terça-feira, 27 de março de 2012

CARTA ABERTA AO PADRE JOSÉ COMBLIN


Prezado amigo Pe. José Comblin,

Por ocasião do aniversário de um ano de tua páscoa resolvo te escrever. Penso que estás muito bem, pois ansiavas muito pelo encontro definitivo com aquele que nos chama à vida. Recordo-me de tua incansável luta entre os pobres e teu espírito crítico em relação à Igreja, que conforme pensavas, os tinha abandonado.

Os incomodados sempre te acharam exageradamente crítico, mas quando olhava de onde vinha a crítica, era possível compreender o incômodo. Quero, nesta breve carta, partilhar contigo e com aqueles que dela fizerem leitura, três qualidades de tua pessoa que sempre me chamaram a atenção e me edificam.

Tua humildade. Os homens eruditos da Igreja, meu caro amigo, são reconhecidos não somente pelo seu saber, mas pela falta de acessibilidade. Há teólogos que até parecem autoridades políticas: difíceis de serem encontrados, são inacessíveis. São de uma formalidade e de um linguajar que somente pessoas eruditas os escutam e entendem, são teólogos de gabinete.

Quem te conheceu de perto sabe de tua humildade, que se manifestava no teu jeito de falar sobre os diversos campos do conhecimento humano que dominavas tão bem e na tua cordialidade na relação com as pessoas. Teu jeito tímido, mas comunicativo, atraía as pessoas. Todos esperavam ansiosamente pela palavra que saía de tua boca nas palestras, conferências, retiros e cursos, assim como nos artigos e livros que escreveste. Falavas com humildade e profundidade sobre questões complexas e pertinentes.

Tu fizeste uma opção de morar entre os pobres e com eles aprendeste o jeito humilde que caracteriza o verdadeiro pobre. Aprendeste e ensinaste que ser pobre não é ser amaldiçoado, como pregam muitas de nossas Igrejas. Leste nos evangelhos que Jesus era pobre, destituído de poder e para não entrares em contradição com teus escritos resolveste viver e morrer no meio dos pobres. Os pobres te escutavam com amor e atenção porque viam em ti um homem sábio e pobre.

Tua coragem. Os eclesiásticos, de modo geral, são muito medrosos. Por terem uma vida segura e estável, sem risco algum, são encarcerados pelo medo. Quem tem sua vida assegurada possui grande medo de perdê-la. Para isto, fazem de tudo para mantê-la bem, na devida estabilidade. Estão longe daquilo que foi Jesus: pobre homem que não tinha onde reclinar a cabeça. Identificar-se com este Jesus é correr sérios riscos na vida, pois ele não oferece segurança nenhuma.

Certo dia, um bispo induziu as pessoas pensarem que tu não eras profeta, mas crepúsculo de profeta. Disse também que sofrias do mal daqueles que se revoltam ou que perdem a lucidez. Pobre bispo, não te conhecia suficientemente bem. Tua coragem de criticar a Igreja chamava a atenção de todos. Assim como Jesus criticou a religião de seu tempo, tu, na continuidade dos profetas da nova e eterna aliança, criticaste a Igreja porque a amaste até o fim de tua vida. Tu morreste presbítero da Igreja: testemunha fiel que não se cansou de denunciar as infidelidades dos falsos pastores e falsos profetas.

Tua liberdade. Este tema sempre causou problema na vida da Igreja. Esta sempre teve medo da liberdade. Na Igreja, quando se fala de liberdade, tal expressão sempre vem acompanhada de outros adjetivos: liberdade direcionada, condicionada, explicitada com justificativas pouco plausíveis. Isto explica o medo da Igreja em relação à modernidade. Esta inaugurou a liberdade dos sujeitos e denunciou a falta de liberdade no interior da vida eclesial.

A tua liberdade estava alicerçada no teu testemunho de vida. Tuas palavras e gestos eram de um homem que cultivava a liberdade, que buscava viver em função da liberdade. Isto te dava autoridade para falar a verdade a todos. A liberdade é o fio condutor do teu fazer teológico e foste muito feliz nesta árdua empreitada.

Ensinaste que fora da liberdade não existe felicidade nem salvação. A salvação do povo de Deus é sua liberdade plena. O Deus e Pai de Jesus, nosso bom Deus e Pai, é o Libertador. Todo ser humano, independentemente de credo religioso e cultura, deseja ser livre. A liberdade não tem religião, todos têm direito a ela e nela podem ser felizes. Fora do caminho da liberdade, que para os cristãos é o caminho de Jesus, nenhum ser humano consegue se realizar e, portanto, ser feliz. É preciso se colocar neste caminho, ser corajoso e nele perseverar até as últimas conseqüências. Tu assim o fizeste e encontraste a plena liberdade.

Meu caro amigo, estás fazendo falta no cenário eclesial. Nossa Igreja continua ameaçada pela letargia e pela mediocridade. Tudo parece envolto na inércia. Os pobres continuam clamando por justiça e são poucos os que para eles olham, sentem compaixão, se aproximam e derramam óleo em suas feridas. Há belos projetos e documentos, mas parece que não se sabe bem para onde se vai... Faltam referências significativas, a situação é preocupante.

Tua profecia está viva. Teus livros não foram proibidos. Há muita gente lendo e relendo, encontrando-se e reencontrando-se, buscando ser livre e ajudando na libertação. O Espírito que esteve contigo continua conosco, vivo e atuante; inquietando muita gente e desorganizando aquilo que sempre foi considerado puro, santo e divinamente inspirado. Tua profecia é sinal autêntico da presença do Espírito na Igreja e nós bendizemos a Deus por isso.

Recomendo-me às tuas preces junto a Deus, porque para te considerar santo não preciso esperar por canonização. Santos como tu não são canonizados na Igreja há muito tempo!...

Teu amigo e irmão em Jesus de Nazaré,


Tiago de França
Belo Horizonte – MG, 27 de março de 2012.

sábado, 24 de março de 2012

Dom Oscar Romero, santo profeta de Deus


“Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida, a perderá; mas, o que perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará” (Mc 8, 34 – 35).

As pessoas querem ganhar a vida, todos querem se salvar. Ganhar a vida segundo a lógica deste mundo significa progredir, crescer, ter sucesso, ser reconhecido, dar-se bem em tudo. O mundo construído a partir desta lógica não permite que todos ganhem a vida, haverá sempre os perdedores, os derrotados, os que passam toda a vida lutando, mas fracassam; fracassam porque não há espaço para todos. Há pessoas que nascem e morrem sem ter acesso ao ganhar a vida, sem serem, à luz deste mundo, felizes.

Quando Jesus foi enviado a este mundo, encontrou muitas pessoas lutando para sobreviver: mulheres, crianças, paralíticos, leprosos, cegos, doentes, iletrados, pecadores públicos. Estas pessoas não eram consideradas, não as levavam em conta, eram excluídas. Quando Jesus leu o primeiro testamento das Escrituras percebeu com facilidade que seu Pai tinha libertado o povo da escravidão e reconheceu que o caminho da liberdade é o caminho de Deus. Então, sem medo algum, se colocou a serviço da liberdade do povo de Deus renovando, assim, a antiga Aliança.

Dom Oscar Romero, bispo da Igreja, depois que foi eleito Arcebispo de El Salvador, na América Central, vendo os empobrecidos sendo brutalmente assassinados, releu o Evangelho de Jesus e arriscou-se no caminho da liberdade. Antes de arriscar-se, queria salvar a própria vida em detrimento da vida do povo de Deus; mas os apelos do Espírito e o clamor do povo massacrado não permitiram que o bispo vivesse na indiferença. Então, em meio à cruel ditadura militar salvadorenha, Dom Oscar Romero assumiu a profecia, despojando-se do medo e denunciando a tortura sangrenta.

Os militares, os irmãos bispos e o Papa surpreenderam-se com a conversão do bispo profeta. Ninguém esperava que ele iria compartilhar o sofrimento dos empobrecidos, porque era famoso por sua fidelidade a um modelo de Igreja voltado para a sacristia, uma Igreja preocupada consigo mesma. Os militares denunciaram-lhe a Roma, o Papa recomendou-lhe que fosse prudente no conflito com os militares, os irmãos no episcopado o ignoraram, o profeta se viu sozinho com seu povo. O Espírito o fez vencer o medo e a falsa prudência; o bispo entregou-se, destemidamente, ao sagrado ministério da profecia.

A Igreja pensada e vivida por Dom Oscar Romero estava totalmente voltada para a conquista da liberdade do povo de Deus. O seu evangelho era o de Cristo: Evangelho da liberdade. Ele sabia que a liberdade gera a verdadeira vida, fé e vida entrelaçadas. Suas denúncias eram diretas, claras, corajosas, fortes, ditas em bom tom, sem esconder nomes. O povo identificou-se com ele porque viu que se tratava do pastor que conhecia a vida de seu rebanho e estava disposto a dar a própria vida se preciso fosse, como, de fato, o foi.

No dia 24 de março de 1980, durante uma Missa, no altar do Senhor, Dom Oscar Romero foi assassinado a tiros. Morreu no exercício da profecia, diante do altar do Senhor, na celebração da memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Foi um fiel discípulo e missionário do crucificado-ressuscitado, a exemplo de Cristo participou da dor do povo de Deus até as últimas conseqüências. O povo chorava desesperadamente a morte de seu pastor e diante do venerável corpo se perguntava: “O que será de nós sem este santo profeta de Deus?...”

O que o testemunho de Dom Oscar Romero fala para a hierarquia da Igreja? Para não cometermos injustiça contra os que se dedicam ao serviço libertador do povo de Deus, é preciso louvar e agradecer a Deus pelo pequeno número dos profetas que temos na hierarquia da Igreja: Dom Pedro Casaldáliga, Dom Edmilson da Cruz, Dom Flávio Cappio, Dom Mauro Morelli e outros bispos e padres identificados com a libertação integral dos empobrecidos. Há um número cada vez mais acentuado de bispos e padres que, em detrimento da liberdade e da vida dos excluídos, identificam-se com o poder e com os poderosos deste mundo. Infelizmente, o número dos que assim procedem é grande e aumenta cada vez mais.

Os que se identificam com o poder querem mais poder. A sede pelo poder é visível entre os ministros ordenados da Igreja. Suas atitudes transparecem tal sede: amizades e alianças com poderosos, vida luxuosa, competição, carreirismo, busca de títulos e reconhecimentos, autoritarismo; são rubricistas e aparentemente fiéis às orientações da Igreja, são moralistas e gostam de bajular a figura da autoridade eclesiástica, isentam-se de criticar a estrutura hierárquica e alimentam falsa prudência em relação ao mundo, condenando-o e o demonizando etc. Por fim, é preciso não esquecer de que são fiéis perseguidores dos profetas de Deus.

Após converte-se ao caminho da liberdade, Dom Oscar Romero despojou-se de toda espécie de ambição; transformou seu ministério de bispo num instrumento de libertação dos empobrecidos. Viveu a autêntica espiritualidade do bom pastor descrita no evangelho segundo João (cf. Jo 10, 1 – 21): apascentou o rebanho do Senhor até a doação da própria vida. Seu interesse era a vida do povo.“A glória de Deus é o povo livre”, gostava de afirmar. Abraçou a coroa do martírio com a liberdade de quem só obedecia a Deus, seu testemunho torna fecunda a missão da Igreja e a orienta para o caminho de Jesus de Nazaré.

Celebrar a memória do martírio de Dom Oscar Romero não é somente recordar seu testemunho profético, mas nos perguntarmos pelos profetas da Igreja de hoje. Somos batizados em nome de Deus, o Espírito de Deus habita em nós, deixemo-nos, portanto, guiar por este Espírito e a profecia jamais cairá. A profecia revigora a Igreja e a torna, de fato, instrumento de salvação da humanidade, conforme pensou o Concílio Vaticano II.

Os profetas nos provocam e nos concedem a graça de voltamos às origens da Igreja, marcadamente profética; somente assim teremos uma Igreja mais humilde, humana, acolhedora e servidora da humanidade, preferencialmente dos empobrecidos. Que Dom Oscar Romero interceda a Deus pela conversão da Igreja, a fim de que ela seja verdadeiramente Povo de Deus em marcha rumo à plenitude do Reino de Deus.


Tiago de França

terça-feira, 20 de março de 2012

A Quaresma e o Sacramento da Reconciliação


“Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?’ Jesus respondeu: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’" (Mt 18, 21 – 22).

Os textos bíblicos que estão sendo lidos nas celebrações que estão acontecendo neste tempo quaresmal falam da experiência da infidelidade humana e do caminho da conversão. A Igreja convida seus membros para experimentarem a misericórdia de Deus, experiência que se manifesta no Sacramento da Reconciliação.

Há um Deus que é amor e misericórdia e que não se cansa de acolher e perdoar a todos. Voltar para Deus de todo o coração, rasgando o coração e não as vestes (cf. Jl 2, 12): eis o chamado insistente do tempo quaresmal. Para entendermos bem o sentido deste chamado vamos, brevemente, discorrer sobre alguns fatores que nos chamam a atenção quando falamos de Sacramento da Reconciliação.

Os católicos estão deixando de procurar o Sacramento da Reconciliação. Isto é um fato. Contra ele não há argumentos. Isto tem causado muita dor de cabeça aos ministros da Igreja, especialmente aqueles que ministram tal Sacramento: o padre e o bispo. Fala-se que os católicos estão abandonando tal prática sacramental por causa da secularização. A culpa é sempre do mundo. Outros, porém, falam da crescente perda da consciência de pecado.

Antes das tentativas da reforma conciliar, tudo era considerado pecado. De modo geral, as pessoas viviam apavoradas porque escutavam sermões demasiadamente moralistas e apelativos, que falavam demasiadamente de pecado, castigo, inferno, condenação, perdição, culpa etc. É verdade que atualmente a consciência de pecado é quase inexistente, mas a Igreja tem parcela de culpa nisso. O homem moderno não aceita nem suporta um Deus Juiz, severo, vigilante, castigador, que autoriza o julgamento e a imposição da pena pelo delito cometido. Esta imagem de Deus contradiz a que foi apresentada e vivida por Jesus de Nazaré: Deus é amor.

As pessoas não acreditam mais no Sacramento da Reconciliação como via única do voltar-se para Deus através do arrependimento sincero. O homem moderno não acredita que Deus necessite de intermediários para perdoá-lo, nem crê na concepção de pecado ensinada pela Igreja, concepção marcada pela “medição” do delito para a justa aplicação da pena (penitência). As pessoas não aceitam mais serem enquadradas no rigoroso sistema jurídico eclesiástico. Elas não têm mais medo dos juízos e das condenações oriundas da Igreja.

Deus não se ofende quando nos deixamos levar pela nossa fraqueza. Isto mesmo: Deus não se ofende. A capacidade de se sentir ofendido, entristecer-se e sentir-se irado por causa dos erros cometidos são coisas do ser humano que não podem ser transferidas para Deus. Em Deus só há amor, alegria, bondade, misericórdia infinitas. É verdade que a Bíblia se utiliza de sentimentos humanos para falar da ação de Deus no mundo, mas tudo não passa de recurso pedagógico dos autores sagrados, que são necessários para facilitar a compreensão.

Neste sentido, com muita razão nos fala o teólogo jesuíta Roger Lenaers em seu livro Outro cristianismo é possível – a fé em linguagem moderna, que a palavra reconciliação é inadequada para falar do voltar-se para Deus. No capítulo sobre o Sacramento da Reconciliação afirma o mencionado autor: “reconciliação supõe um conflito anterior. Duas partes brigaram e querem reatar a amizade. Ora, um Deus que entra numa rixa é uma imagem tão pouco sustentável quanto a de um Deus que castiga ou anistia”.

A missão de Jesus de Nazaré neste mundo foi a expressão máxima do amor divino. Portanto, ao procurar o Sacramento da Reconciliação o cristão deve se sentir acolhido pelo amor curativo e salvífico de Deus. Tal experiência não passa pelo julgamento nem pela imposição de penitências. Na Idade Média e na mente de muitos cristãos de hoje há a idéia de que Deus se regozija e/ou sente prazer em ver o pecador penitenciando-se, impondo a si mesmo castigos pelas faltas cometidas. Este Deus não é o de Jesus de Nazaré. Deus não necessita de nossas penitências para nos conceder seu perdão.

O perdão divino é gratuito. Deus não nos exige nada pelo seu perdão, nem nos impõe castigos por termos desobedecido à lei do amor. Portanto, longe de expressões religiosamente exteriores, a experiência do perdão acontece no coração do ser humano. É no coração do ser humano que Deus age e o liberta para o amor. Por isso, de nada adiantam gestos penitenciais se o coração não se abre à graça divina. Deus não revelou nenhuma lista de pecados e penas para serem observadas. A fraqueza do ser humano consiste em fechar-se em si mesmo e negar-se a escuta de Deus. É como que a origem de todos os males possíveis de serem praticados.

Na vida eclesial constata-se que o Sacramento da Reconciliação se transformou numa prática religiosa mecânica sem “efeito” espiritual. Muitos dos que se confessam afirmam: “Eu procuro o confissão porque a Igreja manda!”, ou seja, por pura obediência a um preceito religioso. O Sacramento torna-se uma ação pontual, quer periodicamente, quer ocasionalmente. É evidente a falta de consciência do que se procura. A procura pelo Sacramento pela mera observância da lei da Igreja não gera a conversão da pessoa.

O Sacramento da Reconciliação ensina a sermos misericordiosos com aqueles que nos ofendem. O perdão de Deus nos restabelece a paz de espírito e consciência e nos educa para o exercício amoroso da compaixão para com o próximo. Ser misericordioso é compadecer-se da miséria alheia, é ser sinal da presença amorosa de Deus na vida do outro.

O Sacramento da Reconciliação deve fazer nascer uma Igreja reconciliada com o mundo. Quando o Papa João XXIII anunciou a realização do Concílio Vaticano II, tanto no anúncio quanto na abertura do mesmo, o “Papa bom” fez questão de enfatizar que os bispos não iriam se reunir para formular novas condenações para o mundo, mas fazer um aggiornamento da Igreja, a fim de que esta encontre sua missão fundamental: anunciar ao mundo a Boa Notícia do Reino de Deus. Portanto, o Sacramento da Reconciliação é o lugar do encontro com o Deus que é pura misericórdia; é também uma escola onde a Igreja deve aprender a ser mansa, humilde, acolhedora e misericordiosa, preferencialmente com os últimos da sociedade.

Ninguém está obrigado ao Sacramento da Reconciliação. O primeiro motivo que justifica esta afirmação é o seguinte: na vida cristã ninguém está obrigado a nada. A misericórdia divina se manifesta na liberdade de filhos de Deus. Fora da liberdade não há sacramento válido diante de Deus. A graça divina se manifesta na gratuidade e na liberdade. O segundo motivo é que tal Sacramento não é a única via para se obter o perdão divino. Trata-se de uma alternativa que a Igreja oferece para se obter o perdão divino trilhando-se, assim, o caminho da conversão. Os demais cristãos não-católicos não possuem este Sacramento e recebem igualmente o perdão de Deus. O mais importante não é o ritual em si, mas a disposição cristã em responder ao chamado divino à santidade.


Tiago de França

sábado, 10 de março de 2012

Mulher: ternura, amor e vida


As circunstâncias históricas pouco favoráveis fizeram nascer o Dia Internacional da Mulher. As mulheres cansaram de ser humilhadas e exploradas e gritaram por justiça. Este clamor tornou-se incessante e, graças a isso, atualmente a mulher sofre menos do que em outras épocas. Há todo um caminho a ser percorrido rumo ao legítimo reconhecimento da dignidade feminina nas mais variadas culturas e sociedades. Tal reconhecimento passa pela igualdade de gênero, longe da idéia de que a mulher é igual ao homem, mas ambos deveriam ter seus direitos igualmente reconhecidos e, mais do que isto, poderiam viver mais harmoniosamente em vista de uma sociedade menos machista e desigual.

Pode-se falar a respeito da mulher a partir de vários aspectos, pois se trata de uma personalidade singularmente provocante. Para fazer jus a esta data tão significativa, quero abordar, brevemente, quatro aspectos do feminino na vida humana: 1) a mulher como companheira dada por Deus ao homem; 2) a mulher enquanto protagonista da própria história; 3) a mulher chamada à realização no amor e 4) Jesus e sua relação com as mulheres: um apelo à Igreja. Essas e outras questões são abordadas por diversos autores da Teologia, Antropologia e Psicologia. Darei algumas pincelas a respeito destes aspectos, a partir daquilo que penso a respeito dos mesmos.

1 - Mulher: companheira dada por Deus ao homem

No livro do Gênesis das Escrituras Sagradas narra-se a criação do homem e da mulher, ambos foram criados à imagem e semelhança de Deus. O relato bíblico afirma que Deus criou a mulher para ser a companheira do homem, pois este estava sozinho e na criação não encontrou nenhuma criatura que lhe fosse semelhante e que lhe servisse de companheira. O homem (Adão) denominou-a mulher, por ser carne de sua carne e osso de seus ossos. Ele a reconheceu como companheira.

O ser humano não consegue ser feliz sozinho. A Bíblia e todas as ciências humanas atestam isto. O humano é um ser que nasce numa comunidade para viver a comum-unidade. Nesta acontecem as relações, que nos constituem e nos faz existir. Não existimos para nós mesmos, mas para o outro. Somos imagem do Deus que se encarnou em Jesus de Nazaré. Toda a vida do Filho de Deus foi um movimento para o outro (alteridade). A vida passa, necessariamente, por este movimento. A vida é movimento, relação, construção no encontro com o outro.

A mulher se encontra na esfera do intimamente particular da vida humana, no sentido de que é na relação com ela que a vida acontece; relação que acontece na ternura da intimidade de um casal. Todo ser humano nasce deste encontro necessariamente sublime e fecundo do homem com a mulher. Assim Deus fez e quis. Esta união geradora da vida constitui a humanidade e garante sua sustentabilidade. No dia em que o homem recusar definitivamente a mulher, eis que a espécie humana deixará de existir.

É verdade que não se pode reduzir à esfera da procriação a relação do homem com a mulher. A procriação não é a finalidade última da relação entre ambos. Deus viu que o homem estava sozinho e resolveu dar-lhe uma companheira. Não há quem suporte a solidão. Trata-se de um dos maiores males da condição humana. Não tendo vocação para a vida isolada, o ser humano não suporta a solidão, assim como nenhuma forma de isolamento e/ou desprezo. Neste sentido, a mulher é chamada a não permitir que tanto seu companheiro quanto ela mesma caiam na solidão. Elimina-se a solidão na autêntica relação entre ambos. Homem e mulher são chamados a ser felizes numa relação pautada no amor e na liberdade.

2 - Mulher: protagonista da própria história

Até hoje há culturas que consideram a mulher um ser inferior ao homem. Este é detentor da força e do poder, enquanto a mulher é considerada por muitos como “sexo frágil”. A dignidade feminina sempre foi violentamente atacada e, por muito tempo, certas formas de violência eram consideradas normais.

Com a evolução das ciências e do pensamento, a mulher foi despertando para uma nova consciência e se viu na necessidade de procurar defender-se de seus agressores forçando a criação de instituições de defesa e promoção do feminino na história. A recente Lei Maria da Penha, no Brasil, é dos momentos mais significativos da conquista feminina por liberdade.

Atualmente, no campo afetivo-sexual, mais do que em outras épocas, a mulher é considerada por muitos objeto de uso sexual. A indústria dos cosméticos e das cirurgias plásticas, assim como o uso de silicones e outros recursos são excessivamente utilizados principalmente pelas mulheres.

A “cultura” do “corpo sarado” transformou-se numa verdadeira ditadura que tem deixado muita gente doente, física e psicologicamente. É pequeno o número das mulheres jovens que conseguem dizer não a este processo de desumanização do corpo feminino. O corpo humano, tanto do homem quanto da mulher, sofre sérias agressões e se mostra cada vez mais superficial e doentio. De modo geral, as pessoas terminam sendo aquilo que não corresponde à verdade de si mesmas.

Para ser protagonista da própria vida, a mulher precisa se posicionar, ver e pensar a realidade, ter visão crítica diante das ofertas mercadológicas e das falsas promessas de felicidade. A felicidade não passa pelo mero cultivo da aparência, não é algo para ser visto e apreciado, nem muito menos para ser experimentado momentaneamente. A felicidade não se encontra no imediato nem no ilusório, mas no amor como caminho para a liberdade.

3 - Mulher: chamada à realização no amor

Diante de toda e qualquer forma de opressão feminina, somente o amor consegue libertar a mulher. A autêntica realização passa pelo amor, que se manifesta na doação de si, no cultivo de uma vida saudável, na amizade com o outro, na esperança de um outro mundo possível, no despojamento que liberta dos apegos.

Evitar apegar-se às coisas, realidades e pessoas é caminho certo para se viver verdadeiramente o amor. Quanto mais acreditar e buscar viver o amor, mais emancipada se tornará a mulher na história, pois é no amor que encontrará força e sentido para continuar lutando por uma vida mais digna e, portanto, humana.

4 – Jesus e sua relação com as mulheres: um apelo à Igreja

Os evangelhos mostram que Jesus se relacionava com as mulheres e as tratava com dignidade (cf. Mt 21, 31-32; Mc 2,15; Lc 7, 37-50, entre outros textos). Ele sabia que no seu tempo a mulher não era valorizada e que o Judaísmo a relegava ao foro doméstico. Inserido numa cultura patriarcal, Jesus de Nazaré escandalizou os religiosos de sua época, pois se relacionou não somente com as mulheres consideradas honradas, mas, sobretudo, com as que eram rejeitadas pela religião e pela sociedade por serem tidas como pecadoras públicas.

Jesus não estava preocupado com o que diziam a respeito de sua relação com estas mulheres. Aproximava-se delas e as tocava, deixando-se também ser afetivamente amado por elas. Isto provocava a ira das autoridades religiosas judaicas, pois estas observavam a lei do puro e do impuro condenando, assim, a atitude acolhedora de Jesus em relação às mulheres pecadoras. Ao ressuscitar, Jesus preferiu aparecer primeiro à Maria Madalena, sua fiel discípula. As mulheres faziam parte do grupo dos seguidores de Jesus e o ajudavam na missão. Para a surpresa de todos, ele as acolheu sem nenhum espírito de superioridade, evitando toda espécie de julgamento e condenação.

As Igrejas cristãs ainda não aprenderam a fazer uma leitura correta sobre a postura de Jesus nos evangelhos. Até os dias atuais, a mulher não tem tratamento igualitário no interior das Igrejas. Na Igreja Católica, a mulher está proibida de fazer parte da hierarquia (diaconato, presbiterado e episcopado). A Igreja, equivocadamente, tenta usar as Escrituras para legitimar tal proibição, o que jamais irá conseguir, pois na Bíblia não encontramos nenhum versículo que possa confirmar tal proibição.

Certamente, teríamos outro modelo mais evangélico de Igreja se a mulher participasse de seu corpo hierárquico. Portanto, a hierarquia da Igreja não tem autoridade para falar de igualdade nas relações de gênero, pois se ousa fazer está em profunda contradição consigo mesma. É preciso, pois, que a hierarquia releia o Evangelho e aprenda com Jesus a reconhecer, não com palavras e discursos, mas com atitudes e revisão de sua estrutura, o valor e o lugar da mulher na Igreja em vista de sua missão no mundo. As pessoas esperam da Igreja atitudes, pois seus documentos já não são mais lidos, a não ser pelos que precisam lê-los em função dos estudos, e seus discursos já não são mais escutados.

Tiago de França