“Quem provocar a queda de um só destes
pequenos que creem em mim, melhor seria que lhe amarrassem ao pescoço uma pedra
de moinho e o lançassem no fundo do mar” (Mt 18, 6).
Há coisas que acontecem
na Igreja que são abomináveis aos olhos de Deus, uma delas é o escândalo. No versículo
bíblico acima mencionado, Jesus faz questão de chamar a atenção para o cuidado
que se deve ter com os escândalos, principalmente com os que envolvem os
pequenos, os pobres. Pelo tom das palavras de Jesus, o escândalo é algo grave e
reprovável por Deus.
Na comunidade cristã, à luz do evangelho, ai
de quem provocar escândalos! Pois bem, estava escrevendo sobre a catequese em
vista da recepção dos sacramentos, eis que dou uma pausa para ler as notícias
seculares e eclesiásticas e me deparo com uma reportagem veiculada pelo portal
IHU – online, que pode ser acessada no seguinte link: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/528131-cardeal-repreende-jesuita-publicamente-durante-missa-na-republica-dominicana.
A situação é tão revoltante que preferi dar uma pausa na reflexão que estava
escrevendo para escrever sobre o ocorrido, para que o mesmo não passe em branco
e sirva de alerta para todos.
O caso
A questão é simples de
ser entendida: o Tribunal Constitucional da República Dominicana decidiu, em
setembro de 2013, que não são dominicanos os filhos de estrangeiros em trânsito
nascidos no país desde 1929. Graças a outras determinações legais, três
gerações de pessoas tinham nacionalidade dominicana, mas tal decisão as afetou
gravemente. Naquele país há o Centro Juan Montalvo, que na pessoa do jesuíta
padre Mario Serrano, defende ativamente os imigrantes e os dominicanos de
ascendência haitiana. Apoiando a decisão do mencionado Tribunal aparece a
figura do Cardeal Nicolás de Jesús López Rodríguez (ver foto que acompanha este artigo), da República Dominicana.
Esta é a situação: um
padre jesuíta que defende os direitos dos imigrantes e dos haitianos de ter
nacionalidade dominicana e um cardeal que prefere apoiar a infeliz decisão da
Corte Constitucional daquele país. Aqui já percebemos uma clara contradição,
pois ambos os clérigos pertencem à mesma Igreja Católica. O padre jesuíta
trabalhando em prol dos pobres e o cardeal, claramente, ao lado dos poderosos. Pois
bem, mas onde está o outro escândalo além deste?...
Na tarde de domingo,
dia 26 de janeiro do corrente ano, durante a missa de encerramento de
um encontro organizado pela conferência dominicana dos religiosos e religiosas,
em Santo Domingo, o mencionado cardeal se dirigiu, violenta e diretamente, ao
padre Mario Serrano nos seguintes termos: “Por
que razão vocês estão apoiando? Aqui há coisas que devem ser mudadas. Trago dentro
uma lagoa profunda... Fui educado por jesuítas e eu gosto dos jesuítas. Mas esse
sem vergonha não me interessa de
nada. Ele se dedicou aos grupos de esquerdistas para fazer o que quiser. É preciso
me respeitar nesse país, embora esse senhor se acha o supremo pontífice. Eu estou
muito incomodado. Moralmente, não aceito que um sacerdote ande dizendo bobagens
publicamente. Aqui está o superior jesuíta. Diga-lhe: ‘Cale-se’, e pronto. Quem
você é para andar falando bobagens? Defendendo os haitianos? Ninguém fez mais
pelo Haiti como a República Dominicana, e, por isso, não é certo que um jesuíta
esteja fazendo mais que o próprio cardeal. Desculpem-me, mas eu me sinto
profundamente incomodado com os jesuítas, meus formadores no seminário, porque
não colocaram o senhor Mario Serrano no seu lugar. Que ele se ponha no seu
lugar. Eu não sou companheiro dele. Por isso, por favor, tenham a bondade de
por as coisas no seu lugar. Você é um religioso, submete-se à obediência ou,
senão, deixe a congregação e dedique-se a outra coisa”. Estas foram as
infelizes palavras do cardeal descontrolado. Vamos analisá-las.
Análise da fala infeliz do cardeal
Esta fala infeliz deixa transparecer algumas
questões que merecem ser refletidas na Igreja. Qualquer cristão de bom senso é
capaz de perceber que se trata de uma autoridade eclesiástica descontrolada. Infelizmente,
este não é o primeiro caso nem será o último, pois na Igreja há muita gente
descontrolada, afetivamente mal resolvida. Como é que um cardeal, durante a
celebração da Eucaristia, chama um padre de “sem
vergonha”? Repito: o agressor é membro do colégio cardinalício, o que
mostra, claramente, que não quer dizer muita coisa!...
A fala é sintomática e
indicativa. O que está por trás dela?
- o cardeal parece ser inimigo das lutas pelos direitos humanos. As
vidas ameaçadas dos desnacionalizados não lhes interessam;
- o cardeal parece ser amigo dos poderosos da República Dominicana e
tenta fazer sua parte não a partir das bases populares, mas a partir das
autoridades. Para ele, a figura da autoridade é muito importante;
- Quando afirma que não é justo que o padre jesuíta faça mais do que ele,
mostra com clareza sua inveja doentia. O mesmo possui um forte espírito de
competição e não de comunhão fraterna;
- Afirma que está decepcionado com os jesuítas, especialmente o superior
do padre Mario, por não tê-lo colocado no seu devido lugar, ou seja, por não
ter impedido que apoiasse a luta dos imigrantes e descendentes dos haitianos. Isso
mostra que o cardeal é autoritário, que não dialoga, que abusa do poder
eclesiástico para silenciar aqueles que lutam em favor dos pobres;
- por fim, ousou induzir o padre Mario a sair da Companhia de Jesus e se
dedicar a outra coisa na vida. Com isto, o cardeal quis dizer que as atividades
desenvolvidas pelos jesuítas daquele país, especialmente o agredido, não
pertencem à vida e à missão presbiteral na Igreja, ou seja, não é coisa de
padre.
O valor do diálogo e do serviço aos pobres na
Igreja
O ocorrido é motivo de escândalo para toda a
Igreja. Se o padre tivesse agredido o cardeal, certamente já estaria suspenso do
uso de ordem, ou mesmo expulso do ministério ordenado. Infelizmente, o caso foi
oposto. Como se trata de um cardeal, nada vai ocorrer ao mesmo, pois ele não
deve obediência a ninguém. O máximo que pode ocorrer, dependendo de como o papa
Francisco irá reagir, será advertido, fraternalmente.
Recordo-me da expressão
utilizada pelo papa Francisco quando esteve reunido, aqui, no Brasil, com os
bispos latino-americanos. O papa falava do perigo do bispo ser contaminado pela
“psicologia de príncipe”. No caso acima relatado, inegavelmente se percebe que
o cardeal sofre desse terrível mal, pois se sente melhor do que todos, superior
a todos, não tem atitude de servidor, mas de senhor feudal. Bispos assim causam
grandes estragos à Igreja.
O caso nos remete à
necessidade do diálogo entre os bispos e os padres em vista da comunhão
fraterna, da fraternidade sacerdotal. Diferentemente do que falou o cardeal,
padres e bispos são companheiros de missão e a Igreja na América Latina,
especialmente na sofrida República Dominicana, deve se colocar a serviço dos
mais pobres. Penso que o cardeal não assimilou a lição do Documento de
Aparecida, que exige a conversão da Igreja neste sentido. O cardeal precisa
reler o evangelho de Jesus e o Documento de Aparecida, ambos bastam para ajudá-lo
a se converter.
Todo cristão batizado
precisa se opor com humildade e mansidão a todo e qualquer abuso por parte do
clero, independentemente se tais abusos forem cometidos por diáconos, padres,
bispos, cardeais ou por quem quer que seja. Abuso de poder é antievangélico,
pois a palavra de ordem na vida eclesial é serviço. Quem quiser participar do
Reino de Deus precisa aprender a dinâmica do amor que se revela na
solidariedade com o próximo, especialmente com os mais fragilizados. Por isso,
toda forma de abuso de poder não pode ser tolerada na Igreja, não pode se
tornar algo normal e corriqueiro, pois destrói a unidade e a comunhão queridas
por Jesus de Nazaré. Fica aqui o meu repúdio à atitude do cardeal e minha
solidariedade aos jesuítas que lutam pela justiça, especialmente o padre Mario
Serrano.
Tiago de França
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