“O
sacerdote não pode cair na tentação de se considerar somente mero delegado ou
apenas representante da comunidade, mas sim um dom para ela, pela unção do
Espírito e por sua especial união com Cristo” (Documento de
Aparecida, n. 193).
Anualmente, na memória de São João Maria
Vianney, o cura de Ars, celebrada no dia 4 de agosto, a Igreja também celebra o
Dia do Padre. Esta breve reflexão, à luz do Documento de Aparecida – DA, do
evangelho e daquilo que compreendo ser o sacerdócio ministerial, é endereçada
especialmente aos padres, com os quais tenho certo contato. Ela quer ser uma
palavra de apoio e, em nome da amizade, uma advertência fraterna àqueles que
aparentam certa desorientação no caminho que abraçaram. Isto não impede que
leigos e leigas também leiam esta reflexão.
Não sou bispo para advertir quem quer
que seja, mas na qualidade de leitor dos documentos oficiais e das Escrituras,
assim como na qualidade de amigo e irmão em Cristo ouso apresentar-lhes algumas
provocações. A citação acima descrita, retirada do n. 193 do DA é como que o
fio condutor de nossa reflexão.
A diferença
entre presbítero e mercenário
No evangelho segundo João, Jesus
se apresenta como o bom pastor, como aquele que conhece e ama suas ovelhas ao
ponto de dar a vida por elas (cf. Jo 10, 11ss). A Igreja ensina que todo padre
deve se configurar a Cristo bom pastor. O que isto significa? Assim como Jesus,
os padres são chamados a ser como Ele: conhecedores das ovelhas do rebanho do
Senhor, ter profundo amor por elas ao ponto de também dar a vida.
Na prática, isto implica que:
1. Para conhecer, os padres precisam se
aproximar das pessoas, pois o conhecimento no sentido pastoral não acontece sem
a devida aproximação;
2. Amar, indistintamente, as pessoas,
especialmente as que são pobres e excluídas, despojando-se, assim, das amizades
com as pessoas elitizadas que exploram os pobres;
3. Ser capaz de dar a vida,
desapegando-se, assim, da tentação de preservar a própria vida, indo ao
encontro das pessoas nas situações perigosas em que as mesmas se encontram,
correndo os riscos inerentes à missão.
Os que assim procedem são
reconhecidamente pastores do povo de Deus; do contrário, são mercenários. Estes
possuem algumas características visíveis, que podemos sintetizá-las desse modo:
1. Procuram, em primeiro lugar, seus
próprios interesses. Ingressam no seminário e, posteriormente, são admitidos ao
ministério perguntando-se a si mesmos: O que este ministério pode me dar?
Encontram a resposta no prestígio, na riqueza e no poder, principalmente neste
último;
2. Por pensarem demasiadamente em si
mesmos, não se importam com a vida sofrida do povo. Portanto, não aparecem na
vida do povo, são homens das belíssimas celebrações (quando sabem fazê-las
bem!) e das conversas cordiais nas sacristias e nos atendimentos marcados em
seus gabinetes;
3. Não tendo compromisso claro e efetivo
com as vítimas das inúmeras injustiças que se cometem neste mundo, tais padres,
dissimuladamente, usam do ministério para crescerem na vida. Alguns procuram as
riquezas e se tornam, de fato, homens bem sucedidos. Quando morrem, deixam
fortunas para parentes e amigos. Particularmente, conheci alguns que assim
procederam. Outros, porém, almejam subir na hierarquia da Igreja, desejando ser
bispos, cardeais e serem membros dos organismos mais renomados e poderosos da
Igreja. Os que não conseguem, terminam se satisfazendo com os “títulos de
consolação”, sendo cônegos, monsenhores etc.
O fato é que tanto o prestígio quanto a
riqueza trazem consigo o fascínio do poder. Adquirindo-os, o padre ganha
renome. Consequentemente, fica desfigurado, ou seja, pode ser tudo, menos um
servidor do evangelho de Jesus. O padre mercenário é alguém indiferente à dor
do próximo, é um lobo oportunista, homem perigoso, que se aproveita da
ingenuidade e da boa vontade das pessoas que desconhecem suas reais intenções. Trata-se
de um ministro de si mesmo, que usurpa a palavra e o ministério adquirido, que
poderá até escapar da justiça dos homens, mas terá que prestar contas a Deus
daquilo que fez do dom recebido no momento de sua ordenação e durante toda a
sua vida.
Aqui me recordo da metáfora utilizada
pelo Pe. Cícero de Juazeiro, em um de seus fervorosos sermões, referindo-se aos
ministros infiéis da Igreja: “Meus
amiguinhos, a calçada que dá para a porta do inferno é feita de cabeças de
padre!” É uma imagem um pouco forte, mas que fala da gravidade dos que,
conscientemente, abusam do ministério ordenado, fazendo sofrer inúmeras pessoas
e levando a tantas outras a perderem a fé no Cristo ressuscitado.
Unidos a Cristo
e servidores do povo de Deus
Cada padre é chamado a servir ao
povo de Deus de acordo com a realidade na qual está inserido. Neste sentido,
sua identidade teológica precisa estar em plena consonância com sua inserção
cultural. A necessária relação entre identidade teológica do padre e sua inserção
na cultura é uma questão fundamental do ministério ordenado pensada pelo
Concílio Vaticano II e que aqui só merece só tocada de passagem, visto ser uma
questão que exige maiores aprofundamentos. O que se pode, resumidamente dizer,
é que o padre precisa de ajuda, pois não pode caminhar sozinho. Não existe padre
no vácuo, sua vocação é essencialmente
comunitária e, portanto, coletiva.
Para manter-se fiel ao propósito feito
na ordenação, além do fundamental auxílio da graça de Deus, que o faz perseverar
no seguimento de Jesus, o padre precisa estar consciente do seguinte:
1.
Sua formação não termina no seminário. Neste, o padre estuda Filosofia e
Teologia, aprende o valor da comunidade e é iniciado na vida celibatária. Isto significa
que a formação permanente é parte integral da formação presbiteral. Em
outras palavras, o padre que pensar que está devidamente formado e pronto para
responder à altura do tempo presente, recusando-se à formação permanente,
encontra-se profundamente equivocado, pois a formação recebida no seminário,
quando não transformada em deformação, é insuficiente para o exercício de sua
missão;
2.
Não existe sacerdócio ministerial autêntico na Igreja sem vida de oração,
estudo e comunhão eucarística. Padres que somente presidem a Eucaristia e que
somente rezam quando delas participam são facilmente levados à infidelidade no
sacerdócio que abraçaram. Portanto, o padre deve ser homem de oração; do
contrário, não persevera na vocação. Poderá até morrer no exercício do
sacerdócio, mas este se lhe tornará um fardo insuportável. Aqui não preciso
discorrer a respeito de como se comportam os padres que não se habituaram à
oração constante, humilde e perseverante. O padre precisa estudar, estar em
sintonia com os problemas do mundo, inteirando-se dele; do contrário,
reproduzirá uma pregação alienada e insuportável aos ouvidos dos que tem o
mínimo de bom senso.
O padre deve celebrar, juntamente com o
povo, a Eucaristia. Presidir a assembleia orante não é meramente ler o missal
nem fazer teatro, mas rezar juntamente com o povo, pois no altar é o
presidente, não mero representante de uma reunião ordinária da paróquia. O povo,
com a sensibilidade que lhe é peculiar, logo percebe se o padre está em comunhão
com Deus ou se está, mecanicamente, exercendo uma função que, interiormente,
lhe causa incômodo e, em alguns casos, repugnância. É escandaloso afirmar, mas
temos que admitir que, infelizmente, há padres que não gostam de presidir a
Eucaristia, mesmo sabendo que esta é uma de suas principais atribuições.
3.
Saiba todo padre que seu ministério está
a serviço do sacerdócio comum dos fieis (cf. o n. 193 do DA). Isto significa
que nenhum padre pode se sentir superior a qualquer leigo; que não pode
transformar o sacerdócio comum dos fieis como um pedestal para o seu, pois
ambos os sacerdócios participam igualmente da missão de Cristo
Jesus. Portanto, é preciso afirmar categoricamente que os leigos não são auxiliares dos
padres, nem são seus servidores; pelo contrário, cada padre deve se colocar a
serviço do povo de Deus. Em relação aos padres, os leigos são chamados
a serem colaboradores, pois na Igreja a missão destes tem caráter e estatuto
próprios.
Por fim, precisamos ainda considerar
outras três questões pertinentes, a saber:
1.
O celibato
obrigatório continua sendo um fardo na vida de muitos padres. É preciso
afirmar que nem todo aquele que se sente chamado ao sacerdócio ministerial tem
vocação para viver o celibato. O ministério é uma coisa, o celibato outra. É inaceitável
a afirmação de que todo aquele que não é fiel ao celibato, consequentemente,
seja infiel ao sacerdócio abraçado. São duas questões que precisam ser tratadas
de modo diferenciado, mesmo estando interligadas. É verdade que o celibato tem
sua razão de ser, mas somente para
aqueles que o abraçam livremente e o vivem numa total entrega de si mesmos pelo
Reino de Deus (cf. o n. 196 do DA).
Enquanto tal situação não for
sinceramente repensada na Igreja, continuaremos rezando por muitas e santas
vocações, mas o problema irá persistir. A Igreja estaria bem melhor se
admitisse ao ministério presbiteral mulheres e casais empenhados na missão.
Infelizmente, o sacerdócio ministerial, em pleno séc. XXI, continua sendo
reservado às pessoas do sexo masculino e que se predispõem a viver sem o
auxílio, a companhia e o aconchego da mulher na qualidade de esposa;
2.
O celibato gera um segundo problema que a Igreja tenta resolver, mas não consegue.
Estamos falando da escassez de padre e, consequentemente, das inúmeras comunidades
cristãs sem Eucaristia. Fala-se do problema, mas busca-se solucionar rezando a
Deus para que envie operários para a messe. Rezar pelas vocações é, sem dúvida
alguma, algo necessário; mas é verdade também que somente as orações não solucionarão
o problema.
Além do celibato obrigatório, o problema
da escassez está ligado também à má distribuição dos padres na Igreja e à falta
de atenção e valor para com os padres que deixaram o exercício ministerial. Infelizmente,
os que deixam o exercício do ministério são relegados ao esquecimento e muitas
vezes discriminados por aqueles que desconhecem os reais motivos que levam
muitos a deixarem de atuar como padres. A Igreja ainda não acordou neste
sentido, continua desatenta e até tratando com frieza e desumanidade os que
deixam o exercício do ministério. Somente em poucos casos, quando bispos e
provinciais são compreensivos, então há certo tratamento digno da questão;
3.
O padre é chamado a ser discípulo missionário de Jesus
Cristo. Para isto, precisa dedicar toda a sua vida, com sua força, inteligência
e vontade, ao cuidado das vítimas das inúmeras injustiças que se cometem neste
mundo. Somente assim, seu ministério terá sentido e nenhuma espécie de crise ou
depressão o atingirá. O padre que se dedica ao serviço humilde do povo de Deus
não perde tempo com questões ínfimas e insignificantes da existência humana,
porque uma vez iluminado pelo Espírito, encontrando-se permanentemente
assistindo pela graça divina e inserido na vida do povo, certamente será capaz
de manter-se unido ao Deus que o chamou até as últimas consequências.
Estas e outras questões relacionadas
à vida e ao ministério dos presbíteros merecem nossa atenção, pois se trata de um
serviço importante à vida e à missão da Igreja no mundo. De fato, a Igreja de
hoje carece de padres cada vez mais livres, abertos e disponíveis, padres
generosos, dóceis e atentos, amigos dos humildes e corajosos, profetas e
ousadamente firmes, de profundas convicções, sensatos, sábios e santos. Fica aqui
a minha palavra, o meu abraço e a minha oração a todos os padres da Igreja,
especialmente àqueles com os quais mantenho certo contato, sendo alguns deles
verdadeiros sinais da presença amorosa de Deus no mundo. Que o Pe. Cícero de
Juazeiro, a quem estimo muito e o tenho como intercessor, assim como tantos
outros santos padres da Igreja no nordeste, intercedam a Deus pelos padres da
Igreja Católica, para que possam ser humildes servos do povo de Deus na
concretização do Reino.
Tiago de França
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