“O segredo mais
íntimo de Deus é a sua misericórdia”.
(SVP.
In: Coste XI, 341)
Jesus confiou aos seus discípulos o
anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus. No cotidiano da missão lhes ensinou a
ir aos mais pobres dentre os pobres. A opção de Jesus era pelos despossuídos,
excluídos, marginalizados. Isto porque estes só têm a Deus como refúgio e
proteção. Deus é a única riqueza dos pobres. Evangelizá-los significa clamar
por justiça, levar os poderosos deste mundo a enxergarem a verdade evangélica
de que Deus quer a vida de todos, deseja que todos possam viver dignamente:
ninguém deve morrer em decorrência da falta do necessário. O desejo de Deus é
que o ser humano tenha vida e a tenha em abundância: isto está na centralidade
da mensagem evangélica.
Ao longo da história, a Igreja foi
se esquecendo e marginalizando esta mensagem de salvação, optando pelos ricos:
adquiriu poder, prestígio e riqueza, muitas riquezas... Em relação aos pobres
não se viveu a virtude da justiça, mas a prática da esmola. Os pobres sempre
foram dignos somente de esmolas. Estas serviam como tentativa de amenizar a dor
da consciência, que sempre acusou a hierarquia em sua subserviência para com os
ricos e omissão para com os pobres. Pensava-se deste modo: é necessário ajudar
os pobres para ser salvo. Portanto, é preciso manter os pobres em seu estado de
decadência, pois eram objetos da caridade dos ricos piedosos que frequentavam
os sacramentos.
Ao longo da história Deus foi
acompanhando o lamento dos pobres em seus sofrimentos e chamou mulheres e
homens para socorrê-los em suas aflições. No séc. XVII apareceu São Vicente de
Paulo: homem de origem humilde, que depois de convertido, tornou-se presbítero
para os pobres. Tornando-se discípulo de Jesus de Nazaré descobriu nos pobres o
verdadeiro sentido de seu ministério: o amor a Deus e aos pobres. Empenhou todas
as suas energias e dedicação na evangelização dos pobres, através da pregação
da palavra de Deus e do socorro material aos abandonados.
Na oração e no serviço aos pobres
São Vicente de Paulo descobriu também o significado do chamado à santidade.
Para ele, a santidade passa necessariamente pelo amor incondicional ao próximo,
especialmente os pobres. Esta maneira de entender a santidade era uma novidade,
pois naquela época aquela era buscada no interior dos conventos e mosteiros, na
vida de clausura e de ascese.
São
Vicente de Paulo não encontrou Jesus de Nazaré na vida enclausurada, mas
abandonado nas ruas e povoados, sofrendo na pessoa dos pobres. Convidou padres,
mulheres e homens leigos para fazer a mesma coisa e os congregou em grupos de
servidores e servidoras dos pobres. Suas duas maiores fundações foram a
Congregação da Missão (Padres e Irmãos) e a Companhia das Filhas da Caridade. Ele
não estava sozinho na missão, mas acompanhado por um grande número de pessoas
dispostas a aliviar o sofrimento dos pobres e a evangelizá-los.
Recordar
o testemunho de São Vicente de Paulo na liturgia do dia 27 de setembro de cada
ano é importante, mas o mais importante é compreendê-lo no seu contexto e se
perguntar sobre o significado de seu testemunho para a Igreja de hoje. A grande
pergunta que o testemunho deste grande santo do séc. XVII faz à Igreja de hoje
é a seguinte: Onde estão os pobres? Seria
uma seríssima revisão de vida se toda a Família Vicentina e a Igreja se
fizessem honesta e sinceramente esta pergunta. Rever a caminhada é atitude de
poucos na Igreja.
Basta
sair pelas ruas e nas periferias das cidades, assim como nos pequenos povoados
que ainda restam para constatar o incontável número de pobres, dentre os quais
se encontram os que nada têm para viver. No mundo, são centenas de milhões os
que passam fome todos os dias. Há milhares de jovens pobres viciados em drogas
e sendo brutalmente assassinados dentro e fora do sistema carcerário
brasileiro. Há outras urgências que levam ao desespero muita gente: pessoas
desrespeitadas e agredidas em sua dignidade. O que a Igreja tem feito por este
povo? Como tem se manifestado a caridade evangélica profundamente caracterizada
pela promoção da justiça em relação aos pobres?...
A opção
pelos pobres, defendida explicitamente em Medellín, após o Vaticano II, foi a
grande oportunidade que a Igreja teve de tomar consciência de sua missão
fundamental no mundo. Na Igreja atual falar de opção pelos pobres é remeter-se
ao passado, pois se vigora na Igreja o neopentecostalismo: catolicismo marcado
pelo devocionismo, pelos excessos na liturgia, pelas construções de santuários,
pela midiatização da fé, pela volta de usos e costumes da Igreja pré-Vaticano
II e algumas esquisitices no comportamento de alguns católicos alienados e
tomados pela confusão. E o testemunho de São Vicente de Paulo, lá no séc. XVII,
grita sem cessar: Onde estão os pobres?...
Tiago de França