O
presente texto quer responder a uma série de questões que algumas pessoas me
enviaram por e-mail, pedindo-me um parecer sobre as reflexões do Pe. Paulo Ricardo Azevedo Júnior,
que estão circulando pela Internet, através de textos e vídeos. Antes de
tecermos algumas considerações a respeito do mesmo, é preciso apresentá-lo,
brevemente: pertence ao clero da Arquidiocese de Cuiabá (Mato Grosso); ordenado
padre em 1992; bacharel em Teologia e mestre em direito canônico; foi, durante
15 anos, reitor do Seminário Arquidiocesano de Cuiabá; desde 2002, membro do
Conselho Internacional de Catequese, da Congregação para o clero; autor de
livros e apresentador de um programa na TV Canção Nova.
Expressões pesadas, oriundas de um
espírito ultraconservador e fundamentado numa espiritualidade “a partir das
alturas”, causaram um desconforto na Arquidiocese de Cuiabá e levaram 27
pessoas, padres e religiosos da mesma Igreja particular, a escreverem uma Carta
Aberta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e ao Arcebispo de
Cuiabá, Dom Milton Antônio dos Santos, SDB. Tal Carta foi publicada no dia 27
de fevereiro de 2012. A partir dela se iniciou uma verdadeira campanha em
defesa do Pe. Paulo Ricardo, campanha iniciada por aqueles que se consideram
seus “filhos e filhas espirituais”.
Eis um trecho da Carta Aberta: “Diante de um homem amargurado, fatigado,
raivoso, compulsivo, profundamente infeliz e transtornado toma-nos, como
cristãos e como sacerdotes, um profundo sentimento de compaixão e misericórdia.
Diante de suas reiteradas investidas contra o Concílio vaticano II, contra a
CNBB e, sobretudo, contra seus irmãos no sacerdócio invade-nos um profundo
sentimento de constrangimento e dor pelas ofensas, calúnias, injúrias,
difamação de caráter e conseqüentes danos morais que ele desfere publicamente e
através dos diversos meios de comunicação contra nós, sacerdotes e bispos
empenhados plenamente na construção do Reino de Deus” (para ler toda a
Carta basta solicitá-la ao Google!).
Ao acessar os textos e as palestras
em vídeo do Pe. Paulo Ricardo, o leitor atento e dotado de bom senso certamente
concordará com o que disseram os padres e os religiosos na citada Carta. Para emitir
um parecer a respeito do citado sacerdote resolvi, então, ler alguns de seus
textos e assistir a algumas de suas palestras. Confesso que fiquei preocupado. A
partir do que li, vi e ouvi, e tendo em vista a Carta Aberta acima mencionada,
vou responder aos questionamentos levantados pelos que me escreveram
apresentando algumas considerações.
1 – A eclesiologia pré-Vaticano II. A concepção de Igreja antes do
Concílio Vaticano II era a de “sociedade perfeita no meio do mundo”. Entendia-se
que a Igreja era a hierarquia: padre, bispo e papa. O povo assistia,
passivamente: não lhe era concedida a participação. Na paróquia, o padre
ocupava o centro de tudo: tudo sabia e decidia e ai de quem o desobedecesse ou
o questionasse. O Pe. Paulo Ricardo tem em mente este modelo de Igreja e o
defende. Em muitos lugares ainda encontramos resquícios deste modelo de Igreja:
ultrapassado e que não corresponde ao mundo atual. Os católicos de hoje não
aceitam mais tal estilo eclesial, pois reivindicam uma Igreja mais aberta,
humana, acolhedora, na qual haja mais comunhão e participação (eclesiologia
promovida pelo Vaticano II).
2 – Moralismo e pietismo. Na Igreja, a moral tridentina, portanto,
pré-Vaticano II, era essencialmente jansenista. Esta moral pregava uma visão
pessimista do corpo humano e defendia excessivamente a concupiscência da carne
(inclinação ao pecado). Neste sentido, quase tudo era pecado na vida cristã. A via
única para se libertar do pecado consistia em buscar os sacramentos da
Penitência (confissão) e Eucaristia. Em torno destes sacramentos, da devoção
aos santos e à Virgem Maria criou-se um pietismo que até hoje afeta a Igreja. Oração,
missa e sacramentos: eis o caminho da santidade. O Pe. Paulo Ricardo defende
esse moralismo e pietismo e por causa destes incorre no pecado da “demonização”
do mundo e do cristão não-católico.
3 – O sacerdote: ministro sagrado, um ser fora do mundo. Antes do
Vaticano II, o padre era o homem da sacristia, da batina preta, da oração
cotidiana do breviário, que levava uma vida muito diferente da dos demais
homens: um ser sagrado e intocável, representante de Cristo na e para a
comunidade. Este padre não se importava com questões sociais e políticas,
porque tais questões também não interessavam à Igreja. Todo padre tinha o
compromisso de trabalhar pela salvação das almas do rebanho que lhe foi
confiado. Por isso, mesmo sem ser entendido, era venerado e admirado por todos.
Não era permitida nenhuma crítica ao Bispo, muito menos ao Papa. Este último
era considerado o representante de Cristo na terra, questioná-lo era como que
uma blasfêmia. Ao acusar os padres de comunistas e desordeiros, o que o Pe.
Paulo Ricardo realmente deseja é que todos os padres voltem a ser o ministro
sagrado, um ser fora do mundo.
4 – A doutrina da Igreja e o Evangelho. A Igreja é essencialmente
missionária e sua missão é anunciar a Boa Nova ao mundo: eis sua missão
fundamental. O Pe. Paulo Ricardo estudou isto na Teologia, mas crê em outra
coisa. Para ele, o mais importante não é o Evangelho, mas a doutrina da Igreja.
Segundo ele, todo sacerdote é guardião e propagador da doutrina da Igreja,
porque fora desta não existe salvação. Nesta concepção, Jesus veio ao mundo não
para inaugurar o Reino de Deus, como está descrito nos evangelhos, mas para
fundar a Igreja Católica e conceber as bases de sua doutrina. A pregação e os
escritos do Pe. Paulo Ricardo deixam transparecer claramente esta idéia, que se
encerra na seguinte sentença: Jesus salva a partir da observância da doutrina
da Igreja, porque esta lhe é fiel em tudo.
5 – A intolerância religiosa e o preconceito. Pautar o ministério
presbiteral na Igreja segundo o que acusamos nos quatro tópicos anteriores
remete-nos ao preconceito e à intolerância religiosa. Fora do diálogo, do
respeito à diversidade e ao pluralismo religioso e cultural, da compreensão, do
bom senso e da caridade não há autêntico anúncio do Evangelho. São justamente
estas coisas que faltam na prática ministerial do Pe. Paulo Ricardo, que,
explicitamente, semeia e alimenta o preconceito, a intolerância religiosa e o
ódio entre as pessoas que não simpatizam com seu estilo intragável,
clericalista e anti-eclesial.
De fato, os Bispos, primeiros
responsáveis pela unidade da Igreja, devem estar mais atentos a estes excessos.
Estes causam dispersão, divisão e confusão. O anúncio do Evangelho deve
congregar as pessoas em torno da verdade do Evangelho de Jesus e não o
contrário, como facilmente se percebe nas estranhas reflexões do Pe. Paulo
Ricardo. Este parece que se esqueceu de que o amor é o mandamento fundamental
que traduz plenamente a mensagem de Jesus. O amor não exige a observância irrestrita
da lei, ele não está em função da obediência à lei, mas da liberdade dos filhos
e filhas de Deus.
Concluo esta reflexão citando a
compreensão paulina do Evangelho. Para o apóstolo Paulo, o anúncio do Evangelho
tem por objetivo libertar as pessoas de toda espécie de escravidão e uma das
piores formas de escravidão é a religiosa. A meu ver, o Pe. Paulo Ricardo
reforça tal escravidão, pois desconsidera que “é para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes,
portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão” (Gl 5,
1).
Tiago de França