sábado, 27 de agosto de 2011

Dom Hélder Câmara e Dom Luciano Mendes: profetas da justiça e do amor


Um breve artigo é insuficiente para falar de dois grandes homens santos que marcaram a história da Igreja. Falar sobre Dom Hélder e Dom Luciano é expressar o significado do ser Bispo na Igreja. Além disso, é expressar, sobretudo, o valor e a urgência da profecia dentro e fora da instituição religiosa. É conflituosa a relação que há entre profecia e instituição. Há duas palavras que caracterizam a vida destes dois profetas da Igreja no Brasil: incompreensão e perseguição.

O profeta não vive para a instituição. Esta não gera nem o profeta nem a profecia. Estes são obras do Espírito do Senhor. Guiado pelo Espírito, o profeta anuncia o Reino e este anúncio pressupõe a denúncia das injustiças. Quando estas são praticadas no interior da Igreja, o profeta também a denuncia. Jesus de Nazaré, o profeta maior, denunciou os equívocos e crimes praticados pela religião do seu tempo. Para o profeta, Jesus é a inspiração e a referência fundamental.

Dom Hélder saiu do Rio de Janeiro para Olinda e Recife, Dom Luciano saiu de São Paulo para Mariana. De fato, o profeta não ocupa o centro, mas vive à margem, na periferia. A profecia não é exercida a partir do centro, mas a partir da periferia porque é lá que vivem os pobres. Não há profeta nem profecia sem os pobres. Os profetas sempre nascem no meio deles e quando não nascem, são gerados a partir deles. Se uma pessoa rica quiser exercer o ministério profético terá que se deixar guiar pelo Espírito, e este a torna humildemente pobre. O Espírito nunca contradiz a opção divina porque o Espírito realiza o que o Pai manda.

Há outras duas palavras que caracterizam estes dois Bispos da Igreja: justiça e amor. A vida deles foi um testemunho fiel de justiça e de amor. Eles ensinaram que a justiça que liberta não é aquela fabricada pelos homens, mas é a justiça do Reino de Deus. Na justiça dos homens, os pobres não têm vez nem voz. Os homens inventaram as leis dizendo que as mesmas existem para defender os fracos, mas é mentira. Desde que inventaram as leis, a justiça tem se mostrado injusta porque criminaliza o pobre e o condena. Isto justifica a opção que Deus fez pelos pobres. Deus sabe que os pobres dependem dele para sobreviver neste mundo.

A justiça do Reino de Deus não é cega, mas possui olhos abertos e enxerga o injustiçado e lhe faz justiça; é a única justiça que promove a igualdade entre as pessoas. No Reino de Deus, a justiça divina diz que todos são iguais, ninguém é maior nem melhor que ninguém: todos são filhos de um mesmo Pai. Nela o homem não é objeto nem de processo nem de burocracia, pois estes existem para que alguns ganhem dinheiro à custa do sofrimento do próximo. Na justiça dos homens, a lentidão existe para que os injustiçados desistam de ganhar a causa. Na justiça do Reino de Deus, os injustiçados têm suas causas ganhas sem precisar de processo porque Deus é justo, bom e misericordioso no julgar.

Dom Hélder e Dom Luciano também ensinaram o verdadeiro significado do amor. Eles não aprenderam a amar nas universidades (Dom Luciano era jesuíta e Doutor em Filosofia, e Dom Hélder foi formado no rigor disciplinar da formação lazarista e tinha uma inteligência extraordinária). Eles aprenderam a amar quando se dispuseram a amar mais as pessoas do que os ofícios que exerciam: despojaram de todo espírito de superioridade e prepotência e revestiram-se do espírito de Cristo. Servindo aos pobres aprenderam a levar uma vida humilde e simples. Eles descobriram que a missão deles não era a de ser porta-voz do Vaticano, mas de serem missionários do Evangelho de Jesus de Nazaré: eram homens de Igreja sem a sujeição da inteligência ao Bispo de Roma.

Eles ensinaram que o amor está acima dos discursos eclesiásticos e, muitas vezes, não é expresso por estes. Certamente, quem os conheceu sabe que, enquanto Bispos, discursavam muito, mas a incoerência não se encontrava em seus discursos. Em nenhum momento entravam em contradição com o Evangelho porque não falavam de si nem para si, mas a exemplo dos apóstolos de Jesus de Nazaré, testemunhavam a Ressurreição do Senhor. Segundo Dom Hélder e Dom Luciano, o amor verdadeiro se expressa na solidariedade com o próximo, preferencialmente o próximo pobre e sofredor. Eles eram profeticamente comprometidos com as causas dos pobres e com a promoção da justiça e da paz.

No dia 27 de agosto de 1999, aos 90 anos de idade, Dom Hélder entregou-se definitivamente nos braços do Pai. Na mesma data do ano de 2006, aos 75 anos, Dom Luciano viveu a mesma experiência pascal. A vida deles não deixa dúvidas: o Espírito faz suscitar profetas também na hierarquia da Igreja. Com isto, o Espírito está dizendo que a Igreja precisa se converter naquilo que ela deve ser: uma humilde servidora dos pobres. O testemunho destes santos Bispos chama a atenção para a necessidade de a Igreja escutar os profetas, pois sem eles não há profecia e sem esta não há Reino de Deus. Escutemos, pois, os profetas e convertamo-nos.


Tiago de França

domingo, 21 de agosto de 2011

Partilha de uma experiência missionária


“Na revelação de Deus, os pobres são a esperança do mundo porque é por eles que se constrói o Reino de Deus. Eles são a verdadeira Igreja, independentemente da religião que praticam ou não praticam” (José Comblin).[1]

A modo de introdução

Quando vivenciamos algo bom e que serve para estimular outras pessoas a fazerem a mesma coisa, vale a pena partilhar. A partilha não é somente para dizer alguma coisa, mas para ajudar o outro na edificação da própria fé, a fim de que não desanime na caminhada. Quando os setenta e dois discípulos enviados por Jesus voltaram de sua experiência missionária, com muita alegria contaram tudo o que tinha acontecido. Pois bem, este contar é partilha de irmãos, que na alegria do discipulado e da missão conversam sobre as maravilhas que Deus realiza no meio do seu povo.

Quero partilhar, não de modo descritivo (a modo de relatório), mas apenas falar da imensa alegria que vivi no encontro com os pobres da missão vicentina de Francisco Badaró e Jenipapo de Minas, pequenas cidades da região do Vale do Jequitinhonha. Trata-se da região mais pobre de Minas Gerais: lugar de gente sofrida, trabalhadora e acolhedora. Nas duas comunidades paroquiais temos dois Padres da Missão: Pe. Paulo José de Araújo, C.M. e Pe. Raimundo João da Silva, C.M. Espera-se a chegada de mais um ainda neste segundo semestre. Em Jenipapo de Minas há uma Comunidade de Irmãs da Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo.

No Brasil, a Congregação da Missão optou por oferecer aos formandos das três províncias (Fortaleza, Rio de Janeiro e Curitiba) a experiência formativa de um Seminário Interno Interprovincial (corresponde ao Noviciado dos religiosos). Nesta etapa, durante o mês de julho, realiza-se o que denominamos Estágio Missionário: experiência missionária entre os pobres. Neste ano, o Vale do Jequitinhonha foi a região escolhida. O objetivo foi de levar os seminaristas a vivenciarem, durante um mês, o cotidiano dos Coirmãos, seu estilo de vida no trabalho junto aos pobres. Fomos em quatro: Antônio Deuzin (Província de Fortaleza – PFCM), Élio da Silva e Éder Fabrício (Província do Sul – CMPS) e eu (Província do Rio de Janeiro – PBCM). Chegamos lá no dia 01 de julho e regressamos no dia 01 de agosto.

Um povo pobre e sofredor

A maioria do povo mora na zona rural e é profundamente marcado pela migração e pela doença de Chagas. Devido à falta de trabalho, a maioria dos homens vai trabalhar em São Paulo, tanto no corte de cana quanto na colheita de café. As mulheres e crianças ficam sozinhas em casa. Muitas mulheres são jovens viúvas, pois seus maridos morreram em decorrência do mal de Chagas. O número dos que morreram é incontável. Quase não existe família que não tenha sido acometida pela picada do barbeiro que transmite tal doença.

As comunidades estão estruturadas em vilas ou lugarejos, mas em muitos lugares as casas são distantes umas das outras, dificultando a comunicação e a participação na comunidade. Apesar disso, a participação nas Celebrações é significativa. De modo geral, o povo não passa fome, mas a escassez de água e de uma alimentação de qualidade se faz perceptível. Em matéria religiosa, predominantemente católica, os povoados não formam “pontos de missa”, mas comunidades: culto dominical, catequese e associações comunitárias.

Os pobres nos evangelizam

A experiência de estar junto dos pobres é melhor vivida quando aquele que se apresenta como missionário se coloca numa atitude permanente de escuta. A escuta dos pobres é caminho seguro para a compreensão do projeto de Deus. Destituídos do poder, do prestígio e da riqueza, os pobres mostram, com o testemunho da própria vida, o caminho de Jesus. O cotidiano humilde e despojado das comunidades por onde passei falou-me do valor do despojamento para a missão.

Sem o estudo da filosofia e da teologia, os pobres entendem e falam de Jesus com alegria e fé. Não há conhecimento científico da fé e das Escrituras que descrevam com tamanha perfeição a experiência divina como os pobres descrevem. Na verdade, sobre Deus quase não falam, o que fazem é outra coisa, mais edificante e feliz: eles vivem em Deus e para Deus. Fiz questão de indagar muitas pessoas nas visitas a respeito daquilo que as sustenta na labuta de cada dia e a resposta era única: “a fé em Deus!”

Visitando uma senhora em uma das comunidades, ela me deu uma resposta que guardo com a devida veneração: “Seu missonaro, aqui nós vive como bicho no mato, mas Deus ama nós!” Estas palavras, oriundas de um coração humilde e sincero, foram conteúdo para a minha oração naquele dia. Penso que não preciso esperar que a Igreja canonize uma mulher dessas para venerá-la como santa, porque a verdadeira santidade consiste em amar a Deus e ser amado por ele. No mais profundo de si mesmos, os pobres não se sentem abandonados porque sabem que Deus os ama e sustenta suas vidas.

Aquela mulher me fez recordar São Vicente de Paulo, fundador da Congregação da Missão, que de joelhos e com lágrimas implorava aos missionários para que fossem aos pobres. São Vicente de Paulo não suportava ver os pobres no abandono social, sofrendo a falta de assistência material e espiritual. Esta é a atitude de quem se despoja de toda vaidade e riqueza e numa total entrega compassiva vai ao encontro dos pobres sem medo de encontrar a verdadeira felicidade. Os pobres nos fazem entender que a verdadeira felicidade está no serviço que podemos prestar ao próximo, serviço manifestado na gratuidade e no amor generoso.

Um apelo à Igreja

Desde os tempos do Concílio Vaticano II, passando por Medellín até chegar à Aparecida, a Igreja está consciente da necessidade de se fazer, não superficialmente, mas de fato, a opção preferencial pelos pobres. Trata-se de uma opção que levará a Igreja ao caminho de Jesus. Infelizmente, há um forte movimento de volta à cristandade, de volta aos antigos costumes, às antigas liturgias, às velhas fórmulas e linguagens que já não expressam nada. Libertação, comunhão, participação, transformação, inserção, Reino de Deus e outros conceitos e atitudes da reflexão teológica latino-americana estão deixando de existir do vocabulário e do cenário eclesiais.

Eis a audaciosa exortação que a Conferência de Aparecida fez à Igreja na América Latina e no Caribe:

Só a proximidade nos faz amigos e nos faz apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem constante solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja. À luz do Evangelho reconhecemos sua imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos de Cristo, pobre como eles e excluído como eles. A partir dessa experiência cristã, compartilharemos com eles a defesa de seus direitos (DA, 398).

Esta proximidade que nos faz amigos não é uma experiência de momento, portanto, passageiro. A amizade é uma experiência permanente porque alimentada pela proximidade do outro a quem quero bem. Assim, a Igreja não pode aproximar-se dos pobres durante alguns momentos: Santas Missões, pequenas contribuições financeiras, visitas às comunidades pobres etc., não quebrando, assim, o muro de separação. Para tornar-se Povo de Deus é preciso que haja verdadeira comunhão entre os membros da Igreja, principalmente entre a hierarquia e o povo.

Mais do que ir ao encontro dos pobres, a Igreja precisa cultivar um estilo de vida pobre, desapegando-se do prestígio, do poder e da riqueza. Este é o clamor que os pobres dirigem à Igreja. Diante do complexo aparato litúrgico e teológico, os pobres se sentem perdidos porque olham, mas não enxergam; ouvem, mas não escutam; tudo se apresenta como belo, mas aquilo é inacessível à compreensão. Sem falar do cotidiano dos pobres, toda reflexão e toda homilia lhes parece coisa de outro mundo.

É urgente que a Igreja assuma o que ousou dizer em Aparecida. O documento conclusivo é claro ao exigir uma Igreja em estado permanente de missão, discípula e missionária de Cristo e profundamente profética. É preciso assumir a verdade que o Reino de Deus é construído a partir dos pobres. Isto significa que enquanto outras prioridades ofuscarem tal construção, tal infidelidade continuará tirando a Igreja do caminho de Jesus. Para ser fiel a Jesus, a Igreja precisa colocar a mensagem evangélica no centro, pois é o anúncio do Evangelho, missão fundamental da Igreja, e não os discursos eclesiásticos com suas finalidades humanas, que constroem o Reino de Deus.

A modo de conclusão

Encontrar-me com os pobres das duas realidades eclesiais do Vale do Jequitinhonha reacendeu em mim o forte desejo de servi-los na condição de Padre da Missão. Quando lá estive, ficava lembrando dos testemunhos missionários de Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom José Maria Pires, Dom Tomás Balduíno, Ir. Dorothy Stang, Pe. Cícero de Juazeiro, Pe. Ibiapina, Pe. José Comblin e tantos outros e outras que marcaram e ainda marcam a história da Igreja no Brasil. E uma pergunta sempre me persegue em minhas orações: Meu Deus, para onde vai a tua Igreja nesta hora da história?!...

O Estágio Missionário terminou com nossa participação na Assembléia Diocesana de Araçuaí. Foi muito bom ver a participação calorosa de leigos/as conscientes de sua missão numa Igreja que teve na pessoa de Dom José Maria Pires um pastor zeloso e fiel à opção preferencial pelos pobres, imediatamente após a realização do Concílio Vaticano II. Alegria maior foi ter escutado o próprio Dom José M. Pires, que aos 92 anos de idade, deslocou-se de Belo Horizonte para falar para seu povo, para “matar a saudade”, como disse ele.

Escutar Dom José M. Pires foi uma experiência ímpar para um seminarista que deseja ser padre missionário numa Igreja que deve ser dos pobres. Com a liberdade de espírito que lhe é peculiar, falou não somente da necessidade de se construir uma Igreja mais simples, como também, de forma mineira, extrovertida e feliz, contou vários dos “causos” que vivenciou como Bispo negro na Igreja. No final de sua palavra, foi-nos oferecido um livro e ele, pacientemente, fez questão de autografar o livro de todos os que se interessaram em adquirir.

Quando chegou a minha vez, lhe apresentei dois exemplares: um para meus pais, que o conheceram na Paraíba, e outro para mim. No meu, ele escreveu: “Tiago, apóstolo de hoje!” E me perguntou: “Você entende o que está escrito?” Respondi: “Entendo, sim, Senhor!” Então, respondeu depois que lhe disse que era seminarista: “Pois procure ser isso na Igreja e no mundo de hoje!” Jamais me esquecerei desta santa recomendação deste grande homem da Igreja que não se cansa de anunciar com o testemunho da própria vida o Evangelho de Jesus de Nazaré.


Tiago de França da Silva
Campina Verde - MG, 19/08/2011.

Nota:
[1] In: OLIVEIRA, Pedro A. de (org.). Opção pelos pobres no século XXI. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 201.

sábado, 13 de agosto de 2011

Conviver com o diferente: um desafio possível


O texto evangélico da Liturgia da Palavra deste XX Domingo Comum (cf. Mt 15, 21 – 28) é um convite para que se repense a questão das diferenças, da diversidade e da difícil arte de conviver num mundo cada vez mais plural e, portanto, profundamente marcado pelas ideologias e pelo jogo de interesses pessoais e grupais. É possível ser verdadeiramente cristão em meio a tudo isto? O que a mensagem evangélica tem a dizer a este mundo marcadamente plural, contraditório e desumano?

O texto mostra Jesus estava fora do seu contexto familiar e regional, na região de Tiro e Sidônia. De repente, se depara com uma mulher cananeia, que lhe implora a cura de sua filha, cruelmente atormentada por um demônio! Os discípulos de Jesus ficam incomodados com aquela gritaria e pede a Jesus que mande embora aquela mulher. Jesus simplesmente responde que veio somente às ovelhas perdidas da casa de Israel, mas mesmo assim a mulher não desiste e continua a implorar socorro.

Não tendo como escapar da insistente mulher, Jesus a questiona e recebe, pontualmente, uma resposta que o convence de que ela, mesmo não pertencendo à casa de Israel, possuía grande fé. Jesus não resiste ao pedido insistente da mulher desesperada e realiza a sua missão: liberta a filha da cananeia das amarras do demônio. Este é o texto. A mensagem central é: Jesus não se fechou no mundo da casa de Israel e sua ação libertadora está para todos, independentemente de credo e cultura.

Num primeiro momento, Jesus age como todo judeu de seu tempo: não responde à mulher palavra alguma e, verbalmente, restringe sua missão somente à casa de Israel. A grande fé da mulher chamou a sua atenção. Chamando-o de Senhor, filho de Davi, a mulher reconhece a descendência de Jesus e sabe do que ele é capaz da fazer. Jesus despertou naquela mulher a fé na liberdade de sua filha e não permitiu que a mesma voltasse para casa decepcionada.

Para o cristão de hoje, o que diz esta atitude de Jesus? Em relação a outros povos de religiões e culturas diferentes, os cristãos não são melhores ou superiores. O Cristianismo não representa uma raça superior no mundo, mas procuram seguir Jesus no mundo, sem fugir deste e a partir das culturas e das religiões. A origem destas está na produção cultural do seres humanos.

Na literatura cristã dos primeiros séculos da era cristã encontramos um escrito de um autor anônimo chamado Carta a Diogneto e nesta se confirma a verdade de que os cristãos não são seres de outro mundo, não possuem privilégios que os colocam acima de outros povos; enfim, são cidadãos do Reino de Deus que se dedicam a construí-lo neste mundo. O cristão que se julgar superior ou melhor do que aqueles que não o são, não é verdadeiro cristão. O verdadeiro cristão procura viver a fraternidade no respeito às diferenças presentes na diversidade das manifestações culturais.

Na relação entre os cristãos, o texto evangélico chama a atenção da igualdade que deve existir entre todos. Quando se busca construir a fraternidade deve-se buscar superar todo e qualquer espírito de superioridade. Para vencer este espírito, a alteridade é fundamentalmente necessária, ou seja, o cristão deve pensar sempre e em primeiro lugar no outro. Esta é uma vocação evangélica, pois Jesus não fez outra coisa senão compadecer-se do outro, do outro considerado perdido e cruelmente excluído por aqueles que se julgavam santos e perfeitos em suas práticas religiosas.

Na espiritualidade cristã, o outro é irmão de sangue em Cristo Jesus. Evitar o outro compromete a fé que alguém julga ter em Jesus. Não permitir que o outro seja, que se manifeste, que viva e que seja feliz é um pecado contra a fé cristã. O texto evangélico estimula o cristão a buscar sempre promover o outro. A promoção do outro é uma manifestação explícita da ação amorosa de Deus, porque Deus está presente onde há a defesa e a promoção da vida do outro.

O contrário disso se manifesta no egoísmo, porque neste a pessoa se aproxima do outro para sua autopromoção e para sua autoglorificação. O outro não passa de instrumento, objeto de uso e oportunidade que não pode ser perdida. Quem assim procede costuma ser chamado de oportunista. Este vive procurando oportunidades para o próprio engrandecimento, em detrimento da vida do outro. Assim, não é possível construir fraternidade, porque esta é o oposto de tudo isso.

Para a Igreja de hoje, o que diz esta atitude de Jesus? Durante séculos, a Igreja pecou gravemente pensando e agindo segundo critérios exclusivistas. Comunhão e participação são palavras que não existiam no vocabulário eclesiástico até o Concílio Vaticano II e, mesmo após este, estas palavras continuam sendo pouco cultivadas na prática eclesial. Infelizmente, a Igreja sempre ensinou que a hierarquia (Padre, Bispo e Papa) detém a verdade e que, por isto mesmo, deve ser escutada. Isto hoje não funciona mais.

A hierarquia da Igreja está se convencendo de que o mundo é plural e que a verdade não é propriedade particular de pessoas e de instituições. Estas podem ser promotoras da verdade, jamais proprietárias. As pessoas, de modo geral, quer na Igreja, quer fora dela, quando sentem que os discursos eclesiásticos não condizem com a verdade que liberta, simplesmente questionam e não aceitam. Verdades absolutas e condenações oriundas da hierarquia não são mais consideradas. As pessoas podem até escutar, mas não levam para a prática nada ou quase nada do que escutaram.

Na relação com outras Igrejas e religiões, precisamos admitir que o Reino de Deus também está se manifestando nelas. É inquestionável que o Espírito está presente no coração de todos os homens e mulheres de boa vontade, independentemente de cor, sexo, religião, condição social e sexual, cultura etc. O Espírito age em favor da liberdade que se manifesta na pluralidade e na diversidade. O tempo da uniformidade passou. Quem não se abrir ao novo que o Espírito faz surgir na humanidade morrerá frustrado numa fé tradicional que se encontra num estado gravíssimo de convalescência.

Acreditar em Jesus é viver num espírito de total abertura e simplicidade. Abertura para o diferente e para o novo. Simplicidade, no sentido vicentino da palavra, significa cultivar a verdade de si mesmo perante as pessoas, ser verdadeiro e transparente, buscar viver uma vida que esteja em plena comunhão com o Deus que se manifesta na palavra, nos gestos e na vida do outro. Somente assim poderemos construir uma Igreja mais humana e mais fiel ao Reino de Deus.


Tiago de França

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O autodomínio e a fraternidade


Vivemos numa sociedade marcada pelo descontrole e pela violência. O barulho excessivo, a pressa, a crise financeira, a insegurança e o medo são fatores que determinam a personalidade do homem e da mulher de hoje. Estes fatores dificultam a vivência da mansidão, da paciência, da tranqüilidade e da paz. De modo geral, as diversas formas de violência se fazem presentes porque as pessoas estão cada vez mais descontroladas. O clima de confusão e de incerteza toma conta do mundo e o ser humano está se tornando insuportável.

Esperar, compreender, preocupar-se, procurar o bem e cuidar do outro são gestos que estão se tornando raros na convivência humana. Na verdade, o homem está perdendo a virtude da convivência e está se contentando em suportar o próximo. “Eu nasci assim, eu sou sempre assim e vou morrer assim” é o lema de vida de muita gente. As pessoas, geralmente, não buscam ser melhores em função do outro, visando um mundo mais justo e fraterno. Elas são do jeito que são e se impõem sobre os outros.

Ser descontrolado está deixando de ser algo preocupante. Perder a cabeça e faltar com a caridade para com o outro se tornou coisa normal e, quando uma coisa se torna normal, a situação fica quase que incontornável. O normal é algo comum, que todo mundo faz, que não escandaliza ninguém, que pode ser feito sem a mínima censura ou rejeição. Às vezes, o normal passa a vigorar como o correto na conduta humana, e isto tem se mostrado bastante perigoso.

Citemos um exemplo para ilustrar. A maioria dos brasileiros considera coisa normal o fato de os políticos desviarem as verbas públicas. A conseqüência disso é que não faltam políticos corruptos sendo eleitos e reeleitos pelo povo. Os noticiários não escandalizam mais a maioria das pessoas com notícias de corrupção política. Estas mesmas pessoas afirmam: “Já nos acostumamos com essa situação, todos roubam, fazer o quê?!” Inconsciente e/ou conscientemente, estas mesmas pessoas se tornam corruptas ao legitimar os crimes absurdos de mulheres e homens mal intencionados na vida política. Desse modo, não tem como construir um país melhor.

No campo pessoal, cada pessoa é convidada a viver intensa e constantemente a experiência do autodomínio de si mesmo. Autodominar-se é uma virtude necessária para se viver bem. Quem não procura viver esta virtude costuma ser muito infeliz em todo que pensa, fala e faz. O autodomínio tem como parceira uma outra virtude importantíssima: a prudência. Não se trata da falsa prudência, que paralisa o ser humano e o leva à prática do pecado da omissão, mas da prudência que concede à pessoa a oportunidade de ponderar todas as coisas com sensatez e a ver o mundo com positividade.

A capacidade de permanecer atento a si mesmo e ao mundo é fundamentalmente necessária para o autodomínio de si mesmo. A dispersão, oriunda da desatenção é o oposto do procurar viver concentrado naquilo que é essencial na vida. O ser humano não pode viver procurando experimentar todos os prazeres que a vida oferece, pois tal procura jamais será satisfeita e o levará à frustração. Esta já é um dos frutos da falta de autodomínio de si mesmo. O prazer é necessário à vida, não há quem sobreviva sem o prazer, pois este é constitutivo do ser humano; mas nem todos os prazeres realizam e constroem a vida.

Este tipo de reflexão não é bem acolhido no contexto atual de sociedade porque o que esta prega e induz contradiz tudo isto, ou seja, há apelos vindos de toda parte que conduzem à falta de controle e, conseqüentemente, à infelicidade; há uma busca exacerbada do prazer pelo prazer. As pessoas que se entregam aos prazeres não se saciam, portanto, não são livres porque se deixam escravizar: reduzem a vida à busca desenfreada de satisfações, são doentes e eternamente carentes. Neste sentido, o apóstolo Paulo tem razão quando afirma que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6, 23).

Há um risco no autodomínio de si mesmo, que consiste numa ascese desregrada que compromete a liberdade. Autodominar-se não é centrar a vida na vigilância de si mesmo, mas buscar viver harmoniosamente bem estando atento a si mesmo. Esta atenção a si mesmo deve ter como preocupação fundamental o cuidado de si e do próximo em vista da fraternidade, pois quando não há preocupação pelo bem-estar do outro a fraternidade torna-se impossível de ser vivida.

Quando o ser humano perde o controle de si mesmo afeta gravemente a própria liberdade e a do próximo. Por isso, toda forma de descontrole é uma falta de respeito para com o outro, que não tem a obrigação de suportar questões que não são resolvidas interiormente por quem perde o controle de si. Geralmente, quem perde, constantemente, o controle de si mesmo costuma ser pessoas que possuem questões internas a resolver consigo mesmas, ou seja, pessoas afetivamente desequilibradas.

A busca da liberdade, a concórdia, a paciência, a mansidão, a atenção aquilo que é essencial, o perdão, o respeito e a solidariedade constroem a fraternidade. Sem o autodomínio de si mesmo não é possível construir a fraternidade. Para vivermos fraternalmente precisamos ainda cultivar a paz de espírito, pois quem não estiver em paz consigo mesmo dificilmente poderá viver pacificamente com o próximo. Um dos caminhos para a erradicação da violência é o autodomínio de si mesmo.


Tiago de França

sábado, 6 de agosto de 2011

Ir ao encontro de Jesus de Nazaré


“Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (Mt 14, 27)

Quem quiser seguir Jesus deve se colocar no seu caminho e perseverar. Não há outra alternativa. Fala-se muito em seguimento, mas são poucos os que têm a coragem de procurar e se colocar no caminho onde se encontra Jesus de Nazaré. Perguntar-se pelo caminho já significa deslocar-se rumo ao mesmo.

Há pessoas que pensam que o caminho de Jesus de Nazaré se encontra no interior da Igreja, ou seja, na participação no culto e nos sacramentos. Estes são necessários, mas por si mesmos não são o caminho. Eles podem nos colocar no caminho ou não, isto depende da nossa maneira de participar deles.

Há outros, ainda, que desacreditam da religião e procuram fazer seu próprio caminho: inventam um estilo de vida e um deus para si. Vivem conforme seu pensamento e as verdades elaboradas pelo mesmo. Estas pessoas se decidiram pelo isolamento esquecendo-se de que o seguimento é comunitário.

Um terceiro tipo pode ser visto nas pessoas que, espiritualmente, vivem à margem de tudo, sem a mínima preocupação com a dimensão espiritual da vida humana. Elas vivem totalmente voltadas para o mundo, buscam somente a realização pessoal por meio do maior número possível de satisfações, porque acreditam que tudo termina com a morte. Jesus e seu Evangelho não são matéria de interesse algum.

A formação religiosa que foi se dando ao longo dos séculos, principalmente a partir dos tempos de Cristandade, levou as pessoas a identificar a fé com a pertença à religião: fora da religião não existe fé nem salvação. Estando na religião, sendo membro da Igreja eram extremamente necessárias as práticas religiosas. Esqueceram-se de que o seguimento de Cristo ultrapassa as práticas religiosas e não depende necessariamente delas.

Afinal de contas, onde está o caminho de Jesus de Nazaré? A partir de Mt 14, 22 – 33 podemos afirmar, categoricamente, que o caminho não está na lei, nos códigos ou prescrições, na obediência à hierarquia ou no interior da própria Igreja. Para chegar até Jesus, o apóstolo Pedro teve que sair da segurança da barca. Os que permaneceram na barca não correram o risco de afundar, pois estavam em segurança.

Jesus não vivia na barca nem no templo, mas à margem, na beira do caminho e sobre as águas agitadas do mar da vida, num conflito permanente com os exploradores do povo de Deus. A grande tentação de todos os tempos é a busca pelas seguranças que a vida pode oferecer. Isto explica o porquê da Igreja não querer rever suas estruturas, pois estas oferecem segurança a todo aquele que dela depender. Fala-se contra as estruturas e contra a pastoral de manutenção, mas não se tem coragem de renunciá-las.

A experiência do êxodo é ardorosa e quase que impossível de ser vivida no mundo e na Igreja atuais. Toda saída implica insegurança, medo, expectativa, angústia, renúncia, coragem, ousadia e despojamento. Estas palavras não despertam interesse no homem hodierno. As pessoas querem ser felizes cultivando facilidades, comodidades, vantagens; gastam suas energias buscando seus próprios interesses.

No caminho de Jesus não existe nada disso, pois está alicerçado na fraternidade, gratuidade, liberdade, amor, partilha, solidariedade, comunhão, dentre outros valores evangélicos. Fora do caminho de Jesus não existe autêntica adesão à fé cristã, mas medo e dúvida. Colocar-se no caminho de Jesus é o único caminho de libertação do medo e da dúvida.

No caminho de Jesus não há segurança alguma, a não ser ele mesmo. Jesus é a única segurança e riqueza de seu discípulo. O caminho é estreito, pedregoso, perigoso e arriscado. O testemunho dos mártires nos ensina que se trata de um caminho onde a doação da própria vida é a exigência fundamental. Quem não quiser doar a própria vida na construção do Reino de Deus não deve se colocar no caminho de Jesus.

Doar a própria vida é entregar, totalmente, a própria vida nas mãos de Deus na certeza de que este mesmo Deus agirá no mundo por meio desta vida plenamente entregue. Por isso, a vida entregue a favor da construção do Reino é prova segura da ação amorosa de Deus no mundo. Não adianta ficar na segurança da barca e esperar de braços cruzados a ação libertadora de Deus. Deus se torna como que impotente na vida de quem se acomoda e se refugia nas seguranças deste mundo.

Em meio ao medo e à dúvida, que são comuns a todo ser humano, o cristão precisa ir ao encontro de Cristo e, mesmo que afundando nas tempestades da vida, precisa acreditar que jamais será abandonado por aquele que disse: “Vem!” O mesmo se pode dizer à Igreja. Esta precisa ousar renunciar sua pretensão de hegemonia e grandeza, para se tornar, afetiva e efetivamente, uma pobre servidora da humanidade.

Concluamos com uma prece ao Deus bendito, que enviando Jesus nos anima na caminhada da luta incansável pela liberdade e pela vida:

Pai,
Tu conheces o interior de cada um de nós,
Conheces nossos medos e nossas dúvidas.
Sabes também de nossas capacidades, virtudes e limitações.

Numa noite de mar bravio
Teu filho fez um convite a teu servo Pedro:
“Vem!”
Creio que continuas a nos fazer o mesmo convite.

Pai,
Pela força do teu Espírito, rogo-te desesperadamente:
Desinstala-me interiormente
E lança-me no meio do mundo!

Meus irmãos e teus filhos, meu Deus,
Estão no mundo que criaste com amor e zelo.
Dá-me, ó Pai, a tua mão e segura-me.
Não me largues nem permitas que eu saia do caminho de teu Filho:
Caminho da justiça e da solidariedade,
No mundo.

Amém!


Tiago de França