sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Fim do ano: um convite à revisão de vida


           Revisitar a própria vida nunca foi algo comum no ser humano pós-moderno. Centrado somente no presente e na busca incessante do prazer, muitas pessoas se esquecem de revisitar a própria vida. Ano após ano, muitos passam sem constatar crescimento algum em si mesmos. Evitam a todo custo responder com sinceridade, honestidade e verdade à indagação que a muitos incomodam demasiadamente: O que estou fazendo da minha vida?

            O mundo certamente seria bem melhor se as pessoas procurassem responder para si mesmas a esta valiosa indagação, pois ela nos leva a uma oportuna e necessária autoanálise. O medo de se descobrir e de aceitar a realidade da própria vida impede muitas pessoas de se colocarem diante de si mesmas. São poucas as que têm a coragem de mergulhar no mais profundo de si para se encontrarem com a própria verdade.

            Os argumentos contra esta importante atitude e oportunidade de crescimento são vários, porém pouco válidos. Os que se recusam a fazer esta desafiadora viagem para o mais profundo de si afirmam que é perda de tempo, que é psicologismo, que isso não leva a nada, entre tantas outras desculpas que falam explicitamente de certo medo e fuga de si. De modo geral, as pessoas fogem de si mesmas para se refugiarem nos outros.

            Em um mundo tomado pelo barulho e pela dispersão, a atenção é um valor cada vez mais esquecido. Prestar atenção em si e nos outros, ver a si e aos outros, perceber-se e perceber os outros são atitudes fundamentais na vida. Tais atitudes conduzem ao essencial e libertam do secundário, daquilo que nos prende e nos aliena. Geralmente, as pessoas vivem preocupadas com o que é secundário na vida, esquecendo-se do essencial. O que é, então, o essencial na vida?

            A espiritualidade cristã ensina que o essencial na vida é ter o coração voltado para Deus e os olhos fixos em Jesus. O Deus uno e trino é o essencial da vida cristã. Nele o cristão encontra o sentido de sua vida, sua razão de ser e de existir. O mandamento do amor preenche a vida daqueles que tem fé e que espera em Deus. No e pelo amor a pessoa permanece em Deus e Deus permanece nela, numa comunhão que realiza e salva.

            Para quem não professa a fé em Deus, o amor também é como que a norma que rege a vida. O amor não tem religião e alcança todo ser humano, independentemente de cor, sexo, religião e cultura. Portanto, o essencial é o amor, que humaniza as relações interpessoais e com a natureza. A experiência afetiva e efetiva do amor é capaz de transformar toda a face da terra, libertando o mundo de todo mal. Impulsionado pelo amor, o ser humano é capaz do bem, volta-se e promove o bem.

            A sede pelo poder e pelo ter escraviza muitas pessoas desviando-as do essencial. Elas passam toda a vida à procura do sucesso, do prestígio, do poder e das riquezas. A ideologia capitalista consegue convencê-las levando-as a saírem à procura do que não é essencial para serem felizes na vida. Exceto o necessário, o acúmulo de riquezas é um dos males que afetam gravemente e, apesar disso, é uma prática corrente na vida de muitos.

            Só tem paz de espírito quem dá atenção ao essencial, pois este realiza plenamente o ser humano. O supérfluo e tudo aquilo que dispersa tendem a escravizar a pessoa, angustiando-a e levando-a a um vazio existencial. O mundo está repleto de pessoas desorientadas, excessivamente preocupadas com questões e coisas desnecessárias, inúteis, fúteis. Escravas dos apegos, passam pela vida sobrevivendo sem rumo.

            Neste fim de ano, ficam estas indagações: o que fiz de bom para construir um mundo melhor? Como as pessoas se sentiram quando estive com elas? Com que e com quem gastei tempo e energia? O que despertou meu interesse? Como lidei com as situações difíceis? Em relação a 2011, sinto-me mais livre e feliz? O que me anima e impulsiona a querer continuar vivendo? Tratei as pessoas com amor ou com indiferença? Quais foram minhas experiências de reconciliação com as pessoas? Crendo em Deus, como anda a minha relação com Ele?...

            Responder com sinceridade e verdade a estas indagações é revisar a própria vida. Toda pessoa que nasce neste mundo é chamada a crescer, a aperfeiçoar-se, a tornar-se cada vez melhor. Revendo os principais fatos ocorridos em todo o mundo neste ano que termina é nítida a necessidade de pessoas novas, rejuvenescidas, renovadas e revigoradas; pessoas que acreditem em outro mundo possível, mundo de justiça e de paz para todos.

Em 2013, é preciso reforçar os acertos e rever os equívocos, é preciso buscar ser feliz na fraternidade, não no isolamento; no amor, não na indiferença; na reconciliação, não nas intrigas; crendo que o amanhã só depende de nós, de nosso senso de justiça e de solidariedade para com o próximo; e que acima de tudo o importante é ser feliz e fazer os outros felizes.

Tiago de França

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Mensagem de Natal


“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14).

Prezado/a amigo/a e irmão/ã em Cristo,

Graça e paz!

            Anualmente, costumo escrever uma mensagem de Natal aos amigos e comunidades por onde passei. Esta feliz Solenidade tem muito a nos ensinar no mundo de hoje. Não podemos permitir que ela seja esquecida e manipulada pelo consumismo, que leva muitas pessoas a se esquecer daquele que dá sentido ao Natal: Jesus de Nazaré.

Não faz mal trocar presentes, enfeitar casas, ruas e praças, juntar a família em torno da mesa para a refeição festiva. Tudo isto é bom, mas o verdadeiro sentido do Natal está na celebração do mistério da encarnação do Verbo de Deus. Por isso, vamos pensar o Natal a partir de três realidades: a do mundo, a da Igreja e a nossa própria realidade pessoal.

O mundo

            O mundo é fruto da ação humana, portanto, parece com o ser humano que o habita. A realidade mostra que estamos numa profunda crise de identidade. A fome, a violência e tantos outros males parecem insolúveis. A indiferença torna as pessoas insensíveis diante das necessidades do próximo. O mundo parece caminhar sem rumo. Ninguém sabe ao certo aonde iremos chegar. A crise econômica que assola a Europa gera insegurança em todo o mundo e os conflitos bélicos no Oriente não cessam.

            O Verbo de Deus se fez carne e habitou este mundo. Jesus esvaziou-se de si mesmo e se fez homem no mundo: foi plenamente humano. Levou a missão que o Pai lhe confiou até às últimas consequências. Ele foi fiel, não fugiu do mundo. Ensinou o mandamento do amor para que seus seguidores pudessem fazer a mesma coisa: não fugir do mundo, mas transformá-lo, cotidianamente, a partir do amor. O amor é única força capaz de transformar o mundo, tornando-o habitável para todos.

A Igreja

            A situação eclesial é tão confusa que é difícil defini-la. Há comemorações em torno dos 50 anos da abertura do Concílio Vaticano II (11/10/62 – 11/10/12), mas tais comemorações são marcadas pelo retrocesso e pelo saudosismo. Retrocesso por parte dos que trabalham pela ressurreição da Igreja pré-Vaticano II, de orientação tridentina; saudosismo por parte de muita gente progressista, que assiste a morte gradativa de comunidades eclesiais de base e de grandes figuras que se destacaram na luta pela libertação dos oprimidos.

            Apesar das diversas formas de opressões dentro e fora da Igreja, a palavra libertação é quase impronunciável. Quando falam de libertação referem-se a um movimento espiritual de libertação dos pecados meramente pessoais. A hierarquia está preocupada porque parece que os católicos não pecam mais; consequentemente, não procuram confessar os pecados. Há um número grandioso de clérigos e religiosos sem causa, que apegados aos atos litúrgicos pensam estar servindo ao Deus de Jesus. A Igreja precisa fazer uma urgente releitura do mistério da encarnação de Jesus para reencontrá-lo em Nazaré, onde está nascendo o verdadeiro Messias.

Colaboração pessoal

            O mundo carece de mulheres e homens de fé, que não percam a esperança e que atuem em vista de outro mundo possível. A esperança cristã sustenta o seguidor de Jesus no caminho que conduz à vida plena. Cada pessoa, a partir daquilo que é e que faz, é chamada a dar sua parcela de contribuição. Impulsionados pelos valores do evangelho o cristão é um trabalhador na vinha do Senhor. Na ociosidade não se pode esperar que a realidade mude para melhor.

            O discípulo missionário de Jesus é um anunciador da palavra de Deus. Esta palavra transforma as estruturas deste mundo. Esta transformação passa pela conversão das pessoas. Na escuta e no entendimento do evangelho a pessoa se transforma radicalmente, tornando-se sal e luz do mundo. Permitir que o mundo padeça nas trevas do erro e da ignorância pela falta do anúncio do genuíno evangelho de Jesus é um gravíssimo pecado de omissão.

            Sempre se pode fazer alguma coisa. As pessoas que precisam estão aí, presentes no cotidiano da vida de todos. O clamor dos empobrecidos se levanta de toda parte. Não enxerga nem escuta quem não quiser. Não basta ser solidário somente no tempo no qual se celebra o Natal. A solidariedade deve ser uma experiência permanente, como é o amor de Deus para com cada ser humano. O desejo de Deus é que na fraternidade todos possam viver dignamente, pois o culto celebrado por quem pratica a injustiça e a omissão não é aceito por Deus.

            Não há Natal sem participação na vida do próximo. O Natal acontece na periferia deste mundo, na manjedoura de Belém, na pequenez de uma pobre criança. Fora deste espírito fraterno só há aparência. Pode até haver alegria, mas não é a alegria do Natal do Senhor. Eis a expressão insistente do Senhor: “Procuro abrigo nos corações, de porta em porta desejo entrar, se alguém me acolhe com gratidão, faremos juntos a refeição”. Abrir o coração para acolher Jesus significa acolher a sua mensagem e colocar-se no seu caminho; caminho de justiça, amor e reconciliação.

            A você que acaba de ler esta mensagem, desejo-lhe um Feliz Natal e um Ano Novo repleto da graça de Deus!

            Fraternalmente, em Cristo Jesus,

Tiago de França da Silva
Belo Horizonte – MG, 24 de dezembro de 2012.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Acolher o Cristo que vem


“Que devemos fazer?” (Lc 3, 10).

            Estamos no Tempo de Avento. O que dizer deste tempo? Precedendo o Natal do Senhor, o advento é um tempo de esperança e de alegria; de espera e de reflexão; de leitura da palavra de Deus e de conversão. A espiritualidade deste tempo é a da espera ansiosa da vinda do Messias, o Libertador do povo de Deus. O texto evangélico deste III Domingo do Advento (cf. Lc 3, 10 – 18) traz a figura do profeta João Batista, que responde à pergunta que todos devemos fazer: Que devemos fazer para acolher o Messias que vem?

            Às multidões, o profeta responde: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!” Trata-se de um convite à solidariedade que deve existir na comunidade cristã. Não se pode esperar o Messias fechando os olhos e as mãos diante das necessidades do próximo. Na comunidade eclesial é muito comum vermos isto: as pessoas querem acolher Jesus na Eucaristia, nas espécies de vinho e pão, mas se recusam a acolhê-lo na pessoa dos que sofrem, dos que precisam ser acolhidos em suas necessidades.

            A ideologia capitalista induz à indiferença: é a lei do salve-se quem puder! Os que não conseguem acompanhar as exigências do sistema são excluídos, considerados incapazes, preguiçosos e sem futuro. São exigências injustas, que existem em função da exclusão. É um modelo de sociedade que não oferece oportunidades para que todos possam viver dignamente. O profeta João Batista está mostrando os sem túnica e os sem comida. Na comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus estes não podem ser esquecidos.

            Aos cobradores de impostos, João Batista responde: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”. O profeta está denunciando um dos males que se perpetuam na humanidade de todos os tempos: a exploração dos pequenos. O imposto sempre foi exploração dos pequenos. Os ricos sempre pagaram poucos impostos e quando pagam não sofrem como os pobres. Há quem viva à custa dos pequenos: quem assim procede precisa de conversão para acolher o Cristo que vem. O evangelho de Jesus não coaduna com a exploração dos pequenos.

            Aos soldados romanos, o profeta responde de forma semelhante: “Não tomeis à força o dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário”. Era fato comum na época tomar à força o dinheiro dos pobres. Estes eram constante e falsamente acusados e incriminados nos tribunais. A ambição levava os soldados a roubar os indefesos. Por isso, o profeta pede para que fiquem satisfeitos com o salário que recebiam. É um chamado a uma mudança radical de vida, para que cessem as injustiças praticadas contra os pobres da época.

            Para os que pensavam que ele seria o Messias, João Batista caracteriza o verdadeiro Messias: o forte; o que batiza com o Espírito e com o fogo; aquele que com a pá na mão irá limpar sua eira recolhendo o trigo e jogando a palha no fogo que não se apaga. O Messias é o forte porque Deus é o forte, que libertou o seu povo da casa da escravidão; é aquele que dará o Espírito para a edificação do Reino de Deus; que julgará os pobres com justiça, consolando-os em seus sofrimentos; é o enviado de Deus para estabelecer neste mundo um novo céu e uma nova terra.

            Para acolher o Messias que vem é preciso isto: querer viver no amor e na justiça. Estes valores do Reino não são praticados na solidão de uma vida isolada, mas na comunidade, na fraternidade. Eles são fundamentais na construção de novas relações, mais sadias, portanto, gratuitas. E assim, aparecerá um mundo novo, mais humano e fraterno no qual a indiferença sequer será lembrada. Neste novo mundo, as pessoas poderão viver como irmãs umas das outras, serão felizes. E Deus será tudo em todos.

Tiago de França

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O Ano da Fé


           O Papa Bento XVI convocou a Igreja para viver e celebrar o Ano da Fé, de 11 de outubro de 2012 a 11 de outubro de 2013. Logo no início, ocorreu em Roma o Sínodo dos Bispos, que teve como tema A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã. Estas iniciativas demonstram a preocupação do Papa com a atual situação da Igreja: diminuição significativa do número de fiéis em todo o mundo, principalmente na Europa, considerada berço da cristandade. A evasão de fiéis é consequência de outros problemas internos da Igreja, mas é o motivo principal que perpassa o Ano da Fé e o Sínodo dos Bispos.

            Ainda não saiu a exortação apostólica pós-sinodal do Sínodo dos Bispos deste ano, mas pelo que se comenta não terá grandes novidades. Os Bispos não se reúnem em Roma para realizar grandes mudanças na Igreja. Institucionalmente, esta sempre foi lenta para realizar mudanças. Estas não podem ser esperadas. Mudanças sempre vieram das bases da Igreja, das lutas dos leigos, em meio a pressões e perseguições. Exemplo disso foi o movimento dos mendicantes do séc. XIII, na pessoa de São Francisco de Assis e tantos outros; mas o aparato institucional abafou a herança deixada pelos mendicantes: de pobres missionários passaram a ricas ordens religiosas.

            Por trás da preocupação pela diminuição significativa de fiéis se esconde outra mais séria: uma hierarquia fragilizada, que perde cada vez mais o controle sobre os fiéis. Estes, em sua maioria, não dão mais atenção ao que o clero ensina e afirma. Para justificar e legitimar a importância de suas posições e ensinamentos, a hierarquia acusa o relativismo como um dos maiores males do século. É verdade que o relativismo é um mal que afeta gravemente o ser humano pós-moderno, mas é verdade também que o mesmo não é o único que explica a evasão de fiéis e a crise institucional da Igreja.

            Não é só o relativismo que torna a hierarquia fragilizada, mas ela em si mesma é causa de sua própria fragilidade. Constituída verticalmente por homens excluindo, assim, a mulher, não consegue encontrar, a partir de sua atuação pautada na centralização do poder, respostas aos problemas que afligem o homem hodierno. A maioria dos jovens não se identifica mais com o ministério ordenado da forma como se encontra ordinariamente instituído na Igreja. Isto tem provocado um preocupante esvaziamento nos seminários, assim como um declínio no número de presbíteros em todo o mundo.

            O que se anuncia sobre o Ano da Fé não parece ser aquilo que realmente se quer alcançar com o mesmo. Anuncia-se que há uma séria necessidade de se explicitar melhor o seguimento de Jesus Cristo; que o cristão precisa comprometer-se com a conversão; que a Igreja é comunidade Povo de Deus, assembleia dos chamados; que a Igreja não deve se preocupar com o número, mas com a qualidade de seus membros; que a doutrina que conduz a salvação precisa ser melhor compreendida para ser praticada etc. Tudo isto pode e parece ser orientado para o fim a que se pretende realmente: reforçar a identidade católica para que a Igreja não perca totalmente sua hegemonia no mundo.

            Quem se recorda do Ano Sacerdotal? O que ficou deste ano convocado pelo Papa Bento XVI? Substancialmente, nada mudou na vida dos presbíteros e na sua missão na Igreja. Sem ser pessimista, mas penso que ocorrerá a mesma coisa com o Ano da Fé: muitas celebrações, seminários, simpósios, subsídios, debates e tantos outros eventos; mas, substancialmente pouca coisa ou quase nada mudará. E não mudará porque não haverá espaços para as urgentes, necessárias, almejadas e esperadas mudanças. Isto porque o novo sempre causa medo e insegurança.

            Há quem ache pessimista ou reducionista tal abordagem, mas parece ser a mais coerente com a realidade da Igreja. Apesar de tantas infidelidades e/ou incoerências, o Espírito de Deus não falta a seu povo, permanecendo-lhe fiel. Esta fidelidade divina assegura a realização plena do Reino, portanto, a salvação do gênero humano; salvação gratuita e universal, que contempla toda a humanidade, porque assim Deus o quis. Esta é a esperança cristã que perpassa toda a história e que a conduz até a consumação dos séculos.

Tiago de França

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O ser e o fazer na vida cristã


“Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular” (Carta a Diogneto, séc. II).

            O ser precede o fazer. Impulsionada por um modo próprio de ser, a pessoa age, manifesta-se no mundo com sentido e convicção. Esta ação é capaz de transformar, de fazer a vida acontecer, de recriar as coisas, aperfeiçoando-as para o bem. A experiência cristã acontece no caminho, no movimento peregrinante. Cristo, quando habitou historicamente este mundo adotou um estilo próprio: o de fazer-se companheiro do ser humano na lida simples do cotidiano da vida.

            Ele não fez nem pediu para fazer nada além disso. Sua religião consistia na leitura e na prática da palavra transformadora de Deus. A novidade de Jesus estava na observância da palavra de Deus. Era um judeu praticante da palavra, não mero observante da lei mosaica. Sua união com o Deus de Israel o levou à perfeição. Quem o encontrava não via nada de extraordinário em seu jeito de ser.

            Justamente por isso, as autoridades religiosas de seu tempo não viam nele o Messias esperado. Não aparentava ser dotado de poderes especiais. Todos perguntavam pela origem da autoridade de sua pregação, admiravam-se quando souberam que era filho de carpinteiro, nascido em Nazaré. Até seus familiares se escandalizaram com seu jeito de ser. Dedicou a vida ao anúncio do Reino de Deus, foi perseguido, crucificado e ressuscitou ao terceiro dia.

            Depois de Jesus, os cristãos permaneceram fiéis à sua mensagem por um bom tempo. Passado o tempo das perseguições, a hierarquia da Igreja já nitidamente constituída aderiu ao Império Romano e o evangelho de Jesus foi aos poucos sendo esquecido. Um número significativo de cristãos saiu das cidades e foi morar no deserto, viviam sozinhos (eremitas) e em comunidade (cenobitas), esforçando-se para preservar a prática da mensagem cristã.

            O poder, as riquezas e o prestígio se infiltraram na vida da Igreja, mas mesmo assim o Espírito suscitou, ao longo da história, mulheres e homens evangélicos. Estas pessoas simplesmente se colocaram no caminho de Jesus e foram confirmadas por Deus. Ao longo do tempo, a Igreja foi se institucionalizando e, com isto, foram aparecendo códigos, normas e regras das mais diversas sobre todos os aspectos da vida eclesial. Junto a todo este conjunto normativo apareceram pessoas que foram se apegando à observância de tais coisas, em detrimento do evangelho de Jesus.

            Com o aparecimento das normas institucionais e das diversas práticas religiosas o ser cristão passou a ser identificado com a observância de tais normas e práticas. A fidelidade cristã passou a ser medida pela fidelidade aos princípios religiosos. O aparato religioso e institucional abafou a novidade do evangelho de Jesus, que faz o verdadeiro cristão. A preocupação pelo cumprimento fiel do que foi estabelecido pela instituição religiosa não deixa espaço para a prática da palavra de Deus. De modo geral, as pessoas não tem tempo para meditar e compreender a palavra de Deus.

            O cristão é pessoa simples e humilde, que vive no meio do mundo orientando-se pelos valores do Reino. Portanto, diferencia-se pela abertura, pela generosidade, pelo serviço e pela acolhida do outro. Vivendo despojadamente, procura fazer, acima de tudo, a vontade de Deus. Nada faz de extraordinário, sua vida já é extraordinária. Sua regra de vida é o amor e neste persevera até o fim. Este é o jeito de ser cristão, que supera o mero fazer que conduz ao vazio. Preenchido pelo Espírito e, por isso mesmo, livre de todo vazio existencial, o cristão tem os olhos fixos em Jesus, porque apaixonado por este confere sentido à vida, mesmo que esta aparentemente esteja desfigurada, mas a esperança cristã o faz superar todas as coisas.

Tiago de França