quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Um cardeal descontrolado e um jesuíta comprometido

“Quem provocar a queda de um só destes pequenos que creem em mim, melhor seria que lhe amarrassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem no fundo do mar” (Mt 18, 6).

            Há coisas que acontecem na Igreja que são abomináveis aos olhos de Deus, uma delas é o escândalo. No versículo bíblico acima mencionado, Jesus faz questão de chamar a atenção para o cuidado que se deve ter com os escândalos, principalmente com os que envolvem os pequenos, os pobres. Pelo tom das palavras de Jesus, o escândalo é algo grave e reprovável por Deus.

Na comunidade cristã, à luz do evangelho, ai de quem provocar escândalos! Pois bem, estava escrevendo sobre a catequese em vista da recepção dos sacramentos, eis que dou uma pausa para ler as notícias seculares e eclesiásticas e me deparo com uma reportagem veiculada pelo portal IHU – online, que pode ser acessada no seguinte link: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/528131-cardeal-repreende-jesuita-publicamente-durante-missa-na-republica-dominicana. A situação é tão revoltante que preferi dar uma pausa na reflexão que estava escrevendo para escrever sobre o ocorrido, para que o mesmo não passe em branco e sirva de alerta para todos.

O caso

            A questão é simples de ser entendida: o Tribunal Constitucional da República Dominicana decidiu, em setembro de 2013, que não são dominicanos os filhos de estrangeiros em trânsito nascidos no país desde 1929. Graças a outras determinações legais, três gerações de pessoas tinham nacionalidade dominicana, mas tal decisão as afetou gravemente. Naquele país há o Centro Juan Montalvo, que na pessoa do jesuíta padre Mario Serrano, defende ativamente os imigrantes e os dominicanos de ascendência haitiana. Apoiando a decisão do mencionado Tribunal aparece a figura do Cardeal Nicolás de Jesús López Rodríguez (ver foto que acompanha este artigo), da República Dominicana.

            Esta é a situação: um padre jesuíta que defende os direitos dos imigrantes e dos haitianos de ter nacionalidade dominicana e um cardeal que prefere apoiar a infeliz decisão da Corte Constitucional daquele país. Aqui já percebemos uma clara contradição, pois ambos os clérigos pertencem à mesma Igreja Católica. O padre jesuíta trabalhando em prol dos pobres e o cardeal, claramente, ao lado dos poderosos. Pois bem, mas onde está o outro escândalo além deste?...

            Na tarde de domingo, dia 26 de janeiro do corrente ano, durante a missa de encerramento de um encontro organizado pela conferência dominicana dos religiosos e religiosas, em Santo Domingo, o mencionado cardeal se dirigiu, violenta e diretamente, ao padre Mario Serrano nos seguintes termos: “Por que razão vocês estão apoiando? Aqui há coisas que devem ser mudadas. Trago dentro uma lagoa profunda... Fui educado por jesuítas e eu gosto dos jesuítas. Mas esse sem vergonha não me interessa de nada. Ele se dedicou aos grupos de esquerdistas para fazer o que quiser. É preciso me respeitar nesse país, embora esse senhor se acha o supremo pontífice. Eu estou muito incomodado. Moralmente, não aceito que um sacerdote ande dizendo bobagens publicamente. Aqui está o superior jesuíta. Diga-lhe: ‘Cale-se’, e pronto. Quem você é para andar falando bobagens? Defendendo os haitianos? Ninguém fez mais pelo Haiti como a República Dominicana, e, por isso, não é certo que um jesuíta esteja fazendo mais que o próprio cardeal. Desculpem-me, mas eu me sinto profundamente incomodado com os jesuítas, meus formadores no seminário, porque não colocaram o senhor Mario Serrano no seu lugar. Que ele se ponha no seu lugar. Eu não sou companheiro dele. Por isso, por favor, tenham a bondade de por as coisas no seu lugar. Você é um religioso, submete-se à obediência ou, senão, deixe a congregação e dedique-se a outra coisa”. Estas foram as infelizes palavras do cardeal descontrolado. Vamos analisá-las.

Análise da fala infeliz do cardeal

            Esta fala infeliz deixa transparecer algumas questões que merecem ser refletidas na Igreja. Qualquer cristão de bom senso é capaz de perceber que se trata de uma autoridade eclesiástica descontrolada. Infelizmente, este não é o primeiro caso nem será o último, pois na Igreja há muita gente descontrolada, afetivamente mal resolvida. Como é que um cardeal, durante a celebração da Eucaristia, chama um padre de “sem vergonha”? Repito: o agressor é membro do colégio cardinalício, o que mostra, claramente, que não quer dizer muita coisa!...

            A fala é sintomática e indicativa. O que está por trás dela?

- o cardeal parece ser inimigo das lutas pelos direitos humanos. As vidas ameaçadas dos desnacionalizados não lhes interessam;
- o cardeal parece ser amigo dos poderosos da República Dominicana e tenta fazer sua parte não a partir das bases populares, mas a partir das autoridades. Para ele, a figura da autoridade é muito importante;
- Quando afirma que não é justo que o padre jesuíta faça mais do que ele, mostra com clareza sua inveja doentia. O mesmo possui um forte espírito de competição e não de comunhão fraterna;
- Afirma que está decepcionado com os jesuítas, especialmente o superior do padre Mario, por não tê-lo colocado no seu devido lugar, ou seja, por não ter impedido que apoiasse a luta dos imigrantes e descendentes dos haitianos. Isso mostra que o cardeal é autoritário, que não dialoga, que abusa do poder eclesiástico para silenciar aqueles que lutam em favor dos pobres;
- por fim, ousou induzir o padre Mario a sair da Companhia de Jesus e se dedicar a outra coisa na vida. Com isto, o cardeal quis dizer que as atividades desenvolvidas pelos jesuítas daquele país, especialmente o agredido, não pertencem à vida e à missão presbiteral na Igreja, ou seja, não é coisa de padre.

O valor do diálogo e do serviço aos pobres na Igreja

            O ocorrido é motivo de escândalo para toda a Igreja. Se o padre tivesse agredido o cardeal, certamente já estaria suspenso do uso de ordem, ou mesmo expulso do ministério ordenado. Infelizmente, o caso foi oposto. Como se trata de um cardeal, nada vai ocorrer ao mesmo, pois ele não deve obediência a ninguém. O máximo que pode ocorrer, dependendo de como o papa Francisco irá reagir, será advertido, fraternalmente.

            Recordo-me da expressão utilizada pelo papa Francisco quando esteve reunido, aqui, no Brasil, com os bispos latino-americanos. O papa falava do perigo do bispo ser contaminado pela “psicologia de príncipe”. No caso acima relatado, inegavelmente se percebe que o cardeal sofre desse terrível mal, pois se sente melhor do que todos, superior a todos, não tem atitude de servidor, mas de senhor feudal. Bispos assim causam grandes estragos à Igreja.

            O caso nos remete à necessidade do diálogo entre os bispos e os padres em vista da comunhão fraterna, da fraternidade sacerdotal. Diferentemente do que falou o cardeal, padres e bispos são companheiros de missão e a Igreja na América Latina, especialmente na sofrida República Dominicana, deve se colocar a serviço dos mais pobres. Penso que o cardeal não assimilou a lição do Documento de Aparecida, que exige a conversão da Igreja neste sentido. O cardeal precisa reler o evangelho de Jesus e o Documento de Aparecida, ambos bastam para ajudá-lo a se converter.

            Todo cristão batizado precisa se opor com humildade e mansidão a todo e qualquer abuso por parte do clero, independentemente se tais abusos forem cometidos por diáconos, padres, bispos, cardeais ou por quem quer que seja. Abuso de poder é antievangélico, pois a palavra de ordem na vida eclesial é serviço. Quem quiser participar do Reino de Deus precisa aprender a dinâmica do amor que se revela na solidariedade com o próximo, especialmente com os mais fragilizados. Por isso, toda forma de abuso de poder não pode ser tolerada na Igreja, não pode se tornar algo normal e corriqueiro, pois destrói a unidade e a comunhão queridas por Jesus de Nazaré. Fica aqui o meu repúdio à atitude do cardeal e minha solidariedade aos jesuítas que lutam pela justiça, especialmente o padre Mario Serrano.


Tiago de França

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