terça-feira, 31 de julho de 2012

O significado do amor à Igreja

           O amor à Igreja é um dos temas relevantes que merece nossa atenção. Para falar sobre esta questão é preciso responder a seguinte pergunta: De que Igreja estamos falando? Quando este tema aparece é comum as pessoas confundirem amor à Igreja com amor à hierarquia. São dois amores diferentes.

O Concílio Vaticano II ousou afirmar que a Igreja é Povo de Deus. Cresce cada vez mais o número dos que não aceitam este valioso conceito; conceito que fala de uma realidade nova, coisa do Espírito do Senhor. Vamos, então, falar alguma coisa sobre o amor à Igreja e o amor à hierarquia. O leitor procure se encontrar e aceitar o convite de se fazer Igreja Povo de Deus, Assembléia dos chamados à edificação do Reino de Deus.

            Os que constituem a hierarquia da Igreja são denominados Pastores do povo de Deus: diáconos, presbíteros e epíscopos. Por decisão da própria Igreja, sem nenhuma legitimação evangélica e histórica, as mulheres não podem fazer parte da hierarquia; portanto, não exercem o ministério ordenado. Este é um tema para outra reflexão.

Ao falar do corpo hierárquico não podemos deixar de denunciar esta injustiça. Ai da Igreja se não fosse a presença e a disponibilidade generosa das mulheres! Se elas pudessem exercer o ministério ordenado, certamente, a Igreja seria mais humana, mais terna e sensível às grandes causas do Reino de Deus.

            Os Pastores são chamados a serem servidores do povo de Deus, homens de Deus, entregues à oração e ao serviço. É deste modo que devem procurar responder ao chamado de Deus à santidade, que consiste amar as pessoas e dar suas vidas pela vida delas. Sem sombra de dúvidas estes homens são dignos de respeito e veneração.

O amor aos que procuram servir verdadeiramente a Deus e aos irmãos se traduz na participação em seu ministério de serviço. Portanto, juntos, ministros ordenados e ministros leigos, todos iguais aos olhos de Deus, são chamados à promoção e defesa da vida humana. Este, a meu ver, seria o verdadeiro amor que se deve ter aos Pastores.

            Além deste amor autêntico há um falso amor. Este é reconhecido pela submissão que muitos leigos têm em relação aos Pastores, especialmente aos padres, aos bispos e ao Papa. O Evangelho de Jesus denuncia toda forma de submissão e/ou subserviência. Submeter-se à vontade do outro, por mais santo que seja este outro, não é atitude evangélica.

Os discípulos de Jesus não eram seus empregados, mas amigos (cf. Jo 15, 15). Quem se submete cegamente à hierarquia é porque entende que a Igreja é a hierarquia. Comumente, quem assim procede não aceita a verdade de que os Pastores também estão sujeitos ao erro e que, de fato, pecam do mesmo modo como os demais membros da Igreja.

            O verdadeiro amor não conduz à submissão. Ama-se na liberdade e para a liberdade. Quem ama não ver o outro nem como superior, nem como inferior. O amor conduz à igualdade, à fraternidade e nos ensina que somos, em Cristo Jesus, irmãos uns dos outros. Os filhos de Deus são todos irmãos.

O padre, o bispo e o papa são irmãos na fé, filhos de Deus em igual dignidade em relação aos demais filhos de Deus e irmãos de Jesus. Por fazer parte do corpo hierárquico ninguém goza de privilégios diante de Deus. No Reino de Deus não existe hierarquia. Quando enviado a este mundo para realizar sua missão, Jesus não participou de nenhum corpo hierárquico e corrigiu seus discípulos quando queriam ser senhores ao invés de servidores da comunidade (cf. Mc 10, 43).

Muitos católicos praticam um excesso de veneração em relação aos hierarcas da Igreja, e isto acontece porque há uma idealização da figura do padre, do bispo e do Papa; tal idealização chega ao absurdo da cegueira em relação à realidade. Estes católicos, vítimas do mal da idealização de pessoas, se escandalizam facilmente diante dos contratestemunhos cometidos por membros da hierarquia. Além disso, compõem o número da maioria que deixa a Igreja e procura outras denominações religiosas pensando que nestas não vão encontrar escândalos.

Os que se posicionam de forma crítica em relação à Igreja costumam ser acusados de não terem amor à Igreja. Os que não aceitam as análises dos críticos acham que é pecado criticar a Igreja. Trata-se de um amor destituído de crítica. Os que condenam os críticos certamente não se dão bem com Jesus de Nazaré, que criticou a religião de seu tempo. Jesus não concordava com certas práticas religiosas e com algumas leis do Judaísmo e procurou corrigi-las.

Entre os estudiosos se encontram os teólogos da libertação, que no interior da Igreja nunca foram vistos com bons olhos; são acusados de não terem amor à Igreja, simplesmente porque não aceitam as diversas contradições nas quais está mergulhada a hierarquia. Os teólogos da libertação anunciam o Evangelho de Jesus que é o Evangelho da vida e da liberdade. Portanto, acreditam e lutam por uma Igreja essencialmente missionária, que se empenhe na defesa e promoção da vida e da liberdade dos seres humanos.

Fechar os olhos diante dos pecados da Igreja e se recusar a aceitar a Igreja Povo de Deus é ir contra as orientações essenciais do Evangelho de Jesus. O desejo de Jesus é o mesmo de seu Pai: que o povo de Deus viva com dignidade na fé, na esperança e no amor. Libertando-se do mal da condenação, a Igreja deve ser instrumento de libertação do gênero humano: esta é sua missão fundamental.

Criticar a Igreja quando ela se desvia de sua missão não consiste em pecado algum, mas é gesto de amor e serviço. A crítica lúcida e coerente, pautada na verdade e na liberdade, não visa à destruição da Igreja, mas quer ser um alerta à mesma, a fim de que possa se colocar a serviço do Reino de Deus, pois é para isto que Deus a chama, insistentemente. As críticas dos críticos da Igreja merecem uma leitura atenta e sem preconceitos, pois em muitas delas há muita profecia, voz do Espírito do Senhor que aponta para o verdadeiro caminho.

Tiago de França

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A devoção aos santos e o problema do devocionismo


           O tema da devoção aos santos e santas e o problema do devocionismo são questões pertinentes e atuais, que merecem nossa atenção. Trata-se de uma reflexão direcionada para cristãos católicos, principalmente os mais tradicionais. Vamos tratar da temática a partir de algumas afirmações: 1) Os santos e santas não realizam milagres, portanto, não interferem arbitrariamente nas realidades humanas; 2) A devoção aos santos e santas não é uma obrigação; 3) A diferença entre devoção e devocionismo; 4) Devocionismo versus Evangelho; 5) Jesus de Nazaré é o centro da fé cristã, a fonte e o modelo de santidade.

            Os santos e santas não realizam milagres, portanto, não interferem arbitrariamente nas realidades humanas. A catequese tradicional não dar conta de ensinar e convencer os católicos de que os santos, incluindo Maria, a mãe de Jesus, não realizam milagres. Por isso, é comum encontrarmos pessoas afirmando que tal santo é poderoso, tal imagem (retrato, escultura) é milagrosa e tudo o que se pede à Maria se consegue com sua intercessão. Na verdade, é Deus a fonte de todas as bênçãos e graças necessárias ao ser humano para viver dignamente neste mundo.

            Não há santo poderoso, nem imagem milagrosa. Somente Deus é o Criador de todas as coisas e dispensador de todas as bênçãos. Afirmar que os santos são seres espirituais constituídos de poder para resolver os problemas humanos é colocá-los no lugar ou igualá-los a Deus. E este Deus, a quem adoramos e temos como o tudo de nossa vida, não age segundo os interesses e caprichos humanos.

O Deus e Pai de Jesus é o Deus da vida e da liberdade, que acompanha fiel e amorosamente o ser humano no caminho da vida e o conduz à vida plena. Este Deus não se deixa manipular pelos desejos e maquinações humanas. Ele concedeu liberdade ao ser humano, criado à sua imagem e semelhança e respeita esta liberdade concedida, mesmo assistindo ao abuso que o ser humano faz desta liberdade.

            Facilmente assistimos às tentativas de manipulação da vontade divina. Em todas as Igrejas cristãs isto acontece: Deus é invocado e “forçado” a atender certos pedidos. Procura-se subordinar Deus à vontade humana. As pessoas acreditam num Deus todo-poderoso que tem a obrigação de socorrê-las em suas aflições; desconhece-se a vontade divina e a trata com total indiferença.

            A devoção aos santos e santas não é uma obrigação. Muitos devotos e devotas ignoram os católicos que não têm nenhuma devoção. Há pessoas que não sentem falta de devoção alguma para viver a fé cristã. Algumas destas se perguntam se realmente são católicas. Se a devoção à Maria e aos santos constituísse o centro da fé e da espiritualidade cristãs, de fato, os que não possuem devoção alguma estariam em falta com sua fé.

Portanto, afirmar que todos os católicos são obrigados à devoção é um erro grave, pois exclui muitas pessoas que se recusam a tais devoções porque não encontram sentido nas mesmas, ou simplesmente porque compreendem que não necessitam delas. O ideal é que haja unidade entre os que são devotos e os que não o são.

            A diferença entre devoção e devocionismo. De modo geral, as pessoas veneram os santos e santas sem conhecer sua história e sem uma noção clara do que seja santidade. Quando questionada, a maioria responde que o santo e a santa é aquela pessoa que existe em função da intercessão, que está diante de Deus para interceder pelas necessidades materiais e espirituais do povo de Deus. Sem negar o papel da intercessão, os santos não estão em função da mesma; ou seja, a intercessão não expressa fundamentalmente o significado da comunhão dos santos. Afirmar o contrário é um equívoco comumente cometido devido à ausência de uma sólida formação que aprofunde tal realidade.

            O erro chega ao ponto de as pessoas fazerem uma seleção dos santos, ou seja, para cada tipo de problema há um santo: para quem está endividado, perseguido, doente, enfrentando problemas amorosos, para quem deseja se casar, para as causas impossíveis etc. Um exemplo para ilustrar: O Pe. Robson, propagador da devoção ao Divino Pai eterno, em seu programa de TV fala abertamente que as pessoas que fizerem a novena ao Divino Pai eterno terão seus problemas resolvidos... Ele abençoa a água e os devotos e os convida a se associarem à obra da construção do novo Santuário, que custará algumas dezenas de milhões de reais.

            Ao canonizar alguém, a Igreja está reconhecendo a vida virtuosa deste alguém; e a vida virtuosa consiste no seguimento a Jesus de Nazaré. Os santos e santas de Deus foram e são pessoas que se decidem por um seguimento mais radical a Cristo, pessoas que transformaram e transformam suas vidas em serviço, doação, solidariedade para com o próximo por amor a Deus; cristãos que escutaram o chamado divino ao amor exigente e responderam com generosidade e gratuidade. Este amor lança-os para a missão de anunciar ao mundo a Boa Notícia do Reino de Deus.

            A devoção aos santos perde seu sentido quando se desconsidera este aspecto fundamental que fala do significado da santidade. Neste sentido, os santos deixam de ser meros “pedintes” de milagres junto a Deus para serem modelos de seguidores de Jesus de Nazaré, que inspiram outras pessoas a se colocarem no caminho da santidade. O devocionismo só visa milagres e durante toda a história da Igreja também serviu para juntar multidões em romarias a santuários; romarias que arrecadam muito dinheiro que tem pouca ou nenhuma destinação à caridade para com os pobres.

Outro grande mal do devocionismo é o deslocamento da pessoa de Jesus de Nazaré do centro da fé cristã. Em outras palavras, acentua-se demais Maria e os santos em detrimento de Jesus de Nazaré. Eis a desculpa de um padre quando questionado a este respeito: “O povo sabe que Jesus é o centro de nossa fé, por isso, não é preciso está falando não. O povo gosta mesmo é de Nossa Senhora e sabe que ela conduz a Jesus”. No devocionismo, Maria e os santos possuem poderes em si mesmos para ajudar as pessoas a resolverem seus problemas.

Devocionismo versus Evangelho. Para quem deseja milagres, o Evangelho de Jesus tem pouca ou nenhuma importância. Isto acontece porque no centro do Evangelho está Jesus e não os santos. Nos grandes santuários a pregação do Evangelho tem pouco espaço, pois, às vezes, excede-se no acento aos santos. O maximalismo é característica do devocionismo, marcado pelos excessos.

Exemplos de expressões exageradas que violam a verdadeira devoção: “Tudo por Jesus, nada sem Maria! Só se chega a Jesus por meio de Maria! Quem ama Jesus tem que amar Maria! Maria é a medianeira de todas as graças! Depois de Jesus, Maria é a santa mais poderosa! Jesus concede tudo o que sua Mãe pede! Há o Reino de Jesus e o de Maria!” Estas e tantas outras expressões são ditas sem problema algum pela maioria dos católicos. Evangelicamente, todas são contrárias à genuína fé cristã.

Jesus de Nazaré é o centro da fé cristã, a fonte e o modelo de santidade. Jesus convida a seus discípulos a serem santos e santas no amor de Deus para a vida do mundo. O chamado é para todos, indistintamente. O mundo atual carece de pessoas que testemunhem a ressurreição de Cristo Jesus. A Igreja precisa mais de cristãos que se arrisquem em seguir Jesus do que daqueles que pautam sua fé em práticas religiosas devocionais. Testemunhar Jesus está muito além das devoções e demais práticas religiosas.

Ele está no núcleo da fé e isso precisa ser recuperado no cotidiano da vida da Igreja. Recuperar o núcleo da fé cristã significa colocar o Reino de Deus no centro da pregação e da vida eclesial. É muito fácil ser devoto ou devota de um santo ou santa, participar de romarias, cumprir com promessas feitas aos santos; o difícil é assumir o seguimento de Jesus de Nazaré até às últimas consequências... E é justamente isso que o momento eclesial exige e necessita.

Tiago de França

sábado, 21 de julho de 2012

O olhar misericordioso de Jesus de Nazaré


“Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6, 34).

            O texto proposto para reflexão na Liturgia da Palavra das celebrações deste XVI Domingo Comum é o de Marcos 6, 30 – 34. Penso que é uma palavra dirigida mais aos pastores do povo de Deus do que ao próprio povo. No texto do domingo anterior, Jesus enviou seus discípulos em missão; no de hoje, eles retornam da missão e contam a Jesus tudo o que haviam feito e ensinado. Estes dois últimos verbos são reveladores: na missão, o missionário age e ensina.

É verdade que ensinar consiste numa ação, mas além do ensino há outras ações; no caso dos discípulos de Jesus, além de ensinar, eles curavam os doentes ungindo-os com o óleo e expulsavam os demônios. Tratava-se de uma atividade missionária que visava à libertação integral do ser humano.

            A Igreja é chamada a fazer o mesmo: fazer e ensinar. Fazer o bem às pessoas, especialmente às multidões desassistidas e exploradas. É preciso cuidar das pessoas. O cuidado exige presença, proximidade, atenção e, mais do que isso, é necessário tocar o corpo do outro. Jesus tocava o corpo das pessoas, impondo-lhes as mãos. A imposição das mãos é um gesto libertador.

O corpo é a expressão viva da pessoa, é sua manifestação no mundo. As pessoas sentem o sofrimento no corpo sofrido, machucado, explorado, desumanizado. Ao tocar o corpo das pessoas, Jesus conhecia bem o seu sofrimento, suas dores e angústias. Ele não tinha medo do corpo adoentado do outro, nem estava preocupado com as leis que proibiam qualquer aproximação ou toque nos corpos doentes e sem vida das pessoas.

            Neste sentido, a dignidade humana está ligada ao fato de que estamos bem a partir do bem-estar do corpo e da mente. Isto é ter saúde: é sentir-se bem, em harmonia consigo mesmo, com o corpo do outro e com o universo.

Jesus não conseguia sentir-se bem, nem viver em paz presenciando uma multidão de pessoas doentes e perturbadas por diversos tipos de males. Por isso, dedicou-se a acolher e curar as pessoas, libertando-as das forças da morte, que as arrastava para baixo e as desesperava. Estas forças não eram sobrenaturais, mas reais: eram as diversas formas de exploração que existiam na época. Jesus entendia muito bem que o povo não poderia ser feliz, nem cumprir ao conjunto das leis em meio à exploração a que estava submetido. E sabia também que a vontade divina era a vida de seu povo.

            Estas multidões aflitas de que fala o texto continuam presentes no mundo: há milhões de pessoas enfermas, passando fome, ameaçadas, perseguidas, violentadas, desrespeitadas, mutiladas, desempregadas, drogadas, desesperadas, desfiguradas... O capitalismo selvagem produz inúmeras formas de exclusão social e os tipos de morte têm sido cada vez mais cruéis.

As notícias que a mídia transmite violentamente e em tempo real passa a impressão de que estamos chegando ao fim do mundo, dada a crueldade das circunstâncias. Diante disso, surge a pergunta: Qual tem sido a posição da Igreja? O que ela tem feito, concretamente, para curar o ser humano envolvido nestas realidades gritantes? É verdade que há muitas iniciativas em prol destes aflitos, mas é preciso muito mais.

Ao falar das multidões que eram como ovelhas sem pastor, o texto suscita uma indagação: O que estavam fazendo os pastores daquela época, as autoridades religiosas da religião judaica? Em primeiro lugar, estavam cuidando da própria vida, preocupadas com seu próprio bem-estar. Em todos os tempos e lugares, os religiosos sempre caíram nesta tentação: viver em função de si mesmos. Quando isto acontece o povo ficar jogado à mercê da própria sorte.

O que dizer às autoridades religiosas que se utilizam da religião em benefício próprio? Não é pequeno o número dos que se aproveitam do ministério a eles confiado pela Igreja para se beneficiarem, obtendo dinheiro, poder e prestígio. Os contratestemunhos se multiplicam no interior da Igreja e a situação da mesma se agrava cada vez mais. A mediocridade e as más intenções estão presentes na vida de muitos de seus hierarcas. Isto inviabiliza a opção pelos pobres por parte da Igreja. Somente despojando-se da sede pelo poder, dinheiro e prestígio é possível optar pelos que não tem vez nem voz na sociedade.

O texto mostra a ação de Jesus: viu, teve compaixão e começou a ensinar. Para ver é preciso sair, encontrar-se com as pessoas, conviver com elas, ir até onde se encontram. Sair é atitude para quem não sofre do mal do egoísmo. Este mal encastela as pessoas em si mesmas, impedindo-as de serem para os outros. Justamente porque viu, Jesus teve compaixão. Diante da numerosa multidão sedente e aflita, Jesus a acolhe e socorre.

O Concílio Vaticano II pensou uma Igreja que deve sair de si mesma em direção ao mundo, uma Igreja que não tem medo do mundo. Sair sem medo significa não somente estar disposta ao serviço, mas também a acolher o que de bom o mundo tem para contribuir. Neste sentido, o mundo deixou de ser obra do demônio para ser o lugar da edificação do Reino de Deus. A Igreja está no mundo para o serviço do mundo. É impossível evangelizar e edificar o Reino de Deus condenando e se distanciando do mundo. As atitudes da Igreja devem ser as mesmas de Jesus: acolher, compadecer-se, ir ao encontro e ajudar na libertação integral do ser humano. Tais atitudes constituem a Igreja missionária de que o mundo tanto precisa.

Tiago de França

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A amizade: amor e gratuidade


“A amizade é um amor que nunca morre” (Mario Quintana).

            Por ocasião do Dia do Amigo (20 de julho) e inspirado neste belíssimo pensamento do poeta das coisas simples, quero discorrer sobre o significado da amizade na vida dos seres humanos. Há muito que se falar sobre a amizade. Há uma infinidade de textos dos mais variados estilos. Por isso, para não repetir o que outros escreveram, irei escrever brevemente sobre três características do que denomino uma verdadeira amizade. Antes, é preciso afirmar algo simples, que parece não ter novidade: Amizade é coisa de amigos, de pessoas que se querem bem. Portanto, só é amigo aquele que possui esse querer bem para com o outro. Passemos às características.

            Verdade. Só há amizade autêntica onde há verdade. Um amigo não se recusa a dizer a verdade para o bem do outro. Somente dos verdadeiros amigos se espera a verdade, mesmo que esta seja, a princípio, inaceitável e dolorosa. O amigo sabe que a mentira é causa de confusão e ilusão, é tirar do outro a oportunidade de encontrar-se com a liberdade. Esta só existe a partir e em função da verdade. Não dura a amizade que tem a verdade como obstáculo. Neste caso, a falsidade ocupa o lugar da verdade.

            Liberdade. Ninguém está obrigado a ser amigo, portanto, a amizade nasce espontânea e livremente; não é forçada, é experiência gratuita. A sujeição da vontade do outro também se opõe à liberdade. O amigo é aquele que se esforça para que o outro seja cada vez mais livre. Neste sentido, o apego é outro mal que deve ser evitado. O apego é aquela vontade de possuir o outro para si, tirando-lhe a oportunidade de construir e viver outras amizades. A posse não está para pessoas, mas para coisas e até estas devem ser possuídas sem apegos. A liberdade que constitui a amizade não admite posse, apego e sujeição da vontade do outro.

            Amor. Os amigos são pessoas que se amam. A amizade é uma das manifestações mais belas do amor. É o lugar do ágape, do amor que se manifesta na solidariedade e no cuidado com o outro. O amigo é aquele que se preocupa com o bem-estar do outro e mesmo não podendo ajudar com uma palavra sequer, mas aparece para expressar apoio e comunhão. O amor é a essência da amizade, é aquilo que lhe é mais profundo e fundamental. Os verdadeiros amigos sabem que se amam e sabem também que isto acontece na gratuidade e reciprocidade. O sentido último da amizade está no amor. Se alguém nos perguntar pela razão maior pela qual amamos um amigo podemos seguramente afirmar que é por causa do amor.

            É por causa destes três valores imprescindíveis que concordo plenamente com o pensamento do poeta Mario Quintana. De fato, a amizade é um amor que nunca morre. Para quem professa a fé cristã, Jesus é o exemplo por excelência de ser humano que soube ser amigo das pessoas. Ele era amigo de seus discípulos. E nós, que somos seus discípulos, somos chamados a sermos seus amigos, sermos pessoas de sua intimidade. Jesus abre o espaço de sua liberdade para sermos seus amigos na verdade, na liberdade e no amor. Portanto, numa constante renúncia da mentira, do apego e da indiferença. Estes três contra-valores destroem a amizade e nos induzem à inimizade.   

            O mundo padece pela falta de verdadeiras amizades entre as pessoas, que estão se deixando levar cada vez mais pelas inimizades. Preservemos e cultivemos, pois, autênticas amizades para que a vida se torne mais feliz e o mundo mais habitável.

Feliz Dia do Amigo!

Tiago de França

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A constante evasão dos fiéis da Igreja Católica


          É fato notório que a Igreja Católica tem perdido progressivamente um elevado número de seus adeptos. O censo de 2010 o demonstra clara e inquestionavelmente. Os estudiosos da religião buscam compreender tal fenômeno e levantam várias hipóteses que tentam explicar o que está acontecendo, mas a complexidade da situação torna tais hipóteses pouco eficientes para um pleno entendimento. Isto não significa que as análises sociológicas e outras sejam desnecessárias, pelo contrário, elas ajudam no enfrentamento do problema, explicitando-o da maneira mais pormenorizada possível.

            Analisar a religião é algo complexo porque envolve duas realidades transcendentais do ser humano: a fé e a subjetividade. Nenhuma ciência consegue abarcar plenamente tais realidades, pois são complexas e dotadas de constantes transformações. A fé não é um dado pronto e acabado, mas um dom gratuito de Deus para ser vivido no contexto histórico de cada pessoa; não é um mero crer, mas um jeito de ser no mundo e de relacionar-se com o totalmente Outro. A subjetividade é uma realidade de cada pessoa na sua relação com o próximo, com o mundo e com o universo. Penso que estas questões precedem os números do censo e devem ser consideradas.

            Antes de morrer, o teólogo belga José Comblin fez uma breve abordagem sobre a diferença que há entre religião e evangelho. Resumidamente, podemos sintetizar esta diferença em três sentenças: 1) Religião e evangelho são duas coisas distintas, jamais deveriam se confundir; 2) Jesus de Nazaré não foi enviado para fundar uma religião no mundo, mas para iniciar um caminho, o caminho que conduz ao Reino de Deus; 3) O Reino de Deus está no centro de seu Evangelho e para a religião ser verdadeiramente cristã precisa compreender, aceitar e anunciar este Evangelho ao mundo. Há outros aspectos relevantes na reflexão teológica de J. Comblin que demonstram a eficácia e a ineficácia da religião na vida humana e sua inserção no mundo.

            A reflexão de J. Comblin nos ajuda a entender os fracassos da religião enquanto corpo institucional explicitado na existência das Igrejas cristãs. Nestas se vive a fé religiosa, caracterizada pelas diversas crenças, que podem e devem mudar ao longo do tempo. Um dos problemas que estão na base da explicação do fracasso de muitas experiências religiosas está justamente na tentativa de enquadramento que as Igrejas realizam ao receberem os fiéis em seus estabelecimentos. A mulher e o homem pós-modernos têm verdadeira aversão a toda espécie de enquadramento.

Considerando a progressiva evasão de fiéis da Igreja convido o leitor a olhar tal situação a partir de três razões que julgo imprescindíveis, a saber: 1) Não basta reforçar e explicitar a doutrina; 2) Manter-se atualizada em um processo contínuo de revisão e 3) Voltar corajosa, honesta e decididamente ao Evangelho de Jesus e à experiência da Igreja primitiva.

            Não basta reforçar e explicitar a doutrina. O reforço e explicitação da doutrina são ações necessárias na vida da Igreja, mas não resolvem o problema da evasão de fiéis. A maioria destes nunca compreendeu a doutrina da Igreja, que sempre se mostrou complexa, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto do da linguagem.

Basta ler o Catecismo da Igreja Católica para perceber o quanto a doutrina da Igreja precisa ser reelaborada numa linguagem mais acessível e prática. As pessoas, de modo geral, não entendem nada! Aqui surge uma indagação no mínimo curiosa: Como pode um fiel professar sua fé religiosa sem entender as crenças que julga possuir? É incalculável o número dos que se encontram nesta conflituosa situação. A verdade é que não é a doutrina que consegue manter os fiéis na Igreja. O que não é compreendido não é assimilado, portanto, não convence nem segura ninguém.

            Manter-se atualizada em um processo contínuo de revisão. Rever acertos e equívocos é uma necessidade inerente à condição humana e ao desenvolvimento saudável de toda instituição. No decorrer da história, os concílios são os encontros dos Bispos junto com o Papa para uma revisão da caminhada da Igreja.

Neste ano, comemoram-se os 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Neste Concílio muitas coisas foram revisadas e pensadas, mas sua aplicação na vida da Igreja continua sendo um desafio que intriga a muitos: uns desejam o retorno da Igreja ao estilo tridentino; outros, porém, se aplicam a colocar em prática as orientações do Vaticano II. O peso das tradições e das estruturas são obstáculos para que a Igreja se mantenha atualizada. Por mais aversão que se tenha às palavras mudança e transformação, a Igreja precisa se convencer de que é inadiável a aplicação das resoluções do Vaticano II; do contrário, não há conversão eclesial possível.

Para uma verdadeira revisão da caminhada são necessários sentimentos e atitudes alicerçadas na humildade, na abertura e diálogo com o mundo e com outros saberes além dos saberes filosófico e teológico. Humildade para reconhecer as fraquezas, os equívocos e crimes, e para admitir também que, às vezes, não se sabe bem para onde ir. Quem conhece a história da Igreja sabe que em muitos momentos ela se mostrou perdida no seu caminhar, sem saber com clareza para onde estava caminhando.

Abertura e diálogo com a mulher, o homem, a ciência e o progresso pós-modernos. Não adianta alimentar a ilusão de que as pessoas estão atentas aos discursos e documentos do Papa, às orientações e decretos dos Bispos e às normas eclesiásticas. A realidade mostra que até os católicos mais praticantes se mostram alheios a tudo isso. Como dialogar com as pessoas que estão fora do alcance das práticas religiosas? São discursos, documentos, orientações, decretos e normas que tais pessoas procuram? Não estamos ignorando a necessidade de tais coisas, só enfatizando que as mesmas não podem ser consideradas o essencial na vida da Igreja.

Voltar-se corajosa, honesta e decididamente ao Evangelho de Jesus e à experiência da Igreja primitiva. Trabalhar a formação dos leigos, aumentar o número de padres, acolher melhor as pessoas, investir no catolicismo midiático e devocional, promover grandes eventos de massa, apelar para a consciência das pessoas em vista da construção da identidade católica etc. Estes e outros recursos estão sendo efetivados pela Igreja tendo como objetivo maior conter a interminável evasão de fiéis. Um exemplo disso é a Jornada Mundial da Juventude, que será realizada no Rio de Janeiro, em 2013. Será uma tentativa de conscientizar os jovens a se sentirem Igreja. Penso que o encontro com o Papa não conseguirá realizar tal intento. Quais os frutos das jornadas mundiais da juventude realizadas até então?...

A Igreja precisa ousar voltar ao Evangelho de Jesus e, assim, redescobrir a essência de sua missão no mundo. Somente assim haverá verdadeira conversão eclesial. Para ser instrumento de salvação no meio do mundo a Igreja precisa reencontrar-se com o Cristo revelador do Pai e inaugurador do Reino, que comprometido com os pobres e oprimidos foi fiel até as últimas consequências. A experiência da Igreja primitiva é a da Igreja profética, que se opondo aos poderosos deste mundo anunciava sem medo a Boa Nova do Reino de Deus. Hoje, torna-se urgentemente necessário recuperar a profecia para que surjam uma Igreja mais aberta ao novo que o Espírito faz surgir e um outro mundo possível.

Falar da identidade da Igreja é falar de missionariedade e profecia. Não se constrói verdadeira identidade voltando-se ao passado e procurando manter aquilo que não mais corresponde aos sinais dos tempos de hoje. A realidade mostra claramente que uma Igreja que tende a voltar-se para o passado fecha-se cada vez mais ao futuro. Olhar, estudar e atualizar os grandes feitos do passado, sem dúvida alguma, é algo necessário; mas ressuscitar um modelo de Igreja que não corresponde às exigências do tempo presente é correr o risco de se cair no descrédito. O testemunho missionário e profético atrai as pessoas e constrói um mundo mais fraterno e uma Igreja mais humana, mais próxima das pessoas.

Tiago de França

sábado, 14 de julho de 2012

O missionário e a missão


“Jesus chamou os doze e começou a enviá-los dois a dois” (Mc 6, 7).

            Houve uma época em que se pensava que Deus chamava algumas pessoas para exercer a missão de anunciar o Evangelho de Jesus. Até o Concílio Vaticano II se pensava assim: a hierarquia era a Igreja, responsável pelo anúncio da Boa Nova. Esta visão ficou impregnada na mente dos católicos. Desde o Concílio até o momento, a Igreja tenta convencer a todos que todo batizado é missionário e chamado à santidade. A missão e a santidade são realidades comuns a todo cristão, a todo aquele que foi batizado.

            O processo de evangelização até o Concílio foi tão fortemente centrado na hierarquia que as pessoas têm dificuldades de compreender, assimilar e colocar em prática o chamado à missão e à santidade. Infelizmente, analisando a Igreja pós-Vaticano II se percebe claramente que os católicos ainda não se sentem Igreja. O Concílio disse: somos Igreja para o mundo, somos missionários da Boa Nova; mas a maioria das pessoas ao escutar a palavra Igreja pensa logo na hierarquia. Negar esta verdade seria ilusão, puro engano.

            Não basta convencer as pessoas de que elas são Igreja, mas se perguntar se há possibilidades reais para que todos possam responder, verdadeira e coerentemente, à vocação eclesial. Falar de possibilidades reais significa perguntar-se pelo lugar da vocação laical na vida da Igreja. Os leigos são, de fato, protagonistas da missão? O que anda desestimulando e impedindo a ação dos leigos na vida eclesial?  Por que há membros na hierarquia que têm medo do protagonismo laical? Pode haver verdadeira Igreja sem a participação consciente e madura dos leigos? Penso que seja necessário pensar estas questões.

            Pensar estas questões é enfrentar um grave problema da vida interna da Igreja atual: a figura do padre está voltando ao centro das atenções. Isto é grave porque os leigos e o próprio Evangelho de Cristo ficam esquecidos e/ou são manipulados. Quando na comunidade eclesial o padre se coloca no centro, quando é o que manda e administra, os leigos se transformam em mão de obra barata. Os leigos são os operários e os padres os patrões. Isto é perceptível nas falas de alguns leigos em diversas comunidades da Igreja: “Aqui a gente só faz o que o padre quer. Ele é quem estudou, então sabe o melhor para nós. E nem adianta questionar, ele sempre tem uma explicação que nos convence de que a ideia dele está mais correta e está mais de acordo com a vontade de Deus”. Isto escutei de uma líder comunitária.

            Analisemos a gravidade da fala dessa líder. Fazer somente o que o padre quer mostra que na comunidade os leigos não têm vontade livre, a vontade está subordinada ao querer do padre. Neste sentido, o padre não é o servidor, mas a autoridade suprema. O fato de ter estudado Filosofia e Teologia confere ao padre um cabedal de conhecimentos que poderá lhe ser útil na missão. Muitos leigos entendem que tais conhecimentos adquiridos são verdades inquestionáveis, oriundas de quem entende das coisas divinas e, portanto, precisam ser aceitas sem maiores questionamentos. A figura do padre em si mesma ainda é tida como aquele que está mais próximo de Deus do que as demais pessoas.

            O modelo de Igreja pensado no Concílio Vaticano II é o da Igreja Povo de Deus. Trata-se de um modo de ser Igreja pautado na comunhão e na participação. Estas não existem onde não há pastores que se coloquem a serviço das pessoas. O espírito de comunhão e participação é contrário à prática da centralização do poder. Poder centralizado é um desserviço à comunidade, uma falta grave de caridade. Não há comunhão onde há mandatários e subalternos. Estes existem no mundo capitalista dominado pela lógica do ter e do poder. A lógica do Reino de Deus é a do amor, portanto, oposta a do mundo capitalista.

            O texto evangélico de Marcos 6, 7 – 13 fala do chamado e do envio dos doze discípulos de Cristo com algumas recomendações básicas: não levar nada para o caminho, andar de sandálias, não levar duas túnicas, ficar na casa onde for acolhido até a partida e quando não for acolhido e escutado, sacudir a poeira dos pés. Eles “partiram e pregaram que todos se convertessem. Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo”.

            Jesus chama e envia para a missão. Chama e envia a todos, indistintamente. Ninguém está excluído do chamado à missão. Jesus de Nazaré é o modelo de missionário por excelência: pobre, humilde, despojado, acolhedor e libertador. Sua mensagem é para a vida e a liberdade do ser humano. Vida e liberdade se encontram na centralidade do que ele denominou Reino de Deus. Portanto, o missionário é portador da mensagem de Cristo, que tem como conteúdos a vida e a liberdade humanas.

            A mensagem de Cristo é sempre atual porque o ser humano está ameaçado, agredido e desumanizado. Muita gente padece pela falta de liberdade. O sistema capitalista, que se torna cada vez mais sanguinário, tem ceifado inúmeras vidas em todo o mundo. Os missionários devem continuar expulsando os demônios que aprisionam a vida do povo de Deus: o demônio da cobiça, da sede do poder, da luxúria entre tantos outros. São inúmeros os corações e corpos feridos, que precisam ser ungidos com o óleo que conforta e restitui a saúde, o ânimo e a esperança de um futuro melhor.

            Deus enviou Jesus para ensinar as pessoas que o caminho da vida é o caminho da liberdade. A maior aventura que o ser humano pode arriscar-se a fazer é ousar amar sem medidas, pois é nesta aventura que se encontra a liberdade. As pessoas pensam que são felizes na aquisição e usufruto dos bens: pura ilusão! Há quem passe toda a vida a procura da felicidade trilhando este caminho sem sentido. Jesus ensinou que a liberdade é um jeito diferente de ser, jeito humilde e despojado, alicerçado no amor que gera e conduz à vida plena. Amor, vida e liberdade: eis a mensagem que constitui a Boa Notícia que todos os batizados são chamados a anunciar ao mundo.

Tiago de França

segunda-feira, 9 de julho de 2012

O profeta Jesus de Nazaré


“Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc 6, 4).

            O texto do evangelho de Marcos 6, 1 – 6 fala da ida de Jesus à Nazaré, sua terra natal. Antes de continuar lendo esta reflexão que se inicia, seria bom que o leitor tomasse o texto e o lesse, isto fará entender melhor as afirmações que serão feitas a seguir.

            Estando na sua terra natal, Jesus foi à sinagoga e começou a ensinar. Isto era um costume entre os judeus. Hoje, entre os cristãos católicos este costume não existe. Ninguém vai à missa e começa a ensinar, pois a pregação na missa está reservada aos ministros ordenados. A regra é clara: leigo pode pregar em outra ocasião; na missa só o diácono, o padre e o bispo. Estes pregam, os fiéis escutam.

            Quem escuta com atenção ao ir à missa as homilias que estão sendo feitas, salvo as exceções, tudo se resume num palavreado vazio, sem sentido algum. Fala-se de tudo, menos de Jesus. O Cristo que é apresentado não é o nascido em Nazaré. Uma vez a pregação sendo monopólio do ministro ordenado, os fiéis não tem outra saída senão escutar pacientemente. Os que não têm paciência, vão embora e não voltam mais. Quando a cidade possui mais de uma paróquia, muitas pessoas saem à procura de uma celebração na qual a homilia tenha conteúdo.

            Não é por falta de estudo teológico que os ministros ordenados deixam de fazer uma boa homilia. São vários os fatores que contribuem, dentre os quais se destacam: preguiça para preparar, falta de familiaridade com o texto bíblico, falta de tempo etc. Sabe-se que há muitos ministros que não gostam de ler a Bíblia, pregam a Palavra de acordo com aquilo que se recordam ter estudado no curso de teologia bíblica, no tempo de Seminário. Portanto, estão totalmente por fora das novas interpretações que estão sendo descobertas e feitas pelos estudiosos das Escrituras Sagradas.

            As pessoas que escutaram Jesus ficaram escandalizadas com o ensinamento dado por ele. Por que será que Jesus escandalizou as pessoas? Qual terá sido o conteúdo de sua mensagem? O texto fala que as pessoas se perguntaram pela sua sabedoria e pelos milagres realizados por ele. De fato, Jesus tinha algo de diferente em relação à pregação e à conduta dos doutores da lei e dos fariseus. Em outra ocasião, fala-se que ele pregava como quem tem autoridade.

Além da verdade contida no seu ensinamento e da liberdade com que ele falava à pessoas, o que escandalizou os conterrâneos de Jesus foi o fato de ele não fazer parte da classe sacerdotal de sua época. Em outras palavras, Jesus não era um doutor da lei nem exercia função religiosa no Templo. As pessoas não esperavam de um “leigo” tanta sabedoria e tantos sinais realizados. A sabedoria de Jesus tinha origem na sabedoria divina, que consistia em revelar aos pequenos o projeto de Deus (Reino).

Hoje, a Igreja é chamada a reconhecer que a sabedoria de Jesus se manifesta no cotidiano da vida dos pobres e não no estudo retórico e sistemático dos cursos de filosofia e teologia. É opção divina que somente os pobres podem ter acesso ao genuíno ensinamento de Jesus. Aqui se encontra a legitimidade da opção preferencial que a Igreja da América Latina tenta fazer pelos pobres.

Esta opção só se entende se reconhecermos o lugar histórico de Jesus: homem pobre nascido em Nazaré, trabalhador na carpintaria de José. Isto significa que este jovem carpinteiro, de origem humilde, escandalizou os seus conterrâneos. Um outro argumento que o texto coloca para explicar tal escândalo é “falta de fé” deles. As pessoas não valorizaram seu conterrâneo Jesus, não deram crédito à sua palavra. Até reconheceram sua sabedoria e seus grandes milagres, mas não compreenderam como é que um carpinteiro poderia ensinar e fazer tais coisas.

Diante da falta de fé de seus conterrâneos Jesus lhes diz: “Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares”. Com esta afirmação Jesus se reconhece como profeta. Em uma outra passagem o povo reconhece Jesus como um profeta enviado de Deus e ele aceita sem dificuldades porque de fato o era. A mensagem de Jesus contém anúncio e denúncia: anunciava o Reino de seu Pai e denunciava as injustiças cometidas pelas autoridades civis e religiosas de seu tempo.

A respeito do exercício da profecia no mundo e na Igreja é preciso considerar três questões: primeira, o profeta não fala de si mesmo nem para si mesmo; segunda, suas palavras e seus gestos lhe causam perseguição e morte; terceira, a conversão do mundo e da Igreja dependem do exercício da profecia. Estas três questões falam do significado do ser profeta em função do Reino de Deus, uma vez que sem a profecia não há como este Reino se estabelecer no mundo. Explicitemos, pois, brevemente cada uma das questões acima elencadas.

Sendo um enviado de Deus, o profeta não pode falar de si mesmo nem para si mesmo, mas é chamado a revelar ao mundo a vontade de Deus. Tal revelação se manifesta através da realidade que o profeta faz compreender por meio de sua palavra e de sua ação. Estas são, portanto, divinas, pois é Deus mesmo quem as inspira. O profeta não pode se recusar ao anúncio e a denúncia porque esta é a sua missão, não há como fugir dela.

Todo anúncio da verdade e toda denúncia das injustiças causam perseguição e morte. Por isso, como diz Leonardo Boff, “o profeta é aquele que não tem amor ao próprio pescoço”. É alguém sujeito à morte, que não tem medo e que leva a sua missão até as últimas consequências. Neste sentido, não se trata de morte comum, mas de martírio, que consiste em morrer por amor a Deus e a seu Reino.

A conversão acontece quando a pessoa se encontra com a verdade fundamental do ser humano: Jesus de Nazaré, a Boa Notícia do Pai. O profeta tem por missão levar as pessoas a se encontrarem com Jesus no contexto de suas vidas. A verdade é o momento teológico do encontro com Cristo, momento no qual o ser humano encontra-se consigo mesmo e torna-se conhecedor de suas virtudes e de seus limites. É um encontro que não somente revela, mas impulsiona à missão.

O cenário eclesial atual mostra claramente que a Igreja necessita urgentemente de pessoas que tenha a coragem de fazer a experiência do encontro com Jesus, que revela e transforma a vida. Há uma excessiva ênfase nas práticas religiosas e no culto. Estes também podem ser lugares de encontro com Cristo, mas há outros mais importantes e necessários. Os profetas são estas pessoas que ousam se encontrar com Jesus no cotidiano conflituoso da existência humana. Fora deste encontro não existe profecia possível. A Igreja precisa dos profetas, pois eles chamam a atenção para uma maior fidelidade à sua missão no mundo.

Tiago de França