Introdução
Este é um tema pouco discutido na
Igreja e o motivo é simples: causa incômodo a muitos, especialmente aquelas
pessoas que se encontram submetidas à disciplina celibatária e não consegue
vivê-la com tranquilidade. Desde Roma até às bases da Igreja o assunto não é
devidamente aprofundado. Parece não haver interesse na questão, apesar de que a
mesma sempre aparece, insistentemente.
Particularmente, nunca parei para
escrever sobre a questão, mas atendendo ao insistente pedido de amigos e alguns
dos meus alunos da escola em que trabalho resolvi publicar algumas
considerações a respeito do celibato. Quando era seminarista, era como que
proibido falar no seminário a respeito do celibato, a não ser que expressasse
clara concordância com tal disciplina, pois, do contrário, seria logo acusado
de não ter vocação para o sacerdócio, como pensam muitos até hoje. Agora sou
mais livre para discorrer sobre qualquer assunto, uma vez que não me encontro
sob a autoridade eclesiástica de quem quer que seja.
O que disseram Jesus e o apóstolo Paulo
Vamos à questão. Consultando o Novo
Testamento da Bíblia encontro-me diante do texto de Mt 19, 10 – 19. Nele
aparece Jesus falando daqueles que se tornam eunucos por causa do Reino de Deus.
Apenas uma alusão. Não entendo que Jesus esteja instituindo o celibato
obrigatório para seus discípulos. Outros podem entender, mas não estará sendo
fiel ao que diz o texto. Jesus não pensava na institucionalização do
Cristianismo. Não passava por sua cabeça a realidade na qual nos encontramos
hoje. Assim podemos pensar a partir do Cristo Jesus dos evangelhos.
Agora, se criamos um Cristo, que não é o
das Escrituras, que instituiu o celibato e tantas outras práticas disciplinares,
então o problema é outro. Assim, podemos assegurar com toda certeza: a partir
do evangelho, ninguém está autorizado a afirmar que Jesus tenha imposto o
celibato como condição sine qua non
(indispensável, essencial) para segui-lo. Jesus não impôs nada a ninguém nem
poderia fazê-lo, pois entraria em contradição com a mensagem que pregou.
Paulo, apóstolo, quando escreve sua
primeira carta aos coríntios, no capítulo 7, versículo 5 fala da necessidade de
se entregar ao Senhor como condição necessária para a missão. Propõe que todos
fossem como ele, que, a partir do texto, indica-se que era solteiro, mas deixa
bem claro que nem todos dão conta. Numa linguagem simples e direta, seu recado
é claro: se não der conta do celibato, então melhor casar.
Na mesma carta, no capítulo 9, versículo
5 o mesmo apóstolo fala do direito de se levar a companheira para a missão
formando, assim, um casal missionário. Averiguando outras cartas, encontrei as
endereçadas a 1 Timóteo 3,1 – 12 e a Tito 1,6 nas quais fala-se da necessidade
de o bispo, o presbítero e o diácono serem “maridos de uma só mulher”, entre
outras prerrogativas dos respectivos ministérios. Pelo que se percebe, em plena
sintonia com Jesus, Paulo também não impõe nada.
O que diz a
história
Olhando a história da Igreja,
podemos considerar o Concílio de Elvira, ocorrido no início do séc. IV (306)
como o lugar ou momento da primeira proibição ao casamento dos padres. Os
concílios posteriores, com certa timidez, insistiram no tema, mas sem outros
desdobramentos significativos. No séc. IV, estranhamente, o celibato foi ligado
à pureza ritual. Um dia antes de presidir a Eucaristia, o presbítero e/ou o bispo
abstinha-se da relação sexual.
Entre os séculos VI e XII a prática do
celibato aparece de forma oscilante, uma vez que não foi declarada obrigatória
para toda a Igreja. Somente com o Concílio Lateranense II, no início do séc. XII (1139) é
que o celibato se tornou obrigatório e universal. Os Concílios
posteriores reforçaram tal disciplina, inclusive o Concílio Vaticano II, no
século passado.
Esta mesma história da Igreja também
mostra, além da evolução da prática do celibato, que esta disciplina não deu
muito certo, ou seja, nem todos puderam cumpri-la. O motivo somente foi
descoberto quando a Igreja repensou o significado do celibato no Concílio Vaticano
II. Descobriu-se que o celibato é dom, é carisma do Espírito, que nem todos o
possuem. Descobriu-se, mas a obrigatoriedade permaneceu. Contraditório, não?!
Vamos analisar esta contradição a
seguir. A história mostra, claramente, que o celibato foi e continua sendo
causa de desvios de conduta. Aliás, não o celibato em si, mas sua
obrigatoriedade. Os que não deram conta de cumprir a disciplina desobedeceram-na,
e em muitos casos, de forma escandalosa.
Dom de Deus,
carisma do Espírito
O celibato em si é, de fato, um dom
de Deus, um carisma dado pelo Espírito. Por que o Espírito concede a algumas
pessoas este carisma? Esta é uma indagação fundamental. O Espírito não concede
a ninguém a graça de viver solteiro/a, irresponsavelmente. Por isso, como dom de
Deus, o celibato está em função da missão, da construção do Reino. Quer como membro
da hierarquia ou da vida religiosa, ou sendo um cristão leigo, a pessoa é
chamada a viver o celibato como opção livre em função do Reino de Deus. Neste
sentido, celibato não é mera abstinência sexual, mas opção livre para a entrega
de si mesmo. A pessoa não fica livre do desejo sexual, pois este é inerente ao
ser humano, nem muito menos deve reprimi-lo, mas compreendê-lo e o integrá-lo,
com o auxílio da graça de Deus.
Desvinculado da opção pelo Reino de
Deus, o celibato perde seu sentido e se torna perigoso. Padres, bispos,
religiosas e religiosos celibatários que não vivem o celibato em função do
Reino de Deus o tornam absoluto, um fim em si mesmo. Isto é demasiadamente perigoso
por três motivos: 1) porque o celibato é um meio, não um fim em si mesmo; 2) porque
enquanto fim, o mesmo perde seu sentido e, por isso mesmo, torna-se inviável;
3) porque, desse modo, transforma tais pessoas em solteirões e solteironas,
vivendo irresponsavelmente uma vida tranquila, cômoda, despreocupada.
Celibato e
pobreza
Aqui aparece outro aspecto do celibato
enquanto dom de Deus: o mesmo só tem sentido quando é vivido na pobreza
evangélica, pois numa vida luxuosa, pautada na ostentação, é impossível ser
evangelicamente celibatário. Neste sentido, para os religiosos, o celibato está
necessariamente ligado ao voto de pobreza.
Bispos e padres, religiosos e
religiosas que possuem um padrão de vida à altura dos ricos deste mundo,
dificilmente são autênticos celibatários. Podem até dar conta de viverem sem
manter relações sexuais, o que não basta para serem celibatários. Se assim
procedem, são solteirões, que não deveriam ter ingressado na vida religiosa ou
no sacerdócio ministerial. Antes, deveriam ter ousado permanecer no mundo
comum, na condição de leigos engajados, acompanhados com suas esposas (no caso
daqueles que não são homossexuais), buscando fazer a vontade de Deus em meio às
dificuldades inerentes ao tempo presente.
De modo geral, clérigos e religiosos que
não dão conta do celibato e não deixam o ministério, permanecem contra a
própria vontade e para o escândalo dos pobres, envergonhando a Igreja onde se
fazem presentes. Tornam-se pessoas insuportáveis porque não estão integradas
consigo mesmas. Infelizmente, não é pequeno o número destas pessoas na Igreja.
A discussão do
tema na Igreja
Não podemos afirmar que todo bispo,
padre, religioso e religiosa tenha o carisma para o celibato. Se não tem e
desejam se casar, não precisariam deixar o ministério ordenado para abraçarem o
matrimônio. É o que anda acontecendo em número cada vez maior. O silêncio por
parte da hierarquia da Igreja em relação ao que está acontecendo passa a ideia
de que a evasão de padres não é motivo de preocupação.
Se assim é, então temos um descaso. Na
verdade, o que ocorre é a falta de coragem por parte da Igreja para discutir
abertamente a questão. Não é um problema do Espírito, mas da Igreja, pois o
celibato não é dogma de fé, mas disciplina eclesiástica e, como tal, pode ser
modificada. Só depende do bom senso e da boa vontade da hierarquia, especialmente
do Papa e dos Bispos.
O que muitos na Igreja pedem não é a
abolição do celibato, mas da obrigatoriedade do mesmo. A partir do evangelho de
Jesus podemos afirmar que toda forma de obrigação na comunidade cristã é
contraditória e, portanto, antievangélica. Se Jesus não impôs nenhuma obrigação
a seus discípulos, a Igreja deveria fazer o mesmo. Onde há obrigação não há
liberdade e onde não há liberdade não se faz presente o Espírito de Deus.
Abolir o celibato não é um bem para a
Igreja porque nem todos os clérigos possuem vocação para o matrimônio. A
verdade é que muitos tem vocação tanto para o ministério ordenado quanto para o
matrimônio e as duas realidades poderiam ser vividas sem problema algum, pois
assim acontecia na Igreja antes do séc. XII, como vimos acima.
Há dois argumentos ultrapassados que
são colocados por aqueles que defendem a obrigatoriedade do celibato: o
patrimônio da Igreja e a liberdade para a missão. Fala-se que se os clérigos se
casarem a Igreja perderá seu patrimônio material por causa do problema da
herança. Contra este argumento há os instrumentos jurídicos que podem livrar a
Igreja deste problema. Se é que isto é um problema! A assinatura de termos de
dispensa de posse dos bens, se é que podemos falar assim, é a solução.
Nas congregações, os religiosos não
possuem os bens, mas apenas fazem uso dos mesmos. Quando deixam a vida
religiosa não levam absolutamente nada. O mesmo poderia ocorrer com os
clérigos, em relação às suas famílias, caso pudessem se casar. As Escrituras
Sagradas, a história da Igreja e o testemunho dos pastores e líderes das
diversas Igrejas protestantes mostram que as esposas não tiram dos ministros a
liberdade para a missão. Na maioria dos casos, também elas são missionárias da
palavra de Deus.
Conclusão
Um fato é inegável: após o Concílio
Vaticano II, com o surgimento de uma nova eclesiologia e com a evolução da
maturidade cristã, a escassez de vocações ao ministério ordenado é uma
realidade que tem provocado muita inquietação. Há um número incontável de
comunidades cristãs desassistidas. A Eucaristia, considerada cume e ápice da
vida cristã e eclesial não é celebrada em inúmeras comunidades.
Contraditoriamente,
a Igreja continua mantendo o ministério ordenado somente para homens
celibatários.
Mulheres não podem ser ordenadas e os
que deixaram o ministério para se casar não podem exercê-lo. Há muitos casais
idôneos que poderiam exercer o sacerdócio na Igreja, mas não podem por causa da
disciplina do celibato. Claramente, percebemos que a obrigatoriedade do
celibato é um mal na vida da Igreja. Estamos no séc. XXI, temos Francisco como
Bispo de Roma, o momento parece propício para discutir a questão, apesar de o
Papa não ter dado, ainda, sinais claros de que está disposto a discuti-la.
Mais do que em outras épocas, os jovens
de hoje não se sentem motivados para ingressar no seminário e depois de quase
uma década de vida sem muito contato com o mundo serem confirmados no ministério
ordenado tal como está configurado e vivido na Igreja hoje. Penso ser hora de
vencer o medo para que a questão possa ser discutida, ampla e colegialmente
para o bem da Igreja, Povo de Deus. Se isto não ocorrer, os responsáveis pela
solução do problema continuarão tentando cometendo o mesmo erro de sempre:
tentando tapar o sol com a peneira! Até quando?!...
Tiago de França