domingo, 21 de agosto de 2011

Partilha de uma experiência missionária


“Na revelação de Deus, os pobres são a esperança do mundo porque é por eles que se constrói o Reino de Deus. Eles são a verdadeira Igreja, independentemente da religião que praticam ou não praticam” (José Comblin).[1]

A modo de introdução

Quando vivenciamos algo bom e que serve para estimular outras pessoas a fazerem a mesma coisa, vale a pena partilhar. A partilha não é somente para dizer alguma coisa, mas para ajudar o outro na edificação da própria fé, a fim de que não desanime na caminhada. Quando os setenta e dois discípulos enviados por Jesus voltaram de sua experiência missionária, com muita alegria contaram tudo o que tinha acontecido. Pois bem, este contar é partilha de irmãos, que na alegria do discipulado e da missão conversam sobre as maravilhas que Deus realiza no meio do seu povo.

Quero partilhar, não de modo descritivo (a modo de relatório), mas apenas falar da imensa alegria que vivi no encontro com os pobres da missão vicentina de Francisco Badaró e Jenipapo de Minas, pequenas cidades da região do Vale do Jequitinhonha. Trata-se da região mais pobre de Minas Gerais: lugar de gente sofrida, trabalhadora e acolhedora. Nas duas comunidades paroquiais temos dois Padres da Missão: Pe. Paulo José de Araújo, C.M. e Pe. Raimundo João da Silva, C.M. Espera-se a chegada de mais um ainda neste segundo semestre. Em Jenipapo de Minas há uma Comunidade de Irmãs da Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo.

No Brasil, a Congregação da Missão optou por oferecer aos formandos das três províncias (Fortaleza, Rio de Janeiro e Curitiba) a experiência formativa de um Seminário Interno Interprovincial (corresponde ao Noviciado dos religiosos). Nesta etapa, durante o mês de julho, realiza-se o que denominamos Estágio Missionário: experiência missionária entre os pobres. Neste ano, o Vale do Jequitinhonha foi a região escolhida. O objetivo foi de levar os seminaristas a vivenciarem, durante um mês, o cotidiano dos Coirmãos, seu estilo de vida no trabalho junto aos pobres. Fomos em quatro: Antônio Deuzin (Província de Fortaleza – PFCM), Élio da Silva e Éder Fabrício (Província do Sul – CMPS) e eu (Província do Rio de Janeiro – PBCM). Chegamos lá no dia 01 de julho e regressamos no dia 01 de agosto.

Um povo pobre e sofredor

A maioria do povo mora na zona rural e é profundamente marcado pela migração e pela doença de Chagas. Devido à falta de trabalho, a maioria dos homens vai trabalhar em São Paulo, tanto no corte de cana quanto na colheita de café. As mulheres e crianças ficam sozinhas em casa. Muitas mulheres são jovens viúvas, pois seus maridos morreram em decorrência do mal de Chagas. O número dos que morreram é incontável. Quase não existe família que não tenha sido acometida pela picada do barbeiro que transmite tal doença.

As comunidades estão estruturadas em vilas ou lugarejos, mas em muitos lugares as casas são distantes umas das outras, dificultando a comunicação e a participação na comunidade. Apesar disso, a participação nas Celebrações é significativa. De modo geral, o povo não passa fome, mas a escassez de água e de uma alimentação de qualidade se faz perceptível. Em matéria religiosa, predominantemente católica, os povoados não formam “pontos de missa”, mas comunidades: culto dominical, catequese e associações comunitárias.

Os pobres nos evangelizam

A experiência de estar junto dos pobres é melhor vivida quando aquele que se apresenta como missionário se coloca numa atitude permanente de escuta. A escuta dos pobres é caminho seguro para a compreensão do projeto de Deus. Destituídos do poder, do prestígio e da riqueza, os pobres mostram, com o testemunho da própria vida, o caminho de Jesus. O cotidiano humilde e despojado das comunidades por onde passei falou-me do valor do despojamento para a missão.

Sem o estudo da filosofia e da teologia, os pobres entendem e falam de Jesus com alegria e fé. Não há conhecimento científico da fé e das Escrituras que descrevam com tamanha perfeição a experiência divina como os pobres descrevem. Na verdade, sobre Deus quase não falam, o que fazem é outra coisa, mais edificante e feliz: eles vivem em Deus e para Deus. Fiz questão de indagar muitas pessoas nas visitas a respeito daquilo que as sustenta na labuta de cada dia e a resposta era única: “a fé em Deus!”

Visitando uma senhora em uma das comunidades, ela me deu uma resposta que guardo com a devida veneração: “Seu missonaro, aqui nós vive como bicho no mato, mas Deus ama nós!” Estas palavras, oriundas de um coração humilde e sincero, foram conteúdo para a minha oração naquele dia. Penso que não preciso esperar que a Igreja canonize uma mulher dessas para venerá-la como santa, porque a verdadeira santidade consiste em amar a Deus e ser amado por ele. No mais profundo de si mesmos, os pobres não se sentem abandonados porque sabem que Deus os ama e sustenta suas vidas.

Aquela mulher me fez recordar São Vicente de Paulo, fundador da Congregação da Missão, que de joelhos e com lágrimas implorava aos missionários para que fossem aos pobres. São Vicente de Paulo não suportava ver os pobres no abandono social, sofrendo a falta de assistência material e espiritual. Esta é a atitude de quem se despoja de toda vaidade e riqueza e numa total entrega compassiva vai ao encontro dos pobres sem medo de encontrar a verdadeira felicidade. Os pobres nos fazem entender que a verdadeira felicidade está no serviço que podemos prestar ao próximo, serviço manifestado na gratuidade e no amor generoso.

Um apelo à Igreja

Desde os tempos do Concílio Vaticano II, passando por Medellín até chegar à Aparecida, a Igreja está consciente da necessidade de se fazer, não superficialmente, mas de fato, a opção preferencial pelos pobres. Trata-se de uma opção que levará a Igreja ao caminho de Jesus. Infelizmente, há um forte movimento de volta à cristandade, de volta aos antigos costumes, às antigas liturgias, às velhas fórmulas e linguagens que já não expressam nada. Libertação, comunhão, participação, transformação, inserção, Reino de Deus e outros conceitos e atitudes da reflexão teológica latino-americana estão deixando de existir do vocabulário e do cenário eclesiais.

Eis a audaciosa exortação que a Conferência de Aparecida fez à Igreja na América Latina e no Caribe:

Só a proximidade nos faz amigos e nos faz apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem constante solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja. À luz do Evangelho reconhecemos sua imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos de Cristo, pobre como eles e excluído como eles. A partir dessa experiência cristã, compartilharemos com eles a defesa de seus direitos (DA, 398).

Esta proximidade que nos faz amigos não é uma experiência de momento, portanto, passageiro. A amizade é uma experiência permanente porque alimentada pela proximidade do outro a quem quero bem. Assim, a Igreja não pode aproximar-se dos pobres durante alguns momentos: Santas Missões, pequenas contribuições financeiras, visitas às comunidades pobres etc., não quebrando, assim, o muro de separação. Para tornar-se Povo de Deus é preciso que haja verdadeira comunhão entre os membros da Igreja, principalmente entre a hierarquia e o povo.

Mais do que ir ao encontro dos pobres, a Igreja precisa cultivar um estilo de vida pobre, desapegando-se do prestígio, do poder e da riqueza. Este é o clamor que os pobres dirigem à Igreja. Diante do complexo aparato litúrgico e teológico, os pobres se sentem perdidos porque olham, mas não enxergam; ouvem, mas não escutam; tudo se apresenta como belo, mas aquilo é inacessível à compreensão. Sem falar do cotidiano dos pobres, toda reflexão e toda homilia lhes parece coisa de outro mundo.

É urgente que a Igreja assuma o que ousou dizer em Aparecida. O documento conclusivo é claro ao exigir uma Igreja em estado permanente de missão, discípula e missionária de Cristo e profundamente profética. É preciso assumir a verdade que o Reino de Deus é construído a partir dos pobres. Isto significa que enquanto outras prioridades ofuscarem tal construção, tal infidelidade continuará tirando a Igreja do caminho de Jesus. Para ser fiel a Jesus, a Igreja precisa colocar a mensagem evangélica no centro, pois é o anúncio do Evangelho, missão fundamental da Igreja, e não os discursos eclesiásticos com suas finalidades humanas, que constroem o Reino de Deus.

A modo de conclusão

Encontrar-me com os pobres das duas realidades eclesiais do Vale do Jequitinhonha reacendeu em mim o forte desejo de servi-los na condição de Padre da Missão. Quando lá estive, ficava lembrando dos testemunhos missionários de Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom José Maria Pires, Dom Tomás Balduíno, Ir. Dorothy Stang, Pe. Cícero de Juazeiro, Pe. Ibiapina, Pe. José Comblin e tantos outros e outras que marcaram e ainda marcam a história da Igreja no Brasil. E uma pergunta sempre me persegue em minhas orações: Meu Deus, para onde vai a tua Igreja nesta hora da história?!...

O Estágio Missionário terminou com nossa participação na Assembléia Diocesana de Araçuaí. Foi muito bom ver a participação calorosa de leigos/as conscientes de sua missão numa Igreja que teve na pessoa de Dom José Maria Pires um pastor zeloso e fiel à opção preferencial pelos pobres, imediatamente após a realização do Concílio Vaticano II. Alegria maior foi ter escutado o próprio Dom José M. Pires, que aos 92 anos de idade, deslocou-se de Belo Horizonte para falar para seu povo, para “matar a saudade”, como disse ele.

Escutar Dom José M. Pires foi uma experiência ímpar para um seminarista que deseja ser padre missionário numa Igreja que deve ser dos pobres. Com a liberdade de espírito que lhe é peculiar, falou não somente da necessidade de se construir uma Igreja mais simples, como também, de forma mineira, extrovertida e feliz, contou vários dos “causos” que vivenciou como Bispo negro na Igreja. No final de sua palavra, foi-nos oferecido um livro e ele, pacientemente, fez questão de autografar o livro de todos os que se interessaram em adquirir.

Quando chegou a minha vez, lhe apresentei dois exemplares: um para meus pais, que o conheceram na Paraíba, e outro para mim. No meu, ele escreveu: “Tiago, apóstolo de hoje!” E me perguntou: “Você entende o que está escrito?” Respondi: “Entendo, sim, Senhor!” Então, respondeu depois que lhe disse que era seminarista: “Pois procure ser isso na Igreja e no mundo de hoje!” Jamais me esquecerei desta santa recomendação deste grande homem da Igreja que não se cansa de anunciar com o testemunho da própria vida o Evangelho de Jesus de Nazaré.


Tiago de França da Silva
Campina Verde - MG, 19/08/2011.

Nota:
[1] In: OLIVEIRA, Pedro A. de (org.). Opção pelos pobres no século XXI. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 201.

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