terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Natal de Jesus


“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14).

Amigos e amigas, irmãos e imãs em Cristo Jesus,

Graça e paz!

Não poderia deixar de vos escrever por ocasião desta importante data: o Natal do Senhor. Trata-se de uma boa ocasião para pensarmos a respeito de nossa fé na encarnação do Verbo divino em nossa vida e na vida do mundo. Se perdermos o sentido do Natal não vale a pena celebrá-lo, pois o mesmo não tem nenhuma ligação com a propaganda, o comércio, o papai Noel e com o consequente consumismo que tudo isso envolve. Jesus não pode ser substituído por estas coisas. A alegria do Natal não é a alegria proporcionada pela troca de presentes, mas a que é experimentada pela Boa Notícia da encarnação de Jesus na vida do povo de Deus.

O que Jesus veio fazer neste mundo?

Jesus não veio simplesmente fazer alguma coisa. Ele não era representante autorizado do Pai, mas na qualidade de Filho amado foi enviado com a missão de fazer-se presente na vida do povo, despertando a esperança, cumprindo as promessas feitas na antiga aliança. Jesus se tornou companheiro dos pecadores e auxílio dos fracos e oprimidos, vivendo a condição simplesmente humana dos pobres. A encarnação de Deus no mundo acontece na humildade e na pobreza da vida do povo de Deus. Portanto, Jesus assumiu com todos os riscos a vida humilde de seu povo, opondo-se, consequentemente, ao poder opressor que desumaniza o ser humano.

A celebração do Natal é a celebração da esperança e do abraço misericordioso de Deus. O Pai de Jesus, o Deus dos pobres e do povo sofredor, não abandona seu povo, mas vem ao seu encontro. Trata-se de um encontro alegre, radiante, consolador. O povo reconheceu em Jesus a presença amorosa de Deus e Jesus revelou o verdadeiro segredo de Deus: sua infinita misericórdia. Na acolhida, no partir do pão, no perdão e na convivência fraterna, Jesus mostrou que Deus não é uma divindade distante, mas é o Paizinho, que acolhe, perdoa, compreende, ajuda, consola, redime, ama e salva seu povo. Assim, a celebração do Natal nos chama a vivermos esta esperança: a de crermos que outro mundo é possível por meio da prática do amor e da justiça do Reino de Deus.

As pessoas precisam redescobrir o sentido do Natal. Esta data não pode se repetir anualmente sem nenhuma repercussão prática na vida cristã; do contrário, voltará a ser uma festa pagã. Para muitos, o Natal é a celebração da força mercadológica. Jesus é substituído pelo mercado, que oferece muita comida, bebida, presentes e excessos oriundos da mistura de tudo isso. Os cristãos precisam gritar ao mundo a alegria da vinda de Deus, de sua morada definitiva entre nós. Acolher o Emanuel que vem é abrir o coração para a prática do amor e da justiça. Isto, sim, é celebração do Natal. Quando as pessoas abrem o coração para acolher Jesus a vida se transforma, o grande encontro acontece e o outro mundo possível se torna realidade. Isto é conversão. O Natal converte as pessoas em discípulas missionárias do Verbo encarnado na história.

O Natal na Igreja e a Igreja no Natal

Neste ano que aos poucos termina, a Igreja está vivendo um tempo de graça e de alegria. Com muita esperança chegou à Igreja de Roma o bispo Francisco. Na qualidade de responsável pela unidade de todas as Igrejas particulares que formam a Igreja Católica no mundo, Francisco tem despertado a esperança nos corações de muitas pessoas, dentro e fora da Igreja. Em plena sintonia com o santo de seu nome, tem levado a Igreja ao encontro do evangelho de Jesus. Finalmente, após um período de muita perseguição e retrocesso, que marcou os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, apareceu um bispo que está tentando recolocar o evangelho de Jesus no centro da vida eclesial.

Durante muito tempo o evangelho ficou à margem na vida da Igreja. Colocaram no centro os interesses meramente mundanos, representados pela busca do poder, do prestígio e da riqueza. Em nome desta busca se pagou e até hoje se paga um alto preço, o do descrédito e o da descrença. Mesmo assim, a graça de Deus não abandonou os corações humanos e o evangelho de Jesus não perdeu a sua força, pois muitas mulheres e homens, no silêncio e na periferia do mundo, continuaram vivendo conforme os valores evangélicos do amor e da justiça do Reino de Deus. Nesta hora presente e oportuna da história, Francisco, bispo de Roma, tendo aprendido a ler os sinais dos tempos e do Reino, está, insistentemente, chamando a atenção da Igreja para a centralidade do evangelho de Jesus na vida cristã e eclesial.

Não há encarnação de Jesus sem adesão ao seu evangelho. O culto e a religião não compreendem nem experimentam a encarnação de Jesus sem adesão ao evangelho. É este e não a doutrina, o culto e a lei que leva o ser humano à divina e arriscada experiência do amor de Deus. A religião sem o evangelho se transforma em instrumento de conformismo e de acomodação ao espírito do mundo, que aliena e mata as pessoas. O evangelho aponta para a libertação integral, leva as pessoas à ação, que acontece no encontro feliz e generoso, na doação e na promoção da justiça e da paz. A esperança cristã é histórica e escatológica, ou seja, acontece no aqui e agora da história rumo à plenitude do Reino de Deus. Ungidos pelo evangelho de Jesus o novo se torna realidade em nossas vidas e tudo aquilo que é sinônimo de prisão e força do anti-Reino desaparece definitivamente.

O Espírito e a encarnação

Sem o auxílio da graça de Deus caímos facilmente no egoísmo. Com suas próprias forças e inteligência o ser humano consegue fazer muita coisa, mas é incapaz de entrar em sintonia com Deus e experimentar o evangelho da vida e da liberdade. Sabendo disso, o Pai e o Filho enviaram o Espírito Consolador, o Paráclito. Este Espírito age a partir do íntimo de cada pessoa. Não é dado pela religião nem se enquadra em sistema religioso algum. É pura liberdade. É pura ternura de Deus. É o Espírito de Deus que nos torna capazes de Deus. Em outras palavras, a acolhida, a compreensão, a assimilação da mensagem e a vivência humilde e cotidiana do evangelho só são possíveis por meio da ação amorosa do Espírito de Deus.

Este Espírito arranca as impurezas do nosso coração de pedra e transforma este coração em terra boa e frutífera. O mundo e a Igreja precisam urgentemente de pessoas de coração de carne, humildes, amorosas e misericordiosas, que sejam ousadamente generosas e compassivas. É o Espírito que nos converte a Jesus. As doutrinas religiosas nos convencem de algumas verdades da fé, mas é o Espírito que nos concede o dom da fé e nos revela todas as coisas. Este Espírito nos faz conhecedores e participantes do mistério da encarnação de Jesus. Sem o Espírito não há encarnação nem salvação. Só compreenderemos o real sentido do Natal a partir do Espírito do Senhor, abrindo-nos, sem medo nem reservas, à sua ação silenciosamente amorosa e feliz.

Assim, amigos e amigas, irmãos e irmãs em Cristo Jesus, vos desejo um Feliz Natal e um novo ano cheio de alegria e paz. Receba meu fraterno e afetuoso abraço e minha prece. Abramos nosso coração à ação do Espírito, a fim de que nos livre do vazio existencial que tem levado tanto gente ao desespero e à morte. É este Espírito que nos sustenta em nossas tribulações e alimenta nossa esperança na caminhada rumo ao Pai. Que a bênção do Pai, o amor de Jesus e a força do Espírito permaneça sempre conosco!

Fraternalmente, no Irmão Jesus,
Tiago de França da Silva
Desde Belo Horizonte – MG, 16/12/13.


sábado, 21 de dezembro de 2013

Deus conosco

         
            Vivemos em um mundo marcado pelo sofrimento, que é causado por inúmeras injustiças. Há muitas pessoas padecendo em situações desesperadoras. Diante do sofrimento, mesmo as pessoas de fé se encontram abaladas, tentadas a abandonar a fé em Deus, pois se perguntam: “Se Deus existe, por que estou sofrendo tanto?” A pergunta em torno da origem e do significado do sofrimento humano é complexa.

O que a experiência de Jesus nos assegura é que Deus não é a origem nem a causa do sofrimento que assola a humanidade. O fato de Jesus ter abraçado o caminho da cruz não justifica a ideia de um Deus oferece o sofrimento como caminho da perfeição. Assim se pensava na Idade Média, mas de uns tempos para cá estamos redescobrindo que Deus é amor, Pai amoroso que não se compraz com o sofrimento humano.

            Jesus não fez uma opção pelo sofrimento, pois não era masoquista. O sofrimento fez parte de sua vida por causa de sua opção pelo Reino de Deus. Jesus foi vítima das incompreensões, perseguições e da malícia daqueles que se opuseram à mensagem central do evangelho: a realidade do Reino de Deus. Não se trata do mero conflito entre a força de Deus e a de Satanás, como muitos pensam e pregam, mas da inauguração conflituosa do Reino de Deus. O anúncio desta Boa Notícia gera conflitos entre os que acolhem e os que rejeitam Jesus e sua mensagem. O conflito é inevitável. Mais do que isto, o mesmo é necessário.

            Antes de Jesus, Deus era concebido como o Altíssimo, o Todo-poderoso que estava nas alturas dos céus. Seu nome era impronunciável e sua ira era terrível e demolidora. Geralmente, as pessoas tinham medo do Altíssimo, o Senhor dos Exércitos. Chegada a plenitude dos tempos, o tempo escolhido e marcado por Deus desde a criação do mundo, o Altíssimo desce, vem ao encontro, encarna-se, torna-se homem, plenamente humano, pequeno, pobre, indefeso e pobre. Deus se tornou perfeitamente humano. Encarnado na história humana, Deus assume, plena e definitivamente, a condição humana.

            Depois de Jesus, Deus é com a gente, presente, consolador de seu povo. Os pobres, os injustiçados, os esquecidos e marginalizados, as vítimas do sistema capitalista selvagem, os condenados pela religião, os pecadores públicos, enfim, todos os sofredores deste mundo, independentemente de sua cultura, crença, sexo e condição social são abraçados pela bondade, pela ternura e pela misericórdia do Deus que quis salvar a humanidade inteira, sem se esquecer nem excluir ninguém.

Na relação conflituosa e dolorosa entre opressor e oprimido, em Cristo Jesus, Deus escolhe libertar o oprimido e, assim, também liberta o opressor. Os oprimidos de todo tempo e lugar encontram em Deus o seu refúgio e sua segurança, a liberdade, a felicidade e a vida plena. Enraizados nesta esperança, os pobres e oprimidos não caem no desespero e caminham com firmeza rumo à liberdade e à vida. E a força divina, misteriosa e amorosa, jamais abandona seu povo, tornando-o forte e vitorioso.  

A celebração do Natal de Jesus na liturgia da Igreja é a celebração do memorial da encarnação do Deus fiel, que jamais abandona seus filhos e filhas, de um Deus que é Pai e Mãe de bondade, que consola, acalenta, anima e concede a sua graça a seu povo, a fim de que este continue firme em meio às adversidades da vida presente, rumo à plenitude de seu Reino. Esta é a alegria do Natal. Este é seu significado. Caminhamos com Deus e Deus caminha conosco. Nada poderá nos tirar esta alegria e salvação. Estamos mais que seguros no abraço acolhedor de Deus, estamos revigorados, mergulhados Nele e salvos.

Tiago de França

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A essência do Cristianismo

           
             A ideia de essência nos remete ao núcleo de alguma coisa, aquilo de mais profundo e verdadeiro que existe, ao centro. A pergunta pela centralidade da vida cristã e, consequentemente, do Cristianismo deveria ser levada mais a sério pelos cristãos, pois com muita facilidade se marginaliza o essencial e se centraliza o secundário. Vamos entender o essencial e o secundário na vida cristã e no Cristianismo a partir da experiência de Jesus de Nazaré.

O essencial

            A partir da experiência de Jesus, o pobre de Nazaré, podemos assegurar que ele mesmo é o centro da vida cristã: ele é o caminho, a verdade e a vida. A princípio, todo cristão sabe disso, mas, geralmente, não aceita nem vive conforme esta verdade. Quais as implicações existenciais da afirmação de que Jesus é o centro da vida cristã? Inicialmente, é preciso considerar a imutabilidade da centralidade de Jesus. Em outras palavras, independentemente de qualquer coisa, Jesus foi, é e continuará sendo o centro da vida cristã. É uma realidade que não muda, apesar da resistência de muitos. E quem é Jesus? É a encarnação do próprio Deus no mundo, Deus que é amor.

            Afirmar que Jesus é o centro da vida cristã significa que o secundário não pode ocupar o seu lugar. Então, se Jesus é o centro, o que é o secundário? Tudo aquilo que radicalmente se opõe a Jesus, que busca impedir sua centralidade, que desfavorece a vida humana, que é oposto ao seu projeto salvador. Falar em projeto é falar de algo essencial da centralidade de Jesus, pois há o grave risco de se aceitar a Jesus sem nenhuma referência ao seu projeto, que é o Reino de Deus. Quem aceita Jesus e se recusa a crer e se colocar a serviço do Reino de Deus está cometendo uma profunda contradição. Jesus e o projeto do Reino formam o essencial da vida cristã e são inseparáveis.

            Os primeiros cristãos souberam entender esta realidade, pois colocaram Jesus no centro de suas vidas e se tornaram, de fato, sal e luz do mundo. Converteram-se porque se colocaram no caminho de Jesus e nele perseveraram até as últimas consequências. Não se deixaram desviar pela busca do poder, do prestígio e da riqueza, mas viveram a alegria do Evangelho, testemunhando-o no mundo. Esta fidelidade à mensagem de Jesus foi e continua sendo causa de muitas perseguições e mortes. Unidos a Jesus e doando suas vidas por causa do Evangelho alcançaram a liberdade, a felicidade e a vida plena.

O secundário

            Com o passar do tempo e a evolução da cultura, o Cristianismo foi se transformando em uma religião complexa e poderosa: complexa no aspecto doutrinal e litúrgico (dogmas, leis, rituais etc.) e poderosa porque acumulou muita riqueza, prestígio e poder. Todo o período da Idade Média é a maior prova disso: a Igreja assassinava pessoas para manter seus privilégios e riquezas. Hoje ela não mata, pois não é mais possível fazer como fazia. Hoje seus meios são outros.

            O secundário é tudo aquilo que é criação humana, que é fruto da cultura e que o ser humano tende a absolutizar: doutrinas, dogmas, leis, normas, rituais, riqueza, prestígio, poder, estruturas etc. Tudo isto é criação humana. Jesus não criou nada disso nem o Espírito pode ser é a causa da criação destas coisas. Todas são passíveis de mudanças e podem acabar; são finitas, imperfeitas e, às vezes, desnecessárias. O poder, o prestígio e a riqueza são o joio no meio do trigo. Doutrinas, leis e rituais podem ser tolerados, mas jamais absolutizados, pois Deus é o Absoluto.

            A história do Cristianismo mostra com clareza a tendência do homem religioso em absolutizar ideias, doutrinas, leis e rituais. Jesus e o Evangelho foram postos de lado, cedendo o lugar para a busca do poder, do prestígio e da riqueza. Em torno dessa busca, criaram-se doutrinas, dogmas, leis e rituais de toda sorte, sem nenhuma fundamentação evangélica. O Espírito do Senhor, que age na liberdade e para a liberdade, foi esquecido e passou a ser invocado somente para legitimar tudo o que se foi criando para a manutenção do poder na Igreja.

            Na hierarquia da Igreja há pessoas para tudo: uns se consagram em função do poder, enquanto outros optam pelo serviço evangélico. No momento da consagração, todos falam de serviço, mas é mentira. Os que se consagram para servirem ao poder se tornam os funcionários do sagrado e da religião, e se ocupam do secundário. Estes desconhecem o Evangelho. Só entendem da letra, mas desconhecem o espírito que está por trás da letra. Não possuem nenhuma experiência de Deus. Suas bocas falam de Deus, mas seus corações estão distantes; possuem aparência angelical, mas são lobos ferozes, demônios encarnados.

            Os que se consagram verdadeiramente ao serviço do Senhor e do seu povo são os discípulos missionários de Jesus, pastores e profetas do Reino de Deus. Estes possuem uma profunda comunhão com Deus e esta unidade com a Trindade é que os sustenta na missão. Alguns estão na hierarquia, mas a maioria está no laicato. Quer estejam na hierarquia ou no laicato sofrem muitas perseguições, muitos são brutalmente assassinados. Alguns são assassinados dentro das comunidades cristãs por pessoas que aparentam muita piedade. Os consagrados ao serviço do Senhor e seu povo são testemunhas da ressurreição de Jesus, pessoas livres que vivem em função da liberdade do gênero humano.

Restaura a Igreja, Francisco!

            Não poderia concluir estas provocações sem fazer referência ao tempo de graça e salvação vivido nesta hora oportuna da história da Igreja. O Espírito do Senhor ungiu um bispo e o fez chegar à cobiçada cadeira de Pedro, o pescador de homens. Seu nome é Francisco e como o de Assis, do séc. XIII, ele não está perdendo tempo. Antes que seus coirmãos rasguem a regra de vida e tentem impedir a transformação necessária, Francisco fala da alegria do Evangelho porque está consciente da força transformadora desta alegria. Rodeado por pessoas tristes e ambiciosas, Francisco grita ao mundo a palavra de Jesus contida no Evangelho da vida e da liberdade.

            As pessoas riem, choram, admiram e se preocupam. Conhecendo a história da Igreja, muitos perguntam-se: “Quando será a hora que vão tirar a sua vida?”... Francisco, orante e sereno, não está preocupado com a própria vida, mas está com os olhos fixos em Jesus, está acordado, alegria e disposto. Os fariseus hipócritas, desde as bases até a cúpula, estão preocupados, pois são inimigos da cruz de Cristo, mas nada podem fazer porque ninguém e força alguma neste mundo conseguem dar conta de segurar a ação amorosa, forte e transformadora de Deus, que opera neste mundo em favor de seus pobres, por meio da voz e da força dos braços de seus ungidos. Restaura a Igreja, Francisco!


Tiago de França

sábado, 7 de dezembro de 2013

Maria: serva do Senhor

“Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).

            Neste domingo a Igreja celebra, dentro do tempo do advento, a Solenidade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dogma proclamado pelo papa Pio IX, em 8 de dezembro de 1854. Muito antes desta data, muitos católicos já veneravam a mãe de Jesus como a imaculada conceição, ou seja, concebida sem a mancha do pecado original.

A partir de uma mariologia pós-conciliar, a reflexão em torno deste dogma passa pela imagem de Maria contida no evangelho, pois tal dogma não tem nenhuma fundamentação bíblica. Portanto, o mais interessante não é querer saber se Maria foi ou não concebida sem a mancha do pecado original, mas em aprendermos com ela a sermos discípulos missionários de Jesus.

Movimento inverso

            O dogma da imaculada conceição não leva em consideração a serva do Senhor, mas cria no imaginário popular a ideia de que Maria foi escolhida e, por isto, é maior do que as demais mulheres, possuindo, assim, um privilégio especial. A partir das Escrituras, podemos assegurar que não há privilégio algum. Afirmar isso não diminui em nada a figura de Maria e sua participação no projeto de Deus.

Qualquer excesso na devoção precisa ser corrigido, a fim de que Maria não deixe de ser a serva do Senhor. Ela não é uma deusa nem mediadora entre Deus e as pessoas, mas, tendo aceitado a missão de ser a mãe de Jesus, participou ativamente da ação misericordiosa de Deus que veio salvar o seu povo. Ela se tornou missionária da Palavra de Deus, pois acreditou nesta Palavra e por meio dela foi salva, juntamente com o povo de Deus.

Crer e colocar-se a serviço

            A partir do evangelho constatamos que em Maria há uma íntima ligação entre crer e servir. Para crer é preciso encontrar-se com a Boa Notícia. Esta desperta para o amor. Convivendo com Jesus e educando-o na fé de seu povo, Maria aprendeu a ser a humilde serva do Senhor. A salvação acontece por meio da humildade e do serviço. Transformada pela Palavra de Deus, Maria se abriu à ação amorosa da graça de Deus e se tornou portadora da Boa Notícia do Reino.

            Seu exemplo é o de mulher servidora, que tendo compreendido o sentido e o alcance da ação de Deus em sua vida e na vida de seu povo, tornou-se modelo de doação ao próximo. Ela quis fazer a vontade de Deus, que foi aos poucos sendo compreendida, na medida de sua fidelidade à missão recebida. Crer é fazer a vontade daquele que chama e envia.

Crer é mais do que ouvir e proclamar com a boca a bondade e a misericórdia de Deus; além disso, é preciso fazer a experiência da escuta e da proclamação da Palavra. Experiência é vida, é sentir no cotidiano Deus agindo segundo seus desígnios. Maria era “cheia de graça” e “bem-aventurada” porque experimentou a bondade e a misericórdia de Deus no encontro feliz e generoso com o próximo.

Celebrar a imaculada conceição não é recordar a nefasta herança do pecado original. Não podemos perder mais tempo pensando neste evento inicial, mas é preciso, urgentemente, tendo Maria como modelo, procurarmos servir às vítimas dos gravíssimos pecados estruturais que assolam a humanidade, ajudando-as em seu processo de libertação. Recordando outro grande exemplo, o de Nelson Mandela (1918 – 2013), que não passou seus 95 anos pensando em si mesmo, mas sendo protagonista da libertação de seu povo, a Igreja precisa, definitivamente, ser como Maria, como Nelson Mandela e tantas outras testemunhas da libertação integral do ser humano, serva dos servos de Deus.


Tiago de França

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A reforma da Igreja

         
         Com muito entusiasmo, as pessoas tomam conhecimento da persistência do Papa Francisco na tentativa incansável de reformar a Igreja. Recentemente, o Papa publicou sua primeira exortação apostólica, intitulada Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho). Ainda não tive tempo para me debruçar sobre ela, mas as primeiras palavras da mesma merecem nossa atenção: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida daqueles que se encontram com Jesus”. Vamos ousar algumas ideias a partir destas palavras do Papa.

A alegria do Evangelho

            Desde o início do seu pontificado o Papa vem chamado a atenção da Igreja e do mundo para a importância da alegria. De fato, diante de tanto sofrimento, a alegria merece o seu lugar na vida humana; mas a alegria da qual fala o pontífice não é a alegria meramente mundana, oriunda do mero desfrute dos prazeres, mas se refere à perfeita alegria, da qual também falava São Francisco de Assis. A perfeita alegria o mundo não consegue dar, pois ela não é passageira, e traz consigo a paz. Quem goza da perfeita alegria não perde o bom humor e sempre está em paz consigo mesmo, com os outros e com Deus.

            O cristão precisa ser uma pessoa alegre. Por meio de palavras e gestos é chamado a transmitir a alegria da ressurreição de Jesus. Como tão bem tem lembrado o Papa, Jesus era um homem alegre. A tristeza leva ao desânimo e este engessa a pessoa, tirando-lhe a alegria de viver. Mesmo que a vida nos pareça difícil e pesada, é preciso permanecer no espírito da verdadeira alegria, aquela alegria que animou Jesus na missão, no encontro com as pessoas. Pessoas alegres tornam o mundo melhor, pois a alegria interfere positivamente nas relações interpessoais.

            A Boa Notícia de Jesus possui em si mesma uma alegria radiante porque liberta as pessoas de toda espécie de prisão. Quem está preso está triste, desolado, sem estímulo para viver. Chamado à liberdade, o ser humano reencontra a alegria quando livre das forças que provocam a morte. Esta liberdade somente é obtida por meio do anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus. Portanto, a reforma da Igreja desejada pelo Papa e por tantos cristãos está intimamente ligada à alegria do Evangelho. Cristãos tomados por esta alegria são verdadeiramente capazes de aderir ao projeto do Reino de Deus anunciado por Jesus.

A conversão do coração

            Nestes dias estive lendo algumas homilias do Papa. Ele fala com convicção e com alegria. Suas palavras vem de seu coração. Então, me recordei de um pensamento do famoso jesuíta Anthony de Mello: “A religião não é uma questão de rituais ou estudos acadêmicos. Não é um tipo de culto ou de boas ações. Religião é uma questão de arrancar as impurezas do coração. Este é o caminho para encontrar a Deus”. Rituais, estudos acadêmicos, culto e boas ações: desde sempre o ser humano reduziu a religião a isso. Portanto, o essencial foi esquecido. Passaram-se séculos de apego ao secundário.

            Quem realmente se interessa em arrancar as impurezas do próprio coração? Por que as pessoas resistem a isso? O que fazer para alcançar esta graça? Anthony de Mello, SJ, em sua vasta obra espiritual aponta o desapego como caminho para a libertação interior, para que seja possível arrancar as impurezas do coração. De fato, compreendendo o que significa o desapego, este parecer ser o único caminho que conduz à verdadeira liberdade. Jesus ensina no Evangelho que o que torna o homem impuro não é o que entra no ser humano, mas o que sai dele. Assim sendo, toda pessoa possui impurezas que precisam ser arrancadas. Eis a questão da religião.

            Essas impurezas do coração nos tornam agentes das forças de morte que operam no mundo. Elas nos conduzem ao mal, à ofensa a nós mesmos e ao outro; transformam-nos em pessoas calculistas, oportunistas, egoístas, falsas, desonestas, mentirosas, arrogantes e dissimuladas. Há uma tendência de maquinar o mal contra o outro e uma falsa alegria em vê-lo destruído. A situação pecaminosa do ser humano é tão lastimosa que há pessoas que sentem prazer em ver seu semelhante destruído, humilhado, desorientado, aflito, desesperado e morto. Isso precisa ser arrancado de dentro de nós.

Precisamos nos libertar desta cruel tendência em levar o próximo à desgraça. Esta e tantas outras impurezas somente desaparecem quando nos desapegamos de nós mesmos e de tudo o que existe neste mundo. A raiz da ofensa ao outro está na busca de nossos interesses mesquinhos. Isso se chama egoísmo. Quando procuramos prejudicar nosso semelhante estamos, na verdade, procurando alguma satisfação, estamos querendo ganhar alguma coisa em troca. Sempre foi assim e enquanto o desapego não for o caminho a ser trilhado, a situação, infelizmente, vai continuar sendo a mesma.

A Igreja precisa de mulheres e homens que ousem fazer a reforma do coração, pois sem esta não é possível reformar nenhuma espécie de estrutura. A reforma da Igreja passa pela reforma do coração, e reformar o coração significa arrancar as suas impurezas. Neste sentido, o que o Papa está propondo é o que Jesus exortou no seu Evangelho: convertam-se e creiam no evangelho! Sem esta conversão, que passa pelo coração, não é possível reforma alguma. Aliás, precisamos mais de que uma reforma, precisamos de rupturas! Estas exigem coragem e determinação para serem realizadas, mas antes é preciso alegria e desapego para que haja libertação do medo, do egoísmo e das diversas formas de apegos que nos aprisionam. Que o Espírito do Senhor nos ajude com sua força.


Tiago de França

domingo, 24 de novembro de 2013

Jesus, o Reino de Deus e os reinos do mundo

“Ele é o princípio, o primogênito dentre os mortos; de sorte que em tudo ele tem a primazia, porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Cl 1, 18 – 19).

            Na Solenidade do Cristo, rei do universo, o texto de Lucas 23, 35 – 43 nos fala da pequenez e da impotência de Jesus. Como, então, entender o sentido e o alcance desta solenidade? Dispensando os mínimos detalhes históricos que podem explicar a origem da mesma, basta-nos olhar para Jesus crucificado. Brevemente, com certa ousadia, arrisquemos alguns pensamentos a respeito daquilo que está no título desta reflexão: a pessoa de Jesus, o Filho de Deus, na sua relação com o Reino do Pai e a dinâmica interna dos reinos deste mundo. Claro que se trata de um tema digno de longas análises teológicas, presentes nas reflexões da cristologia moderna. Vamos pensar Jesus a partir de baixo, a partir dos crucificados da história (cf. a obra teológica do famoso jesuíta Jon Sobrino).

Jesus na sua relação com o Reino do Pai

            No nordeste do Brasil, Jesus é tido como o servo sofredor. Na cúria romana, Jesus é o rei. Claro que o papa Francisco acredita no servo sofredor, pois o encontrou nas periferias de Buenos Aires, Argentina. Certamente o servo sofredor continua com ele, em seu coração de pastor, livrando-o dos perigos dos lobos ferozes que habitam o Vaticano, que são filhos das trevas e inimigos da luz. Mas o que isso tem a ver com Jesus e sua relação com o Reino do Pai?
           
            Não basta ver Jesus se relacionando com o Pai na inauguração de seu Reino. Isto é o que narram os evangelhos; mas Jesus não está no passado. Ele é o Emanuel, Deus conosco. Hoje, Jesus continua sua relação com o Pai, na ação do Espírito Santo. A obra do Reino é contínua na história humana. Não é pura abstração. É suor e sangue, conflito e reconciliação. Em Jesus, o Pai se reconcilia com a humanidade, como nos ensina o apóstolo dos gentios. Assim, os evangelhos são unânimes em mostrar Jesus na periferia do mundo, agindo com amor e misericórdia, mostrando o caminho que leva ao Pai.

            Na sua relação com o Pai, Jesus é o servo fiel e prudente, o missionário da Boa Nova do Reino, o peregrino das estradas deste mundo desigual. Sua coroa é de espinhos e seu reino não é deste mundo, mas tomemos cuidado para não deixarmos nossa fértil imaginação criar um falso reino de Deus, um paraíso como depósito de almas, descanso dos justos e sofredores. Este reino imaginário, como o próprio nome indica, não tem existência, é fruto da fantasia humana. Aqui podemos pensar a respeito de Jesus como rei.

Jesus é rei?

            Atestam os evangelhos que todas as tentativas dos discípulos de Jesus para glorificá-lo neste mundo foram frustradas. Ele não procurava o poder, o prestígio e a riqueza, pois não foi para isto que veio a este mundo. Jesus estava totalmente concentrado na sua missão e guiado pelo Espírito do Senhor, e foi fiel até as últimas conseqüências. Não foi enviado para tomar o poder dos romanos. Não era o Messias glorioso, esperado por muitos. Humanamente, era despojado do poder, não podia nada. Era um pobre homem, “sem lenço e sem documento”!

            O que a Igreja viu em Jesus para dedicar-lhe o título de rei do universo? Após o reconhecimento da Igreja como religião oficial do império romano, no séc. IV, a riqueza, o prestígio e o poder se infiltraram definitivamente na Igreja. O evangelho de Jesus foi posto de lado e a hierarquia, salvo raras exceções de pessoas, se tornou sedenta de poder. Até hoje a sede pelo poder continua sendo o problema da Igreja. Assim fica claro o entendimento acerca da criação da solenidade de Cristo, rei do universo: a Igreja, preocupada em dominar o mundo, cria a idéia de um Cristo poderoso e dominador. O que significa dizer que, na verdade, não estava preocupada com o Cristo das Escrituras, mas consigo mesma. Para legitimar seu poder perante o mundo havia a necessidade de se criar a imagem de um Deus todo-poderoso, rei do universo.

            Durante toda a Idade Média esta é a idéia que vigorou: toda pessoa tinha que aderir ao Cristianismo, a religião do rei do universo; do contrário, estaria fadada à condenação eterna. Até hoje, os cristãos de mentalidade medieval continuam pensando o mesmo, recusando-se a aceitar o pluralismo religioso. Mesmo após o Concílio Vaticano II, que tentou corrigir esse gravíssimo equívoco, leigos e clérigos continuam pensando o que foi declarado até em documento oriundo da cúria romana: fora da Igreja não há salvação!

O Reino de Deus e os reinos do mundo

            Os que aderem e adoram a imagem do Cristo, rei do universo são aquelas pessoas que desejam que o Cristianismo domine o mundo, como na era medieval. Essas pessoas morrem e continuarão morrendo frustradas. A era do Cristianismo de dominação passou, a cristandade não existe mais. Estamos na era da diversidade e da pluralidade. Não adianta fechar os olhos para a realidade. A diversidade e a pluralidade são dons do Espírito do Senhor, pois este não é uniforme, mas plural e libertador. Não existe libertação na uniformidade.

O que também está por trás da adoração à imagem do Cristo, rei do universo, é a busca por segurança, material e psicológica. As pessoas querem um Deus forte e poderoso, que possa resolver seus problemas e atender a seus desejos ocultos e explícitos. A imagem do Cristo, rei do universo é muito usada nas Igrejas cristãs de hoje. Aderir a este Cristo é ter uma vida próspera e feliz neste mundo, vida cheia de riqueza, prestígio e poder. Para estas pessoas podemos dizer sem medo de equívocos: Vocês criaram um deus de conveniência! Jesus não tem nada que ver com isso. Tudo não passa de fantasia, frustração e ilusão.

            A Igreja precisa se despojar da idéia do Cristo, rei do universo, e abraçar o que os evangelhos falam dele: o missionário, o itinerante, o pobre, o coitado de Nazaré, homem fiel ao projeto do Pai, que lhe foi fiel até a morte de cruz. É hora de abolir, definitivamente, a imagem do Cristo coroado, de cetro real nas mãos. Isto não vem de Deus, mas da imaginação humana. A realeza de Jesus está naquilo que apóstolo Paulo falou aos colossenses: ele é o princípio, o primogênito entre os mortos, é o “meio” pelo qual Deus reconcilia toda a humanidade. Jesus não pode ser desvinculado do Reino do Pai, pois é impossível entendê-lo sem esta necessária referência.

            Aderir a Jesus significa colocar-se em seu caminho. Este caminho é o da justiça, do amor, do perdão, da solidariedade, do serviço e da doação. Colocar-se neste caminho é tornar-se participante da vida divina, é tomar parte no Reino do Pai, tornando-o realidade na história humana. Na Igreja e fora dela, os que procuram a riqueza, o prestígio e o poder estão na contramão do Reino do Pai, portanto, estão a serviço das forças das trevas, que geram sofrimento e morte no mundo. Os reinos deste mundo criam estas forças contrárias ao Reino de Deus e há muitas pessoas que pensam que são cristãs, mas na verdade estão a serviço dos reinos deste mundo, em clara oposição ao Reino de Deus. Converter-se a Jesus é abandonar as pretensões meramente humanas e entrar, definitivamente, nas fileiras daqueles que o seguem.

Tiago de França

sábado, 16 de novembro de 2013

Fidelidade em meio às adversidades

“É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!” (Lc 21, 19).

            A fidelidade é dom de Deus. Confiando nas próprias forças, o ser humano não consegue ir muito longe.  A fraqueza lhe é condição natural. Chamado a viver na intimidade com Deus, o cristão procura se entregar à sua bondade e misericórdia. Jesus, na sua peregrinação terrestre viveu plenamente unido ao Pai, na certeza de que este jamais o abandonaria. Esta confiança o levou à entrega de sua própria vida. O seguidor de Jesus conhece como é o caminho e sabe também dos riscos do mesmo. Inspirados pelas palavras de Jesus (cf. Lc 21, 5 – 19), vamos meditar algumas questões importantes para o seguimento de Jesus em nossos dias.

O tempo está próximo

            Livres dos apocaliptismos e das profecias que anunciam somente a desgraça, precisamos suscitar a esperança na vida das pessoas; mas a esperança cristã não é ingênua nem fadada ao fracasso. Ela brota da vida sofrida do povo e não poderia ser diferente. Os sofredores deste mundo, renunciando ao desespero, vislumbram um novo amanhecer. Ricos e poderosos não sabem o que isto significa, e quando tomam conhecimento de tal esperança, geralmente não a entendem. O motivo é simples: não a entendem porque estão fora do caminho de Jesus. Somente os que estão no caminho entendem a dinâmica contagiante da esperança cristã.

            Para aqueles que estavam admirados com a beleza das belas pedras preciosas que embelezavam o Templo de Jerusalém, Jesus fala da transitoriedade de todas as coisas. Mais do que isto, Jesus aponta para o fim de todo sistema que explora as pessoas. Infelizmente, o Templo de Jerusalém foi transformado em casa de exploração do povo. A religião se transformou em pedra de tropeço, em instrumento de alienação e exploração dos pobres. O tempo da destruição do mal é certo. É tardio, mas certo. Os homens criam o mal, o aperfeiçoam, tornando-o cada vez mais destruidor; porém, com o passar do tempo tudo se acaba, se evapora, não sobrando pedra sobre pedra.

            Todos os dias assistimos às denúncias que destronam muitos poderosos. Eles riem e usufruem os bens roubados do próximo, mas, de repente, tudo é descoberto e a ruína lhes surpreende. O mal contém em si o germe de sua própria destruição. Todas as pessoas que se enveredam pelo caminho da maldade, cedo ou tarde, serão eliminadas da face da terra. Isto é inevitável. O mal não contém a verdade, mas é alicerçado na mentira, na ilusão e no falso progresso. É igual a um castelo construído sobre a areia, quando vem a tempestade tudo se desmorona. Soberbos e ímpios, segundo a profecia de Malaquias, são iguais à palha, que não suporta o fogo devorador (cf. Malaquias 3, 19).

Falsos mestres e falsas profecias

            Jesus alerta para o perigo dos falsos mestres: pessoas que afirmam ser o Messias, o Salvador. Aqui e acolá aparece gente dessa espécie, mas só fazem barulho, nada mais. Não são portadoras da verdade que liberta o ser humano. São inimigas da verdade e da liberdade. No Cristianismo de nossos dias elas estão nos púlpitos e nos templos, mas seus discursos estão desvinculados da palavra de Deus. São mentira e ilusão, não falam em nome de Deus, mas a partir de si mesmas e em função de si mesmas. Quando cansam, desistem e morrem com suas falsas profecias.

            Além de pessoas, o dinheiro continua sendo o deus de muita gente. As pessoas o procuram e se entregam, procurando ser felizes. O deus dinheiro parece ser a mola propulsora da humanidade atual. Suas espécies asseguram riqueza e prestígio. Consequência: vazio existencial, que leva inevitavelmente à morte. As pessoas que adoram ao dinheiro, colocando-o no centro de suas vidas, cedo ou tarde perdem o sentido da vida e morrem desesperadas, tragicamente. É vergonhoso e triste assistir a morte de quem passou toda a sua vida a serviço do deus dinheiro.

O testemunho das profetisas e profetas do Senhor

            Finalmente, Jesus fala da provação. Para os seguidores de Jesus este mundo é inadequado, pois sua mentalidade é outra. Quem se encontra no caminho de Jesus não se amolda às estruturas deste mundo, mas isso não quer dizer que se encontra em outro mundo. Afirmar que o cristão vive em outro mundo seria enganoso. Nos meios eclesiásticos, onde se encontram os estudiosos da lei de Deus, falar em transformação do mundo é falar de coisa ultrapassada. A Igreja atual está retomando esta mentalidade de transformação porque o Papa Francisco ousou retomá-la, mas os doutores da lei e fariseus da Igreja não param de dar boas risadas do Bispo de Roma.

            O mundo está profundamente marcado pela mentalidade capitalista, que ensina o ter e o poder. Muitos cristãos abandonaram Jesus e aderiram a esta mentalidade doentia e desumanizadora. Portanto, amoldaram-se às estruturas injustas deste mundo, que somente geram sofrimento e morte. Segundo a mentalidade capitalista, importante é a pessoa que tem dinheiro. O pobre e o desvalido são tratados como lixo e/ou como clientes da infinidade de mercadorias descartáveis que são produzidas. Em pouco tempo, pessoas e mercadorias se tornam a mesma coisa. A pessoa se torna coisa, podendo ser descartada.

            Para quem está contaminado pela mentalidade capitalista estas palavras soam como subversivas e dignas de desprezo. Os capitalistas são inimigos da liberdade, pois são demasiadamente apegados às coisas e às pessoas coisificadas. Suas vidas são superficiais e neutras, sua alegria é falsa e passageira. Os discípulos de Jesus fazem uso das coisas necessárias à vida. Certamente usam computador, telefone, carro, internet, roupas, sapatos. Seria hipocrisia afirmar o contrário.

É até comum encontrarmos cristãos fazendo uso dos modismos da atualidade. Os modistas estão contaminados. Os cristãos estão no mundo, mas fora da moda. São considerados ultrapassados porque não aderem à descartabilidade de todas as coisas e das pessoas. Usam das coisas necessárias e se relacionam com as pessoas, tendo Jesus diante dos olhos.  

            Jesus convida à firmeza e à fidelidade até o fim. O Reino de Deus está acontecendo, silenciosamente, na história. As testemunhas da ressurreição de Jesus, aqui e acolá fazem o Reino acontecer. Claro que a edificação do Reino não depende da força delas, mas o Espírito do Senhor, presente e atuante no mundo, é quem faz o Reino acontecer. Este mesmo Espírito está presente nas lutas dos sofredores, no cotidiano de suas vidas. A fidelidade a Jesus é graça deste Espírito. Alcançar, enfim, a vida plena é graça do Espírito.

O cristão permanece de pé, caminhando firme, porque é impulsionado pela esperança, que é graça do Espírito de Deus. Somente o Espírito é capaz de conceder a verdadeira liberdade, que o mundo jamais oferece nem se interessa em oferecer. O que os homens de hoje pensam ser a liberdade para as suas vidas, na verdade não passa de ilusão. Em pouco tempo descobrem que continuam desorientados e perdidos.

Não há outra liberdade senão a liberdade dos filhos e filhas de Deus. Nela se encontra a felicidade de que todos procuram. Fora desta liberdade somente existe ilusão, frustração, desorientação, dispersão e vazio existencial. Quer ser feliz? Arrisque-se encontrar a liberdade caminhando com Jesus. Este é o caminho.


Tiago de França

domingo, 10 de novembro de 2013

Ressurreição: realidade humana e espiritual

“Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem pra ele” (Lc 20, 38).

            O tema da ressurreição ocupa o centro da mensagem cristã. Não há Cristianismo sem fé na ressurreição. O que significa ressuscitar? Ressurreição não é reanimação de cadáver, como pensavam os saduceus que foram falar com Jesus (cf. Lc 20, 27 – 38) e como até hoje pensam muitos cristãos. A realidade da ressurreição é indescritível, ninguém sabe ao certo como acontece. Metaforicamente, arriscamos imagens e ideias, mas continua sendo um mistério. Portanto, todas as afirmações a respeito da ressurreição são aproximativas, pois não conseguem falar plenamente do mistério.

            Para entendermos a ressurreição precisamos olhar para Jesus, o Filho de Deus, primeiro a ressuscitar dentre os mortos. Ele mostrou que a ressurreição não é mera realidade pós-morte. Quando o discípulo se coloca no caminho de Jesus já começa a experimentar a realidade da ressurreição. Portanto, ressuscitar é estar em comunhão com Deus. Comunhão que ressuscita a pessoa para uma vida nova, transformada pela força do Espírito. A ressurreição é um mistério impulsionado pela ação amorosa do Espírito do Senhor.

            A ação do Espírito é silenciosa e gradativa, sem pressa alguma. A pessoa sente no seu cotidiano que há uma força que a conduz, encoraja, ilumina, torna a vida possível. A vida dessa pessoa é alegre e cheia de paz. Mesmo em meio às dificuldades e desafios, não há abatimento nem desespero, mas passo firme na direção de Deus. É algo tão misterioso que a pessoa já se sente naquela comunhão plena de que fala a escatologia. Há certa antecipação das alegrias celestiais. Essas pessoas que assim vivem são inabaláveis porque são movidas pela força divina. Elas já se desapegaram de tudo, inclusive de si mesmas. Deus, misteriosamente, as habita.

            Neste sentido, a ressurreição é uma experiência que antecede a morte e chega após esta à sua plenitude. Com a morte somos transformados em algo que no momento é indizível, algo que transcende a realidade humana. A este algo chamamos de ressurreição. Os que nesta vida estão unidos a Deus e esperam confiantemente nele são resgatados na morte para uma realidade nova. Em Jesus e na força do Espírito, a pessoa entra definitivamente na comunhão trinitária. É algo sublime, racionalmente inalcançável.

            Ter fé na ressurreição é colocar-se no caminho de Jesus. O caminho do calvário e a realidade da cruz antecedem à glória da ressurreição. Jesus entregou-se confiantemente a Deus, cumprindo sua vontade. As Escrituras atestam que sua fidelidade ao Pai o fez ressurgir da morte para a vida. Por meio de Jesus, Deus ressuscita a humanidade, concedendo-lhe vida plena. Não basta crer com a boca, mas é necessário fazer a experiência cotidiana da ressurreição.

            Quem acredita na ressurreição sabe que a vida não tem fim, que a morte é como que uma metamorfose, certa transubstanciação da realidade. Por isso, o discípulo de Jesus vai ao encontro da morte como seu Mestre: com a confiança que não será abandonado no túmulo. Quem acredita na ressurreição só conhecerá a morte do corpo, sabendo que este será transfigurado, transformado em algo eterno, assim como aconteceu com Jesus. É isso que Deus quer e é isto que Ele fará, pois é o que diz as Escrituras, palavra de Deus que não passa.

            A Igreja e o mundo de nossos dias carecem de mulheres e homens ressuscitados no Cristo Jesus: pessoas alegres, firmes, esperançosas, trabalhadoras, corajosas, audaciosas, simples, livres e de fé enraizada no testemunho da palavra de Deus. Há muito sofrimento no mundo, causado pelas diversas formas de violência e exploração. Os discípulos missionários de Jesus, iluminados pelo evangelho da vida e da liberdade, devem testemunhar a ressurreição de Jesus. Isto significa abraçar as grandes causas do Reino de Deus até as últimas consequências.

Nenhuma força deste mundo é superior à força da ressurreição e esta acontece por meio do suor e do sangue dos discípulos de Jesus, que são chamados a ser fermento, sal e luz em meio à desumanização que está acontecendo no mundo. E na parusia do Senhor, o grande dia da vitória sobre a morte, o Deus e Pai de Jesus fará justiça aos oprimidos e todos se sentarão à mesa de seu Reino. A festa vai ser bonita e sem fim, pois a vida, definitivamente, vai ser a realidade única. E Deus, Pai infinitamente amoroso e misericordioso, será tudo em todos. Enquanto este dia não chega, o Espírito consolador vai mantendo viva a nossa esperança e o caminho vai se tornando possível.


Tiago de França

domingo, 3 de novembro de 2013

A santidade no século XXI

“Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14).

            Houve uma época na história do Cristianismo em que os seguidores de Jesus identificaram-se de tal modo com seu estilo de vida que eram capazes de dar a própria vida como ele, enfrentando as ameaças e perseguições por parte dos mandatários do império romano. Toda a Igreja dos primeiros séculos foi assim: regada pelo sangue dos mártires, mulheres e homens que experimentaram no corpo as consequências da fidelidade a Jesus. Ser santo é ser fiel a Jesus.

            A fidelidade a Jesus se traduz na adesão ao seu projeto de humanização das pessoas. Isso não é comunismo, não é ideologia, é evangelho de Jesus. Este Jesus, crucificado e ressuscitado é a Luz que liberta das trevas da ignorância e do erro todo aquele que se dispõe à libertação. O santo de Deus é um iluminado, atingido pela luz de Jesus. É alguém capaz de oferecer aos outros essa luz, tornando-a visível, colando-a sobre os telhados. O santo reflete em sua vida a luz de Jesus.

            Na Idade Média, os santos foram fieis à sua época: contemplaram a Deus na vida monacal. Reservaram-se do mundo, distanciando-se dele. Eram ascéticos, disciplinados, virtuosos, orantes. Os grandes místicos eram assim: pessoas altamente compenetradas na contemplação. Enquanto alguns clérigos procuravam manter os privilégios da Igreja, os místicos estavam diante de Deus perguntando-se a respeito de sua vontade. Muitos não foram escutados, reconhecidos, vistos, mencionados; caíram no sagrado anonimato, no esquecimento da memória eclesiástica, mas permanecem vivos na memória do Deus que os chamou à perfeição.

            Karl Rahner, grande teólogo jesuíta, em algum lugar afirmou, no século passado, que os cristãos do sec. XXI seriam místicos, ou não seriam cristãos. De fato, o mundo atual é marcado por um barulho dispersivo, pela crise de identidade, que geram indiferença e ódio. Os santos não podem mais seguir as trilhas da contemplação monacal. Até os monges de hoje estão no meio do mundo, mesmo experimentando o silêncio exterior de seus monastérios. A humanidade está clamando por libertação e os cristãos, os santos de Deus, precisam ser sal e luz em meio ao azedume da mesmice, do engano, da mentira, da ilusão e da violenta exploração do homem pelo homem.

            Lavar e alvejar as vestes no sangue do Cordeiro: eis as palavras que traduzem com perfeição a vida genuinamente cristã. Ser fermento na massa, fazer crescer a semente de mostarda que de tão pequena se transforma na árvore da vida. O Reino precisa crescer, não pela mera força humana, frágil e errante, mas pela força de Deus que circula nas veias dos santos. Francisco, Terezinha, Pe. Cícero, Dorothy, Margarida, Oscar, Helder, Gandhi, Luther King, Bonhoeffer, Comblin, Fragoso, Ibiapina, Damião e tantas outras testemunhas da Ressurreição estão no mundo, silenciosamente, fazendo germinar, discretamente, o Reino de Deus.

            São os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos e sedentos de justiça, os misericordiosos, os puros, os promotores da paz, os perseguidos e injuriados: eis os santos de Deus. Estes são os construtores do Reino, que, cotidianamente, lavam e alvejam as vestes no sangue de Jesus, o Cordeiro de Deus. Na Igreja de nossos dias, o sangue do Cordeiro está na mesa do altar e nas lutas do povo; muitos o recebem nas espécies sagradas, mas se recusam a agir impulsionados pela mensagem o Cordeiro. A Eucaristia parece que não consegue frutificar na vida. Falta o testemunho diário, ousado, profeticamente transformador.

            Quem são, portanto, os santos do séc. XXI? São mulheres e homens que escutam a palavra de Jesus e se arriscam ao anunciá-la e praticá-la na vida. A maioria está fora da religião oficial: vive a experiência de Jesus, que não era doutor da lei nem fariseu, mas um pobre homem, considerado um clandestino, subversivo e agitador político. A religião tenta sacralizar Jesus e os santos, mas não consegue. Eles sempre escapam e o motivo é simples: Jesus foi conduzido não pelo imperativo categórico da lei, mas pelo Espírito, que é livre e libertador.

Os santos trilham o mesmo caminho: deixam-se guiar pelo Espírito que conduz à liberdade. Como na religião a liberdade não é bem aceita, então a maioria dos santos está fora dela. Os que se encontram nela são considerados loucos e desobedientes, simplesmente porque são guiados pelo Espírito do Senhor e não pelas normas, prescrições e orientações oriundas da lei criada pelos eclesiásticos; lei que não salva nem liberta, mas somente prende e oprime. Os santos vivem o princípio bíblico da obediência a Deus e não aos homens. Isto se chama liberdade. Não há santidade fora da liberdade. Os santos são mulheres e homens em processo contínuo de libertação. As palavras que os orientam são: Espírito, novidade, liberdade e Reino de Deus. Estas palavras não se encontram na lei, mas no evangelho de Jesus. Por isso que um santo não vive em função da lei, mas guiado pela luz e pela força de Deus.


Tiago de França