domingo, 29 de setembro de 2013

O rico e o pobre Lázaro

“Ai dos que vivem despreocupadamente em Sião, os que se sentem seguros nas alturas de Samaria!” (Amós 6, 1).

            A parábola do rico e do pobre Lazário, própria do evangelho de Lucas (cf. Lc 16, 19 – 31), não foi escrita com a intenção de proclamar ao mundo uma divindade que premia alguns e castiga a outros. Deus não é assim. Essa divindade é criação da imaginação fértil dos seres humanos, que usando da religião criou o que se pode chamar de teologia da retribuição. O Pai de Jesus é bom e misericordioso e nossa relação com Ele acontece na gratuidade.

            Na parábola o pobre tem nome e se chama Lázaro. Este nome significa Deus ajuda. Aqui me recordo da esperança dos pobres. Estes acreditam que Deus ajuda. Vivem com o nome de Deus na boca, diurnamente. “Se Deus quiser!”, dizem com firmeza e convicção. De fato, Deus ajuda os pobres na luta cotidiana pela sobrevivência. Ajuda o doente na falta de médico, o encarcerado no cumprimento da pena, o desempregado no sustento dos filhos e em tantas outras situações. A esperança evita o desespero e alimenta a perseverança. A esperança dos pobres vive!

            Lázaro se encontra à porta do rico, padecendo de diversos males. A sociedade tende a ignorá-lo, procurando abafar seu grito. Os marginalizados clamam por justiça e esta demora acontecer. Os ricos continuam vestindo-se de roupas finas e elegantes, residindo em casas luxuosas, banqueteando-se com fartura, gozando a vida. A miséria e o sofrimento dos pobres não lhes chamam a atenção. Alguns até comentam, chegando até a defender os pobres em reuniões e encontros, mas não passam disso. Os ricos, apegados às suas riquezas, continuam achando que o sentido da vida depende delas. O maior medo é perdê-las. Isto significaria o fim de suas vidas, hipocritamente vividas.

            O capitalismo selvagem, impulsionado por pessoas ambiciosas, preocupadas mais com o ter do que com o ser, mata milhões de pessoas em todo o mundo. Atualmente, milhões de pessoas morrem de fome e aquelas que não morrem de fome encontram-se desesperadas. O abismo entre o rico e o pobre Lázaro continua cada vez maior. Países e pessoas ricas ficam cada vez mais ricos. Recentemente, alguns ricos caíram de seus tronos, mas não chegaram a ser pobres; apenas perderam parte de suas riquezas. A crise econômica diminuiu um pouco e os pobres foram e continuam sendo as maiores vítimas.

            Com esta parábola, o que Jesus está nos ensinando? Jesus está apontando na direção dos pobres. Está dizendo que o abismo entre ricos e pobres não é do agrado de Deus. Está apontando para a solidariedade, não uma solidariedade que se traduz na mera doação de dinheiro ou donativos, mas a solidariedade que revisa as estruturas da sociedade e as humaniza. Há um gravíssimo pecado estrutural sendo cometido por pessoas que constroem e reforçam estruturas opressoras, desumanizadoras e cruéis. A sede de dinheiro, a procura desenfreada pela riqueza e a concentração absurda da renda excluem e matam inúmeras pessoas.

            Finalizando esta reflexão, reforço a advertência do profeta Amós (cf. Amós 6, 1.4 – 7), assim como a de Jesus. Você que está concluindo a leitura desta breve reflexão, pare e pense nas seguintes considerações: se você é rico, possui mais do que o necessário para viver, saiba que o supérfluo é o que falta na vida dos pobres. Não importa se sua riqueza é lícita ou não, do ponto de vista da aquisição da mesma. Aos olhos de Deus o que não nos é necessário e que se encontra concentrado em nossas mãos, não nos pertence e, portanto, gera o pecado do egoísmo em nós.

Aliás, concentração de renda e enriquecimento lícito ou ilícito são coisas de pessoas egoístas. E você que não é rico, que só tem o necessário para viver, não pense que somente somando fé e despojamento a salvação está assegurada. É verdade que precisamos ser despojados, mas, além disso, precisamos ser solidários. Em outras palavras, precisamos ir ao encontro dos que precisam de nós e por meio de palavras e gestos devolvermos a dignidade às pessoas.

Todo aquele que acredita em Jesus, que deseja ser seu seguidor, não pode ser omisso diante das injustiças que geram a exclusão e a miséria. Precisamos ser solidários e comprometidos; do contrário, nossa fé é superficial e incompleta, e nossa religião mentirosa e sem futuro. Se quisermos participar da alegria da salvação no Cristo Jesus, a exigência evangélica é clara: amar como Jesus amou, sem hipocrisia e sem apegos, na verdade e na liberdade.

Isto só pode acontecer quando nos propomos a fazer a experiência do samaritano, que diante do pobre caído e ferido não pensou duas vezes: viu, teve compaixão, se aproximou e agiu, curando-lhe as feridas, aliviando seu sofrimento. Segundo o Lucas, o caído não era nenhum conhecido ou amigo, mas um estranho. Na sociedade atual muitas faces estranhas estão com feridas abertas, esperando aqueles que professam a fé em Jesus para a unção com o óleo da solidariedade. Quem afirma ter fé em Jesus não pode ser indiferente às faces estranhas do próximo.

Tiago de França

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

São Vicente de Paulo e os pobres

         
                Neste dia 27 de setembro não poderia me esquecer de São Vicente de Paulo (1581 – 1660), um dos maiores santos da história da Igreja. Sacerdote francês, homem dos pobres. Quando ordenado padre, aos 19 anos, não tinha boas intenções com o sacerdócio. Queria ser rico para socorrer a família. Vicente pensava como a maioria dos candidatos ao sacerdócio de sua época. O sacerdócio era uma carreira promissora. Em quase toda família tinha um padre. Com o passar do tempo e no encontro com os pobres, Vicente foi percebendo que suas pretensões não eram justas e experimentou vários fracassos. Abraçou a conversão.

            Vicente se encontrou com os pobres do campo e viu que eles eram famintos de pão, de palavra e de amor. Viu neles a face sofrida de Jesus. Percebeu que sua missão era socorrer aquele povo esquecido e explorado. Procurou outras pessoas para ajudá-lo na nova empreitada. Inicialmente, mulheres eram convidadas para socorrer, materialmente, os pobres. Posteriormente, estas mulheres se multiplicaram e Vicente propôs que se chamassem de Filhas da Caridade. Alguns padres seculares quiseram trilhar o caminho da caridade, vendo o interesse deles, Vicente fundou a Congregação da Missão.

            Os documentos históricos revelam que Vicente fundou apenas um movimento de leigos, leigas e de padres para o serviço da missão. Não passava pela sua cabeça entrar para a história como um grande fundador de uma famosa ordem, congregação ou instituto. Sua preocupação era o socorro dos pobres: socorro espiritual e material. Naquela época, a Igreja contava com muitos padres e religiosos, mas todos na clausura, no isolamento do mundo, servindo a Deus na boa vida dos conventos e mosteiros. Os religiosos pensavam que estavam próximos de Deus preservando-se dos perigos do mundo.

            Vicente morreu feliz, em 1660, rodeado de mulheres e homens, piedosos e atentos às necessidades dos pobres. O reconhecimento de sua missão junto aos pobres foi imediato. Todos o consideravam um santo, mas um santo diferente. Vicente não conversava com Maria, com os anjos, com os santos; não tinha visões, êxtases nem coisas do tipo. O segredo de Vicente é o segredo da Trindade Santa: era dócil e compassivo para com os pobres. Não podemos duvidar que era um amigo dos pobres, que amava-os de verdade.

            Com o passar do tempo, as Filhas da Caridade abraçaram a clausura. Vicente não as criou para a vida monástica, mas para experimentarem contemplação e ação no meio dos pobres. Deveriam ser as missionárias da caridade por excelência na Igreja. Continuam numerosas, mas dificilmente são vistas nas ruas, onde viviam com seu fundador nas origens. Os Padres da Missão ou Lazaristas, como são conhecidos, se interessaram pela formação do clero. Na Igreja pré-Vaticano II foram, no Brasil, os responsáveis pela aplicação do método tridentino de formação clerical. Ficaram famosos pela disciplina, erudição e fidelidade à ortodoxia, além das famosas missões populares.

            Atualmente, assim como as demais ordens, congregações e institutos, os lazaristas e filhas da caridade procuram redefinir sua identidade e programas de missão. Voltar ao primeiro amor, reler o fundador, reencontrar-se com os pobres e tornar o ofício divino de Jesus a sua prática cotidiana de missão. São desafios inadiáveis. A vida e a obra de Vicente de Paulo são testemunhas do amor misericordioso de Deus.

Recordar Vicente é recordar que Jesus foi ungido para evangelizar os pobres. Os pobres: os prediletos de Jesus. Este grande e humilde santo francês nos ensina a nos identificarmos com a vontade de Deus, a nos unirmos a Jesus Cristo que se revela nos pobres e a vivermos afetiva e efetivamente o amor. Estes três aspectos constituem a essência de sua espiritualidade, que jamais pode ser esquecida. A Igreja e cada cristão em particular tem muito a aprender com o testemunho missionário e profético de São Vicente de Paulo. Nele, o Espírito nos chama a atenção para a profecia que se manifesta na prática afetiva e efetiva da caridade.


Tiago de França

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A indisciplina do Papa Francisco e a disciplina na Igreja

             
              Tendo escutado por duas vezes o Papa Francisco falar que se reconhece como um indisciplinado, interessou-me escrever sobre o que vem a ser este valioso estado de indisciplina. Com isto, interessa-nos, brevemente, falar sobre a disciplina na Igreja, não no nível meramente histórico, mas no nível de sentido que a mesma possui para a vida eclesial. Antes, é preciso considerar que a ideia de disciplina está ligada, em primeiro lugar, à vida clerical; posteriormente, o povo também é induzido a viver de forma disciplinada na Igreja. Inicialmente, podemos assegurar sem medo algum: o pontificado de Francisco não será marcado pela volta à grande disciplina como o foram os pontificados de seus dois últimos predecessores: João Paulo II e Bento XVI.

            Um jesuíta, formado na espiritualidade cultivada por Santo Inácio de Loyola, costuma prezar o valor do discernimento. Esta parece ser a palavra norteadora da espiritualidade inaciana. Falar de discernimento é reconhecer a centralidade do Espírito de Deus que guia as pessoas no caminho da vida. Neste caminho, segundo Santo Inácio, somos convidados a encontrar a Deus em todas as coisas. O Papa Francisco foi formado nesta espiritualidade do discernimento e, segundo ele, numa recente entrevista às revistas dos jesuítas, foi a realidade do discernimento que o fez ingressar na Companhia de Jesus. Assim, não é de se esperar que um Papa jesuíta, se assim podemos nomeá-lo, venha dar ênfase à disciplina na vida da Igreja; apesar da disciplina também ser um dos pilares da espiritualidade na qual foi formado.

Disciplina e discernimento à luz da experiência de Jesus

            Se olharmos para Jesus, considerando suas palavras e gestos na sua relação com a religião de sua época, não teremos dificuldade alguma para reconhecê-lo como um indisciplinado. Mestres da lei e fariseus acusavam-no constantemente de rebeldia, levando a multidão a vê-lo como um agitador político. Em Jesus, o discernimento não se encontra somente na sua capacidade de enfrentar corajosamente as autoridades religiosas e civis de seu tempo, mas na sua capacidade humilde, sincera e providencial de se posicionar diante das ameaças à vida dos seres humanos, especialmente dos empobrecidos, principais vítimas dos poderes religioso e civil.

            Na escuta permanente ao Pai e sendo-lhe fiel até às últimas consequências, Jesus ensina o verdadeiro significado do discernimento: colocar-se na escuta do Pai, obedecendo-lhe. A obediência de Jesus estava plenamente legitimada pela sua liberdade de espírito, que o fez conhecido em todos os lugares. Os empobrecidos reconheceram nele o Deus que veio visitar seu povo. À luz da vontade divina, era um servo fiel e prudente; à luz da lei, era um revolucionário, capaz de pegar chicotes e expulsar os profanadores do templo. A revolução mencionada não se refere somente ao seu aspecto político, que não pode ser ofuscado, mas, sobretudo, à ação do Deus libertador que fazendo morada no meio de seu povo, se coloca a seu serviço.

            Jesus não era um jovem disciplinado. A disciplina era vivida, hipocritamente, pelos mestres da lei e fariseus, e pelos demais que formavam o conjunto das autoridades religiosas da época: pessoas que, aparentemente, eram consideradas fiéis à ortodoxia da lei, mas que, na verdade, não passavam de sepulcros caiados, cheio de podridão e falsidade. Aparentemente, eram alinhadas no vestir, no andar, no falar, enfim, investiam na aparência que engana. O que faziam, segundo as próprias palavras de Jesus, eram colocar pesados fardos nos ombros dos empobrecidos, sendo que eles mesmos não tinham disposição alguma em cumprir a lei que pregavam.

Uma síntese histórica

            Desde a época do reconhecimento da Igreja como religião oficial do Império Romano, no séc. IV, até o Concílio Vaticano II, principalmente após o Concílio de Trento, no séc. XVI, a Igreja se identificou com a disciplina. Trata-se de um tempo fundamentalmente clerical. Confinados em mosteiros, seminários, conventos e outras formas de isolamento do mundo, religiosos e clérigos se identificaram com uma vida mística e ascética. Combinavam mística, ascese e disciplina: uma espécie de vias da salvação. Os leigos, indisciplinados por natureza, não poderiam ser elevados às honras dos altares, pois viviam no mundo. Este era o lugar da perdição, dos indisciplinados.

            Até que o Espírito resolveu soprar e tornar a indisciplina a palavra de referência na vida de um Papa, que levado pelo mesmo Espírito, tomou a feliz e providencial iniciativa de realizar o Concílio Ecumênico Vaticano II, no século passado. João XXIII era um indisciplinado. Não gostava muito da vida cômoda e luxuosa de Pontífice. Vez e outra era pego vestindo-se e comportando-se como um fiel comum da Igreja: despojado das insígnias pontifícias, oriundas do paganismo dos imperadores da Roma antiga. O Papa bom, de olho nos sinais dos tempos, assumiu o risco de conduzir a Igreja ao aggionamento, à necessária atualização.

            Após Paulo VI e João Paulo I, as forças contrárias ao Concílio voltaram com toda a violência: um polonês chegou ao trono e um alemão foi eleito prefeito de um dos tribunais mais temidos de Roma: o antigo tribunal do Santo Ofício. Foi nomeado um alemão culto, educado, perspicaz, impiedoso e convenientemente omisso em muitos casos. Após mais de vinte e cinco anos de pontificado, morre o polonês numa exposição pública e midiática do sofrimento humano. Consequentemente, “santo súbito!”

Subiu ao trono o cardeal alemão. Fiel à política eclesiástica e ao plano de governo de seu predecessor, de repente, para a surpresa de todos, não dando mais conta do estado de tensão em que se encontrava a Cúria Romana, constituída por alguns santos e inúmeros pecadores perigosos, o alemão resolveu renunciar. Foi exaltado por quase todos. Ficou, contraditoriamente, com a fama de homem despojado do poder, ao qual sempre viveu apegado desde os velhos tempos da Baviera.  

Após longos anos de apelo à grande disciplina, como oportunamente escreveu o teólogo João Batista Libânio, SJ, em seu famoso livro A volta à grande disciplina (Edições Loyola, São Paulo, 1983), subiu ao trono, simplesmente, Francisco. Todos o observavam sem saber o que dizer, dada a simplicidade das palavras e gestos de um latinoamericano que após poucas palavras pede a bênção ao povo de Deus para seu pontificado. Os latinoamericanos, segundo os europeus, são uns indisciplinados. Nos seminários sempre se mencionava a dificuldade dos seminaristas latinoamericanos, diferentes dos europeus, considerados mais capazes à erudição e à disciplina. Visivelmente, em poucos dias, quebrando protocolos e inaugurando um novo jeito de ser Papa, Francisco tem mostrado que não é de disciplina que a Igreja precisa, mas de discernimento à luz do Espírito de Deus.

O Espírito e a disciplina eclesiástica

            Precisamos concluir esta reflexão com algumas provocações mais pontuais, à luz da pneumatologia pós-conciliar, que reconheceu a necessidade de se considerar a ação do Espírito Santo, esquecida até o Vaticano II. Meu velho mestre, Pe. José Comblin (in memoriam) dizia, profeticamente, que a Igreja se esqueceu dos pobres e do Espírito Santo, e se apegou ao poder. O Papa Francisco tem apontado o caminho do despojamento, tem convidado insistentemente a Igreja a ir às periferias do mundo, pois lá está Jesus. Ninguém será salvo pondo em prática a severa disciplina eclesiástica. A história mostra que esta serviu mais para afastar a hierarquia do povo do que cultivar na mesma hierarquia o espírito da verdadeira santidade. Guiados pelo Espírito, as santas e santos de Deus são indisciplinados: só obedecem a Deus, no Filho e na luz do Espírito.

            Visivelmente, os que se entregam à ação amorosa do Espírito não estão preocupados com o cumprimento da lei nem com a mera conservação das tradições, mas estão disponíveis, abertos, vivendo aquilo que o teólogo alemão Johann Baptist Metz, denomina de mística de olhos abertos (este é o nome de seu livro, recentemente traduzido e publicado pela Paulus. Vale a pena ler!). A Igreja de nossos dias carece de místicos de olhos abertos, de pessoas capazes de se deixar guiar pela misteriosa ação do Espírito de Deus. Os que vivem apegados à velha e ultrapassada disciplina devem saber que jamais darão conta de podar e controlar estes místicos.

Estes místicos, a exemplo de Dom Helder Câmara e tantos outros, são pessoas disciplinadas pelo Espírito: não dormem nem cochilam, estão no meio do mundo, encarnando o evangelho da vida e da liberdade. A experiência é indescritível. Somente quem ousa abandonar a velha disciplina é capaz de experimentar a ação do Espírito. Ser místico é nascer de novo, é não saber de onde veio nem para onde se vai. É um mistério de amor, ternura, liberdade e paz.


Tiago de França

sábado, 21 de setembro de 2013

Servir a Deus

“Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16, 13).

            Esta advertência de Jesus se encontra no seu evangelho. Após ter contado uma parábola aos seus discípulos, a do administrador esperto, que para não ser demitido procura uma forma de se manter no ofício mesmo tendo sido acusado de ter esbanjado os bens de seu patrão (cf. Lc 16, 1 – 13). No versículo 14 do mesmo capítulo aparece a reação dos fariseus, que eram apegados ao dinheiro: zombaram de Jesus. Os fariseus de hoje, quando escutam a mesma advertência, reagem da mesma forma: não levam a sério, pois praticam uma religião de conveniência, pouco se importando com o que diz o evangelho. Vamos pensar sobre o que significa servir a Deus e, posteriormente, falaremos sobre o serviço ao dinheiro.

Servir a Deus

            Deus precisa do nosso serviço? O que significa servi-lo? Servir a Deus não é sinônimo de mera prestação de serviço a um patrão. Deus não é patrão de ninguém. Assim, servir a Deus é, antes de qualquer coisa, amá-lo de todo o coração, com toda a inteligência e com toda a força, e amar o próximo como Jesus amou. Dedicar-se a Deus é dedicar-se ao próximo. Trata-se de uma atitude de liberdade, doação, solidariedade, partilha, generosidade, justiça, mansidão. Serve-se a Deus quando se procura viver livremente em sintonia com o evangelho de Jesus. Toda pessoa que procura servir a Deus coloca no centro da vida os valores evangélicos, valores que se encerram no amor. Este amor liberta integralmente as pessoas e as colocam no caminho de Jesus.

            No mundo atual torna-se cada vez mais difícil servir a Deus, porque se busca sempre e cada vez mais os próprios interesses. A indiferença que se traduz na frieza das relações, tornando-as descartáveis não permite que as pessoas sejam altruístas. Aliás, o evangelho nos pede que sejamos mais que altruístas, pede-nos que sejamos irmãos. O mundo não nos oportuniza a fraternidade, mas esta é necessária. O rosto do outro só é visível quando as pessoas procuram viver como irmãos e irmãs que se querem bem. Quando isto não ocorre, o esquecimento do outro e a consequente marginalização é inevitável.

            Na Igreja de nossos dias temos, certamente, muitas pessoas que se doam ao próximo, sem reservas, plenamente; mas é verdade também que há aquelas que pensam estar servindo a Deus, o que infelizmente não ocorre, pois buscam servir-se a si mesmas. A comunidade cristã é o lugar do serviço a Deus, que se traduz no serviço ao próximo. Há inúmeras pessoas que precisam de ajuda. As notícias dos jornais não nos animam: o sofrimento assola a humanidade, consequência das más escolhas dos seres humanos e de suas ambições desmedidas. Procurando satisfazer os próprios interesses, gravemente enfermo, o ser humano egoísta põe em risco a si mesmo e a toda humanidade. A Igreja precisa ser testemunha da justiça do Reino, que impede o esquecimento e a marginalização dos pobres.

Servir ao dinheiro

            Segundo a advertência de Jesus, não é possível servir a Deus e ao dinheiro. O dinheiro quando é transformado em um deus torna-se muito perigoso e leva à perdição. O mundo capitalista no qual vivemos é marcado pela busca da riqueza. Inúmeras pessoas se dedicam a ganhar muito dinheiro. Gastam inteligência e força na busca desenfreada do dinheiro. Este se torna o centro da vida destas pessoas. A concentração da riqueza gera pobreza e miséria no mundo. Enquanto sobra na vida de alguns, falta na vida da maioria. Esta desigualdade é gravemente pecaminosa porque Deus não se alegra com a situação de miséria de muitos de seus filhos e filhas.

            Os que servem ao dinheiro são espertos e, de modo geral, corruptos. Os valores éticos e cristãos são relativizados em prol da obtenção da riqueza. Esta torna as pessoas insensíveis, frias e indiferentes ao sofrimento do próximo. Para não sentir peso na consciência, alguns ricos procuram a religião para fazer doação daquilo que sobra, sem desapego algum da riqueza que possui.

As empresas, principalmente as de grande porte, para enganar as pessoas fazem propaganda de si mesmas, distribuindo pequenas sobras em obras de projetos sociais. As organizações Globo é um bom exemplo disso: induz as pessoas a pensarem que se trata de uma organização preocupada com o sofrimento das pessoas, em projetos como o Criança Esperança e tantos outros. Na verdade, o que ocorre é muito simples de entender: ganham milhões de reais à custa do sofrimento dos pobres e ainda os mantêm na cegueira, tirando-lhes a liberdade de pensar por si mesmos.  

            O mesmo acontece no Cristianismo. As Igrejas, de modo geral, caem na tentação da procura pela riqueza. Há inúmeras denominações religiosas que visam o enriquecimento ilícito em nome de Deus. Estas denominações buscam legitimar suas práticas corruptas na famosa teologia da prosperidade, que prega um deus falso, mentiroso, falacioso, milagreiro, instrumento de opressão dos pobres. Este deus é inimigo da liberdade e da verdadeira vida dos seres humanos. Facilmente, percebemos a intenção de muitos pregadores: fazem uso da palavra de Deus, deturpando-a em função da procura pelo dinheiro.

Pastores desta ordem, contaminados pela ambição e sede de dinheiro, deveriam abandonar tal caminho e recolocar o evangelho de Jesus no centro de suas vidas e de sua missão. Na Igreja Católica tive a infelicidade de conhecer alguns clérigos ambiciosos, que abraçaram o sacerdócio ministerial pensando no dinheiro. Alguns deles são empresários, homens ricos, juntamente com suas famílias. Para ilustrar, basta o leitor imaginar o patrimônio financeiro do Pe. Fábio de Melo. Ou o leitor pensa que ele doa tudo aos pobres?...

            Para participarmos do Reino de Deus precisamos aprender a partilhar o que somos e temos com o próximo. A pessoa que possui riqueza e é indiferente às necessidades do próximo não pode seguir Jesus. O caminho de Jesus é estreito, nele não há espaço para quem quer viver comodamente, em detrimento do sofrimento do outro. A cultura da indiferença é contrária ao evangelho e o cristão não pode reforçá-la. Há uma grave contradição na fé de quem se torna indiferente ao sofrimento do próximo. Saibam os poderosos e exploradores do povo de Deus, que o Deus e Pai de Jesus não se esquece de seus filhos e não tardará em fazer justiça aos pobres. Parte desta justiça já está, aos poucos, acontecendo. A prova disso é que muitos poderosos estão caindo de seus tronos. Uns caem, outros desaparecem da face da terra, deixando aos outros a riqueza que julgava possuir.


Tiago de França

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O direito e a justiça

       
           Esta breve reflexão não tem como objetivo explicitar, cientificamente, a diferença entre direito e justiça, tarefa que exige maiores aprofundamentos. Certamente, há uma enorme bibliografia especializada a respeito, que pode ser consultada por qualquer leitor interessado. O fato é que o direito e a justiça são temas essenciais não somente para que haja uma compreensão sobre a organização social, como também para entendermos um pouco sobre o que está por trás das ideologias soltas e legitimadas por diversos atores sociais.

            Na condição de estudante de direito, preocupa-me a situação atual na qual o mesmo se encontra. Não há como se posicionar contrariamente ao fato de que o direito é necessário para a sociedade. A rigor, o direito deveria estar a serviço dos fracos, daqueles que precisam do auxílio do Estado para gozar de seus direitos fundamentais. Os diversos ramos do direito se encontram em função dos seres humanos, de sua realização no mundo. O ordenamento jurídico (conjunto de normas) de um determinado país, segundo os especialistas no direito, está em função do aparelho estatal e este em função do povo, sendo este último o detentor do poder constituinte originário. Em outras palavras, o poder do Estado emana do povo.

            Pois bem, e a justiça? Hans Kelsen, um dos maiores estudiosos do direito no séc. XX, fala que o problema da justiça é um problema da ética (cf. Teoria Pura do Direito, 1976, p. 100). Parece que sua preocupação, como indica o título de sua obra clássica, refere-se ao direito enquanto conjunto de normas positivadas, ou seja, inscrita no ordenamento com suas respectivas finalidades. Isto parece complexo demais, pois, a princípio, é uma questão puramente técnica, que somente interessa a juristas, especialistas na doutrina jurídica. Na vida prática, a pergunta que segue nos abre os olhos para a realidade: Para que serve o direito que não se coloca como instrumento da promoção da justiça?

            Sem sombra de dúvidas, se formos olhar para o contexto histórico, sem nos preocupamos com maiores pormenores no momento, podemos assegurar que o direito natural e, posteriormente, o direito positivo surgiram porque sempre existiram pessoas em relações. Considerando o ser humano no meio do mundo, na relação de conflito por desentendimentos de toda ordem e na busca desenfreada dos próprios interesses, encontramos aí o que poderíamos chamar de certa finalidade prática do direito. Consequentemente, o justo e o injusto aparecem nestas relações.

            Deixando Hans Kelsen de lado, juntamente com sua metódica preocupação pelo direito positivo e seus modos hierárquico-estruturais, voltemo-nos para a pergunta do parágrafo que precede o anterior. Pensemos uma resposta a partir de duas realidades preocupantes: o direito na universidade e o problema da justiça na promoção dos direitos fundamentais das pessoas. Na universidade, o direito é pensado de forma rigorosa e, portanto, sistemática; na sociedade ele é aplicado pelos responsáveis em fazer com que o mesmo seja respeitado.

            O que me chama a atenção no estudo do direito resume-se nas três ideias que seguem:

1. O curso de direito, historicamente, é um curso reservado à elite brasileira. Ser advogado, promotor, juiz, procurador, desembargador, ministro etc. sempre foi “coisa de rico”. Os ricos, salvo raras exceções, nunca se preocuparam com a justiça, porque esta questiona seriamente o status quo. Assim, interessa aos pobres, historicamente pisados, o problema da justiça. A maioria dos estudantes do curso de direito continua sendo formada por pessoas ricas, apesar do esforço do governo em facilitar o ingresso dos pobres nos cursos mais visados e reconhecidos no mercado de trabalho. Os estudantes ricos dos cursos de direito visam, de modo geral, aprender o direito, tê-lo na ponta da língua, não porque estejam preocupados com o problema da justiça social, mas porque almejam os grandes postos e os grandes salários. O objetivo é claro: ganhar muito dinheiro e viver hipocritamente, sem nenhuma preocupação com as injustiças que se cometem no mundo.

2. Ainda no contexto universitário, faz até vergonha mencionar a qualidade de muitos cursos. O direito virou mercadoria. São inúmeros cursos que se dizem “reconhecidos” pelos órgãos governamentais, mas que na verdade almejam ganhar muito dinheiro. O direito é vendido, os profissionais são formados dentro deste contexto de venda de doutrina jurídica. Consequentemente, encontramos profissionais que apresentam falta de qualificação profissional, pois não sabem lidar com o direito e aqueles que se utilizam do mesmo para a manipulação de pessoas e instituições. É preciso não nos esquecermos da OAB – Ordem  dos Advogados do Brasil. Para quem não sabe o que esta faz, podemos resumir na seguinte sentença: Trata-se de uma instituição que tem como objetivo implícito a manutenção do exercício da advocacia nas mãos de poucos, assim como visa legitimar as forças de direita no Brasil, aquelas forças contrárias à justiça que procura defender e promover os direitos dos marginalizados. Prova disso é que não se vê, salvo em casos raros e isolados, a OAB envolvida nas grandes causas da justiça social brasileira.

3.  Por fim, é preciso considerar aquilo que desde o primeiro parágrafo desta reflexão estamos enfatizando: o direito precisa se colocar a serviço da justiça, cultivando um olhar benevolente para com os marginalizados da sociedade. Neste sentido, o Poder Judiciário precisa exercer sua missão fundamental: promover a justiça. Assistindo aos jornais, certamente a maioria dos brasileiros fica se perguntando a respeito do significado de tantos termos utilizados pelos ministros da suprema corte de justiça do país. Termos característicos de um ordenamento jurídico elaborado pelos ricos, que se utiliza de uma linguagem erudita e complexa, justamente com a intenção de fazer com que os cidadãos continuem naquele lamentável estado de desconhecimento do texto da lei e de sua necessária interpretação. A manobra falaciosa do ordenamento em detrimento dos pobres da nação brasileira é visível quando se noticia a falta de firmeza e até de vergonha dos magistrados na insistente postura desonesta de proteger os ricos e poderosos, fazendo com que a impunidade se perpetue na sociedade brasileira.

      É preciso muita atenção ao que está acontecendo. Informar-se nas fontes alternativas da informação, que não reproduzem as ideologias do poder opressor tem se tornado uma necessidade urgente não somente dos grupos sociais que lutam pela promoção dos direitos humanos, como também de todo cidadão brasileiro, detentor do poder constituinte. Deter o poder não é somente exercer o sagrado direito de participar ativamente do processo eleitoral, mas também manter-se informado e procurar os meios necessários (canais de participação popular) para fiscalizar e gritar contra as injustiças mais perigosas, as que são institucionalizadas.


Tiago de França

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O celibato na Igreja Católica

Introdução

            Este é um tema pouco discutido na Igreja e o motivo é simples: causa incômodo a muitos, especialmente aquelas pessoas que se encontram submetidas à disciplina celibatária e não consegue vivê-la com tranquilidade. Desde Roma até às bases da Igreja o assunto não é devidamente aprofundado. Parece não haver interesse na questão, apesar de que a mesma sempre aparece, insistentemente.

Particularmente, nunca parei para escrever sobre a questão, mas atendendo ao insistente pedido de amigos e alguns dos meus alunos da escola em que trabalho resolvi publicar algumas considerações a respeito do celibato. Quando era seminarista, era como que proibido falar no seminário a respeito do celibato, a não ser que expressasse clara concordância com tal disciplina, pois, do contrário, seria logo acusado de não ter vocação para o sacerdócio, como pensam muitos até hoje. Agora sou mais livre para discorrer sobre qualquer assunto, uma vez que não me encontro sob a autoridade eclesiástica de quem quer que seja.

O que disseram Jesus e o apóstolo Paulo

            Vamos à questão. Consultando o Novo Testamento da Bíblia encontro-me diante do texto de Mt 19, 10 – 19. Nele aparece Jesus falando daqueles que se tornam eunucos por causa do Reino de Deus. Apenas uma alusão. Não entendo que Jesus esteja instituindo o celibato obrigatório para seus discípulos. Outros podem entender, mas não estará sendo fiel ao que diz o texto. Jesus não pensava na institucionalização do Cristianismo. Não passava por sua cabeça a realidade na qual nos encontramos hoje. Assim podemos pensar a partir do Cristo Jesus dos evangelhos.

Agora, se criamos um Cristo, que não é o das Escrituras, que instituiu o celibato e tantas outras práticas disciplinares, então o problema é outro. Assim, podemos assegurar com toda certeza: a partir do evangelho, ninguém está autorizado a afirmar que Jesus tenha imposto o celibato como condição sine qua non (indispensável, essencial) para segui-lo. Jesus não impôs nada a ninguém nem poderia fazê-lo, pois entraria em contradição com a mensagem que pregou.

            Paulo, apóstolo, quando escreve sua primeira carta aos coríntios, no capítulo 7, versículo 5 fala da necessidade de se entregar ao Senhor como condição necessária para a missão. Propõe que todos fossem como ele, que, a partir do texto, indica-se que era solteiro, mas deixa bem claro que nem todos dão conta. Numa linguagem simples e direta, seu recado é claro: se não der conta do celibato, então melhor casar.

Na mesma carta, no capítulo 9, versículo 5 o mesmo apóstolo fala do direito de se levar a companheira para a missão formando, assim, um casal missionário. Averiguando outras cartas, encontrei as endereçadas a 1 Timóteo 3,1 – 12 e a Tito 1,6 nas quais fala-se da necessidade de o bispo, o presbítero e o diácono serem “maridos de uma só mulher”, entre outras prerrogativas dos respectivos ministérios. Pelo que se percebe, em plena sintonia com Jesus, Paulo também não impõe nada.

O que diz a história

            Olhando a história da Igreja, podemos considerar o Concílio de Elvira, ocorrido no início do séc. IV (306) como o lugar ou momento da primeira proibição ao casamento dos padres. Os concílios posteriores, com certa timidez, insistiram no tema, mas sem outros desdobramentos significativos. No séc. IV, estranhamente, o celibato foi ligado à pureza ritual. Um dia antes de presidir a Eucaristia, o presbítero e/ou o bispo abstinha-se da relação sexual.

Entre os séculos VI e XII a prática do celibato aparece de forma oscilante, uma vez que não foi declarada obrigatória para toda a Igreja. Somente com o Concílio Lateranense II, no início do séc. XII (1139) é que o celibato se tornou obrigatório e universal. Os Concílios posteriores reforçaram tal disciplina, inclusive o Concílio Vaticano II, no século passado.  

            Esta mesma história da Igreja também mostra, além da evolução da prática do celibato, que esta disciplina não deu muito certo, ou seja, nem todos puderam cumpri-la. O motivo somente foi descoberto quando a Igreja repensou o significado do celibato no Concílio Vaticano II. Descobriu-se que o celibato é dom, é carisma do Espírito, que nem todos o possuem. Descobriu-se, mas a obrigatoriedade permaneceu. Contraditório, não?!

Vamos analisar esta contradição a seguir. A história mostra, claramente, que o celibato foi e continua sendo causa de desvios de conduta. Aliás, não o celibato em si, mas sua obrigatoriedade. Os que não deram conta de cumprir a disciplina desobedeceram-na, e em muitos casos, de forma escandalosa.

Dom de Deus, carisma do Espírito

            O celibato em si é, de fato, um dom de Deus, um carisma dado pelo Espírito. Por que o Espírito concede a algumas pessoas este carisma? Esta é uma indagação fundamental. O Espírito não concede a ninguém a graça de viver solteiro/a, irresponsavelmente. Por isso, como dom de Deus, o celibato está em função da missão, da construção do Reino. Quer como membro da hierarquia ou da vida religiosa, ou sendo um cristão leigo, a pessoa é chamada a viver o celibato como opção livre em função do Reino de Deus. Neste sentido, celibato não é mera abstinência sexual, mas opção livre para a entrega de si mesmo. A pessoa não fica livre do desejo sexual, pois este é inerente ao ser humano, nem muito menos deve reprimi-lo, mas compreendê-lo e o integrá-lo, com o auxílio da graça de Deus.

            Desvinculado da opção pelo Reino de Deus, o celibato perde seu sentido e se torna perigoso. Padres, bispos, religiosas e religiosos celibatários que não vivem o celibato em função do Reino de Deus o tornam absoluto, um fim em si mesmo. Isto é demasiadamente perigoso por três motivos: 1) porque o celibato é um meio, não um fim em si mesmo; 2) porque enquanto fim, o mesmo perde seu sentido e, por isso mesmo, torna-se inviável; 3) porque, desse modo, transforma tais pessoas em solteirões e solteironas, vivendo irresponsavelmente uma vida tranquila, cômoda, despreocupada.

Celibato e pobreza

Aqui aparece outro aspecto do celibato enquanto dom de Deus: o mesmo só tem sentido quando é vivido na pobreza evangélica, pois numa vida luxuosa, pautada na ostentação, é impossível ser evangelicamente celibatário. Neste sentido, para os religiosos, o celibato está necessariamente ligado ao voto de pobreza.

            Bispos e padres, religiosos e religiosas que possuem um padrão de vida à altura dos ricos deste mundo, dificilmente são autênticos celibatários. Podem até dar conta de viverem sem manter relações sexuais, o que não basta para serem celibatários. Se assim procedem, são solteirões, que não deveriam ter ingressado na vida religiosa ou no sacerdócio ministerial. Antes, deveriam ter ousado permanecer no mundo comum, na condição de leigos engajados, acompanhados com suas esposas (no caso daqueles que não são homossexuais), buscando fazer a vontade de Deus em meio às dificuldades inerentes ao tempo presente.

De modo geral, clérigos e religiosos que não dão conta do celibato e não deixam o ministério, permanecem contra a própria vontade e para o escândalo dos pobres, envergonhando a Igreja onde se fazem presentes. Tornam-se pessoas insuportáveis porque não estão integradas consigo mesmas. Infelizmente, não é pequeno o número destas pessoas na Igreja.

A discussão do tema na Igreja

            Não podemos afirmar que todo bispo, padre, religioso e religiosa tenha o carisma para o celibato. Se não tem e desejam se casar, não precisariam deixar o ministério ordenado para abraçarem o matrimônio. É o que anda acontecendo em número cada vez maior. O silêncio por parte da hierarquia da Igreja em relação ao que está acontecendo passa a ideia de que a evasão de padres não é motivo de preocupação.

Se assim é, então temos um descaso. Na verdade, o que ocorre é a falta de coragem por parte da Igreja para discutir abertamente a questão. Não é um problema do Espírito, mas da Igreja, pois o celibato não é dogma de fé, mas disciplina eclesiástica e, como tal, pode ser modificada. Só depende do bom senso e da boa vontade da hierarquia, especialmente do Papa e dos Bispos.

            O que muitos na Igreja pedem não é a abolição do celibato, mas da obrigatoriedade do mesmo. A partir do evangelho de Jesus podemos afirmar que toda forma de obrigação na comunidade cristã é contraditória e, portanto, antievangélica. Se Jesus não impôs nenhuma obrigação a seus discípulos, a Igreja deveria fazer o mesmo. Onde há obrigação não há liberdade e onde não há liberdade não se faz presente o Espírito de Deus.

Abolir o celibato não é um bem para a Igreja porque nem todos os clérigos possuem vocação para o matrimônio. A verdade é que muitos tem vocação tanto para o ministério ordenado quanto para o matrimônio e as duas realidades poderiam ser vividas sem problema algum, pois assim acontecia na Igreja antes do séc. XII, como vimos acima.

            Há dois argumentos ultrapassados que são colocados por aqueles que defendem a obrigatoriedade do celibato: o patrimônio da Igreja e a liberdade para a missão. Fala-se que se os clérigos se casarem a Igreja perderá seu patrimônio material por causa do problema da herança. Contra este argumento há os instrumentos jurídicos que podem livrar a Igreja deste problema. Se é que isto é um problema! A assinatura de termos de dispensa de posse dos bens, se é que podemos falar assim, é a solução.

Nas congregações, os religiosos não possuem os bens, mas apenas fazem uso dos mesmos. Quando deixam a vida religiosa não levam absolutamente nada. O mesmo poderia ocorrer com os clérigos, em relação às suas famílias, caso pudessem se casar. As Escrituras Sagradas, a história da Igreja e o testemunho dos pastores e líderes das diversas Igrejas protestantes mostram que as esposas não tiram dos ministros a liberdade para a missão. Na maioria dos casos, também elas são missionárias da palavra de Deus.

Conclusão

            Um fato é inegável: após o Concílio Vaticano II, com o surgimento de uma nova eclesiologia e com a evolução da maturidade cristã, a escassez de vocações ao ministério ordenado é uma realidade que tem provocado muita inquietação. Há um número incontável de comunidades cristãs desassistidas. A Eucaristia, considerada cume e ápice da vida cristã e eclesial não é celebrada em inúmeras comunidades. 
Contraditoriamente, a Igreja continua mantendo o ministério ordenado somente para homens celibatários.

Mulheres não podem ser ordenadas e os que deixaram o ministério para se casar não podem exercê-lo. Há muitos casais idôneos que poderiam exercer o sacerdócio na Igreja, mas não podem por causa da disciplina do celibato. Claramente, percebemos que a obrigatoriedade do celibato é um mal na vida da Igreja. Estamos no séc. XXI, temos Francisco como Bispo de Roma, o momento parece propício para discutir a questão, apesar de o Papa não ter dado, ainda, sinais claros de que está disposto a discuti-la.

Mais do que em outras épocas, os jovens de hoje não se sentem motivados para ingressar no seminário e depois de quase uma década de vida sem muito contato com o mundo serem confirmados no ministério ordenado tal como está configurado e vivido na Igreja hoje. Penso ser hora de vencer o medo para que a questão possa ser discutida, ampla e colegialmente para o bem da Igreja, Povo de Deus. Se isto não ocorrer, os responsáveis pela solução do problema continuarão tentando cometendo o mesmo erro de sempre: tentando tapar o sol com a peneira! Até quando?!...


Tiago de França

sábado, 7 de setembro de 2013

A radicalidade do seguimento de Jesus

“... qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 24, 33).

            À luz do texto bíblico lido na liturgia deste domingo (cf. Lc 14, 25 – 33), vamos refletir sobre o seguimento de Jesus. Há muitas leituras e interpretações feitas no interior das Igrejas cristãs que tendem a esvaziar o texto, tirando-lhe seu real sentido, tornando-o superficial. Isto ocorre porque muitos daqueles que se afirmam cristãos não aceitam a palavra de Jesus. Na opinião deles a palavra de Jesus é dura demais, insuportável. No mencionado texto Jesus apresenta algumas exigências para os que desejam segui-lo. Estas exigências não tiram a dimensão de gratuidade do seguimento, apenas falam do compromisso radical que o mesmo significa. Portanto, seguir Jesus é comprometer-se com o Reino de Deus anunciado por ele.

            Por que muitas pessoas acham que as palavras de Jesus são pesadas demais e até insuportáveis? O ser humano é marcado pelos interesses. De modo geral, sempre se busca os próprios interesses em detrimento dos interesses do outro. Muitas vezes, este outro é usado para a satisfação pessoal ou realização dos próprios interesses. Ir ao encontro do outro é, na maioria dos casos, ir à procura de satisfação dos interesses pessoais. O mandamento do amor se encontra na contramão dos interesses pessoais e corporativistas. Relações gratuitas e desinteressadas marcam a mensagem de Jesus e, para muitas pessoas, estas relações não interessam. É pedir demais.  

            Se pararmos para observar as pessoas e o mundo que nos rodeiam, facilmente perceberemos o grande mal que assola a humanidade: o apego. As pessoas se apegam demasiadamente umas às outras e também aos bens que julgam possuir. O interesse é manter estes apegos, custe o que custar. O apego ao poder parece ser o mais perigoso, pois corrobora na destruição do outro. Este, quando ameaça o detentor do poder é, por isso mesmo, perseguido e eliminado. Quem possui o poder não quer largá-lo e para mantê-lo comete as maiores atrocidades. Os homens criaram o poder e fazem de tudo para preservá-lo. Onde há poder há quem manda e quem obedece. Trata-se de uma relação desigual.

A forma como o homem lida com o poder é desumana, porque se usa o mesmo em função dos interesses pessoais e corporativistas. Neste sentido, os fracos não tem vez, são explorados. Os discípulos de Jesus não são pessoas do poder, não foram chamadas a dominar, não possuem autoridade sobre ninguém. Jesus sabia muito bem que não se constrói fraternidade através de relações de poder. A palavra de ordem da fraternidade é a igualdade entre as pessoas. Somente assim elas são, de fato, irmãs umas das outras. A partir do evangelho podemos assegurar sem sombra de dúvidas o seguinte: quem se apegar ao poder não pode ser discípulo de Jesus. Na Igreja e na sociedade, a raiz de todos os males se encontra no apego ao poder: os que possuem o poder exploram os mais fracos. Isto é diabólico e antievangélico.

No texto de hoje, para indicar a necessidade do desapego, Jesus se refere à família e à própria vida do discípulo. Claro que não está pedindo que se despreze ou se renuncie aos laços familiares. Jesus não quis dizer isto. Também não está pedindo que se odeie a si mesmo ou que se viva num autodesprezo, mas que se coloque o seguimento à sua pessoa no centro da existência. Em outras palavras, Jesus está enfatizando a necessidade de o discípulo colocar o seguimento no centro da própria vida. Jesus é o centro da vida cristã. Não é a religião, com suas doutrinas e prescrições o centro da vida cristã, mas a pessoa e a mensagem de Jesus de Nazaré. Isto significa identificar-se com Jesus, segui-lo na intimidade e na verdade.

Em seguida, Jesus fala de carregar a cruz e segui-lo. O caminho de Jesus é marcado pela incompreensão, pela perseguição e pelo martírio. São muitas as dificuldades que não permitem ao discípulo ter vida fácil e tranquila. Por isso, a pessoa que deseja salvar a própria vida, viver longamente numa estilo de vida marcado pelas seguranças que este mundo oferece, sem nenhum interesse na situação sofredora do próximo, não pode ser discípulo de Jesus. Quem não se preocupa em aliviar o sofrimento do próximo, recusando-se à justiça e à solidariedade, não pode ser discípulo de Jesus. Nenhum egoísta consegue seguir Jesus e, consequentemente, não participará do Reino de Deus. Quem só pensa em si mesmo vive em função de si e é incapaz de viver na comunidade dos filhos de Deus porque a solidariedade não lhe interessa.

Carregar a cruz é fazer o papel do homem que ajudou Jesus a carregar a cruz rumo ao Gólgota, o “lugar da caveira”. Há muitas pessoas que precisam de ajuda para carregar a sua cruz. Quando há solidariedade ninguém abandona a cruz, pois o caminho se torna possível, pois a reciprocidade no auxílio fraterno é prova clara do auxílio divino. Quando somos irmãos na justiça e na solidariedade manifestamos, assim, o real significado do auxílio de Deus. O auxílio divino se manifesta na força de nossas palavras e gestos em prol daquele que foi assaltado no caminho de Jericó. Carregar a cruz é ser um bom samaritano, é ser capaz de caminha com perseverança até a entrega da própria vida.

Por fim, Jesus fala da renúncia a tudo o que se tem para que o seguimento a ele se torne realidade. Toda pessoa que deseja seguir Jesus precisa perguntar-se a si mesma a respeito de tudo aquilo que tem e que impede tal seguimento. Renunciar a tudo aquilo que impede o seguimento é permanecer livre para a missão. A liberdade é fundamental para o seguimento. Sem ela não é possível se colocar no caminho de Jesus. Há tantas pessoas que pensam que são seguidoras de Jesus, mas que são escravas de si mesmas e de tantas coisas. Às vezes, não conseguem se libertar porque, na verdade, não querem se libertar; acomodaram-se à escravidão.

O caminho de Jesus carece de pessoas ousadas, que desejam ser livres e que queiram se colocar a serviço da libertação de tantos outros que estão à espera do evangelho libertador de Jesus. As Igrejas cristãs precisam de sangue novo em suas veias, de pessoas que aceitem a proposta de Jesus, aderindo-a com ousadia e coragem para a salvação do mundo. Eis, então, as exigências de Jesus: desapegar-se, tomar a cruz, renunciar a tudo o que se julga ter e segui-lo na liberdade dos filhos e filhas de Deus. Para termos justiça e paz precisamos que os cristãos assumam essas exigências até as últimas consequências.

Tiago de França

domingo, 1 de setembro de 2013

Uma mesa sem excluídos

“Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz, porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos” (Lc 14, 13 – 14).

            O episódio se encontra em Lc 14, 1.7 – 14. Jesus é convidado para comer na casa de um dos chefes dos fariseus. Sabia muito bem quem eram eles: religiosos, considerados importantes, pois observavam a letra da lei, mas viviam jogando pesados fardos sobre os pobres. Sinteticamente: viviam farisaicamente, ou seja, separados e mergulhados na hipocrisia religiosa. Mesmo assim, Jesus ousa ir ao encontro deles para uma refeição. Isso mostra que Jesus não era um medroso, mas homem ousadamente livre.

            “E eles o observavam”. Com este detalhe, o evangelista chama a atenção para um dos costumes dos hipócritas: observar o próximo com o intuito de pegá-lo em alguma falta. Até hoje esses fariseus continuam agindo do mesmo modo: são os espiões, aqueles que sigilosa e discretamente, procuram observar o próximo com o intuito de prejudicá-lo. Este triste costume parece está enraizado na vida religiosa cristã. Os fariseus são como as cobras venenosas, que procuram a ocasião certa para dar o bote!

            “Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares”. Jesus percebe que as pessoas sempre procuram o primeiro lugar, devido à importância do mesmo. Todos querem ser importantes, bem vistos, cumprimentados. Até hoje é assim: nas comunidades e nas liturgias, há muitos que sempre procuram os primeiros lugares, os que dão destaque, visibilidade. Alguns, por causa da carência de atenção; outros, porque não aceitam o último lugar, querem ser bem vistos. A situação lembra as liturgias nas quais se encontram os ricos e as autoridades: todos sentam à frente, para serem vistos, cumprimentados, fotografados e mencionados na homilia do presidente da celebração. Pura hipocrisia!

            Para chamar a atenção destes, Jesus conta-lhes uma parábola. Eles não devem ter gostado nenhum pouco, pois nela aparecem duas recomendações: 1. Aos convidados, ensina a não procurarem os primeiros lugares; 2. Ao dono da casa, ensina a convidar aqueles que não podem retribuir ao convite (pobres, aleijados, coxos e cegos). A ideia de recompensa, mencionada na parábola, nos faz pensar nos interesses pessoais de quem faz o convite. É muito comum tais convites serem motivados por interesses, quase nunca pela gratuidade. Convida-se porque se espera ser recompensado. Sendo assim, os pobres, aleijados, coxos e cegos não podem ser convidados para a festa, pois são uns coitados, incapazes de oferecer algum tipo de recompensa.  

            Os fariseus não eram chegados a pobres, aleijados, coxos e cegos. Para eles, estes eram considerados impuros, pois eram defeituosos e não obedeciam à lei. Eram os excluídos da sociedade da época, viviam fora do convívio social. Eram encontrados fora da cidade, à beira dos caminhos, jogados no anonimato. Hoje, tudo continua do mesmo jeito: eles continuam excluídos da festa. Além de serem excluídos pela sociedade, também as comunidades cristã os excluem. Eles não estão presentes na comunidade paroquial nem frequentam as demais denominações religiosas, mas se encontram em suas casas, esquecidos. A maioria das igrejas neopentecostais os procura para realizar os espetáculos das curas prodigiosas!

            Jesus diz que é feliz quem convida os excluídos para a festa da vida. Com isto, aprendemos onde se encontra a verdadeira felicidade: junto dos humildes. “Muitos são os altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios”, ensina o livro do Eclesiástico (3,21). Em outra ocasião, disse Jesus: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). O Pai, por meio do Filho e no Espírito, escolheu os pequeninos para lhes revelar a sua sabedoria e seus mistérios.

            Os poderosos deste mundo não sabem nem podem conhecer a sabedoria divina, pois estão atrelados à sabedoria do mundo, tendo em vista a garantia e a conquista do poder, do prestígio e da riqueza. Quem procura pautar a sua vida na sabedoria divina não procura outra coisa senão o cumprimento da vontade divina. Para ter acesso à sabedoria divina e para participar da mesa no Reino de Deus é necessário fazer-se pequeno, tornar-se pequeno, abraçar a mansidão e a humildade; do contrário, não é possível.

A Igreja precisa aprender de uma vez por todas que o Reino acontece a partir dos pequenos. Isto significa claramente o seguinte: abandonar de vez as alianças com os poderosos deste mundo e se colocar, definitivamente, a serviço dos pequenos, sendo uma Igreja dos pequenos, despojada de poder humano, entregue à solicitude divina, contando somente com a força da palavra de Jesus contida no evangelho da vida e da liberdade. Somente assim, a Igreja será, de fato, “advogada da justiça e defensora dos pobres” (cf. Documento de Aparecida, n. 395).


Tiago de França