terça-feira, 27 de agosto de 2013

Dom Helder Câmara e Dom Luciano Mendes: profetas do Reino de Deus

           
              Não podemos deixar passar despercebida a memória de dois grandes bispos da história da Igreja no Brasil: Dom Helder e Dom Luciano. Não evocaremos aqui meros traços biográficos, mas queremos ressaltar a importância destes homens para a vida e a missão da Igreja. O que eles nos ensinaram? O que fizeram de extraordinário? Em que acreditavam? Qual modelo de Igreja cultivaram? Estas e outras questões norteiam esta breve reflexão. O que me motiva a partilhar a presente reflexão, além da minha identificação pessoal, é uma data comum especial a ambos os bispos: Dom Helder faleceu no dia 27 de agosto de 1999, Dom Luciano, em 27 de agosto de 2006. Muito se disse até o momento sobre eles e muito se tem a dizer; precisamos manter viva a memória de ambos para o bem da Igreja.

Chamados à profecia

             Um bispo profeta continua sendo algo difícil na Igreja. Difícil porque a missão profética é árdua. Vida de profeta não é muito confortável. Na Igreja, os profetas são perseguidos e o são por dois motivos: ou porque não são compreendidos, ou porque não são aceitos. Compreensão e aceitação, neste caso, são realidades consequentes; ou seja, os profetas não são aceitos porque não pregam verdades pessoais, mas a Verdade que liberta todo ser humano, Jesus de Nazaré. O fato de não serem compreendidos, à primeira vista, parece estar em segundo lugar em relação à aceitação.

            Como pode um bispo na Igreja ser profeta? O motivo desta pergunta se refere ao fato histórico e vergonhoso de que os bispos, na Igreja, se tornaram príncipes. Jesus não confiou sua missão a príncipes, mas a pobres homens pecadores. Portanto, eis uma verdade fundamental para o ministério episcopal: partindo do pressuposto de que os bispos são sucessores dos apóstolos de Jesus, então devem ser como eles: pobres homens pecadores. Olhando para muitos bispos da Igreja, infelizmente, não notamos neles pobres homens pecadores, mas ricos homens com ar de santidade. Esta precisa ser buscada, mas não nos moldes que os mesmos procuram.

            Em Recife – PE e em alguns lugares antes, Dom Helder foi pastor e profeta. O mesmo pode ser dito de Dom Luciano, em Mariana – MG. O que significa ser pastor? Segundo Jesus, no evangelho de João, pastor é aquele que conhece as ovelhas e é capaz de dar a vida por elas. Para conhecer é necessário se aproximar e para se aproximar é necessário se tornar próximo. Neste sentido, Dom Helder e Dom Luciano foram dois bons samaritanos: foram ao encontro das pessoas caídas à beira do caminho, assaltadas pelos diversos males da vida.

Segundo o mesmo Cristo, no mesmo evangelho, ser pastor implica a doação da própria vida até o derramamento de sangue. É verdade que Dom Helder e Dom Luciano não foram mártires ao ponto de serem assassinados, como o foi Dom Oscar Romero, em El Salvador, mas o foram na vida que levaram: foram mártires da causa da justiça do Reino, vítimas da perseguição e da incompreensão por parte até da própria Igreja (hierarquia, Roma).

            Pelo que se percebe a partir da concepção evangélica de pastor, a vocação episcopal não deveria ser caminho fácil para aqueles que a abraçam com convicção. Suceder os apóstolos é tarefa difícil, requer o exercício da profecia. Como bem afirmou o teólogo Leonardo Boff quando na oportunidade do filme-documentário sobre Dom Helder: “O profeta não tem amor ao próprio pescoço”, ou seja, não tem medo de morrer porque, segundo a espiritualidade paulina, neste sentido, morrer é lucro. A morte, portanto, não é inimiga do profeta. Assim, as ameaças de morte não se tornam coisa grave que o impeça de levar a missão até as últimas consequências.

            O que o profeta denuncia e anuncia? Dom Helder e Dom Luciano denunciaram as injustiças que ceifaram a vida de muitas pessoas. Ambos lutaram contra o regime militar imposto na década de 60 no Brasil. Durante o período do regime militar, regime que recebeu apoio de muitos bispos da Igreja, se cometeram inúmeros crimes. Defender os indefesos, ser voz dos que procuravam por socorro eram atitudes firmes e corajosas de ambos os bispos. Os pobres e as demais pessoas de boa vontade ficavam admiradas com a coragem deles; os ricos e poderosos, frios e criminosos, tinham medo da força de suas palavras e gestos. Sentiam ódio e medo ao mesmo tempo, pois sabiam que ambos eram homens de Deus. Estes homens não anunciavam a si mesmos, mas proclamavam com vigor e ousadia profética o evangelho de Jesus de Nazaré.

Novos bispos para uma nova Igreja

            Este subtítulo merece a redação criteriosa de um livro. Recentemente, três bispos eméritos (que não mais exercem a função em uma diocese – Igreja particular) escreveram uma carta aberta aos bispos que compõem a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São eles: Dom José Maria Pires, emérito de João Pessoa, PB; Dom Pedro Casaldáliga, emérito de São Félix do Araguaia, MT e Dom Tomás Balduíno, emérito de Goiás, GO. Estes três bispos fazem parte do pequeno número de bispos eméritos que viveram a profética experiência da Igreja imediatamente pós-conciliar. São três profetas da Igreja no Brasil: homens da verdade, da caridade e da liberdade.

            Para que possamos ter uma nova Igreja, mais profética e missionária, necessitamos de novos bispos. Estes novos bispos precisam ser pastores e profetas. Vamos comentar, brevemente, para encerrar nossa reflexão, três características que marcaram a vida de Dom Helder e Dom Luciano e que devem fazer parte da personalidade dos novos bispos para uma nova Igreja.

1. Homens da verdade

            Anunciar Jesus Cristo, verdade que liberta e denunciar a mentira, principalmente a mentira institucionalizada, que mais destrói e mata o ser humano. Dom Helder e Dom Luciano pautaram suas vidas nesta verdade. O novo bispo precisa ser capaz de renunciar à mentira, ao engano e à ilusão para ser um proclamador da verdade evangélica, não de uma verdade qualquer, mas, na autenticidade da própria vida, anunciar ao mundo o evangelho da verdade.

2. Homens da caridade

            A caritas in veritate é outra virtude evangélica que deve permear as palavras e gestos dos novos bispos e que permearam a vida de Dom Helder e Dom Luciano. Ambos praticaram a caridade não por meio da mera doação de donativos para os pobres, mas, sobretudo, através da promoção da justiça em vista do bem comum. O bispo precisa promover a justiça, sendo ele em primeiro lugar, um homem íntegro, denunciando toda espécie de injustiça que danifica a vida humana, especialmente a vida dos pobres. Os pobres devem ser amigos do bispo e este deve ser amigo dos pobres. Amizade requer contato, aproximação, convivência, reciprocidade. Um bispo que não é amigo dos pobres é, consequente e inevitavelmente, amigo dos ricos e poderosos.

3. Homens da liberdade

            Homens que pautam suas vidas na verdade e na justiça são livres. Dom Helder e Dom Luciano tinham uma liberdade de espírito impressionante. Nada os prendia, nem os impedia de realizar a missão que Deus lhes tinha confiado. Libertos do medo da morte e de outros medos paralisantes foram homens despojados para a missão. Esta exige liberdade, pois fora da liberdade não há seguimento de Jesus. O apóstolo Paulo, quando escreveu aos gálatas, falou uma verdade claríssima: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou”. Assim, o bispo é chamado a trabalhar em função da liberdade do ser humano, a partir de palavras e gestos libertadores.

            A Igreja atual carece de homens e mulheres que sejam íntegros, caridosos e livres como Dom Helder e Dom Luciano. Ambos foram testemunhas da ressurreição do Senhor e, por isso mesmo, viveram conforme a vontade de Deus. São, portanto, santos. Eles não precisam ser canonizados, pois já são considerados santos pelo povo de Deus. Quem os conheceu sabe muito bem disso. Sabe que foram homens dedicados às grandes causas do Reino de Deus. Eles não tinham “psicologia de príncipes” porque eram pobres missionários do evangelho, promotores da justiça e da paz, guiados pelo Espírito do Senhor. Que eles intercedam a Deus por nós.


Tiago de França

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