sexta-feira, 26 de outubro de 2012

50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II


O Espírito gera novidade

            Após a morte do Papa Pio XII, o colégio cardinalício se reuniu para eleger um sucessor. Não encontrando um candidato que pudesse estar à altura do recentemente falecido, elegeram um papa de transição, que quis ser chamado pelo nome João XXIII. Homem simples, conhecedor da história da Igreja, dado ao diálogo e de espírito aberto; no dia 25 de janeiro de 1959, surpreendeu o mundo ao anunciar a realização do Concílio Ecumênico Vaticano II.

            Com os olhos da fé, os teólogos abertos às mudanças urgentemente necessárias à Igreja viram no anúncio, na convocação e na realização do Vaticano II um sinal da ação amorosa de Deus. Assim como o profeta João Batista, o papa João XXIII foi enviado por Deus na hora oportuna para abrir as janelas da antiga Igreja Católica, para que nela se respirasse ares novos. O Espírito se utilizou de quem se esperava pouco. Ao longo da história da Igreja sempre foi assim: o movimento do Espírito vai sempre à contramão dos planos meramente humanos, que com insistência tenderam e tendem a barrar a ação deste mesmo Espírito.

O Concílio: entre a coragem e o medo

            A atitude do papa João XXIII, ao anunciar e convocar o Vaticano II foi corajosa. Não se trata de uma ideia que lhe surgiu do nada, mas de uma ação feliz e audaz de quem estava por dentro dos anseios de uma Igreja que clamava por mudanças. Ninguém suportava mais o fardo doutrinal e disciplinar do Concílio de Trento, ocorrido no séc. XVI. O mundo evoluiu e a Igreja parou no tempo. Sensível a esta evolução e ao clamor de leigos, padres, bispos e religiosos, João XXIII anunciou a possibilidade da mudança.

            Em 11 de outubro de 1962, se iniciou o Vaticano II; e em 8 de dezembro de 1965, se deu o seu encerramento. A leitura de seus documentos, assim como dos seus bastidores revelam muitos conflitos teológicos e ideológicos. Os conflitos entre os que queriam manter o modelo tridentino de Igreja, alicerçado na cristandade e os que desejavam uma Igreja mais aberta ao mundo moderno perduraram até o fim do Concílio. Hoje, estes conflitos se dão de outra forma.

            Os documentos oriundos do Concílio responderam coerentemente aos desafios da modernidade. Trata-se de um Concílio fiel a seu tempo. Inúmeros teólogos e bispos presentes fizeram valer o desejo do papa João XXIII: aggiornamento. O papa desejava atualizar a Igreja. Ele não aceitava mais que ela se enxergasse como sociedade perfeita no meio do mundo; também reprovava a indisposição para o diálogo e a insistência na condenação e demonização do mundo.

Fala-se em pós-modernidade e exige-se um novo aggiornamento

            A realização do Vaticano II pressupõe uma compreensão que toda a Igreja precisa ter: todas as realidades humanas são passíveis de erro e de atualização. Os textos conciliares possuem um espírito de atualização de cunho predominantemente pastoral. Este espírito não pode ser marginalizado, mas vigorosamente retomado com o intuito de se responder aos novos desafios que surgem.

            Historicamente, é visível a resistência que a Igreja sempre teve com a palavra transformação. Esta palavra sempre causou medo à Igreja. Há uma tendência explícita ao apego às tradições em detrimento do novo que o Espírito sempre suscitou no mundo e na Igreja. Essa resistência à atualização marcou a realização do Concílio, mas não conseguiu dominá-lo plenamente.

            Estamos diante de novos problemas e desafios que a pós-modernidade vai ocasionando (aborto, eutanásia, novas tecnologias, avanços científicos etc.) e que reclamam uma reflexão mais aberta por parte da Igreja, sem reducionismos, nem extremismos. Além destes, a vida interna da Igreja também reclama por novos rumos e novas mudanças, tais como: é preciso rever o lugar da mulher, a constituição hierárquica do ministério ordenado, a colegialidade episcopal, o uso dos métodos anticoncepcionais, o celibato obrigatório etc.

            Estas realidades não exigem respostas definitivas, pois a condição humana não comporta o definitivo. Este está para além do ser humano. As realidades terrenas e humanas exigem respostas atuais, que estejam em sintonia com os sinais dos tempos. As ciências disponibilizam ao homem os instrumentos necessários para que o mesmo encontre tais respostas atuais e condizentes.

O diálogo sincero e honesto com tais ciências permite que a Igreja ofereça sua parcela de contribuição, tornando-se ela mesma aquilo a que é chamada a ser: instrumento de salvação da humanidade. Portanto, com o espírito renovador do Vaticano II e no pleno diálogo com a pós-modernidade, renunciando ao medo e à ambiciosa pretensão de ser a dona da verdade, a Igreja poderá realizar a sua missão no mundo.

A Igreja diante de dois caminhos

            No Antigo Testamento das Escrituras Sagradas, Deus colocou o seu povo diante de dois caminhos: o que leva à vida e o que leva à morte (cf. Jr 21, 8). Colocar-se em um dos caminhos é participar de uma sorte inevitável: ou se vive, ou se morre. A vida da Igreja, enquanto instituição no meio do mundo, também depende de uma escolha semelhante: ou se entrega à ousadia de continuar caminhando rumo ao futuro, assumindo destemidamente a sua missão, ou ao medo e à omissão, voltando-se para o passado. Se esta última opção for escolhida, as futuras gerações conhecerão a instituição católica através dos museus e dos livros de história.

            Tudo o que é humano necessita, por natureza, de aperfeiçoamento. Nada do que o ser humano faz é perfeito e eterno. Tudo passa, somente Deus e seu amor permanecem para sempre. Deus é presente e futuro, é eternidade. Ele criou o ser humano para caminhar e a dinâmica do caminho é sempre rumo à eternidade. Não se caminha para a eternidade fugindo da dinâmica conflituosa da vida.

Jesus disse que somente os violentos alcançarão o Reino. Longe de apontar a violência como uma forma de se alcançar o Reino, o que Jesus quer dizer é que seu discípulo não pode se deixar acomodar-se a este mundo, mas procurar manter-se audaz e vigilante, trabalhando incansavelmente na construção do novo céu e da nova terra.

Os insatisfeitos com o Vaticano II procuram desmoralizá-lo e relativizá-lo, minando seu valor e sua eficácia na história. Desde papas até fiéis das comunidades, houve e há quem queira voltar ao passado, ao modelo tridentino de Igreja. O espírito tridentino, impregnado em muitas pessoas da Igreja, leva-as ao passado. É algo tão forte que há jovens desprovidos da mínima noção do que foi o Concílio de Trento, mas que concebem a Igreja e a própria fé a partir das resoluções do mesmo; resoluções que não respondem mais às exigências do homem pós-moderno.

A tendência de se voltar ao passado se manifesta mais explicitamente no campo litúrgico. Desde o papa Bento XVI até às bases da Igreja, percebe-se claramente a retomada de paramentos, costumes, devocionais, formas de oração, espírito excessivo de piedade aos santos e à Maria, entre outras manifestações litúrgicas e paralitúrgicas.

Na liturgia oficial insiste-se na restrita observância das rubricas e fórmulas canonicamente aprovadas. Tal observância engessa a liturgia e as celebrações perdem sua naturalidade e ganham mecanicidade. Assim, ao celebrarem, os ministros ordenados e leigos se preocupam mais com o cumprimento da observância das rubricas do que com a comunhão com Deus que o momento celebrativo é chamado a proporcionar. Os fiéis deixam de participar e passam a assistir às celebrações, como meros expectadores, conforme ocorria antes do Vaticano II.

O futuro da Igreja e a Igreja do futuro

            Recentemente, o teólogo suíço Hans Küng, homem de renomada produção teológica e coragem profética, publicou o livro A Igreja tem salvação? Trata-se de um olhar perspicaz sobre a situação da Igreja. A partir da leitura, podemos afirmar sem medo de nos equivocar que a situação atual da Igreja é complexa e grave.

            O teólogo belga José Comblin (in memoriam) morreu afirmando que a Igreja do futuro será constituída somente de leigos e que a hierarquia irá desaparecer. De fato, os jovens não se sentem mais motivados para serem ordenados na Igreja. Permanecer no seminário durante anos, estudando Filosofia e Teologia, tornou-se algo impensável. Não há pastoral vocacional que consiga reverter o atual quadro: seminários cada vez mais vazios e ordenações cada vez mais escassas.

            Particularmente, creio que o seguimento de Jesus acontece na liberdade dos filhos e filhas de Deus. A hierarquia também crê nesta verdade fundamental, mas a liberdade continua sendo um problema na vida da Igreja: agir com liberdade continua sendo algo perigoso. Os que detêm o poder na Igreja sempre tiveram medo das mulheres e homens que procuram seguir Jesus no caminho da liberdade. Tal medo gerou, gera e continuará gerando inúmeras perseguições.

            O futuro da Igreja foi anunciado pelo Vaticano II: a Igreja é Povo de Deus. Este povo, que marcha na história, jamais poderá ser dizimado, pois o Espírito está presente e atuante nele. O fim está para tudo aquilo que é meramente humano, que existe para fins humanos e que obstaculiza a realização do Reino de Deus. Por mais doloroso que seja, é preciso admitir que as obras humanas são finitas.

            Eis o que o Espírito, ao longo da história, sempre disse à Igreja: colocar-se no caminho de Jesus e perseverar até as últimas consequências. Este caminho é o da liberdade. O caminho da liberdade é o caminho do despojamento, do desapego, da humildade, da simplicidade, da mansidão, do amor e da justiça do Reino. Fora disso, tudo é confusão, omissão, desvio, corrupção, escândalo, exclusão e, portanto, obra sem futuro. A memória dos 50 anos do Vaticano II que neste ano estamos celebrando nos convida a nos colocarmos neste caminho, que é caminho de vida e de liberdade para todos.


Tiago de França 

sábado, 13 de outubro de 2012

Os ricos e o seguimento de Jesus


“Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!” (Mc 10, 21).

            O texto de Mc 10, 17 – 30 traz uma reflexão de grande importância para quem quer seguir a Jesus de Nazaré. Trata-se de uma exigência fundamental: despojar-se das riquezas para seguir Jesus. Ser materialmente rico é incompatível com o seguimento de Jesus. Em outras palavras, ou renuncia-se às riquezas, ou o seguimento a Jesus é impossível de se realizar. Há quem pense que esta conclusão é exagerada e que não é necessário despojar-se de nada para seguir Jesus. Muitos leem este texto relativizando o mal da riqueza. A partir do próprio texto e da realidade eclesial vamos meditar sobre o problema da riqueza e sua incompatibilidade com o seguimento de Jesus.

            O texto fala que alguém correu e se ajoelhou diante de Jesus e lhe fez a seguinte pergunta: Bom mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna? Antes de responder, Jesus afirma que somente Deus é bom. Esta observação deve ter deixado o homem pensativo. Em seguida, Jesus se refere aos mandamentos de Deus, aqueles que tratam das relações interpessoais: não matar, não roubar, não levantar falso testemunho, não prejudicar o próximo e honrar pai e mãe. Imediatamente, o homem respondeu que desde a juventude cumpria estes mandamentos.

            Se o diálogo de Jesus com o homem terminasse aqui, então os ricos com suas riquezas poderiam ser justificados diante de Deus, mas não é o que acontece. Só faltava uma coisa para o homem ter assegurada a participação na vida eterna: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me! Após estas palavras, o homem ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico. Aos discípulos, disse Jesus: Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!

            Os discípulos ficaram assustados com estas palavras e se perguntaram: Então, quem pode ser salvo? Jesus responde que para os homens isto é impossível, mas para Deus tudo é possível. Em seguida, disse Pedro a Jesus: Eis que nós deixamos tudo e te seguimos. Jesus, como resposta à fala de Pedro, assegura que serão recompensados já nesta vida todo aquele que tiver deixado tudo por causa dele e do evangelho. Os que perseverarem receberão no mundo futuro, a vida eterna.

            O que fazer para ganhar a vida eterna?

            A resposta é simples: Nada! A salvação oferecida por Deus por meio de Jesus é universal e gratuita. Não há nada a fazer, pois a vida eterna não se ganha, mas se alcança pela fé em Jesus. Ele nos faz participar da vida eterna por intermédio de sua graça. No uso de sua liberdade o ser humano pode recusar a salvação, como fez o homem rico que se encontrou com Jesus, ao optar pelas riquezas. Como as riquezas impedem o ser humano de participar do Reino de Deus?

            Há quem diga que as riquezas em si mesmas não implicam problema algum, mas o apego a elas. Na verdade, tanto a existência das riquezas quanto o apego a elas são um entrave para se alcançar a vida eterna (Reino de Deus). Entendemos as riquezas não no sentido dos bens disponíveis e necessários à vida humana, mas nos referimos aos bens concentrados nas mãos de poucos. Riquezas concentradas só geram miséria. Além disso, a maioria das pessoas se enriquece ilicitamente. Riquezas que tem origem nas diversas formas de corrupção são um gravíssimo pecado, são causa de muita exclusão e marginalização social.

            Portanto, afirmar que o pobre sofredor viverá tranquilamente no Reino de Deus junto daquele que o explorou durante esta vida é o mesmo que anular a justiça do Reino de Deus. Estamos afirmando que os ricos estão condenados? Não! Jesus disse que para Deus tudo é possível. A conversão dos ricos é possível, mas é preciso afirmar categoricamente que tal conversão exige necessariamente a partilha fraterna dos bens. O supérfluo é desnecessário.

            Alguns ricos piedosos tentam amenizar a própria consciência que os acusa incessantemente, fazendo doações às instituições religiosas e oferecendo ajudas pontuais às pessoas em dificuldade: são considerados ricos de “bom coração”. Na vida eclesial é muito comum encontrar estes ricos se disponibilizando a ajudar nas despesas da comunidade eclesial, e isto os tornam reconhecidos, valorizados e queridos. Outra finalidade é, utilizando-se destas contribuições, tentar manipular o verdadeiro sentido da caridade, que consiste na promoção da dignidade do outro.

            Na vida da Igreja, pastores e leigos são chamados ao seguimento de Jesus, portanto, a viverem despojados. O apego às riquezas é capaz de desviar a pessoa do caminho de Jesus porque onde há apego não há vivência do amor que se manifesta na verdadeira solidariedade para com o próximo. Quanto mais desapegada for a pessoa mais livre estará para seguir Jesus. Infelizmente, é perceptível a dificuldade da Igreja em lidar com o desapego aos bens, visto que seus pastores, salvo as exceções, possuem padrão de vida semelhante ao dos ricos. À luz do evangelho, o acúmulo de riquezas por parte de pastores da Igreja é um grave contratestemunho e um vergonhoso escândalo, verdadeiro entrave no processo de evangelização. 

Tiago de França

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O matrimônio e a vocação à santidade


“No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe!” (Mc 10, 6 – 9).

            No tempo de Jesus a cultura era marcada pelo patriarcalismo, no qual a figura do homem dominava; a mulher era submissa à vontade e aos caprichos do homem. Além disso, podia ser despedida, caso este não a quisesse mais (cf. Dt 24, 1). Neste contexto, toda mulher divorciada ficava abandonada, sem proteção alguma. Em Mc 10, 2 – 16, os fariseus, para colocar Jesus à prova, perguntam-lhe sobre a validade da carta de divórcio autorizada por Moisés. A partir da resposta de Jesus, que não se deixou levar pela provocação dos fariseus, mas aproveitou bem para recordar-lhes o mandamento de Deus a respeito do matrimônio, vamos meditar algumas questões que merecem nossa atenção.

            Desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Na criação, Deus fez o homem e a mulher: ambos, diante de Deus são iguais. Não deveria haver superioridade nem submissão, mas igualdade. Na família, infelizmente a mulher sempre foi considerada um ser inferior, portanto, responsável pelos serviços “inferiores”: o cuidado da casa. Confinada no interior da casa, a mulher não assumia o espaço público e quando o fazia era acompanhada do esposo. O modelo tradicional de família colocava a mulher no seu devido lugar, lugar que não era o dos homens. Ocupada nos afazeres domésticos, a mulher era sustentada pelo homem e como este detinha o dinheiro, tudo era conforme seu gosto. Servidora do homem em todos os sentidos, a mulher estava obrigada à obediência e ao respeito.

            No século passado, em plena abertura do Concílio Vaticano II, em outubro de 1962, o Papa João XXIII viu na emancipação da mulher um dos sinais dos tempos modernos. Esta emancipação não significa a submissão do homem à mulher, mas o reconhecimento da igualdade querida por Deus desde a criação. Deus não criou a mulher para ser escrava do homem, mas para ser companheira: ambos devem caminhar juntos em pé de igualdade para serem verdadeiramente felizes. Sem companheirismo não há felicidade possível no matrimônio. No respeito e na promoção das diferenças que caracterizam os gêneros masculino e feminino, o dado da pessoalidade deve ser considerado. Mulher e homem são pessoas e assim devem ser tratados.

            Deus os criou para serem uma só carne. Na criação, Deus viu que o homem estava sozinho. A solidão nunca fez bem ao ser humano e não é criação divina. Em todos os momentos da história da salvação, a família e a comunidade sempre estiveram presentes. A humanidade acontece e se desenvolve a partir da família e da comunidade. É aí também que acontece a felicidade do gênero humano. Criados por Deus para viverem a união matrimonial, mulher e homem devem fazer todo o esforço possível para construírem juntos uma vida feliz. Para isto, dentre os valores possíveis, alguns são fundamentais, a saber: o amor, a fé, a compreensão, a paciência, o respeito e a perseverança.

            Não há matrimônio sem amor. Portanto, o mesmo deixa de existir quando falta o amor. Aqui entra o desafio da indissolubilidade do matrimônio. Que sentido tem um casal continuar “unido” se não há amor? Deve continuar somente para atender à exigência da indissolubilidade matrimonial? Nenhuma instituição religiosa pode obrigar alguém a permanecer numa relação que já não tem o amor como o fundamento e, portanto, o sentido de sua existência. Este amor a que nos referimos é sinônimo de doação recíproca, do querer bem ao outro, sem apegos nem submissão, pois o verdadeiro amor liberta o ser humano, o realiza e o torna feliz.

            A no Deus que ama incondicionalmente o ser humano é força e ânimo na caminhada matrimonial. Com a ajuda da graça divina é possível superar as dificuldades que vão surgindo no caminho. Por meio da fé, o Deus que constituiu a união entre a mulher e o homem eleva esta mesma união à perfeição no seu amor. A difícil situação atual do matrimônio mostra claramente que os casais precisam ser cada vez mais pessoas de fé, que confiem mais em Deus e esta confiança os manterá sempre unidos, principalmente em meio às tribulações da vida.

            Não há convivência possível sem compreensão mútua. Onde não há compreensão há intolerância e violência. A incompreensão tira do outro o direito de ser visto e considerado na sua real condição de ser limitado, finito, frágil, sujeito a falhas. Além disso, a incompreensão impede o diálogo, que consiste na recepção da verdade do outro, daquilo que o outro tem para oferecer de bom. Quando não se busca compreender o outro, a vida matrimonial se torna um tormento, pois abre espaço à impaciência. A compreensão gera a paciência e esta insiste na continuidade da relação para o bem de todos. A paciência em meio às dificuldades é uma virtude que sustenta o casal.

            O respeito às diferenças é outro valor imprescindível para o matrimônio. Mulher e homem são diferentes nas formas de agir, pensar e ser. O respeito recíproco conserva a dignidade do matrimônio e colabora para a valorização da singularidade de cada cônjuge. A falta de respeito é um dos piores males que afeta a relação matrimonial, pois onde não há respeito há o ridículo, a exposição do outro e a humilhação. O desrespeito é uma forma de violência contra o matrimônio.

            Estes valores colaboram com o casal e os faz viver o dom da perseverança. O difícil não é iniciar a vida matrimonial: todo início é alegre e feliz. Colocar-se no caminho não é algo difícil, o necessário e desafiante é perseverar. A perseverança está intimamente ligada à fidelidade, que gera mais amor e confiança. Na fidelidade há tranquilidade e paz.

            Por fim, é preciso considerar que o matrimônio é um chamado de Deus, é vocação cristã. Portanto, é caminho de Jesus no qual se deve perseverar até as últimas consequências. Deus chama cada casal à santidade no matrimônio, e esta santidade não é outra coisa senão contribuir na obra da criação, no cuidado recíproco e com o que Deus concede: construir a família para um outro mundo possível.

O futuro da humanidade está necessariamente ligado à família. Com o passar do tempo, esta tem passado por profundas e complexas transformações. Surgem novos tipos de famílias que merecem um olhar atento e misericordioso. As mudanças são rápidas, causam preocupação e nos remetem à verdade de que o velho modelo tradicional de família já não existe mais, salvo raríssimas exceções. Portanto, é necessário rever o conceito, a doutrina, os valores e o olhar sobre a relação conjugal; do contrário, tudo o que se falar a respeito do matrimônio já não fala nada a ninguém, torna-se discurso vazio e, portanto, sem sentido. Em outra reflexão poderemos discorrer a respeito destas profundas transformações que afetam a família na sociedade hodierna.

Tiago de França