“Ele é o princípio, o primogênito dentre os mortos; de sorte que em
tudo ele tem a primazia, porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude
e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu,
realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Cl 1, 18 – 19).
Na
Solenidade do Cristo, rei do universo, o texto de Lucas 23, 35 – 43 nos fala da
pequenez
e da impotência
de Jesus. Como, então, entender o sentido e o alcance desta solenidade? Dispensando
os mínimos detalhes históricos que podem explicar a origem da mesma, basta-nos
olhar para Jesus crucificado. Brevemente, com certa ousadia, arrisquemos alguns
pensamentos a respeito daquilo que está no título desta reflexão: a pessoa de
Jesus, o Filho de Deus, na sua relação com o Reino do Pai e a dinâmica interna
dos reinos deste mundo. Claro que se trata de um tema digno de longas análises
teológicas, presentes nas reflexões da cristologia moderna. Vamos pensar Jesus
a partir de baixo, a partir dos crucificados da história (cf. a obra
teológica do famoso jesuíta Jon Sobrino).
Jesus na sua relação com o Reino do Pai
No nordeste do
Brasil, Jesus é tido como o servo sofredor. Na cúria romana,
Jesus é o rei. Claro que o papa Francisco acredita no servo sofredor, pois o
encontrou nas periferias de Buenos Aires, Argentina. Certamente o servo
sofredor continua com ele, em seu coração de pastor, livrando-o dos perigos dos
lobos ferozes que habitam o Vaticano, que são filhos das trevas e inimigos da luz.
Mas o que isso tem a ver com Jesus e sua relação com o Reino do Pai?
Não
basta ver Jesus se relacionando com o Pai na inauguração de seu Reino. Isto é o
que narram os evangelhos; mas Jesus não está no passado. Ele é o Emanuel, Deus
conosco. Hoje, Jesus continua sua relação com o Pai, na ação do Espírito Santo.
A obra do Reino é contínua na história humana. Não é pura abstração. É suor e
sangue, conflito e reconciliação. Em Jesus, o Pai se reconcilia com a
humanidade, como nos ensina o apóstolo dos gentios. Assim, os evangelhos são
unânimes em mostrar Jesus na
periferia do mundo, agindo com amor e misericórdia,
mostrando o caminho que leva ao Pai.
Na
sua relação com o Pai, Jesus é o servo fiel e prudente, o missionário da Boa
Nova do Reino, o peregrino das estradas deste mundo desigual. Sua coroa é de
espinhos e seu reino não é deste mundo, mas tomemos cuidado para não
deixarmos nossa fértil imaginação criar um falso reino de Deus, um
paraíso como depósito de almas, descanso dos justos e sofredores. Este reino
imaginário, como o próprio nome indica, não tem existência, é fruto da fantasia
humana. Aqui podemos pensar a respeito de Jesus como rei.
Jesus é rei?
Atestam os
evangelhos que todas as tentativas dos discípulos de Jesus para glorificá-lo neste
mundo foram frustradas. Ele não procurava o poder, o prestígio e a riqueza,
pois não foi para isto que veio a este mundo. Jesus estava totalmente
concentrado na sua missão e guiado pelo Espírito do Senhor, e foi fiel até as
últimas conseqüências. Não foi enviado para tomar o poder dos romanos. Não era
o Messias glorioso, esperado por muitos. Humanamente, era despojado do poder,
não podia nada. Era um pobre homem, “sem lenço e sem documento”!
O
que a Igreja viu em Jesus para dedicar-lhe o título de rei do universo? Após o
reconhecimento da Igreja como religião oficial do império romano, no séc. IV, a
riqueza, o prestígio e o poder se infiltraram definitivamente na Igreja. O
evangelho de Jesus foi posto de lado e a hierarquia, salvo raras exceções de pessoas,
se tornou sedenta de poder. Até hoje a sede pelo poder continua sendo o
problema da Igreja. Assim fica claro o entendimento acerca da criação
da solenidade de Cristo, rei do universo: a Igreja, preocupada em dominar o mundo,
cria a idéia de um Cristo poderoso e dominador. O que significa dizer
que, na verdade, não estava preocupada com o Cristo das Escrituras, mas consigo
mesma. Para legitimar seu poder perante o mundo havia a necessidade de se criar
a imagem de um Deus todo-poderoso, rei do universo.
Durante
toda a Idade Média esta é a idéia que vigorou: toda pessoa tinha que aderir ao
Cristianismo, a religião do rei do universo; do contrário, estaria fadada à
condenação eterna. Até hoje, os cristãos de mentalidade medieval continuam
pensando o mesmo, recusando-se a aceitar o pluralismo religioso. Mesmo após o
Concílio Vaticano II, que tentou corrigir esse gravíssimo equívoco, leigos e
clérigos continuam pensando o que foi declarado até em documento oriundo da
cúria romana: fora da Igreja não há salvação!
O Reino de Deus e os reinos do mundo
Os que aderem e
adoram a imagem do Cristo, rei do universo são aquelas pessoas que desejam que
o Cristianismo domine o mundo, como na era medieval. Essas pessoas morrem e
continuarão morrendo frustradas. A era do Cristianismo de dominação passou, a
cristandade não existe mais. Estamos na era da diversidade e da pluralidade.
Não adianta fechar os olhos para a realidade. A diversidade e a pluralidade são
dons do Espírito do Senhor, pois este não é uniforme, mas plural e libertador. Não
existe libertação na uniformidade.
O que também
está por trás da adoração à imagem do Cristo, rei do universo, é a busca por
segurança, material e psicológica. As pessoas querem um Deus forte e poderoso,
que possa resolver seus problemas e atender a seus desejos ocultos e
explícitos. A imagem do Cristo, rei do universo é muito usada nas Igrejas
cristãs de hoje. Aderir a este Cristo é ter uma vida próspera e feliz neste
mundo, vida cheia de riqueza, prestígio e poder. Para estas pessoas podemos
dizer sem medo de equívocos: Vocês criaram um deus de conveniência! Jesus não
tem nada que ver com isso. Tudo não passa de fantasia, frustração e ilusão.
A
Igreja precisa se despojar da idéia do Cristo, rei do universo, e abraçar o que
os evangelhos falam dele: o missionário, o itinerante, o pobre, o coitado de
Nazaré, homem fiel ao projeto do Pai, que lhe foi fiel até a morte de cruz. É
hora de abolir, definitivamente, a imagem do Cristo coroado, de cetro real nas
mãos. Isto não vem de Deus, mas da imaginação humana. A realeza de Jesus está
naquilo que apóstolo Paulo falou aos colossenses: ele é o princípio, o
primogênito entre os mortos, é o “meio” pelo qual Deus reconcilia toda a
humanidade. Jesus não pode ser desvinculado do Reino do Pai, pois é impossível
entendê-lo sem esta necessária referência.
Aderir
a Jesus significa colocar-se em seu caminho. Este caminho é o da justiça, do
amor, do perdão, da solidariedade, do serviço e da doação. Colocar-se
neste caminho é tornar-se participante da vida divina, é tomar parte no Reino
do Pai, tornando-o realidade na história humana. Na Igreja e fora dela, os que
procuram a riqueza, o prestígio e o poder estão na contramão do Reino do Pai,
portanto, estão a serviço das forças das trevas, que geram sofrimento e morte
no mundo. Os reinos deste mundo criam estas forças contrárias ao Reino de Deus
e há muitas pessoas que pensam que são cristãs, mas na verdade estão a serviço
dos reinos deste mundo, em clara oposição ao Reino de Deus. Converter-se a Jesus
é abandonar as pretensões meramente humanas e entrar, definitivamente, nas
fileiras daqueles que o seguem.
Tiago de França