sábado, 29 de outubro de 2011

A autenticidade cristã


“O maior dentre vós deve ser aquele que vos serve. Quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado” (Mt 23, 11 – 12).

O texto evangélico desde XXXI Domingo Comum (cf. Mt 23, 1 – 12) mostra claramente o conflito entre Jesus, os mestres da lei e fariseus. Jesus fala abertamente às multidões e a seus discípulos a respeito da hipocrisia das autoridades religiosas de seu tempo. Não se trata de mero comentário nem de conversa ao pé do ouvido, mas de denúncia contra as injustiças cometidas por pessoas que tinham autoridade para interpretar a lei de Moisés. Jesus as reconhece e até recomenda que o povo as escutem, mas em seguida adverte: “Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam”.

Falar e viver em plena contradição com aquilo que se fala: eis o mal dos mestres da lei e fariseus. Conscientemente, insistiam em permanecer vivendo na hipocrisia. Eles tinham o poder, mas eram destituídos da verdadeira autoridade. Eles tinham medo de Jesus porque sabiam que ele era diferente: não tinha poder, mas autoridade. A autoridade de Jesus estava na sua coerência de vida, pois suas palavras e ações eram uma só realidade. Jesus não ensinava a partir da lei, mas a partir do ensinamento recebido de seu Pai.

Jesus enumera quatro pecados graves dos mestres da lei e fariseus, pecados que continuam sendo cometidos pelas autoridades religiosas de hoje. Estas são todas as lideranças de nossas comunidades, especialmente os membros da hierarquia da Igreja. Penso que a mensagem evangélica deste Domingo destina-se especialmente a estes. Vamos, brevemente, transcrevê-las e, com prudência e caridade, atualizá-las.

“Amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los nem sequer com um dedo”. A lei de Moisés era muito pesada. Eles a interpretavam perfeitamente e exigiam que as pessoas a observassem fielmente. Eram excessivamente exigentes para com os outros e relaxados consigo mesmos. Utilizavam-se da lei para explorar o povo, impiedosamente.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: utilizam-se dos preceitos e práticas religiosas para explorar as pessoas. Ao invés de libertá-las, direta ou indiretamente, as alienam por meio do rubricismo, do moralismo, do sentimentalismo, do formalismo, da mentira e tantos outros excessos.

“Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros. Eles usam faixas largas, com trechos da Escritura, na testa e nos braços e põem na roupa longas franjas”. Eles gostavam de aparecer, preocupavam-se com a estética, pois sabiam que as roupas impressionavam os ouvintes. Muita gente julgava-os perfeitos por causa das roupas que vestiam, por conta das inscrições bíblicas que carregavam.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: ainda há quem se utilize da batina e do hábito, de túnicas e casulas caras e belas e outros usos para transmitir sentimentos de santidade. Atualmente, os que mais se destacam, além das ordens religiosas e dos diocesanos conservadores, os padres cantores investem muito na estética. Basta observar suas casulas e as capas de seus livros, CDs e DVDs. São tidos como modelos a serem imitados, porque são ortodoxos, não se metem com política, não questionam nada, só ensinam o amor de Jesus!...

“Gostam de lugar de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas”. Toda autoridade goza de privilégios e há quem os exija, indiscriminadamente. Eles gostavam sempre dos primeiros lugares nos banquetes e nas sinagogas, ou seja, queriam ser vistos, considerados e respeitados. Quem não fica nos primeiros lugares não é visto, e se não é visto é facilmente esquecido, ou passa despercebido. Os primeiros lugares são para pessoas importantes, honradas, para as que estão mais próximas do altar do Senhor (sinagogas) e daquele que fez o convite (banquetes). Todo mundo enxerga quem está nos primeiros lugares.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: há autoridades religiosas (diácono, presbítero, bispo, papa e tantos outros) que vivem a procura de privilégios. Sempre foi assim, desde a institucionalização da Igreja. Onde há instituição, há privilégios e privilegiados. A história da Igreja está cheia de excessos em matéria de privilégios. Após a separação entre Igreja e Estado, muitos privilégios caíram, mas alguns permaneceram e hão de permanecer até quando a institucionalização for mantida e houver homens interessados em viver uma vida tranqüila e materialmente próspera.

Mesmo com a eclesiologia do Concílio Vaticano II, o presbítero continua ocupando o centro da comunidade eclesial. Há realidades em que isto quase não existe, mas são raras. Há um esforço para que se tomem as decisões por meio da colegialidade, que se expressa na comunhão e na participação, mas há ainda muita centralização de poder, desde Roma até as bases da Igreja. Toda centralização de poder legitima os privilégios e todo aquele que se opõe aos privilégios torna-se vítima de quem os detêm através do poder.

“Gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de ser chamados de mestres”. Por entenderem da lei e a interpretarem para o povo, eles exigiam ser considerados mestres. Gostavam de ser reconhecidos como homens doutos na lei e na cultura judaica. O cumprimento nas praças públicas é outra forma de serem reconhecidos. Nas praças, quem é muito cumprimentado mostra ser importante: eis como eles queriam ser vistos.

Na Igreja também assistimos a esta realidade: há certa dificuldade em fazer as coisas com discrição. Infelizmente, chamar a atenção para si mesmo é um grave problema na comunidade cristã. A vaidade intelectual é um dos males que mais afetam a vida de muitos clérigos. Trata-se de um mal que cega e as transforma em pessoas insuportáveis. Há muitos que são afetivamente mal resolvidos e no exercício da missão correm o risco de satisfazer suas carências. Tal satisfação tem ocasionado muitos escândalos na vida da Igreja.

Por fim, Jesus pede que ninguém considere as autoridades religiosas mestre, pai e guia; pois o Mestre e Guia é o Cristo e o Pai é Deus. Isto significa que todos somos irmãos, Deus não faz acepção de pessoas e o amor é a lei que deve reger a vida cristã. Contra os pecados acima mencionados, Jesus recomenda o serviço e a humildade. Na comunidade cristã, quem quiser ser grande, seja aquele que serve a todos; e quem abraçar a virtude da humildade será exaltado por Deus. Servir ao Senhor na pessoa do próximo com humildade: eis a vocação de todo cristão.


Tiago de França

domingo, 23 de outubro de 2011

O amor a Deus e ao próximo


“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento! Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (Mt 22, 37 – 40).

Falar do amor não é fácil e vivê-lo é mais difícil ainda. A dificuldade do falar está no risco que se pode ter, no risco da infinita possibilidade da contradição; ou seja, no falar que não corresponde ao agir. O testemunho de Jesus de Nazaré não é sinônimo de um discurso sobre o amor. Certamente ele falou do valor do amor, mas não disse dizendo, mas disse amando. Por isso, até os confins dos séculos foi, é e continuará sendo o modelo por excelência de pessoa essencialmente amorosa, portanto, plenamente humano.

Toda reflexão honestamente cristã deve sempre partir de Cristo Jesus, o Filho do Amor. Se pudéssemos encontrar Jesus por aí e perguntar-lhe sobre a missão recebida de seu Pai a ser desempenhada no mundo, certamente responderia: Eu vim ao mundo para amar os seres humanos e pelo amor salvá-los de sua escravidão e solidão. Toda a mensagem evangélica resume-se no amor: este consiste na lei de Cristo. Conduzido pelo amor, o ser humano encontra a salvação.

O amor fundamentou e deu sentido a todas as palavras e gestos de Jesus de Nazaré. Tudo fez e disse por amor ao ser humano. Portanto, amar é sair de si, é transbordar-se, doar-se, abrir-se, entrar em comunhão, expandir-se, é encontrar-se com Deus no próximo. Toda pessoa que procurar Deus no mais profundo de si e dedicar toda a sua vida numa relação ensimesmada sem o contato com o outro, pensando que encontrou a Deus, engana-se a si mesmo. Não se pode dizer que Deus está dentro de cada homem e por isso cada ser humano basta-se a si mesmo.

A vida de Jesus de Nazaré sempre foi um constante encontro com as pessoas, com estas e suas circunstâncias. O outro sempre está no seu contexto. O outro é vida e suas relações, suas histórias, dramas, traumas, complexos, cultura, pensamento e expressões variadas de comportamentos. Eis que se nos apresenta um dos maiores desafios para amar o próximo: amá-lo na sua singularidade, nunca segundo o meu querer. O querer sobre o outro é sempre uma violência contra a sua liberdade. Nem a vontade de Deus se impõe, porque ele sempre propõe, jamais impõe nada a quem quer que seja. É uma falta de respeito e de amor querer que o outro atenda aos nossos caprichos satisfazendo, assim, as nossas vontades.

Assim sendo, só existe amor onde há liberdade. Toda pessoa precisa da liberdade para amar de verdade. Logo, não há amor em toda relação pautada na dominação e/ou controle do outro. Também não há amor onde existe o apego: amar não é apegar-se. Ama-se quando se promove a liberdade do outro. O amor deve ser caminho de liberdade. A liberdade está intimamente ligada à gratuidade e esta, por sua vez, se traduz nas relações desinteressadas. O amor é livre e libertador e quem ama começa a experimentar já nesta vida o gozo da plena liberdade.

O maior inimigo do amor não é o ódio, mas a indiferença. Muita gente se convence disso, mas insiste na prática da indiferença, que se manifesta na frieza, no esquecimento do outro, na insensibilidade. A intolerância, a perseguição, a incompreensão, o desprezo, a hostilidade e tantos outros males são manifestações da indiferença. Estes males escravizam as pessoas tornando-as infelizes. Não há autêntica felicidade fora do amor que se faz doação.

O amor a Deus não quer dizer que Deus esteja carente e necessitado do nosso amor. Deus nos ama porque sabe que nós necessitamos do seu amor para vivermos, sermos salvos e felizes. Somente Ele é completo e é a fonte do verdadeiro amor. Com Deus aprendemos a amar o próximo; por isso que o amor a Deus de todo o coração, alma e entendimento é o maior e o primeiro mandamento. Deus nos ama na liberdade para nos tornar livres, na incondicionalidade para amarmos incondicionalmente o próximo.

Inseridos na religião precisamos tomar cuidado com os sistemas religiosos. Estes são constituídos de leis, normas, códigos, regras, disciplina e de múltiplas orientações a respeito de tudo. Nada pode impedir a prática do amor. Nenhum sistema religioso pode se colocar acima do mandamento do amor. Ninguém está obrigado a obedecer a qualquer que seja a lei que se oponha ao amor a Deus e ao próximo. Nenhuma lei salva, mas somente o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (cf. Rm 5, 5). O fiel cumprimento dos preceitos religiosos não nos assegura felicidade nem salvação, mas somente o amor.

Neste sentindo, ensina-nos o apóstolo Tiago: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção deste mundo” (Tg 1, 27). Socorrer os órfãos e as viúvas em aflição significa colocar-nos a serviço dos empobrecidos e marginalizados; manter-se livre da corrupção deste mundo quer dizer que não devemos nos comprometer com as estruturas injustas, que geram as diversas formas de opressão existentes no mundo. O amor ao próximo consiste neste socorro do outro e neste manter-se (permanecer) livre da corrupção.

A verdadeira felicidade do ser humano se encontra no amor, dom gratuito de Deus para ser vivido entre nós, seres humanos: é caminho de humanização. Por isso, é tempo perdido buscarmos nossa felicidade fora do amor. O que existe fora deste é a ilusão de tudo aquilo que passa, porque somente o amor permanece para sempre.


Tiago de França

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A Igreja e os jovens


“Os jovens são sensíveis a descobrir sua vocação a ser amigos e discípulos de Cristo. São chamados a ser ‘sentinelas da manhã’, comprometendo-se na renovação do mundo à luz do Plano de Deus. Não temem o sacrifício nem a entrega da própria vida, mas sim uma vida sem sentido” (Documento de Aparecida, n. 443).

Nunca foi promissora a relação entre a Igreja e os jovens. É verdade que na história recente da América Latina, os jovens se identificaram com as lutas que foram travadas contra os governos ditatoriais. Colégios católicos, pastoral da juventude, associações de jovens, sindicatos e outros movimentos se manifestaram contra a repressão e a tortura. Sem os jovens, tais manifestações não teriam acontecido. Um exemplo disso foi o caras-pintadas, que consistiu no movimento estudantil que protestou contra o Governo Collor, tendo como desfecho a impugnação do mandato (impeachment) do presidente Fernando Collor de Mello.

Neste período os jovens se identificaram com os movimentos eclesiais de cunho libertador (Comissão Pastoral da Terra, Pastoral da Juventude do Meio Popular, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Comissão de Justiça e Paz e outros). Tais movimentos estavam inseridos nas lutas sociais por libertação, e os jovens tinham ideais claros e convicções profundas. Com o apoio da Igreja, os jovens enfrentavam muitas situações complexas, que exigiam disposição, coragem, inteligência e estratégias eficazes de ação política.

Atualmente, a situação é bem diferente: há certa separação entre fé e política. Isto explica a ausência da maioria dos cristãos nas lutas políticas que ainda existem na sociedade. Desconfia-se que a fé não tem repercussão política. Os cristãos decidiram-se pelas práticas religiosas. Estas são mais fáceis, cômodas, menos complexas. A preocupação está na reta celebração do culto, sendo que este tem pouco vínculo com os problemas do mundo pós-moderno. Há certo esforço por parte de pessoas, grupos e movimentos; mas, de modo geral, o desinteresse pelo político e pelo social é evidente.

Os jovens estão decepcionados com a política. Esta decepção leva-os ao desinteresse. Isto poderia inseri-los num modelo de Igreja apolítico, mas não é o que acontece. Por que não acontece? Porque eles não se identificam com as práticas religiosas, principalmente com a Celebração Eucarística. Basta escutá-los para ver que consideram tais práticas “coisa de velho”! Certo dia, quando indaguei a um jovem a respeito de sua ausência nas celebrações, eis o que respondeu: “Não gosto dessa parada de missa, acho estranho, cansativo; o padre fala coisa que não tem nada a ver, mas não tenho nada contra”. Este jovem representa bem a maioria dos demais.

Há dois extremos opostos entre si que precisam ser considerados e evitados na relação entre Igreja e jovem: primeiro, que a Igreja sempre está correta e os jovens sempre estão errados, pois são rebeldes, recusam-se a escutar e obedecer; segundo, que são eles que estão corretos, pois a Igreja é atrasada, não se atualiza, é moralista e autoritária. Se a situação for encarada a partir destes extremos, jamais haverá evangelização de jovens. Todo extremismo é equívoco, desrespeito e agressão à liberdade; portanto, não constrói nada.

Para pensar na evangelização dos jovens é preciso considerar, antes de qualquer coisa, que eles não são crianças, não são adultos nem idosos. É necessário, portanto, pensar no jovem a partir de sua realidade. É perda de tempo e há muito desgaste quando tratam o jovem como se ele fosse criança. Isto significa infantilizá-lo. Também não adianta exigir dele pensamentos e atitudes de adulto e idoso, pois não haverá correspondência. Adulto e idoso não tem nada que ver com o jeito jovem de ser. Assim sendo, é preciso rever a linguagem e os métodos para evangelizar o jovem.

Festas, banalização do corpo, violência, drogas, falta de interesse pelos problemas sociais e pelos estudos, frustrações, forte carga de alienação, carência afetiva, vazio existencial (perda de sentido da vida), ausência de perspectivas e ideais etc. são alguns dos mais graves problemas que afetam a vida dos jovens de hoje. Não é fácil falar para jovens que se encontram afetados por estes males. O discurso tradicional da Igreja não funciona. Eles já sabem de cor o que pensa a Igreja a respeito de suas vidas, por isso não param para escutá-la; sabem que ela sempre parte daquilo que é negativo em suas vidas.

Segundo o jovem, a Igreja é a moral instituída. Ela lembra ordem, proibições, leis, pouca ou nenhuma liberdade, autoridade. De modo geral, os jovens não se dão bem com a figura da autoridade (pais, políticos, padres, professores, polícia, patrão). Há sérias dificuldades em conciliar autoridade e liberdade. De fato, historicamente, a figura da autoridade sempre ameaçou a liberdade do ser humano. Falar de autoridade é falar de um modelo tradicional de obediência no qual há um que manda e outro que obedece; o que manda sempre está certo, por isso, o súdito precisa obedecer. Dentro deste modelo não há liberdade.

Para evangelizar os jovens, a Igreja precisa rever três questões: 1) suas estruturas; 2) sua linguagem e 3) sua moral sexual. A revisão deve levá-la a ser uma instituição mais humana, com abertura, diálogo, dinamismo, alegria, espontaneidade, audácia e profetismo. Sem esta revisão tudo não passará de tentativas frustradas e a realidade continuará do mesmo jeito.

A Igreja precisa se atualizar (aggionamento), se quiser realmente evangelizar os jovens, pois num mundo onde tudo evolui e se transforma, toda realidade que apresenta resistências à atualização termina por ser rejeitada por aqueles que não se contentam em permanecer do mesmo jeito. O permanecer do mesmo jeito está ligado à rotina, que consiste na repetição irrefletida de hábitos e costumes (esquemas fixos e estabelecidos). Por outro lado, a rotina confere segurança porque tudo está no seu devido lugar, no seu devido horário e regido conforme regras fixas e, às vezes, inquestionáveis. Os jovens têm dificuldades para se inserir em instituições com estilos de vida regrados e quase que imutáveis.

Por fim, é preciso considerar a necessária mudança de mentalidade, pois sem esta nenhuma outra é possível. A abertura ao novo que questiona e desafia é de fundamental importância para que haja mudança de mentalidade; do contrário, pode-se até admitir os equívocos, mas as reais mudanças não acontecem. O ser humano age segundo suas concepções, e se estas não são devidamente atualizadas (recicladas), a conversão não acontece.


Tiago de França

domingo, 16 de outubro de 2011

Dar-se a Deus


“Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21).

O texto evangélico deste XXIX Domingo Comum (cf. Mt 22, 15 – 21) fala da tentativa frustrada dos fariseus de “apanhar Jesus em alguma palavra”. Jesus de Nazaré era perseguido tanto pelas autoridades civis quanto religiosas de seu tempo: os fariseus eram os que mais o perseguiam. Eles não perdiam nenhuma oportunidade para pegar Jesus em algum gesto ou palavra. Eis a primeira característica do fariseu hipócrita: observar as práticas religiosas para acusar os que não a praticam. Além disso, esconder-se por detrás das mesmas para tramar a desgraça do próximo.

As práticas religiosas não libertavam os fariseus. Aparentemente, eram bons; mas por trás da aparência piedosa, eram lobos ferozes, capazes de tramar a desgraça e a morte de seu semelhante. Em outras partes do evangelho Jesus os acusa de mentirosos, de sepulcros caiados, de ladrões, de assassinos, de serem filhos do diabo. Jesus não tinha medo deles e não perdia nenhuma oportunidade para desmascará-los. Eis uma primeira mensagem do texto evangélico: ter cuidado com os que são apegados às práticas religiosas, mas que são incapazes de amar o próximo.

Nas comunidades cristãs há pessoas que são extremamente religiosas: cultuam a Deus, pagam o Dízimo, são devotas dos santos e do rosário de Maria, participam das pastorais e movimentos etc., mas não perdem a oportunidade de prejudicar o próximo. Tais pessoas são como os fariseus: vivem preocupadas com a vida alheia tendo em vista a perseguição e a difamação do próximo; gostam de impor pesados fardos nas costas dos outros, fardos que elas mesmas não conseguem mexer com um só dedo; mostram-se excessivamente exigentes para serem reconhecidas como responsáveis e caridosas.

Outra característica do fariseu é a falsidade. “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências”. Estas palavras dos fariseus são verdadeiras, mas a intenção deles é falsa, portanto, hipócrita. De fato, Jesus era verdadeiro, ensinava o caminho de Deus, não se deixava influenciar pela opinião dos outros e não julgava as pessoas pelas aparências: tudo isto é verdade. O problema é que os fariseus se utilizaram destas verdades para elogiar Jesus e tentar pegá-lo em alguma palavra. Frustraram-se.

Há pessoas que fazem a mesma coisa: utilizam-se de elogios para prejudicar o próximo. Elas sabem que os elogios envaidecem facilmente, por isso, utiliza-os para deixar o outro alegre, levando-o a pensar que a intenção é verdadeira e, portanto, honesta. Jesus descobriu a falsidade dos fariseus, escondida por trás do elogio. Eles eram tão maus que se utilizavam da verdade daquilo que é a pessoa de Jesus para matá-lo! Na comunidade cristã, tomemos cuidado com os falsos elogios, com o excesso de palavras bonitas que nos dirigem, principalmente, oriundas daqueles que sabemos que não se identificam com nosso jeito de ser.

Os fariseus perguntaram a Jesus se é lícito pagar o imposto ao imperador César ou não. Esperavam sim ou não como resposta. Diferentemente daquilo que esperavam, respondeu-lhes Jesus: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Se Jesus tivesse respondido sim, seria um erro, pois o imposto a César explorava os pobres; se tivesse respondido não, teria sido imediatamente acusado de ser agitador político contra o Império. Jesus denunciou o imposto injusto ao Imperador sem precisar cair em contradição consigo mesmo, sendo que isto era o que os fariseus e os partidários de Herodes queriam que acontecesse. A maneira como Jesus respondeu o livrou da morte repentina: ele precisava viver mais um pouco para cumprir sua missão.

O imposto é uma das formas de participação cidadã. No atual modelo de sociedade, a arrecadação de impostos continua sendo uma injustiça: arrecada-se muito dinheiro e reverte-se pouco em serviços públicos de qualidade à população. Além disso, escandalizam e causam indignação os desvios das verbas públicas por parte de governantes desonestos em todas as instâncias dos poderes legislativo, executivo e judiciário. A arrecadação de impostos foi pensada de tal maneira que não há quem escape: em tudo, explícita ou implicitamente, há impostos. Isto significa “dar a César o que é de César”. O mercado, os governos injustos e todas as formas de poder opressor são os Césares dos nossos dias.

Dar-se a Deus: eis a atitude que liberta integralmente o ser humano. Impelido pelo Espírito do Senhor, o cristão assume a missão de Cristo sendo sal e luz do mundo. Dar-se a Deus não é mera atitude subjetivista ou intimista, mas presença amorosa junto às pessoas que sofrem, preferentemente os pobres. “Dar a Deus é o que é de Deus” significa a oferta de nós mesmos na obra divina da salvação do mundo. Abertos e disponíveis, o Senhor nos chama para a missão de criar novo céu e nova terra: Reino de Deus, justiça e paz. Atender ao chamado divino é dar-se, sem reservas, a Deus.


Tiago de França

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O dia quer nascer


Hélder Câmara, boca de Deus
Disse um dia
Que depois de uma prolongada noite nasce
O dia

Noite:
Escuridão, dúvidas, solidão, deserto, escassez, falta...
Medo, covardia, silêncio omissivo, traição
Estagnação

Há homens ilustres da noite
Amantes daquilo que é noite, não daquilo que parece noite...
Nas caladas planejam...
Planejam silêncios, ameaças, distorções, sutil e maliciosamente

Dia:
Claridade, transparência, grito, abundância, coragem...
Rostos suados, movimento, transformação
Liberdade

Há filhos do dia
Amantes daquilo que é dia, não daquilo que parece dia...
Gritando, clamando, caminhando, arriscando-se, perseguidos em meio aos gemidos...
Livres

E o dia não vem,
Que agonia!
E a noite não passa,
Que calamidade!...

Poucos gostam do dia,
Muitos amam a noite...
E a criação geme em dores de parto
E a criança não nasce!...

E o novo quer respirar
O velho que se impor...
E as pessoas olham, gritam, choram
Estão com fome.

Fome
De justiça, de pão, de paz.
Fome
De amor, de liberdade, de vida.

A vida,
Quer, ousada e sufocadamente,
Viver.
Porque sobreviver é pequeno, é pouco, é nada...

A vida,
Escondida, sufocada, maltratada, perseguida,
Morta,
Viverá. Sempre e permanentemente,
Virá, sobreviverá e, enfim, viverá...


Tiago de França