sexta-feira, 26 de julho de 2013

Algumas considerações sobre a Carta Encíclica Lumen Fidei, do Papa Francisco

                 
               Após ter lido a Carta Encíclica Lumen Fidei, quero partilhar algumas considerações a respeito da mesma, tendo em vista a sua importância para a vida da Igreja. Vamos pensá-la a partir de cinco pontos.

1. O problema da linguagem

            A maneira como a Encíclica foi escrita revela a sua autoria. Escrito pelo Papa Bento XVI, o documento foi assumido pelo Papa Francisco. Portanto, trata-se de um documento pontifício. Para um estudioso em Teologia, a Encíclica fala da fé de modo eloquentemente sistematizado. Característica da teologia de Bento XVI, tal documento não foi escrito para leigos, mas para pessoas estudiosas. Neste sentido, servirá muito bem para os estudantes dos cursos teológicos, especialmente para os mais aplicados. Um leigo lerá o documento, achará bonito, mas não entenderá muita coisa.

2. A fé explicitada na Encíclica

            A fé do povo latinoamericano não se encontra explicitada no documento, portanto, esta Encíclica não tem nenhuma ligação com a experiência de fé do povo de Deus da América Latina. Perderá seu tempo quem ousar utilizá-la para falar da experiência de fé dos pobres do povo de Deus. A leitura mostra claramente o tipo de fé cultivada pelo autor da mesma Encíclica: uma fé desencarnada, erudita e vivida longe dos desafios do mundo moderno. Os problemas do mundo são mencionados superficialmente e a fé explicitada aparece como se fosse uma experiência meramente intelectual, experimentada na tranquilidade de um mundo que não é o nosso.

3. A preocupação com a Tradição e com o Magistério

            A fé experimentada pelos pobres não está em função da Tradição nem do Magistério. Os pobres desconhecem estes termos e não se interessam por eles porque os mesmos nada lhes falam. A mera preocupação pela conservação da Tradição e a obediência ao Magistério da Igreja parece permear boa parte do documento. Este objetivo implicitamente manifesto pode ter sua importância para a Igreja institucional, para aqueles que se identificam com a institucionalização da experiência da fé, mas não significa muita coisa para os que ousam seguir Jesus em meio às intempéries do tempo presente. Tradição e Magistério soam mais como obstáculos para a reflexão encarnada da fé do que o oposto. A história recente tem demonstrado isto de forma abundante.

4. A experiência exodal da fé, do amor e da justiça

            Uma das questões do documento que mais me chamou a atenção foi a maneira como o autor tratou a experiência bíblica do êxodo. Falou-se de passagem. O Deus libertador que fez seu povo sair da casa da escravidão no Egito é considerado de modo peculiarmente estranho, considerando-se a hermenêutica que se faz do mesmo episódio na teologia latinoamericana. As alusões que o texto faz à justiça e ao amor desconhecem as lutas cotidianas dos pobres. Estes quase não aparecem no documento.

5. A fé e o Reino de Deus

            O autor da Encíclica perdeu uma excelente oportunidade. O Reino de Deus nunca foi tema preferido da teologia de Bento XVI. A fé poderia ter sido expressa em função do Reino de Deus. A tendência de centralizar outros temas em detrimento da oportuna e necessária reflexão sobre o Reino de Deus é algo que sempre atrapalhou seriamente a vida da Igreja. Não se trata simplesmente de oferecer uma reflexão sobre o Reino, mas de transformar a realidade do Reino na orientação fundamental da vida eclesial.

            Penso que é chegada a hora da hierarquia parar de emitir documentos. Estes estão mais em função da instituição do que da vida comum do povo de Deus. Com isto não estou desqualificando ou julgando desnecessários os documentos da Igreja, mas simplesmente eles não chegam ao povo, não foram escritos para o povo entender nem provocam as transformações necessárias na vida da Igreja. Neste sentido, não podemos esperar que o Papa Francisco se dedique a escrever novas encíclicas para a Igreja, pois ele sabe do que realmente a Igreja precisa.


Tiago de França

terça-feira, 16 de julho de 2013

Algumas considerações sobre a Jornada Mundial da Juventude 2013

           
             Neste ano, o Brasil vai sediar a Jornada Mundial da Juventude – JMJ, evento da Igreja Católica que reúne jovens vindos de diversas partes do mundo. Nesta reflexão queremos abordar algumas questões referentes à JMJ, dada a importância deste evento para a vida da Igreja. Vamos dar ênfase aos aspectos positivos e negativos que traduzem a realidade da Jornada. Refletir sobre o que acontece é necessário para evitarmos o fanatismo religioso, que cega as pessoas e as impede de enxergar os fatos com clareza.

 Alguns aspectos positivos

O Papa Francisco

            Diferentemente das outras vezes, será o Papa Francisco uma das figuras centrais da JMJ. Nos anos anteriores, desde a criação da JMJ, os Papas João Paulo II e Bento XVI compareceram à JMJ, mas a expectativa em torno de Francisco é bem maior, considerando a simpatia e a simplicidade com as quais vem lidando com as pessoas. Certamente, Francisco falará de consolo, de esperança, de futuro, de encorajamento, de alegria, de fé, amor e justiça. Tudo isto está em falta na vida de muitos jovens.

            Espera-se também que Francisco se posicione radicalmente contra a tudo aquilo que oprime e mata a juventude. Consciente de que não falará somente para jovens, o Papa chamará a atenção da sociedade brasileira, dos governantes e da Igreja para a causa da juventude, que no Brasil é praticamente esquecida, marginalizada. Nenhuma instância social, tanto civil quanto religiosa priorizou a juventude até hoje no Brasil. Quando se fala da juventude, a maioria das notícias está associada ao crime, à prostituição, ao abandono e à morte. Quase não há projetos.

            Francisco chamará a atenção da juventude para o seguimento de Jesus, origem e fonte de toda felicidade humana. Com palavras e gestos mostrará que vale a pena se apaixonar por Jesus e segui-lo na intimidade do coração. Certamente, vai despertar a esperança nos corações de muitas pessoas desoladas e desesperadas. Será uma bênção de Deus o encontro com um Papa que tem se esforçado em responder o chamado de Deus na verdade, na caridade e na simplicidade.

O anúncio do Evangelho

            A JMJ é um dos momentos propícios para lembrar aos jovens e à Igreja a verdade fundamental de que Jesus deve ocupar o centro da vida cristã. Por isso, com todas as letras, Francisco deve deixar bem claro que o autêntico Cristianismo é aquele no qual a Palavra e a vida se misturam e, intimamente, se comunicam e se entrelaçam. Apontar para Jesus, o Cristo que tem um projeto de vida claro e aberto a todos: eis a missão daquele que é chamado a confirmar os irmãos na fé.

O louvor, o encontro das culturas e a reconciliação

            A JMJ deve ser momento de alegria contagiante, de troca de experiências, de encontro entre pessoas de diferentes culturas; portanto, é um momento plural, feliz, fecundo, que é capaz de conferir ânimo aos desanimados. Os jovens de outras nações terão a oportunidade de conhecer uma das maiores cidades do país, Rio de Janeiro, palco da violência urbana, dos recentes protestos, da beleza exuberante das praias, do Cristo Redentor, do samba carioca, do chão batido por onde passam, diariamente, milhares de pessoas que lutam pela sobrevivência.

            Chamados à penitência através do sacramento da reconciliação, os jovens serão despertados para o real sentido da comunhão com Deus e com os irmãos. Sentirão o coração vibrar de alegria pela graça recebida e verão, na liturgia, na música, no encontro e nos demais momentos que ali se organizarão o quanto é belo e saudável viver na alegria dos irmãos. Saberão que Deus é verdadeiramente bom e que sua misericórdia é infinita, capaz de chegar a todos, indistintamente.

Alguns aspectos negativos

Os custos da JMJ

            Pelo que se sabe, os governos municipal, estadual e federal entrarão com uma pesada parcela de contribuição para a JMJ. Trata-se de um evento que custará alguns milhões de reais aos cofres públicos. Os cofres públicos brasileiros andam sendo saqueados indevidamente nos últimos anos. Direcionam-se milhões de reais para projetos e eventos que não são essenciais à vida da população. O maior saque indevido aos cofres públicos refere-se ao que se gastou com os estádios de futebol, em vista das copas das confederações e do mundo, sem contar os gastos com as olimpíadas de 2016. Não somos uma superpotência econômica com condições para arcar com tantos eventos sem que a nossa população fique no prejuízo.

Jesus, onde fica?

            Quando estão diante do Papa, geralmente, as pessoas se esquecem de Jesus. Ao longo da história, a figura do Papa foi se transformando em algo quase sobrenatural. Em certas épocas pensou-se até que o Papa seria o Santo de Deus, o único caminho que leva o homem a Deus. A figura papal foi ganhando títulos, honras, glória, poder, majestade até chegar o ponto de as pessoas pensarem que se trata de um semideus. Continua sendo chamado de Santo Pai o simples homem oriundo da Argentina.

          Eventos como a JMJ e outros, direta e indiretamente, terminam reforçando essa imagem antievangélica da figura do Bispo de Roma. Neste sentido e de modo geral, as pessoas caem no pecado da papolatria. Claro que Francisco não deseja isso para si nem para a Igreja, mas somente pelo fato de aparecer como vai aparecer, levará a tantos a cometer tal pecado. É preciso lembrar que foi o papa polonês, amigo da grande mídia sensacionalista e possuidor de extrema vaidade, o criador da JMJ. Esta para ele era uma excelente oportunidade de preparar a sua aclamação pública de santo súbito. Assim, Jesus vai sendo marginalizado e por mais que apontem para ele, as pessoas não tiram os olhos dos dedos de quem o aponta.

Os jovens pobres e marginalizados, onde ficam?

            O número de jovens pobres que vão à JMJ é relativamente pequeno, uma vez que os pobres de outros países não tem condições financeiras para virem ao Brasil. Os poucos jovens pobres que irão participar são aqueles que foram auxiliados pelas paróquias e dioceses de origem. A maioria dos jovens é de classe média e desconhece a triste realidade dos que vivem à margem da sociedade. Portanto, Francisco vai falar para uma juventude que está um pouco distante dos grandes dilemas que afetam a maioria dos jovens no mundo de hoje.

            Os jovens pobres, sem escola, sem casa, sem salário, os que estão envolvidos com as drogas, com a prostituição, com o crime organizado, os ameaçados de morte e os depressivos, os desorientados e sem rumo na vida, enfim, todos estes e tantos outros não irão participar da JMJ. Francisco vai falar para a juventude “convertida”, porque os jovens “transviados” não se interessam pela Igreja.

Ausência de projetos para a salvação da juventude

            De modo geral, os jovens que irão participar da JMJ são jovens que tem certa prática religiosa. No caso dos brasileiros, boa parte pertence à renovação carismática católica (RCC), outra à Pastoral da Juventude, outra parcela pertence a grupos de oração e uma minoria participa somente das celebrações eucarísticas. Estes grupos revelam a existência de uma geração de mentes um pouco fechadas para os reais problemas. A maioria está alheia aos problemas do mundo. Na RCC fala-se que se converteram a Jesus e abandonaram o mundo. Cultivam a perigosa espiritualidade (se é que podemos chamar de espiritualidade tal coisa!) da fuga mundi.

            Por isso, a mensagem de Francisco talvez chegue à mente, mas não descerá aos corações dos jovens. Estes amarão as palavras do Papa e irão aplaudi-lo, mas, no fundo, querem somente se alegrar e louvar o Senhor. Se isto, de fato, ocorrer, infelizmente se repetirá o que ocorreu com a Campanha da Fraternidade deste ano, que teve como Tema Fraternidade e Juventude, porém, pouco se fez em prol da juventude. A Campanha parece ser coisa do passado. O que ficou das Jornadas anteriores? Qual o efeito delas além de ter chamado a atenção da grande mídia para o fato de que ainda há jovens que se identificam com a Igreja? O que ficará da JMJ 2013?...

            Conclui-se que há esperanças de que o Papa Francisco possa colaborar para que a JMJ ganhe um novo sentido e uma nova orientação, mais concreta. A realidade da juventude em todo o mundo clama por justiça. De fato, a sociedade, os governos e a Igreja precisam trabalhar pela salvação da juventude. A Igreja precisa renunciar a seu velho e ultrapassado discurso moralista para levar a juventude a abraçar as grandes causas do Reino de Deus. A juventude precisa conhecer o que é este Reino e colocar-se a serviço dele, pois somente assim os jovens serão Igreja e a esta ganhará sangue novo em suas veias; do contrário, continuaremos assistindo ao progressivo e inevitável definhamento eclesial.

Tiago de França

domingo, 14 de julho de 2013

O amor ao próximo

“Vai e faze a mesma coisa” (Lc 10, 37).

            Na vida eclesial sempre se lê na liturgia o texto que narra a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25 – 37). Neste XV Domingo Comum esta parábola se encontra no centro da Liturgia da Palavra da celebração eucarística. Vamos partilhar uma meditação breve a respeito desta importante parábola para sabermos a respeito do que ela tem a nos ensinar hoje.

Os mestres da lei

            A parábola é precedida pela provocação de um mestre da lei: “Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Seu objetivo era colocar Jesus em dificuldade. Seu interesse não era a vida eterna, nem tão pouco saber o que se devia fazer para alcançá-la. Apesar disso, a pergunta é interessante e nos faz pensar o sentido do verbo fazer. Antes, é preciso considerar que os mestres da lei não se davam bem com Jesus porque não passavam de especialistas em lei. A conduta da maioria deles era abominável aos olhos de Deus, como é até hoje.

            Assim como no tempo de Jesus, a Igreja possui seus mestres da lei, mulheres e homens (mais homens que mulheres!), que versados na Escritura e na legislação eclesiástica pensam e organizam as crenças e o sistema religioso. A maioria deles, como não é difícil perceber, é formada de pessoas destituídas de amor ao próximo, pois vivem longe do comum dos mortais e não ousam praticar o que sistematicamente ensinam. São meros profissionais da religião, que dedicam toda a vida em estudar, sistematizar e expor o conteúdo da fé, mas sem praticá-la na comunidade cristã, no amor e na liberdade que esta mesma fé exige.

O fazer e a vida eterna

            A pergunta do mestre da lei induz o leitor a pensar que é preciso fazer alguma coisa para herdar a vida eterna. Infelizmente, até hoje e não se sabe até quando, há pessoas que pensam que seja necessário fazer muitas coisas para alcançar a salvação. Estas mesmas pessoas, pensando dessa forma, desconhecem a verdade de que a salvação é universal e gratuita. A partir do evangelho podemos assegurar, de uma vez por todas e sem medo algum: em Cristo somos gratuita e universalmente salvos. O que isto significa?

            Isto significa que nada do que fazemos deve utilizado como garantia para a nossa salvação. Ou seja, nossas boas ações e nossas práticas religiosas não devem ser realizadas tendo em vista a conquista da salvação, porque esta já nos foi dada, gratuita e definitivamente por Deus em Cristo e no Espírito. Assim, porque vivemos em sintonia com Deus e unidos a Ele é que agimos conforme seu mandamento, que nos ensina a sermos pessoas amorosas. Em outras palavras, é porque cremos em Deus que é amor e que nos ama, infinitamente, que transbordamos de amor pelo próximo, nosso irmão em Cristo.

            O culto que prestamos a Deus nada acrescenta aquilo que Ele é. O culto, as tradições e as práticas religiosas estão em função da compreensão e do louvor de Deus. Ele não as exige de nós nem devemos encará-las como fundamentais para a comunhão com Deus. Aqui não anulamos nem afirmamos que tais coisas não sejam importantes, mas apenas alertamos para o perigo constante de as colocarmos no centro. É Deus mesmo o centro da vida cristã e nosso fim último, as demais coisas são meios e justamente por serem meios são também mutáveis e finitas.

O caído

            Na parábola aparece um homem, que descia de Jerusalém a Jericó e que caiu nas mãos de assaltantes. Como era de se esperar, o resultado foi doloroso. Caído no chão e coberto de feridas, quase perdeu a vida, juntamente com seus pertences que foram levados pelos ladrões. Eis um homem aniquilado, indefeso, sem forças, impotente, quase morto, a espera de socorro. Vítima da estrada deserta e das inseguranças do caminho, tal homem representa tantos outros que estavam caídos nos caminhos desertos da vida.

            Hoje, estes caídos continuam expostos nas ruas, praças, becos, ruelas, avenidas, viadutos, aglomerados, no lixo, na sarjeta. São mulheres e homens que ninguém quer ver, se aproximar, tocar. A maioria das pessoas quando passam por tais pessoas fazem de conta que elas não existem. Por isso, é uma multidão de pessoas abandonadas, ignoradas porque são fedidas, mal vistas, incômodas. No abandono tentam sobreviver, adoecem, suportam e morrem, anonimamente. Ninguém sabe, ninguém viu, consequentemente, ninguém é responsável. É mais um indigente.

O sacerdote e o levita

            A religião tem seus sacerdotes e levitas: homens conhecedores da lei de Deus e ministros da palavra, designados para oferecer o culto e os sacrifícios a Deus. Na parábola, eles veem o caído e seguem adiante, pelo outro lado do caminho. O curioso é que o texto faz questão de dizer que ambos veem o homem caído, necessitado de socorro. Portanto, não basta ver a necessidade do outro. A Igreja é perita em humanidades, conhecedora do sofrimento humano. Nela, há especialistas que estudam demasiadamente e que são capazes de descrever, com detalhes, a realidade; mas, infelizmente, é doloroso reconhecer que esta mesma Igreja, no seu cotidiano, tem se mostrado insensível à realidade constatada.

            Falo a partir do que vejo e conheço e o digo sem medo algum: boa parte dos homens mais insensíveis da Igreja são os que constituem a sua hierarquia. Para não cometer injustiça nem faltar com a verdade, é preciso reconhecer que há bons padres e bons bispos, que são testemunhas fiéis da ressurreição de Jesus, pois doam a vida a serviço do próximo. Infelizmente, o número destes é bem pequeno.

A maioria procura o sacerdócio porque este ainda oferece vida cômoda e tranquila, cercada de todas as seguranças possíveis (residência espaçosa, alimentação cara, bons carros, planos de saúde, bons salários, entre outras regalias). Estes padres e bispos da Igreja são iguais ao sacerdote e ao levita da parábola, incapazes de se aproximar, tocar e socorrer as inúmeras pessoas caídas de suas comunidades; não passam de mercenários e profissionais do altar.

O bom samaritano

            Segundo a parábola, eis o que fez o samaritano que passava pelo caminho: chegou perto, viu e sentiu compaixão, aproximou-se e fez curativos, colocou o ferido em seu próprio animal, levou-o a uma pensão, onde cuidou dele. Por fim, o samaritano pagou a hospedagem recomendando que cuidasse do homem ferido, assegurando ainda pagar aquilo que o mesmo tivesse gasto a mais. O caído era um judeu, membro de um povo que não se dava bem com os samaritanos. Portanto, trata-se da solidariedade entre pessoas que pertenciam a povos que se estranhavam e viviam em permanente conflito.

            Os gestos do samaritano são gestos de amor ao próximo, são gestos de quem compreende o valor do outro e o sentido do cuidado que se deve ter com o próximo. Eis o que significa amar verdadeiramente: cuidar do próximo. Dentro de nossas famílias, em nossas comunidades ditas cristãs e em nosso ambiente de trabalho, estamos cuidando uns dos outros? Que fique bem claro que o mandamento de Jesus passa pelo cuidado que deve ter com o outro.

Para os cristãos católicos é preciso dizer com todas as letras: não adianta ir à missa e comungar, ser dizimista, ser devoto dos santos e de Nossa Senhora, receber todos os sacramentos possíveis, afirmar-se católico e gritar que ama a Deus se a pessoa que faz tudo isto é indiferente ao sofrimento do próximo, omitindo-se na primeira oportunidade. Repito: não adianta! Fora do amor que se expressa no cuidado que se deve ter com o próximo toda e qualquer prática religiosa é inútil diante de Deus.  

Uma Igreja samaritana

            Para que exista uma Igreja verdadeiramente samaritana é necessário que se entre na dinâmica do evangelho de Jesus, que aponta para o caído, o necessitado. O samaritano se colocou a serviço do homem caído. Portanto, não há outro caminho possível para que a Igreja seja, de fato, samaritana, senão pela via do serviço ao próximo, seja ele quem for. Enquanto a obediência às prescrições religiosas for a palavra de ordem da vida eclesial, o serviço, que se expressa no cuidado com o próximo continuará em segundo plano. Na Igreja, o serviço ainda está na ordem dos discursos, salvo raras exceções. Ainda falta muito para o mesmo chegue à ordem prática da vida cotidiana.


Tiago de França

domingo, 7 de julho de 2013

A missão dos discípulos missionários de Jesus

“O reino de Deus está próximo de vós” (Lc 10, 9).

            O tema da missão profundo e belo e constitui a essência da vida cristã. Falar da missão é falar de encontro, de chamado e de envio, que incluem necessariamente outros dois temas fundamentais, que estão, por isso mesmo, intimamente ligados: o seguimento de Jesus e o reino de Deus. Brevemente, vamos refletir sobre a missão dos discípulos de Jesus à luz do texto evangélico deste XIV Domingo Comum (cf. Lc 10, 1 – 12.17 – 20).

“O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos...” É Deus quem nos escolhe. Nenhum missionário adere à missão por conta própria, mas porque sente o chamado divino. Sentir-se escolhido por Deus é algo extraordinário, pois não se trata de um mero serviço, de mera ocupação, mero passatempo, mas de se colocar no caminho de Jesus e nele perseverar. Portanto, no princípio da missão está a escuta atenta à voz do Pai que chama cada um por seu nome, carinhosamente. O chamado acontece no silêncio da vida e do coração, é uma voz que chama a partir de dentro, que não dá sossego, chama insistentemente e espera uma resposta decidida, firme e generosa.

“... e os enviou dois a dois...” A missão acontece na comunidade dos seguidores de Jesus, jamais fora dela. O missionário não está a serviço de uma empresa, mas a serviço do Autor da vida, para a transmissão de sua Palavra libertadora. Portanto, não basta sentir-se chamado, mas é preciso sair do lugar onde se encontra, sair de si mesmo e partir, mergulhar nas águas mais profundas da vida das mulheres e homens que precisam conhecer a Palavra e se encontrar definitivamente com ela, para reencontrar o sentido último de suas vidas. A missão acontece na comunhão dos irmãos e irmãs que se querem bem, que na alegria e no testemunho fazem a luz de Jesus resplandecer em meio às trevas deste mundo.

“Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos”. As incompreensões, as perseguições e, em alguns casos, a morte fazem parte da vida dos seguidores e seguidoras, missionários e missionárias de Jesus. Além disso, a hostilidade e a indiferença por parte de muitos são obstáculos na caminhada.

Em um mundo marcado pela mentira, pela competição, pelas diversas formas de violência, pelo materialismo e consumismo e por tantos outros males que afetam a vida, o anúncio da Palavra de Deus se torna cada vez mais necessário e, ao mesmo tempo, encontra inúmeros adversários, além dos já mencionados. Por isso, o discípulo missionário precisa ser audaciosamente corajoso, firme e perseverante, deve confiar na graça de Deus que o assiste sem jamais abandoná-lo.

“Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias...” Necessariamente, o discípulo missionário precisa ser como Jesus: despojadamente livre para a missão. O apego a lugares, pessoas, instituições e à riqueza é um forte empecilho para que a missão se realize plenamente. Atualmente, mais do que em outras épocas, a cultura da posse dos bens materiais tem se intensificado bastante.

De modo geral, são importantes aquelas pessoas que possuem riquezas. O valor está ligado à posse dos bens supérfluos. Estes constituem aquilo que falta na vida de muitos, ou seja, enquanto alguns possuem demasiadamente, tantos outros padecem pela falta do necessário para viver dignamente. É impossível ser missionário da Palavra de Deus apegando-se a lugares, pessoas, instituições e à riqueza. O apego tira a liberdade e esta é fundamental para que existam o discipulado e a missão.

“Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa! ’” O discípulo missionário é um portador da paz de Jesus, paz que o mundo não tem para dar. A missão está em função da verdadeira paz, oriunda da justiça do Reino e da verdadeira alegria. Portanto, a missão acontece no anúncio da justiça, na vivência alegre da proclamação da palavra de Deus, por meio de gestos e palavras.

Como na oração de São Francisco de Assis, onde houver tristeza, o missionário levará a alegria e esta, que difere da alegria meramente mundana, transforma o ambiente em espaço de paz, de serenidade, de tranquilidade do espírito e das relações entre as pessoas. Com isto, não estamos afirmando que a paz de Jesus é ausência de conflito, pelo contrário, é no enfrentamento das injustiças, por meio da denúncia firme e corajosa, que a justiça do Reino e a paz acontecem na vida das pessoas.

“Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: ‘O reino de Deus está próximo de vós’”. O discípulo missionário é o operário do Senhor. Sentar e comer com as pessoas são gestos imprescindíveis na missão. Jesus sentava e comia com as pessoas e isto demonstrava que ele estava em plena comunhão com elas.

O evangelho ensina que a refeição é o lugar da partilha da vida, da comunhão dos irmãos, do encontro com o Cristo que se fez plenamente humano. Curar os doentes é sinônimo de libertação integral. A missão está em função desta libertação, que se interessa pela salvação do homem todo e de todo homem. O anúncio do Reino de Deus está no núcleo, ou seja, no centro da mensagem de Jesus e deve está no centro da missão da Igreja, enquanto peregrina neste mundo rumo ao Pai.

O texto termina com a alegria dos enviados em missão. Ficaram muito felizes e disseram a Jesus que até os demônios lhes obedeceram. Jesus os escuta e chama-lhes a atenção para aquilo que é importante: “Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu”. A felicidade do discípulo missionário de Jesus não se encontra na realização de curas e outros prodígios em nome de Deus, mas no fato de serem discípulos missionários, continuadores da missão que o Pai confiou ao Filho e este a confiou à Comunidade de seus seguidores e seguidoras. A espiritualidade cristã ensina que este mundo é incapaz de oferecer a verdadeira felicidade, pois esta se encontra no seguimento de Jesus de Nazaré.

Por fim, é preciso considerar que na vida da Igreja há discípulos missionários leigos e ordenados. Estes últimos tem mais dificuldades de cumprirem o mandato missionário do Senhor por causa da constituição hierárquica da Igreja, ou seja, a maneira como a hierarquia está organizada, assim como a forma como a mesma atua vai na contramão do caminho de Jesus. Não é difícil perceber que são poucos os hierarcas da Igreja que são realmente livres para a missão.

A maioria dos padres e bispos se encontra submetida a diversas formas de apego que conduz ao comodismo e ao consequente aburguesamento. A realidade mostra que, infelizmente, ainda estamos longe de termos uma Igreja pobre para os pobres conforme o desejo de Jesus, desejo reconhecido pelo Papa Francisco em suas primeiras palavras como Bispo da Igreja de Roma e responsável por confirmar os irmãos e irmãs na fé do Cristo ressuscitado. Que o Espírito nos confirme em nossa missão batismal, a de sermos, neste mundo, verdadeiros discípulos missionários de Jesus de Nazaré.

Tiago de França