“O
caminho se faz caminhando”
No artigo anterior tentamos elaborar
uma idéia sobre o que vem a ser espiritualidade. Frisamos que há diversas
espiritualidades e pensamos que espiritualidade é liberdade, é caminho rumo à
liberdade. Nossa reflexão está partindo da experiência de Jesus de Nazaré, que,
segundo parece, viveu plenamente a experiência da liberdade. Portanto, nossa
perspectiva é cristã, mas engloba a totalidade do ser humano. Por isso, nossa
ótica é cristã, não religiosa. Claro que ao falar da liberdade experimentada por
Jesus somos mais que convidados a lançarmos um olhar sobre o Cristianismo,
espécie de movimento humano e espiritual que nasceu a partir de Jesus.
Antes de falarmos do caminho a que
nos propomos propriamente discorrer, penso que seja importante falarmos alguma
coisa da experiência de liberdade do Nazareno. Isto porque a experiência dele é
como que uma inspiração antiga e sempre nova de uma prática exitosa de
liberdade. É muito importante, em primeiro lugar, considerar isto: Jesus viveu
na perspectiva da liberdade. Ele não pregou uma ideologia da liberdade, mas
procurou viver a liberdade, apesar dos riscos que tal vivência contempla. Nos
escritos evangélicos não encontramos nenhum discurso metódico tendo como centralidade
uma filosofia da liberdade, mas encontramos um homem que buscou incessantemente
ser livre.
A concretude da vida, longe dos
fatos miraculosos criados pela fantasia humana, é o lugar da manifestação da
liberdade. Portanto, buscar ser livre é, antes de tudo, procurar viver uma vida
normal. A dinamicidade da vida é, em si mesma, instrumento valioso para a
prática de atitudes que conduzem à liberdade. O desenrolar da vida, os
acontecimentos que nela se dão, desde os mais significativos até os mais
banais, são lugares de vivência da liberdade. É preciso, pois, que cada pessoa
esteja atenta a si mesma e aquilo que está acontecendo no aqui e agora da
existência. Estar acordado: atitude fundamental para perceber em que estágio se
encontra no caminho que conduz à liberdade.
Jesus era um homem acordado. Quem
dorme não dá conta de viver a vida. Aliás, não consegue ver a vida, senti-la,
experimentá-la, tê-la nas próprias mãos. Com muita facilidade Jesus percebia a
si mesmo e aos outros: era um homem sensível, que sabia o que pensava, falava.
Ele entendia seu pensamento, palavra e ação; tinha consciência clara de sua
missão junto às pessoas. Seus opositores não o aceitavam porque constataram que
ele vivia bem acordado. Quem está acordado não tem medo da verdade porque não
tem medo da luz, porque aceita a realidade, a vive em plena comunhão. Assim era
Jesus.
Vivendo acordado numa realidade
difícil e marcada pelos diversos sinais de morte, Jesus se depara com a grande
tentação: a de fugir, entregando-se ao medo. Todo ser humano tende a fugir
daquilo que lhe é difícil, perigoso e, conseqüentemente, arriscado e ameaçador.
Com Jesus não foi diferente. Ele foi tentado a renunciar à liberdade e a viver
aprisionado pelo medo. Diante do medo da morte por causa da escolha feita,
resistiu. Resistiu não porque era Deus, mas porque entendeu os motivos pelos
quais optou pela liberdade. Ele sabia que a salvação que anunciou ao povo era
caminho rumo à liberdade.
Ao mesmo tempo em que almeja ser
livre o ser humano tem medo da liberdade. Jesus percebeu isto claramente e sua
atividade missionária levava este dado em consideração. Ele foi considerado
louco, desobediente, possesso, um fora da lei. As pessoas não o entendiam, e
isto acontecia porque ele pautou sua vida numa outra perspectiva, que não era a
da lei mosaica. Não vivia em função desta. Jesus considerou a importância da
lei, mas a transcendeu; mostrou para as pessoas que o que importa é viver, e
viver em abundância. Quem se torna escravo da lei não consegue viver
abundantemente, porque em tal submissão não há liberdade.
A vida está acima da lei. Somente
quem se coloca no caminho da liberdade consegue acreditar e viver esta verdade
cristã. Isto não é revolução e/ou insurreição contra as normas necessárias à
organização da vida humana, mas caminho de liberdade. A liberdade está na vida,
nunca nas leis que organizam a vida humana. Toda lei é imperfeita porque criada
pelo ser humano. Este não consegue criar nada perfeito. Motivado pelos próprios
interesses, este ser imperfeito sempre cai na tentação de absolutizar a lei em
detrimento da vida. No caminho da liberdade acontece o oposto disso.
Jesus percebeu que tanto as autoridades civis
quanto as religiosas absolutizavam a lei em detrimento da vida do povo. Estas
autoridades, desmascaradas em sua hipocrisia, perseguiram o profeta Jesus de
Nazaré e o condenaram à morte. Com suas denúncias, ele representava uma ameaça
constante ao sistema de exploração do povo. Causava ódio nas autoridades ver um
pobre homem, vindo de Nazaré da Galiléia, anunciar o Reino de Deus ao povo. Como
tolerar um pobre homem se opor a um sistema tal cruel e desumano como o que era
mantido pelo Império Romano?... Mataram-no, impiedosamente.
O anúncio do Reino é anúncio da
liberdade. Os seguidores da primeira hora ousaram anunciar este Evangelho ao
mundo. Hoje são poucos os que ousam anunciá-lo. No hoje das Igrejas cristãs a
pregação passa longe do anúncio do Reino. Falar deste Reino é perigoso, gera
confusão, as pessoas não aceitam. O que a maioria quer é outra coisa, menos
ouvir falar da mensagem da liberdade anunciada por Jesus. De modo geral, as
pessoas querem resolver seus problemas, querem um Deus “tapa-buraco”, que as
socorra segundo suas necessidades e desejos. O importante é satisfazer os
desejos: esta é a fé que muita gente professa.
A espiritualidade do conflito era a
espiritualidade de Jesus: sua vida foi um permanente conflito. Há conflitos
onde há busca pela liberdade; do contrário, quando a pessoa evita entrar em
conflito com as forças que se opõem à verdade e à liberdade, sua vida se
tranqüiliza, ela goza a “paz”. Não são muitas as pessoas que lutam pela verdade
e pela liberdade; a maioria dos conflitos é para encobrir a mentira e manter a
alienação. O anúncio do Reino contempla a denúncia: o anúncio da verdade que
desmascara a vida hipócrita dos mentirosos. Este é o perigoso conteúdo do
anúncio do Reino: a verdade que liberta.
Assim sendo, percebe-se que a
espiritualidade do caminho é uma espiritualidade do conflito. No próximo texto
veremos as implicações práticas na vida de quem se dispõe a viver segundo esta
espiritualidade. Tais implicações parecem visíveis, mas é necessário clarear
e/ou discorrer sobre outras intuições que merecem ser consideradas. Nossas
reflexões se propõem a ser conforme o título: caminho. A idéia de caminho leva
ao infinito. Nas entrelinhas da história há personagens que se propuseram a
viver a vida segundo a espiritualidade de Jesus. Quem sabe, antes de nos
adentrarmos à reflexão sobre o caminho em si, seja necessário aprofundar mais
um pouco o sentido da espiritualidade de Jesus a partir do testemunho de alguma
pessoa que tenha ousado viver de tal modo.
Tiago de França
Nenhum comentário:
Postar um comentário