.

Assim como Jesus, precisamos resgatar o valor da verdadeira amizade, pautada nos seguintes valores: amor, respeito, encontro, diálogo, liberdade e compreensão. A amizade nos ajuda a viver melhor. Quem tem amigos que se deixam relacionar a partir dos valores mencionados, tem um tesouro valioso e tem futuro na vida; do contrário, a vida se torna um peso que precisa ser tirada a qualquer preço, inconseqüentemente.

O cristão crê na vida e a procura viver na relação com o outro. Não existe Cristianismo nem Evangelho sem relação amorosa com o próximo. Este caso da Escola do RJ chama a atenção não somente da sociedade, mas também da Igreja, que precisa priorizar a evangelização da juventude, pois nesta está o futuro ou o fim trágico da sociedade e da religião.


Tiago de França

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