sábado, 22 de fevereiro de 2014

A perfeição no amor

“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

            Falar do amor é algo sublime e gratificante porque é falar da vocação cristã por excelência. Antes de qualquer coisa, toda pessoa que acredita em Deus é chamada a fazer a experiência do amor. Quais são as características do amor de Deus? Como ele se revela? Quem pode escapar da experiência do amor? A felicidade humana está no amor. Vamos pensá-lo a partir do que disse Jesus em Mateus 5, 38 – 48, últimas palavras do famoso sermão da montanha.

O amor

            Para entendermos o amor precisamos nos libertar de duas imagens que tornam difícil experimentá-lo: a primeira é o amor do discurso e não dos fatos; a segunda, o amor como obrigação. Atualmente, estão muito em voga as declarações de amor. A princípio, elas parecem bem intencionadas, mas, na verdade, costumam esconder a falta de amor. Os excessos declaratórios, geralmente, são encobridores do desamor. Jesus não falava muito sobre o amor, mas seus gestos eram provas de amor. Neste sentido, as pessoas precisam fazer a passagem do amor de palavras para o amor de atos. Viver conforme o amor. Isto é belo, justo e agradável a Deus.

            Ninguém está obrigado ao amor. Este não obriga porque é pura liberdade. Ama-se para ser cada vez mais livre. O amor necessita da liberdade. Amar alguém significa deixá-lo livre porque no amor toda pessoa se torna humana, torna-se, transforma-se, encontra a felicidade. Na obrigação existem satisfações a dar, correspondência, expectativas, exigências, cobranças, prisão. Aí não cabe o amor. No amor se gera a confiança, a cumplicidade, a honestidade; na obrigação gera-se a pressão, o sufocamento, a desconfiança, o medo. Este último tira da pessoa a capacidade de amar. Quem ama não tem medo porque não possui o outro, mas o ama na liberdade.

O amor a Deus e ao próximo

            Jesus era judeu e como tal fazia leitura dos textos sagrados que orientavam a vida do povo de Deus. Nestes textos, Deus é Santo, Justo e Perfeito. Deus é tudo isso e muito mais porque Ele é o amor por excelência. O amor é a essência, a substância de Deus. Por isso, Deus é Pai amoroso, incapaz de odiar, de vingar-se do ser humano, obra de suas mãos. Este Pai amoroso não necessita do nosso amor para ser e existir, mas Ele é a fonte do amor que toda pessoa necessita para ser e existir. Quanta beleza! Quanto mistério! É o que conseguimos dizer com nossa linguagem limitada: Deus é amor, Ele nos ama e nos acolhe, forma-nos em seu amor, cria-nos em sua benevolência.

            Como amar este Pai amoroso? Ele está dentro de cada pessoa. Assim o quis, livremente. Toda pessoa é santuário, é casa, é guardiã do Amor. Por isso, o amor brota de dentro, do mais profundo da pessoa. Esta se maravilha com este mistério, alegra-se, encontra a luz e o sentido da vida. Onde está o sentido da vida humana? Dentro de cada pessoa, quando é capaz de não somente compreender, mas de sentir a presença amorosa do Pai, que cuida, vigia, livra, abençoa e ama, infinitamente. Todo e qualquer erro que esta pessoa cometer não tira dela o amor colocado por Deus em seu interior, em seu coração. Diante do amor, o pecado nada pode fazer. O amor expulsa do ser humano o pecado e o faz transcender, libertando-o do medo, inclusive do medo da morte.

            Quando as pessoas se amam e se acolhem no amor estão amando o Pai, seu Deus. O Pai se encontra nas relações amorosas, nas relações pautadas na acolhida, no perdão e na solidariedade. Solidariedade é o sobrenome do amor. Quando não há solidariedade, não há amor, pois aquela é a concretude deste. Neste sentido, em uma de suas cartas, o apóstolo João pergunta: Se não sou capaz de amar o próximo que consigo ver, como posso afirmar que amo a Deus que é invisível? Deus está no próximo e é amando a este que amo aquele. O rosto do outro resplandece a face de Deus. Assim Ele o quis: permanecer no e com o ser humano.

O amor aos inimigos

            O próximo pode ser nosso inimigo? A palavra “inimigo” é um pouco forte. Em si, causa divisão. Recorda-nos da maldade, da malícia, da desavença. Tudo isso existe, é verdade; mas é verdade também que tudo isso não é maior do que o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Pai das luzes. Jesus ensina que o ódio gera ódio. Este parece ser filho do rancor, do ressentimento, da ira desmedida. Sentir raiva é natural porque passa; sentir ódio, não. Além de fazer mal para a saúde da mente e do coração, faz mal também ao espírito. Dominado pelo ódio, o ser humano tende à destruição e à morte. No ódio não há nada de proveitoso, mas somente caminho que leva à morte.

            O mundo sempre foi marcado pelo ódio. Facilmente, as pessoas se deixam dominar por ele. O resultado todo mundo conhece: as diversas formas de violência que matam tristemente milhões de pessoas em todo o mundo. As pessoas se odeiam e partem para a eliminação do outro. Enquanto no amor há acolhida generosa, no ódio há separação e eliminação. Toda pessoa precisa aprender a controlar seus impulsos de raiva, impedindo, assim, que se chegue ao ódio. O que Jesus ensina é simples de compreender, mas difícil de praticar: “amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!” Segundo Jesus, quem assim procede se torna filho de Deus.

            Como é possível amar quem nos odeia e rezar por quem nos persegue? Alguém poderia dizer: “Isto não é possível! Só Jesus é quem  fez isso!” Isto nos faz pensar noutra pergunta: Será que Jesus iria nos pedir algo impossível? Penso que não. Então, como amar os inimigos? Para amar os inimigos, três atitudes são necessárias, a saber: primeira, que se queira amá-los de verdade, sem falsidade. É preciso um querer verdadeiro. Segunda, perdoá-los com sinceridade de coração. Perdoar é sinônimo de libertação interior e reconhecimento da limitação do outro. Terceira, desejar o bem aos inimigos, invocando sobre eles o nome de Deus, a fim de que encontrem a paz e o caminho da verdade e da liberdade.

Amar os inimigos não quer dizer que meramente relevemos a ofensa e nos reaproximemos deles. Isto seria falta de prudência e entendimento. O que os inimigos nos fizeram está feito, o perdão que lhes é oferecido nos confere a feliz oportunidade de nos desapegarmos daquilo que nos foi feito. Não podemos ficar com aquilo que não nos pertence. Os efeitos da ofensa precisam ser superados pela força do amor a que somos chamados a experimentar.

O amor nas Igrejas cristãs

            Por fim, é preciso dirigir algumas palavras a respeito da prática do amor no interior das Igrejas cristãs. Há muita falta de amor entre aquelas pessoas que frequentam o culto religioso. Respeitando as exceções para não faltar com a caridade com as mesmas, geralmente, há muito ódio e vingança entre os que pautam sua fé nas práticas religiosas. Falta solidariedade. As pessoas se encontram no templo, mas não se conhecem, a não ser de vista. E o que é pior: fazem o maior esforço para continuar conhecendo somente de vista. Onde fica o amor? O amor fica na pregação. No culto, de modo geral, as pessoas vão para rezar para Deus, numa relação vertical (Deus e eu). O outro não interessa. Interessa cumprir a obrigação cultual diante de Deus. E o espírito comunitário? Este fica na pregação.

            Jesus nos ensina a sermos perfeitos no amor e para o amor. Tal perfeição não está ligada à ausência de defeitos ou pecados. Todo cristão é pecador, redimido pela graça de Deus. Sem o amor não há seguimento de Jesus. Sem amor ao próximo não há amor a Deus e sem amor aos inimigos, o mundo continuará em guerra. Na família, na escola, na rua e em todo lugar, sejamos promotores da cultura da não violência. Promover a paz significa se arriscar a viver o amor a Deus, a nós mesmos, ao próximo (amigos, inimigos e desconhecidos). Conformarmo-nos ao amor. Que Deus nos conceda esta graça!


Tiago de França

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Desafios da catequese

         
            Neste texto quero apresentar algumas reflexões a respeito dos desafios da catequese, tendo em vista sua realidade na vida da Igreja. Certamente é um tema que merece atenção porque a catequese auxilia no crescimento humano e espiritual das pessoas em sua caminhada rumo ao Pai. Inserida no processo de evangelização tem papel importante no crescimento da fé (cf. Evangelii Gaudium, n. 163).

Há diversos documentos que falam do lugar, da importância e dos métodos catequéticos (cf. Exortação Apostólica Catechesi tradendae, Diretório Geral para a Catequese, Diretório Nacional de Catequese etc.), sobre os quais não me deterei aqui. O Documento de Aparecida e a primeira Exortação Apostólica do Papa Francisco também oferecem excelentes reflexões.

Diante desta riqueza de documentos, contendo orientações teológicas bem fundamentadas, surge uma pergunta: Por que a catequese não tem tido o êxito que se espera na Igreja? Por que tantas pessoas “catequisadas” recebem os sacramentos da iniciação cristã e, geralmente, desaparecem da vida eclesial? Vamos pensar estas questões à luz da experiência de Jesus e da realidade eclesial.

O que é e para que serve a catequese?

            A catequese certamente não é um curso de preparação para a recepção dos sacramentos, principalmente do batismo, da crisma e da 1ª eucaristia. Infelizmente, em muitas paróquias, a catequese é um curso. A modalidade curso é problemática para a catequese porque todo curso é, de fato, preparatório, metódico, técnico e sujeito a um tempo determinado. Ninguém passa a vida toda em um curso! Isto explica porque em muitos lugares se fala de “aulas de catequese” e não em encontros ou reuniões catequéticas.

            A catequese também não se trata de encontros para a mera transmissão da doutrina de Jesus e da Igreja. Quando encarada desta forma, o catequista é aquele que conhece ou deveria conhecer o conjunto da doutrina cristã e eclesiástica para transmiti-las aos catequisandos. Antes da proposta da catequese renovada (no Brasil, período anterior a 1984), os catequisandos tinham obrigação de ter em mente o conteúdo doutrinal. Em muitas realidades eclesiais isto ainda prevalece. Há presbíteros que fazem verdadeira “prova oral” a respeito da doutrina cristã para ver se o catequisando está devidamente “preparado” para receber os sacramentos.

            Afirmar que a catequese de crianças e adolescentes é momento de recreação (dança, teatro, brincadeiras etc.) também parece ser um equívoco. Não que tais coisas não devam estar presentes na prática catequética, mas reduzi-la àquelas não parece ser caminho acertado. Neste sentido, a catequese perderia um pouco de sua dimensão querigmática e mistagógica. O querigma trinitário a ser anunciado leva crianças e adolescentes ao crescimento, à maturidade da fé, não ao infantilismo. Deve-se lidar com as crianças e adolescentes de tal forma que, não as confundindo com adultos, seja lhes fornecida a oportunidade de caminhar para frente, rumo à vida adulta, nunca para trás, na direção do útero materno de onde vieram.

            Segundo os mencionados documentos acima, a catequese não pode se reduzida a momentos que antecedem à recepção dos sacramentos. Se assim é, então temos curso de catequese e não “itinerário catequético permanente”, no dizer do Papa Bento XVI, ao falar para os bispos do Brasil, em maio de 2007 (referência feita no Documento de Aparecida, 2ª ed., p. 138).

Falar de itinerário é falar de algo durável, que permanece, que não é transitório nem superficial. É falar de caminhada firme, decidida, amadurecida, processualmente orientada para o encontro com Jesus. Este encontro com Jesus é o essencial na catequese. Tudo o que se faz na catequese deve levar o catequisando a encontrar-se com Jesus, encontro que é capaz de mudar radicalmente a sua vida (conversão).

Catequese e paróquia

            Geralmente, a catequese acontece na comunidade paroquial, mas nem todos os católicos frequentam a paróquia. Não quero aqui discutir a fundo a ineficácia do sistema paroquial vigente, ainda mantido pelas chamadas “pastorais de manutenção”, denunciadas pelo Documento de Aparecida. Busca-se a transformação das paróquias em “comunidades de comunidades”. Este é um tema para outro artigo. Desconfio que tal tentativa já esteja sendo frustrada, pois, apesar das críticas à paróquia tradicional, parece que, no fundo, a maioria dos bispos e padres prefere o tradicional, que oferece certa segurança, ao novo, que dinamiza a vida comunitária e tira da pessoa do pároco alguns poderes desnecessários.  

            A relação entre catequese e paróquia nos remete à seguinte pergunta: Para que tipo de comunidade se convida o catequisando a participar? Geralmente, os párocos orientam os catequistas a convidarem os catequisandos para fazerem parte das pastorais de manutenção, durante e após a recepção dos sacramentos. Adolescentes e jovens não possuem, nos dias atuais, estrutura psicológica para se envolver em tais pastorais. Alguns procuram os grupos de jovens e de oração, mas quando descobrem que estes, geralmente, tendem ao enquadramento de suas consciências e condutas, logo fogem sem dar notícias.

            Não há mais nada a se oferecer aos catequisandos, além dos sacramentos e da participação nas pastorais que compõem a vida da paróquia tradicional? Se não há, a catequese continuará ineficiente. Neste sentido, percebe-se a necessidade de se rever a ideia e as estruturas das paróquias. A situação atual da catequese é compatível com a situação da paróquia. Se esta se transformasse em comunidades de comunidades, a catequese também ganharia nova feição.

Não adianta o catequista trabalhar na perspectiva do discipulado e da missão se a comunidade na qual o catequisando está inserido é tradicionalmente paróquia, ou seja, comunidade voltada para dentro de si mesma, ensimesmada; sendo que discipulado e missão é movimento para fora, para o mundo.

Bíblia e catequese

            A Sagrada Escritura é um dos lugares de encontro com Jesus (cf. Documento de Aparecida, n. 247). Não pode haver catequese sem escuta atenta da Palavra de Deus. Tendo em vista que a catequese é chamada a levar o catequisando a ser discípulo missionário de Jesus no mundo, isto só é possível se o mesmo escuta, compreende e conhece a Palavra de Deus. Como seguir a um desconhecido? Como anunciar Jesus sem o conhecê-lo? Isto não significa a transformação da catequese em um curso de formação bíblica, o que também não impede que o catequista oriente o catequisando a participar de tal curso.

            É preocupante a situação de muitos catequisandos em relação ao conhecimento que os mesmos poderiam ter em matéria de Bíblia. Quando falamos de conhecimento bíblico defendemos a ideia de que o cristão necessita conhecer, pelo menos em linhas gerais, sem muitos pormenores, a história da salvação contida na Bíblia (criação – libertação do cativeiro – períodos tribal e monárquico – profetas – Jesus – primeiras comunidades). É uma linha do tempo simples e fácil de assimilar.

Assimilar não somente para conhecer, mas para compreender a encarnação do Verbo de Deus neste mundo. Estamos inseridos também nesta história da salvação que terminará na parusia (volta) de Jesus no juízo final. Temos um passado, temos história e memória, e o catequisando, gradualmente precisa conhecer tal itinerário de salvação.

            Conhecer Jesus a partir dos evangelhos é de uma riqueza espiritual imprescindível. O que disse e o que fez Jesus? Quem foram seus companheiros e companheiras? Onde nasceu e como morreu? Qual o significado de sua missão e ressurreição? O que significa aderir a Jesus? Qual a centralidade de sua mensagem? Quem foram os que continuaram sua missão? Qual deve ser a relação entre a Igreja e o evangelho? Como entender e anunciar o evangelho nos dias de hoje? Qual o papel do apóstolo Paulo na transmissão da fé cristã? Em linhas gerais, como entender a relação entre Novo e Antigo Testamento? Estas e outras questões são fundamentais para o necessário conhecimento de Jesus de Nazaré, de sua vida e missão.

            Não se deve encarar o conhecimento bíblico como uma obrigação na catequese, assim como nas demais dimensões da vida da Igreja. Bíblia não é compatível com obrigação. Buscamos ler e compreender a mensagem bíblica porque somos filhos de Deus e como filhos necessitamos conhecer a vontade do Pai revelada na Escritura Sagrada. Se consideramos a Deus como nosso Pai, é incompatível com nossa crença que abandonemos ou desconheçamos sua Palavra. Nossa filiação divina, por adoção em Cristo Jesus, passa pelo conhecimento de Jesus, que nos revelou o Pai. Se não tenho contato com a Bíblia, como vou entender a revelação divina? Seria impossível.

E agora, José?

            O que fazer diante dos desafios que a catequese nos apresenta? Vamos concluir esta breve reflexão com algumas indicações práticas, que julgamos importantes para a renovação da prática catequética da Igreja:

- Mudar a mentalidade em relação à catequese na Igreja: sair da ideia de curso de preparação para a de itinerário permanente;

- Levar o catequisando a compreender o sentido de pertença à Igreja. Eu não apareço na Igreja, mas sou Igreja, membro da grande Comunidade dos filhos e filhas de Deus;

- O catequista exerce um ministério. Assim, nem toda pessoa tem vocação para exercê-lo. Desta forma, os párocos não devem convidar qualquer pessoa, mas esta é que deve procurar ser catequista e preparar-se para exercer o ministério. Assim como o padre passa pela preparação necessária para o exercício de seu ministério, o mesmo deve acontecer com o catequista. Neste sentido, não deveria haver catequista sem prévia preparação;

- O catequista deve ser alguém experimentado, que tenha encontrado Jesus e que o conheça na vida e na Escritura Sagrada, pois o catequista participar do múnus de ensinar. Ele ensina não como quem fala para quem nada sabe, mas fala de sua experiência de encontro com Jesus, fundamentando-a na doutrina;

- A leitura dos manuais e documentos sobre a catequese é importante, mas o essencial é o anúncio do evangelho de Jesus. Jamais colocar os documentos da Igreja acima do evangelho de Jesus, pois se pressupõe que os mesmos fazem referência ao evangelho, o que não dispensa a leitura e meditação do texto evangélico;

- Colocar a Bíblia na mão do catequisando, levando-o a tocá-la, manuseá-la e conhecê-la de perto. Despertar a curiosidade e a vontade de ler, questionar, compreender, meditar e rezar a Palavra de Deus;

- Por fim, levar o catequisando a enxergar os conteúdos da fé cristã em sua vida cotidiana (vida familiar, escolar, laboral etc.). Levá-lo a compreender que a catequese continua na vida eclesial, durante e após a recepção dos sacramentos, por meio da comunhão e da participação. Trabalhar a consciência do catequisando, não o obrigando a nada. Ele é quem tem que tomar a livre iniciativa pelo gosto de participar da vida da comunidade. Neste sentido, o testemunho de integridade, participação e comunhão do catequista, do pároco, das lideranças, da família e de toda a comunidade é fundamental para o catequisando tomar consciência de sua missão na Igreja e no mundo.

Tiago de França 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A vontade de Deus e o cumprimento da lei

“Porque eu vos digo, se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no reino dos céus” (Mt 5, 20).

            A discussão em torno da importância da lei em consonância com o cumprimento da vontade de Deus é muito interessante no evangelho segundo Mateus, assim como em toda a Sagrada Escritura. Vamos pensar tal relação a partir do que Jesus falou em Mateus 5, 17 – 37, texto lido neste domingo na liturgia da Igreja Católica. É preciso frisar que Mateus escreve seu evangelho tendo como referência não somente sua convivência com Jesus como também a lei dada por Moisés, explicitada no antigo testamento das Escrituras, especialmente na Torá judaica; portanto, é o evangelista que mais faz referência à lei.

A lei dada a Moisés

            Em um determinado momento da vida do povo de Deus, o patriarca Moisés percebeu que a convivência entre as pessoas estava ficando complicada, ou seja, estava havendo muitos conflitos e, assim, apareceu a necessidade da lei. Assim sendo, a lei foi dada por Deus a Moisés para que o povo pudesse, observando-a, viver em paz. O decálogo (dez mandamentos) é constituído de “normas” claras, sendo a maioria delas iniciadas com a palavra “Não”, ou seja, de cunho proibitivo. O povo precisou aprender o que seria proibido. A lei era simples e direta, e com o desenvolvimento da vida do povo foram aparecendo outras leis, até se chegar ao complexo sistema de leis, que se tornou um fardo pesado para ser colocado nas costas do povo.

            Doutores da lei e fariseus eram os intérpretes da lei, as figuras competentes (autorizadas) para fazer a interpretação correta (ortodoxa). O povo simples, principalmente os pecadores públicos não entendiam da lei e eram condenados pela intepretação que se fazia da mesma. A ignorância (desconhecimento) em relação à lei dava margem a toda forma de exploração por parte dos intérpretes, que somente interpretavam, mas não a cumpriam. Segundo Jesus, isto não poderia ser aceito, pois era hipocrisia. Aqui está o motivo principal dos conflitos entre Jesus e os intérpretes da lei: estes últimos, aparentemente, eram respeitados pelo povo, mas eram mentirosos e hipócritas, pois se utilizavam da lei para explorar o povo simples.

Jesus e a lei

            Jesus foi acusado pelos doutores da lei e fariseus de ser um sujeito desobediente e rebelde. Eles entenderam e faziam o povo entender que Jesus era subversivo, portanto, contrário à lei dada a Moisés. Em Mateus, na mencionada citação, Jesus é claro e objetivo: “Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento”. Posteriormente, a fala de Jesus segue frisando a respeito da importância de se cumprir a lei. Como entender Jesus? À luz do evangelho, o que significa cumprir a lei?

            A prática missionária de Jesus desmente todo leitor do evangelho que ousar pensar que Jesus é favorável ao cumprimento literal da lei. Toda lei está sujeita à interpretação e o problema sempre se encontra no complexo exercício da interpretação. Tanto a lei de Deus quanto a lei dos homens precisam ser interpretadas. Não se cumpre a lei sem prévia compreensão da mesma. A pergunta que se deve fazer diante de qualquer texto bíblico é: O que isso significa? Diante das palavras de Jesus: O que Jesus quis dizer para aquelas pessoas e o que estas palavras significam hoje? São questões que nos fazem interpretar.

            Jesus não aboliu a lei e como judeu procurou observá-la, mas sem hipocrisia alguma. Não era escravo da lei, mas livre em relação a ela. Não submeteu sua inteligência aos ditames da lei. Não aprovou os abusos cometidos em nome da lei. Para Jesus, lei e liberdade caminham sem conflito. A observância da lei está em função da liberdade do homem. Se a observância da lei gera escravidão, então esta lei não vem de Deus. Neste sentido, muitas das leis dadas pelos patriarcas e líderes do povo de Deus não correspondiam à vontade de Deus, mas era fruto da inteligência humana. Muitas vezes, a intenção era boa, mas quando a lei era posta em prática, a consequência era a escravidão e até a morte da pessoa. Exemplo claro disso: toda mulher pega em flagrante adultério era apedrejada até à morte em praça pública. A lei autorizava isso. Diante disso pergunta-se: tal morte do apedrejamento correspondia à vontade de Deus?...

            Surge ainda outro questionamento: diante de tais leis opostas à vontade de Deus, ninguém parava para analisá-las com prudência e cuidado, a fim de reformulá-las ou aperfeiçoá-las? Repetidas vezes, em várias citações, aparece a ideia fundamental de que a lei de Deus é perfeita. De fato, a lei de Deus e não a dos homens, é perfeita. Tal perfeição deve ser entendida não no sentido da forma escrita da lei, mas de sua real intenção: a vida do povo. A lei de Deus é perfeita porque cumprindo-a o ser humano encontra a vida e a liberdade. Assim, o judeu compreendia que nada poderia ser mudado na lei. Esta era perfeita, mesmo autorizando a morte da mulher adúltera por apedrejamento em praça pública.

            Jesus ensinou aos seus discípulos com palavras e ações que a lei deveria ser cumprida, mas com plena liberdade. Jesus não foi enviado pelo Pai para enquadrar as pessoas na lei. Isto jamais! Também não veio para criar um mundo desordenado. Jesus sabia muito bem que o ser humano carece de orientações, pois tende à dispersão e ao pecado. A fraqueza humana pede o auxílio da lei de Deus. Sem a lei de Deus o crente se torna um desorientado, não consegue viver de acordo com a vontade divina.

Aos discípulos Jesus advertiu: “Porque eu vos digo, se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no reino dos céus”. Claramente se entende o que Jesus quer dizer: se seus seguidores não superassem a justiça dos intérpretes da lei judaica, não iriam entrar no reino dos céus. Em outras palavras, os discípulos de Jesus não deveriam fazer como os mestres da lei e fariseus, que em nome da lei exploravam o povo simples.

A lei e o evangelho nas comunidades cristãs

            Assim como no judaísmo clássico, a Igreja Católica, após ter sido proclamada como religião oficial do império romano, no séc. IV, passando por toda a Idade Média e Moderna, até chegar ao Concílio Vaticano II, sempre teve a tendência de ensinar os cristãos a observar severamente as normas, prescrições e orientações emitidas pelo clero (especialmente o Papa) e pelos órgãos eclesiásticos responsáveis por manter a ortodoxia e a disciplina na Igreja. A história mostra o desenvolvimento da lei canônica dentro da Igreja até chegarmos ao atual e complexo sistema eclesiástico de leis. Basta dar uma lida no código de direito canônico e logo se percebe que a Igreja possui lei para tudo. Detalhe: a maioria dos católicos não faz ideia sequer de um quarto da metade destas leis!

            As leis eclesiásticas são necessárias? Diria que algumas sim, outras não. As que não são necessárias, geralmente, não estão de acordo com o evangelho de Jesus. Algumas se opõem totalmente ao que Jesus ensinou. Exemplo: há na Igreja regras que falam a respeito de quem deve ou não comungar. Assim, estão excluídas da mesa eucarística todas as pessoas que se encontram em estado matrimonial irregular (casais de segunda união). Isto está de acordo com o evangelho? Penso que não. Há muitas outras leis que excluem as pessoas da comunhão eclesial. Esta comunhão só será possível quando as pessoas se sentirem incluídas e forem, de fato, acolhidas sem julgamentos nem condenações.

            Pergunta-se: por que a Igreja demora tanto em aperfeiçoar leis como esta? A resposta é simples, mas que muitos, principalmente os mais conservadores (que se julgam mais ortodoxos!) não aceitam: demora porque o evangelho de Jesus ainda não está no centro da vida eclesial, pois a preocupação maior é mais com a aplicação da lei do que com o anúncio do evangelho. Se o leitor não concorda e se for praticante, peço-lhe que observe com atenção sua comunidade paroquial. Quais as prioridades de sua paróquia? Nelas você vai saber se o essencial, o anúncio do evangelho, é ou não o fundamental da comunidade.

            Na vida pessoal e social, o cristão precisa, antes da lei, ler e interpretar o evangelho; entender a palavra de Jesus e buscar viver de acordo com ela. Todo aquele que assim proceder estará cumprindo a lei, tanto a dos homens quanto a de Deus. O verdadeiro cristão é íntegro no seu modo de ser. Sendo assim, não contraria a lei de Deus nem a lei dos homens. O evangelho é muito simples e é na simplicidade que o observamos.

Não precisamos criar regras para observar o evangelho. As regras são necessárias para a religião, não para o evangelho. Jesus não ditou regras para seus discípulos, mas somente lhes revelou o Pai. Seremos felizes e o mundo se transformará se observamos o evangelho de Jesus, que ensina que o amor deve ser o centro de nossas vidas. Que o Espírito nos ajude a sermos cada vez mais amorosos e nos liberte do legalismo doentio que ainda reina nas comunidades cristãs.


Tiago de França

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Um cardeal descontrolado e um jesuíta comprometido

“Quem provocar a queda de um só destes pequenos que creem em mim, melhor seria que lhe amarrassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem no fundo do mar” (Mt 18, 6).

            Há coisas que acontecem na Igreja que são abomináveis aos olhos de Deus, uma delas é o escândalo. No versículo bíblico acima mencionado, Jesus faz questão de chamar a atenção para o cuidado que se deve ter com os escândalos, principalmente com os que envolvem os pequenos, os pobres. Pelo tom das palavras de Jesus, o escândalo é algo grave e reprovável por Deus.

Na comunidade cristã, à luz do evangelho, ai de quem provocar escândalos! Pois bem, estava escrevendo sobre a catequese em vista da recepção dos sacramentos, eis que dou uma pausa para ler as notícias seculares e eclesiásticas e me deparo com uma reportagem veiculada pelo portal IHU – online, que pode ser acessada no seguinte link: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/528131-cardeal-repreende-jesuita-publicamente-durante-missa-na-republica-dominicana. A situação é tão revoltante que preferi dar uma pausa na reflexão que estava escrevendo para escrever sobre o ocorrido, para que o mesmo não passe em branco e sirva de alerta para todos.

O caso

            A questão é simples de ser entendida: o Tribunal Constitucional da República Dominicana decidiu, em setembro de 2013, que não são dominicanos os filhos de estrangeiros em trânsito nascidos no país desde 1929. Graças a outras determinações legais, três gerações de pessoas tinham nacionalidade dominicana, mas tal decisão as afetou gravemente. Naquele país há o Centro Juan Montalvo, que na pessoa do jesuíta padre Mario Serrano, defende ativamente os imigrantes e os dominicanos de ascendência haitiana. Apoiando a decisão do mencionado Tribunal aparece a figura do Cardeal Nicolás de Jesús López Rodríguez (ver foto que acompanha este artigo), da República Dominicana.

            Esta é a situação: um padre jesuíta que defende os direitos dos imigrantes e dos haitianos de ter nacionalidade dominicana e um cardeal que prefere apoiar a infeliz decisão da Corte Constitucional daquele país. Aqui já percebemos uma clara contradição, pois ambos os clérigos pertencem à mesma Igreja Católica. O padre jesuíta trabalhando em prol dos pobres e o cardeal, claramente, ao lado dos poderosos. Pois bem, mas onde está o outro escândalo além deste?...

            Na tarde de domingo, dia 26 de janeiro do corrente ano, durante a missa de encerramento de um encontro organizado pela conferência dominicana dos religiosos e religiosas, em Santo Domingo, o mencionado cardeal se dirigiu, violenta e diretamente, ao padre Mario Serrano nos seguintes termos: “Por que razão vocês estão apoiando? Aqui há coisas que devem ser mudadas. Trago dentro uma lagoa profunda... Fui educado por jesuítas e eu gosto dos jesuítas. Mas esse sem vergonha não me interessa de nada. Ele se dedicou aos grupos de esquerdistas para fazer o que quiser. É preciso me respeitar nesse país, embora esse senhor se acha o supremo pontífice. Eu estou muito incomodado. Moralmente, não aceito que um sacerdote ande dizendo bobagens publicamente. Aqui está o superior jesuíta. Diga-lhe: ‘Cale-se’, e pronto. Quem você é para andar falando bobagens? Defendendo os haitianos? Ninguém fez mais pelo Haiti como a República Dominicana, e, por isso, não é certo que um jesuíta esteja fazendo mais que o próprio cardeal. Desculpem-me, mas eu me sinto profundamente incomodado com os jesuítas, meus formadores no seminário, porque não colocaram o senhor Mario Serrano no seu lugar. Que ele se ponha no seu lugar. Eu não sou companheiro dele. Por isso, por favor, tenham a bondade de por as coisas no seu lugar. Você é um religioso, submete-se à obediência ou, senão, deixe a congregação e dedique-se a outra coisa”. Estas foram as infelizes palavras do cardeal descontrolado. Vamos analisá-las.

Análise da fala infeliz do cardeal

            Esta fala infeliz deixa transparecer algumas questões que merecem ser refletidas na Igreja. Qualquer cristão de bom senso é capaz de perceber que se trata de uma autoridade eclesiástica descontrolada. Infelizmente, este não é o primeiro caso nem será o último, pois na Igreja há muita gente descontrolada, afetivamente mal resolvida. Como é que um cardeal, durante a celebração da Eucaristia, chama um padre de “sem vergonha”? Repito: o agressor é membro do colégio cardinalício, o que mostra, claramente, que não quer dizer muita coisa!...

            A fala é sintomática e indicativa. O que está por trás dela?

- o cardeal parece ser inimigo das lutas pelos direitos humanos. As vidas ameaçadas dos desnacionalizados não lhes interessam;
- o cardeal parece ser amigo dos poderosos da República Dominicana e tenta fazer sua parte não a partir das bases populares, mas a partir das autoridades. Para ele, a figura da autoridade é muito importante;
- Quando afirma que não é justo que o padre jesuíta faça mais do que ele, mostra com clareza sua inveja doentia. O mesmo possui um forte espírito de competição e não de comunhão fraterna;
- Afirma que está decepcionado com os jesuítas, especialmente o superior do padre Mario, por não tê-lo colocado no seu devido lugar, ou seja, por não ter impedido que apoiasse a luta dos imigrantes e descendentes dos haitianos. Isso mostra que o cardeal é autoritário, que não dialoga, que abusa do poder eclesiástico para silenciar aqueles que lutam em favor dos pobres;
- por fim, ousou induzir o padre Mario a sair da Companhia de Jesus e se dedicar a outra coisa na vida. Com isto, o cardeal quis dizer que as atividades desenvolvidas pelos jesuítas daquele país, especialmente o agredido, não pertencem à vida e à missão presbiteral na Igreja, ou seja, não é coisa de padre.

O valor do diálogo e do serviço aos pobres na Igreja

            O ocorrido é motivo de escândalo para toda a Igreja. Se o padre tivesse agredido o cardeal, certamente já estaria suspenso do uso de ordem, ou mesmo expulso do ministério ordenado. Infelizmente, o caso foi oposto. Como se trata de um cardeal, nada vai ocorrer ao mesmo, pois ele não deve obediência a ninguém. O máximo que pode ocorrer, dependendo de como o papa Francisco irá reagir, será advertido, fraternalmente.

            Recordo-me da expressão utilizada pelo papa Francisco quando esteve reunido, aqui, no Brasil, com os bispos latino-americanos. O papa falava do perigo do bispo ser contaminado pela “psicologia de príncipe”. No caso acima relatado, inegavelmente se percebe que o cardeal sofre desse terrível mal, pois se sente melhor do que todos, superior a todos, não tem atitude de servidor, mas de senhor feudal. Bispos assim causam grandes estragos à Igreja.

            O caso nos remete à necessidade do diálogo entre os bispos e os padres em vista da comunhão fraterna, da fraternidade sacerdotal. Diferentemente do que falou o cardeal, padres e bispos são companheiros de missão e a Igreja na América Latina, especialmente na sofrida República Dominicana, deve se colocar a serviço dos mais pobres. Penso que o cardeal não assimilou a lição do Documento de Aparecida, que exige a conversão da Igreja neste sentido. O cardeal precisa reler o evangelho de Jesus e o Documento de Aparecida, ambos bastam para ajudá-lo a se converter.

            Todo cristão batizado precisa se opor com humildade e mansidão a todo e qualquer abuso por parte do clero, independentemente se tais abusos forem cometidos por diáconos, padres, bispos, cardeais ou por quem quer que seja. Abuso de poder é antievangélico, pois a palavra de ordem na vida eclesial é serviço. Quem quiser participar do Reino de Deus precisa aprender a dinâmica do amor que se revela na solidariedade com o próximo, especialmente com os mais fragilizados. Por isso, toda forma de abuso de poder não pode ser tolerada na Igreja, não pode se tornar algo normal e corriqueiro, pois destrói a unidade e a comunhão queridas por Jesus de Nazaré. Fica aqui o meu repúdio à atitude do cardeal e minha solidariedade aos jesuítas que lutam pela justiça, especialmente o padre Mario Serrano.


Tiago de França

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ser sal da terra e luz do mundo

“Vós sois o sal da terra... Vós sois a luz do mundo” (Mt 5, 13.15).

            Dentro do famoso “sermão da montanha”, após mencionar as bem-aventuranças, Jesus propõe aos seus seguidores um desafio: ser sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5, 13 – 16). É um desafio porque nem todos conseguem ser sal e luz. É uma tarefa difícil, mas possível. Aliás, é mais que uma tarefa, é missão no mundo, carente de luz. Vamos pensar no sentido dessas duas expressões de Jesus a partir de sua experiência missionária narrada nos evangelhos.

Ser sal da terra

            Sem o sal, muitos alimentos não seriam comestíveis. O sal lhes confere sabor. Se fosse insosso não serviria para nada. Essa expressão foi muito bem entendida pelos conterrâneos de Jesus e ele sabia disso. Ele nos pede que sejamos sal e com gosto. Dar gosto à vida e às relações com as pessoas, construir a comunidade na alegria e na fraternidade. A terra carece de pessoas que sejam sal, que deem sabor e gosto à vida.

            Na comunidade cristã encontramos cristãos insossos, sem ânimo e disposição, desiludidos e frustrados. Estes precisam se reencontrar e o reencontro consigo mesmo é mola propulsora para encontrar-se com a comunidade. Há, de fato, inúmeras pessoas confusas, perdidas, desorientadas, carentes de atenção, apoio e acolhimento. Estas pessoas precisam do sal para que suas vidas tenham o sabor da alegria, do entusiasmo e da fraternidade. Ser fraterno com elas significa ser sal da terra.

            O mundo atual, marcado pelas diversas formas de violência e injustiças clama por cristãos que sejam sal, que ajudem na erradicação de tantos males que desumanizam as pessoas e as escravizam. Relações sadias e fraternas precisam ser construídas em vista da fraternidade universal. Os cristãos devem ser os primeiros a dar testemunho desta fraternidade, semeando e cultivando a justiça, a solidariedade, a amizade, o amor, o perdão e a confiança na sociedade. O gênero humano necessita chegar à compreensão de que pertencemos à mesma Comunidade de irmãos e irmãs, chamados a viver o amor. Somente com gestos de amor a inimizade, o ódio e a indiferença deixarão de existir nas relações entre as pessoas.

Ser luz do mundo

            Para que serve a luz senão para iluminar? Deste modo, não pode ficar escondida. É isso que Jesus adverte no evangelho: o cristão precisa ser luz, não escondida, mas visível para ser vista por todos, para iluminar a todos. Ninguém gosta de escuridão. A vida só é possível quando iluminada. O ser humano não nasceu para viver nas trevas, pois estas fazem mal, tira a possibilidade da visão, da clareza e da compreensão. As trevas do erro e da ignorância afetam muitas pessoas em todo o mundo e estas precisam da luz. Para elas, o cristão é chamado a ser luz.

            Muitas das injustiças que ocorrem no mundo nos fazem pensar algumas questões: Por que as pessoas mesmo sabendo das consequências de suas ações, agem com tanta crueldade? O que ganha uma pessoa com a destruição da outra? Por que o homem, após tanta evolução científica não consegue controlar-se no trato com a natureza? Por que tanta indiferença no trato com as pessoas? Estas e tantas outras questões nos remetem à ignorância e à cegueira que dominam tanta gente. Falta luz, falta discernimento. Neste sentido, é de grande importância o uso da razão iluminada pela fé e pelo bom senso.

            Por fim, é preciso considerar que na vida de nossos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, precisamos aprender a ser luz. O cristão autêntico não pode ser treva na vida do outro, mas possibilidade de orientação, esclarecimento, busca da verdade e encantamento. Ser luz na vida do outro significa ajudá-lo por meio do discernimento das situações e dos sinais que a vida oferece a encontrar sentido e horizonte. Esta relação tem consequências recíprocas. No meio da confusão do mundo pós-moderno, no encontro e desencontro das informações e ideologias, os cristãos não se perdem, pois iluminados pela fé permanecem com os olhos fixos em Jesus.

            As Igrejas cristãs de nossos dias precisam de cristãos adultos na fé e no compromisso evangélico com a justiça, com a verdade e com a liberdade. Jesus confere a quem quer segui-lo mais de perto a coragem e o discernimento necessário. A luz do Espírito é capaz de transformar os cristãos em sal e luz do mundo. Quem segue Jesus, segue a luz e vive na luz. Para ser luz, é preciso ter muita fé, pois o dom da fé gera a confiança e a perseverança. As trevas do mundo não podem gerar o medo paralisante na vida dos discípulos missionários de Jesus. Jesus é a Luz que venceu o mundo e também nos faz vencedores, capazes de transformar o mundo e mudar o rumo da história.


Tiago de França

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Dia Mundial da Vida Consagrada - algumas reflexões

       
         Anualmente, na festa da Apresentação do Senhor, a Igreja celebra o dia mundial da Vida Consagrada. Este dia merece nossa atenção porque na Igreja há inúmeras pessoas consagradas ao serviço do Reino de Deus, membros de diversas ordens, congregações e institutos de vida consagrada. Conheço de perto o testemunho de algumas religiosas e religiosos, e alguns me pediram uma palavra a respeito da Vida Religiosa Consagrada (VRC), por ocasião deste dia festivo. Não sei se irão gostar desta breve reflexão, mas ouso oferecê-la assim mesmo!

Jesus é o centro da Vida Consagrada

            Os religiosos sabem que Jesus é o centro de sua vida e missão, mas talvez muitos não despertaram ainda para o que isto significa. De que tipo de Jesus estamos falando? Estamos falando do Cristo, ungido pelo Espírito, que foi enviado para evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18 – 19). Criaram-se em torno da pessoa de Jesus várias imagens que não correspondem ao que os evangelhos nos revelam. O Cristo que deve ocupar o centro da vida e da missão dos religiosos é o missionário do Pai, que tendo optado pelos pobres, doou sua vida até as últimas consequências.

            Nada deve ocupar o lugar de Jesus na Vida Consagrada, pois tal estilo de vida é consagrado ao serviço de Jesus, então ele deve ser o centro. Certamente, quando isto ocorre a missão dos religiosos acontece e são felizes; do contrário, quando outras coisas ocupam o centro da Vida Consagrada, esta deixa de ser consagrada e se torna um peso para a vida do povo de Deus. Religiosos que não possuem Jesus como centro de sua vida e missão costumam ser amargos, frustrados, tristes, desorientados e se transformam num verdadeiro peso na vida do povo.

O voto de Pobreza

            Os religiosos não deveriam fazer voto de pobreza. Este voto passou a existir porque há riquezas materiais na Vida Consagrada. Geralmente, os institutos, salvo algumas exceções, possuem patrimônio financeiro capaz de assegurar vida cômoda e tranquila para seus membros. Alguns institutos possuem fortunas incalculáveis. Exemplo disso são os Legionários de Cristo, congregação mexicana fundada pelo polêmico Pe. Marcial Maciel. O patrimônio financeiro dos legionários constitui um escândalo para a Igreja, um equívoco que ainda não foi devidamente corrigido.

            Para os religiosos, não se deve apenas professar o voto de pobreza, mas vivê-lo na radicalidade evangélica. Não adianta a profissão do voto se a vida que se leva é de classe média. Infelizmente, quando a maioria dos jovens ingressa nas casas de formação dos institutos de vida apostólica, com o passar do tempo, tornam-se religiosos burgueses. Basta procurar uma dessas Casas de Formação e perguntar pelas despesas mensais. Gasta-se muito dinheiro. E a lógica é simples: se se gasta é porque se tem para gastar! Os religiosos não conseguem se libertar do supérfluo, pois tem medo de que algo lhes falte. A partilha com os pobres é quase que insignificante, servindo apenas para “tranquilizar” a consciência diante de Deus.

            O ideal seria que os religiosos pudessem aderir a uma vida simples. Não estamos defendendo a ideia de que passem por necessidade: que não tenham alimentação, casa, transporte, saúde, lazer etc., mas que tudo isso esteja de acordo com as condições de vida dos pobres. Religiosos que levam vida de rico não conseguem evangelizar os pobres nem se deixam evangelizar por eles. Para o exercício da profecia, os religiosos precisam, antes de tudo, serem pessoas simples e humildes e isto passa pelo estilo de vida que levam. Sendo ricos, nada tem a dizer contra os ricos que exploram as pessoas.

O voto de castidade

            A castidade está intimamente ligada à pobreza. Religiosos ricos não conseguem ser castos, pois a vida luxuosa os corrompe facilmente. Castidade não é ausência de sexo, mas integridade de vida. A castidade por amor ao Reino de Deus está alicerçada na verdade e na liberdade; do contrário, tudo não passa de mentira e hipocrisia. Este voto não somente impede a vida dupla, mas, sobretudo, ajuda o religioso a ser pessoa livre e disponível para a missão.

            O voto de castidade é vivido por aquelas pessoas que colocam todo o seu ser a serviço da missão. É o voto dos religiosos que se doam por inteiro, sem reservas. Por isto mesmo, tais religiosos são pessoas reconhecidamente afetivas, próximas, simples, abertas e disponíveis. São pessoas que não tem medo de ser feliz, de fazer amizades, de serem autênticas consigo mesmas e com o próximo. Pessoas castas são despojadas de segundas intenções, são alegres e integradas, simpáticas e entrosadas, sensíveis e atentas.

            É visível o religioso que não procura viver o voto de castidade: ora é demasiadamente reservado, fechado em si mesmo; ora é demasiadamente aberto, sem preocupar-se com o cultivo da privacidade necessária, portanto, vive-se de forma descontrolada, sem prudência alguma. Religiosos frios, ríspidos, receosos, desconfiados, conflituosos, maliciosos, invejosos e ambiciosos, infelizmente, não vivem o voto de castidade. Trata-se de pessoas intragáveis, insuportáveis e intolerantes. Dificilmente, há quem goste de ficar perto destes religiosos frustrados. Eles não possuem a alegria libertadora do evangelho de Jesus.

O voto de obediência

            O voto de obediência não transforma uma pessoa em serva de outra. Até o Concílio Vaticano II (1962 – 1965) a concepção que havia de obediência era demasiadamente antievangélica: obedecia-se cegamente aos superiores porque se acreditava que a vontade de Deus se manifesta nas vontades deles. O que o superior pensava para os demais correspondia à vontade de Deus. Hoje isso parece ser um absurdo, mas não naquela época. Assim, o religioso virtuoso e santo deveria ser extremamente obediente. Até pensar mal do superior era motivo de desobediência e um pecado que deveria ser confessado!

            A verdadeira obediência não tira a iniciativa pessoal de cada religioso na sua Comunidade e esta não deve ter o perfil de seu superior. Juntos no espírito comunitário se deve procurar viver a obediência à vontade de Deus. O voto de obediência deve ser vivido na liberdade e em função da liberdade. Quando um religioso se sente sufocado ao praticar tal voto, então algo está errado. A obediência deve passar pelo discernimento da vontade de Deus, para que esta prevaleça sempre na vida da Comunidade. É para conhecer e viver segundo a vontade de Deus que a Comunidade pratica o voto de obediência; do contrário, só há manipulação e controle de pessoas e, consequentemente, um ambiente insuportável onde se sobrevive na mentira e na falsidade.

Um dom do Espírito à Igreja

            Para ser profética, a Vida Consagrada deve viver segundo os apelos do Espírito de Deus. A prática dos votos de pobreza, castidade e obediência é capaz de transformar a vida dos consagrados a Deus. É o que confere sentido à sua vida e missão. Não sendo pobres, castos e obedientes, os religiosos nada tem a dizer ao mundo atual, marcado pela busca desenfreada do poder, do prestígio e da riqueza. A profecia na Vida Consagrada existe para a edificação do Reino. Para ser fieis a Jesus, os religiosos precisam rever constantemente sua caminhada e recolocar Jesus no centro de sua vida e missão.

            Não há Vida Consagrada sem serviço aos pobres, sem encontro com eles, sem convivência fraterna em função da missão. Ninguém se consagra para viver rezando confortavelmente pela paz no mundo. Portanto, o lugar dos religiosos é na periferia do mundo, vivendo junto e misturado com o povo. Os religiosos devem ser profundos conhecedores do sofrimento do povo e pessoas comprometidas com o alívio deste sofrimento. Um exemplo conhecido disso é o testemunho da mártir de Cristo, Ir. Dorothy Stang, que doou sua vida em prol da vida da floresta amazônica. Era uma mulher totalmente entregue à missão, uma profetisa a serviço do Reino de Deus.

            Neste Dia Mundial da Vida Consagrada rezemos a Deus, por intercessão dos mártires da caminhada, que não deixe faltar à Igreja mulheres e homens capazes de se consagrarem a serviço da vida e da liberdade das pessoas, mulheres e homens que vivam segundo a força do Espírito do Senhor.


Tiago de França