terça-feira, 15 de maio de 2012

As estranhas reflexões do Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Júnior


           O presente texto quer responder a uma série de questões que algumas pessoas me enviaram por e-mail, pedindo-me um parecer sobre as reflexões do Pe. Paulo Ricardo Azevedo Júnior, que estão circulando pela Internet, através de textos e vídeos. Antes de tecermos algumas considerações a respeito do mesmo, é preciso apresentá-lo, brevemente: pertence ao clero da Arquidiocese de Cuiabá (Mato Grosso); ordenado padre em 1992; bacharel em Teologia e mestre em direito canônico; foi, durante 15 anos, reitor do Seminário Arquidiocesano de Cuiabá; desde 2002, membro do Conselho Internacional de Catequese, da Congregação para o clero; autor de livros e apresentador de um programa na TV Canção Nova.

            Expressões pesadas, oriundas de um espírito ultraconservador e fundamentado numa espiritualidade “a partir das alturas”, causaram um desconforto na Arquidiocese de Cuiabá e levaram 27 pessoas, padres e religiosos da mesma Igreja particular, a escreverem uma Carta Aberta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e ao Arcebispo de Cuiabá, Dom Milton Antônio dos Santos, SDB. Tal Carta foi publicada no dia 27 de fevereiro de 2012. A partir dela se iniciou uma verdadeira campanha em defesa do Pe. Paulo Ricardo, campanha iniciada por aqueles que se consideram seus “filhos e filhas espirituais”.

            Eis um trecho da Carta Aberta: “Diante de um homem amargurado, fatigado, raivoso, compulsivo, profundamente infeliz e transtornado toma-nos, como cristãos e como sacerdotes, um profundo sentimento de compaixão e misericórdia. Diante de suas reiteradas investidas contra o Concílio vaticano II, contra a CNBB e, sobretudo, contra seus irmãos no sacerdócio invade-nos um profundo sentimento de constrangimento e dor pelas ofensas, calúnias, injúrias, difamação de caráter e conseqüentes danos morais que ele desfere publicamente e através dos diversos meios de comunicação contra nós, sacerdotes e bispos empenhados plenamente na construção do Reino de Deus” (para ler toda a Carta basta solicitá-la ao Google!).

            Ao acessar os textos e as palestras em vídeo do Pe. Paulo Ricardo, o leitor atento e dotado de bom senso certamente concordará com o que disseram os padres e os religiosos na citada Carta. Para emitir um parecer a respeito do citado sacerdote resolvi, então, ler alguns de seus textos e assistir a algumas de suas palestras. Confesso que fiquei preocupado. A partir do que li, vi e ouvi, e tendo em vista a Carta Aberta acima mencionada, vou responder aos questionamentos levantados pelos que me escreveram apresentando algumas considerações.

            1 – A eclesiologia pré-Vaticano II. A concepção de Igreja antes do Concílio Vaticano II era a de “sociedade perfeita no meio do mundo”. Entendia-se que a Igreja era a hierarquia: padre, bispo e papa. O povo assistia, passivamente: não lhe era concedida a participação. Na paróquia, o padre ocupava o centro de tudo: tudo sabia e decidia e ai de quem o desobedecesse ou o questionasse. O Pe. Paulo Ricardo tem em mente este modelo de Igreja e o defende. Em muitos lugares ainda encontramos resquícios deste modelo de Igreja: ultrapassado e que não corresponde ao mundo atual. Os católicos de hoje não aceitam mais tal estilo eclesial, pois reivindicam uma Igreja mais aberta, humana, acolhedora, na qual haja mais comunhão e participação (eclesiologia promovida pelo Vaticano II).

            2 – Moralismo e pietismo. Na Igreja, a moral tridentina, portanto, pré-Vaticano II, era essencialmente jansenista. Esta moral pregava uma visão pessimista do corpo humano e defendia excessivamente a concupiscência da carne (inclinação ao pecado). Neste sentido, quase tudo era pecado na vida cristã. A via única para se libertar do pecado consistia em buscar os sacramentos da Penitência (confissão) e Eucaristia. Em torno destes sacramentos, da devoção aos santos e à Virgem Maria criou-se um pietismo que até hoje afeta a Igreja. Oração, missa e sacramentos: eis o caminho da santidade. O Pe. Paulo Ricardo defende esse moralismo e pietismo e por causa destes incorre no pecado da “demonização” do mundo e do cristão não-católico.

            3 – O sacerdote: ministro sagrado, um ser fora do mundo. Antes do Vaticano II, o padre era o homem da sacristia, da batina preta, da oração cotidiana do breviário, que levava uma vida muito diferente da dos demais homens: um ser sagrado e intocável, representante de Cristo na e para a comunidade. Este padre não se importava com questões sociais e políticas, porque tais questões também não interessavam à Igreja. Todo padre tinha o compromisso de trabalhar pela salvação das almas do rebanho que lhe foi confiado. Por isso, mesmo sem ser entendido, era venerado e admirado por todos. Não era permitida nenhuma crítica ao Bispo, muito menos ao Papa. Este último era considerado o representante de Cristo na terra, questioná-lo era como que uma blasfêmia. Ao acusar os padres de comunistas e desordeiros, o que o Pe. Paulo Ricardo realmente deseja é que todos os padres voltem a ser o ministro sagrado, um ser fora do mundo.

            4 – A doutrina da Igreja e o Evangelho. A Igreja é essencialmente missionária e sua missão é anunciar a Boa Nova ao mundo: eis sua missão fundamental. O Pe. Paulo Ricardo estudou isto na Teologia, mas crê em outra coisa. Para ele, o mais importante não é o Evangelho, mas a doutrina da Igreja. Segundo ele, todo sacerdote é guardião e propagador da doutrina da Igreja, porque fora desta não existe salvação. Nesta concepção, Jesus veio ao mundo não para inaugurar o Reino de Deus, como está descrito nos evangelhos, mas para fundar a Igreja Católica e conceber as bases de sua doutrina. A pregação e os escritos do Pe. Paulo Ricardo deixam transparecer claramente esta idéia, que se encerra na seguinte sentença: Jesus salva a partir da observância da doutrina da Igreja, porque esta lhe é fiel em tudo.

            5 – A intolerância religiosa e o preconceito. Pautar o ministério presbiteral na Igreja segundo o que acusamos nos quatro tópicos anteriores remete-nos ao preconceito e à intolerância religiosa. Fora do diálogo, do respeito à diversidade e ao pluralismo religioso e cultural, da compreensão, do bom senso e da caridade não há autêntico anúncio do Evangelho. São justamente estas coisas que faltam na prática ministerial do Pe. Paulo Ricardo, que, explicitamente, semeia e alimenta o preconceito, a intolerância religiosa e o ódio entre as pessoas que não simpatizam com seu estilo intragável, clericalista e anti-eclesial.

            De fato, os Bispos, primeiros responsáveis pela unidade da Igreja, devem estar mais atentos a estes excessos. Estes causam dispersão, divisão e confusão. O anúncio do Evangelho deve congregar as pessoas em torno da verdade do Evangelho de Jesus e não o contrário, como facilmente se percebe nas estranhas reflexões do Pe. Paulo Ricardo. Este parece que se esqueceu de que o amor é o mandamento fundamental que traduz plenamente a mensagem de Jesus. O amor não exige a observância irrestrita da lei, ele não está em função da obediência à lei, mas da liberdade dos filhos e filhas de Deus.

            Concluo esta reflexão citando a compreensão paulina do Evangelho. Para o apóstolo Paulo, o anúncio do Evangelho tem por objetivo libertar as pessoas de toda espécie de escravidão e uma das piores formas de escravidão é a religiosa. A meu ver, o Pe. Paulo Ricardo reforça tal escravidão, pois desconsidera que “é para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão” (Gl 5, 1).

Tiago de França

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A espiritualidade do caminho (II)


“O caminho se faz caminhando”

            No artigo anterior tentamos elaborar uma idéia sobre o que vem a ser espiritualidade. Frisamos que há diversas espiritualidades e pensamos que espiritualidade é liberdade, é caminho rumo à liberdade. Nossa reflexão está partindo da experiência de Jesus de Nazaré, que, segundo parece, viveu plenamente a experiência da liberdade. Portanto, nossa perspectiva é cristã, mas engloba a totalidade do ser humano. Por isso, nossa ótica é cristã, não religiosa. Claro que ao falar da liberdade experimentada por Jesus somos mais que convidados a lançarmos um olhar sobre o Cristianismo, espécie de movimento humano e espiritual que nasceu a partir de Jesus.

            Antes de falarmos do caminho a que nos propomos propriamente discorrer, penso que seja importante falarmos alguma coisa da experiência de liberdade do Nazareno. Isto porque a experiência dele é como que uma inspiração antiga e sempre nova de uma prática exitosa de liberdade. É muito importante, em primeiro lugar, considerar isto: Jesus viveu na perspectiva da liberdade. Ele não pregou uma ideologia da liberdade, mas procurou viver a liberdade, apesar dos riscos que tal vivência contempla. Nos escritos evangélicos não encontramos nenhum discurso metódico tendo como centralidade uma filosofia da liberdade, mas encontramos um homem que buscou incessantemente ser livre.

            A concretude da vida, longe dos fatos miraculosos criados pela fantasia humana, é o lugar da manifestação da liberdade. Portanto, buscar ser livre é, antes de tudo, procurar viver uma vida normal. A dinamicidade da vida é, em si mesma, instrumento valioso para a prática de atitudes que conduzem à liberdade. O desenrolar da vida, os acontecimentos que nela se dão, desde os mais significativos até os mais banais, são lugares de vivência da liberdade. É preciso, pois, que cada pessoa esteja atenta a si mesma e aquilo que está acontecendo no aqui e agora da existência. Estar acordado: atitude fundamental para perceber em que estágio se encontra no caminho que conduz à liberdade.

            Jesus era um homem acordado. Quem dorme não dá conta de viver a vida. Aliás, não consegue ver a vida, senti-la, experimentá-la, tê-la nas próprias mãos. Com muita facilidade Jesus percebia a si mesmo e aos outros: era um homem sensível, que sabia o que pensava, falava. Ele entendia seu pensamento, palavra e ação; tinha consciência clara de sua missão junto às pessoas. Seus opositores não o aceitavam porque constataram que ele vivia bem acordado. Quem está acordado não tem medo da verdade porque não tem medo da luz, porque aceita a realidade, a vive em plena comunhão. Assim era Jesus.

            Vivendo acordado numa realidade difícil e marcada pelos diversos sinais de morte, Jesus se depara com a grande tentação: a de fugir, entregando-se ao medo. Todo ser humano tende a fugir daquilo que lhe é difícil, perigoso e, conseqüentemente, arriscado e ameaçador. Com Jesus não foi diferente. Ele foi tentado a renunciar à liberdade e a viver aprisionado pelo medo. Diante do medo da morte por causa da escolha feita, resistiu. Resistiu não porque era Deus, mas porque entendeu os motivos pelos quais optou pela liberdade. Ele sabia que a salvação que anunciou ao povo era caminho rumo à liberdade.

            Ao mesmo tempo em que almeja ser livre o ser humano tem medo da liberdade. Jesus percebeu isto claramente e sua atividade missionária levava este dado em consideração. Ele foi considerado louco, desobediente, possesso, um fora da lei. As pessoas não o entendiam, e isto acontecia porque ele pautou sua vida numa outra perspectiva, que não era a da lei mosaica. Não vivia em função desta. Jesus considerou a importância da lei, mas a transcendeu; mostrou para as pessoas que o que importa é viver, e viver em abundância. Quem se torna escravo da lei não consegue viver abundantemente, porque em tal submissão não há liberdade.

            A vida está acima da lei. Somente quem se coloca no caminho da liberdade consegue acreditar e viver esta verdade cristã. Isto não é revolução e/ou insurreição contra as normas necessárias à organização da vida humana, mas caminho de liberdade. A liberdade está na vida, nunca nas leis que organizam a vida humana. Toda lei é imperfeita porque criada pelo ser humano. Este não consegue criar nada perfeito. Motivado pelos próprios interesses, este ser imperfeito sempre cai na tentação de absolutizar a lei em detrimento da vida. No caminho da liberdade acontece o oposto disso.

             Jesus percebeu que tanto as autoridades civis quanto as religiosas absolutizavam a lei em detrimento da vida do povo. Estas autoridades, desmascaradas em sua hipocrisia, perseguiram o profeta Jesus de Nazaré e o condenaram à morte. Com suas denúncias, ele representava uma ameaça constante ao sistema de exploração do povo. Causava ódio nas autoridades ver um pobre homem, vindo de Nazaré da Galiléia, anunciar o Reino de Deus ao povo. Como tolerar um pobre homem se opor a um sistema tal cruel e desumano como o que era mantido pelo Império Romano?... Mataram-no, impiedosamente.

            O anúncio do Reino é anúncio da liberdade. Os seguidores da primeira hora ousaram anunciar este Evangelho ao mundo. Hoje são poucos os que ousam anunciá-lo. No hoje das Igrejas cristãs a pregação passa longe do anúncio do Reino. Falar deste Reino é perigoso, gera confusão, as pessoas não aceitam. O que a maioria quer é outra coisa, menos ouvir falar da mensagem da liberdade anunciada por Jesus. De modo geral, as pessoas querem resolver seus problemas, querem um Deus “tapa-buraco”, que as socorra segundo suas necessidades e desejos. O importante é satisfazer os desejos: esta é a fé que muita gente professa.

            A espiritualidade do conflito era a espiritualidade de Jesus: sua vida foi um permanente conflito. Há conflitos onde há busca pela liberdade; do contrário, quando a pessoa evita entrar em conflito com as forças que se opõem à verdade e à liberdade, sua vida se tranqüiliza, ela goza a “paz”. Não são muitas as pessoas que lutam pela verdade e pela liberdade; a maioria dos conflitos é para encobrir a mentira e manter a alienação. O anúncio do Reino contempla a denúncia: o anúncio da verdade que desmascara a vida hipócrita dos mentirosos. Este é o perigoso conteúdo do anúncio do Reino: a verdade que liberta.

            Assim sendo, percebe-se que a espiritualidade do caminho é uma espiritualidade do conflito. No próximo texto veremos as implicações práticas na vida de quem se dispõe a viver segundo esta espiritualidade. Tais implicações parecem visíveis, mas é necessário clarear e/ou discorrer sobre outras intuições que merecem ser consideradas. Nossas reflexões se propõem a ser conforme o título: caminho. A idéia de caminho leva ao infinito. Nas entrelinhas da história há personagens que se propuseram a viver a vida segundo a espiritualidade de Jesus. Quem sabe, antes de nos adentrarmos à reflexão sobre o caminho em si, seja necessário aprofundar mais um pouco o sentido da espiritualidade de Jesus a partir do testemunho de alguma pessoa que tenha ousado viver de tal modo.


Tiago de França