segunda-feira, 31 de março de 2014

50 anos após o golpe militar

       
             No dia 31 de março de 1964, os militares tomaram o poder no Brasil. Depuseram João Goulart e permaneceram no poder durante 21 anos. Após a proclamação da República, foi o período mais cruel e sangrento da história do país. Esta data jamais pode ser esquecida pelos brasileiros e aqui queremos recordá-la sem maiores pormenores. Queremos, apenas, falar da importância da memória e da legítima democracia para a vida de todos os brasileiros.

Poder sem participação popular

            A ideologia da segurança nacional, que sustentava o regime militar e que enganou, até certo ponto, a maioria dos brasileiros, pautava-se no controle que os norte-americanos exerciam sobre os governos dos países latino-americanos. Os EUA apoiaram todas as ditaduras ocorridas na América Latina. Os militares golpistas receberam total apoio e com eles aprenderam a controlar a liberdade das pessoas e a matá-las com eficientes meios de tortura.

            A meta era afastar o povo das decisões de poder. As pessoas não podiam opinar sobre absolutamente nada. Podia-se somente se expressar os que apoiavam o regime, e os que se colocavam contra a ditadura eram ameaçados, perseguidos, torturados e mortos. O sistema não tolerava críticas nem questionamentos de qualquer ordem. Estava atento a tudo e a todos, não deixando escapar qualquer pessoa que ousasse pensar e agir segundo os princípios da autêntica democracia. Somente os militares sabiam o melhor para o país. Essa era a ideia, e muita gente afirmava: “os militares estão no poder. Agora, sim, estamos seguros!” O combate aos comunistas convenceu até a maioria da hierarquia da Igreja Católica, que, ingênua e covardemente, apoiou o golpe.

Poder uniforme e autoritário

            Toda espécie de pluralidade era combatida durante o regime militar, mas mesmo assim ouviam-se vozes clamando por justiça, tanto na sociedade civil organizada quanto na Igreja militante. Artistas e escritores, cineastas e poetas, políticos e estudantes, gente anônima e religiosos gritavam com coragem e ousadia, clamavam por liberdade e cidadania.

O número dos que faziam parte destes grupos de gente corajosa e profética é bastante conhecido entre nós. Basta acessar documentários sobre este vergonhoso período da história do país para ver nomes como Caetano Veloso e Maria Bethânia, Gilberto Gil, o ex-presidente Lula, a atual presidenta da República, José Genoíno, José Dirceu, José Serra, Fernando Henrique Cardoso, Vladimir Herzog, Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga e tantos outros que deram sua contribuição para que ocorresse, posteriormente, a redemocratização do país.

Estas pessoas eram inimigas da opressão ditada pela uniformidade de ideias e de iniciativas. Criaram canções, ideias e iniciativas a favor da democracia. Muitos outros foram assassinatos porque não se calaram diante do esquadrão da morte. Exerceram sua cidadania, e os que eram crentes colocaram em prática a fé que tinham no seu Deus. Muitos possuem até hoje, no corpo e na mente, as marcas deste triste período de negação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros.

            Infelizmente, a mídia oficial, sempre atrelada ao poder opressor, era a que veiculava a ideologia da segurança nacional. A própria Rede Globo, que sempre gozou da hegemonia em matéria de cobertura jornalística e produção artística, já confessou seu erro em agosto de 2013. Esta emissora sempre se identificou com aqueles que se aproveitam do poder para explorar o povo. Todo movimento popular é ridicularizado e exposto pela mesma como sinônimo de desordem social. O ideal democrático que pregam consiste na dominação dos poderosos atrelados às multinacionais e aos bancos estrangeiros, especialmente, aos norte-americanos, que sempre sugaram as riquezas brasileiras.

“Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora e não espera acontecer”.

            Este trecho da canção de Geraldo Vandré revela o anseio do autêntico cidadão por liberdade. Ser livre significa ter seus direitos respeitados. Ter os direitos respeitados significa ter as necessidades básicas devidamente asseguradas: saúde, educação, moradia, esporte, lazer, cultura etc. A coragem de um povo consciente venceu o medo que paralisa e a covardia de golpistas inimigos do povo brasileiro.

            Neste dia histórico no qual fazemos a memória dos 50 anos deste infeliz golpe militar, que gerou atraso e sofrimento para a vida do povo, é necessário recordar aos nossos governantes seu compromisso, inscrito na Constituição da República, de 1988: “...instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias...”

            Estas são as características do ideal democrático traçado pelos constituintes, em 1989. A realidade mostra que estamos caminhando lentamente rumo à consolidação democrática. Cremos que os brasileiros precisam aproveitar todas as oportunidades possíveis de participação. E a grande oportunidade se aproxima, quando em outubro do corrente ano elegeremos governadores, deputados, senadores e o presidente da República. Além das urnas, a cobrança e a fiscalização dos poderes públicos é dever do cidadão. Para isso servem as ouvidorias, as audiências, os remédios constitucionais e tantos outros meios de participação popular. Participação é cidadania. No regime democrático de direito o poder emana do povo (cf. parágrafo único do art. 1º da CF/88).

            Fazer a memória do golpe militar significa acreditar no desenvolvimento integral do país que passa, necessariamente, pela participação consciente de cada cidadão. Negar-se à participação é colocar a corda no próprio pescoço. Somos sujeitos políticos e esta é nossa vocação cidadã. Dependemos das decisões políticas e ninguém escapa das mesmas, pois repercutem na vida cotidiana do país. Portanto, preservemos a memória histórica dos acontecimentos com a visão direcionada para o futuro. Na qualidade de cidadãos que almejam sempre mais a liberdade, sejamos construtores e protagonistas de uma sociedade melhor, pautada na justiça e nos demais valores necessários à consolidação democrática do país.

LUTEMOS PARA QUE PREVALEÇA A DEMOCRACIA. DITADURA, NUNCA MAIS!


Tiago de França

sábado, 29 de março de 2014

Libertar-se da cegueira

“Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos” (Jo 9, 39).

            O episódio da cura do cego de nascença é muito significativo para compreendermos o seguimento de Jesus de Nazaré (cf. Jo 9, 1 – 41). O discípulo de Jesus é alguém que enxerga a realidade. Pode parecer simples, mas enxergar a realidade não é tão fácil como se pensa. Infelizmente, há muitas pessoas que se recusam a enxergar a realidade, pois acham mais confortável viver na ilusão. Há um ditado popular que diz: “o pior cego é aquele que não quer enxergar”. Tirando este “pior”, podemos concordar que, de fato, as pessoas que se recusam a enxergar a vida não conseguem seguir Jesus. Para segui-lo, é necessário permanecer de olhos abertos. À luz do episódio da cura do cego de nascença, vamos meditar sobre a importância de enxergar a realidade como caminho de libertação pessoal e comunitária.

Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença.

            No tempo de Jesus, a cegueira era considerada um castigo divino. O cego era excluído pela sociedade e pela religião, pois não lia as Escrituras Sagradas, consequentemente, não conseguia entender a vontade de Deus nem cumprir as obrigações religiosas. Era alguém que vivia à margem, esquecido pelas pessoas. As autoridades religiosas da época assim compreendiam: o cego era um pecador, desprovido da bênção e dos favores divinos.

            Jesus não compreendia as coisas deste modo e não aceitava que assim fossem. Ele enxerga o homem cego de nascença. Este não passa despercebido. O olhar de Jesus alcança os excluídos pela sociedade e pela religião. Ele se aproxima e vai ao encontro do homem cego. Os discípulos de Jesus, contaminados pela ideologia religiosa e pela interpretação que se fazia da cegueira, perguntam a Jesus a respeito da ligação entre o pecado e a cegueira. Havia esta ligação? Para os religiosos, sim; para Jesus, não: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se manifestem nele”.

            Esta palavra de Jesus reflete sua liberdade, pois não pensava como os doutores da lei e fariseus. Jesus pensava de forma oposta à religião de seu tempo, e isto não era tolerado. Até hoje é assim. Para resguardar a ortodoxia, a religião não tolera aqueles que pensam de forma diferente. Na religião, todos tem que pensar da mesma forma. Isto se chama uniformidade. A prática de Jesus mostra claramente que ele não era amigo da uniformidade, mas do pensamento livre, em plena sintonia com a vontade de Deus.

            Segundo Jesus, não há nenhuma ligação entre a cegueira e o pecado. Aquela não é provocada por este. O que Jesus ensina é belíssimo: a cegueira é ocasião para a manifestação da obra de Deus, ou seja, da amorosa ação de Deus na pessoa. Com isto estava dizendo o que iria fazer: curar o homem cego, libertando-o das amarras da cegueira, fazendo-o enxergar a vida. Antes, afirma categoricamente: “Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo”.

            Jesus não podia passar por aquele homem e deixá-lo sem a luz. A proximidade de Jesus confere luz às pessoas. Quem permanece com Jesus permanece na luz, recebe dele a luz da vida, liberta-se da cegueira, enxerga a vida. Eis o critério que nos confere a certeza de que estamos com Jesus: se realmente temos a visão, se enxergamos a realidade da vida. Os que são curados por Jesus são chamados a participar de sua missão evangelizadora. Não basta recuperar a vista, mas é preciso ir lavar-se na piscina do envio: “O cego foi, lavou-se e voltou enxergando”.

            Os vizinhos, parentes e autoridades religiosas demoram para reconhecer o homem livre da cegueira. Geralmente, as pessoas aceitam a cegueira, mas se recusam a aceitar a libertação da mesma. Parece mais cômodo viver sem enxergar. Enxergar exige atenção voltada para as pessoas e para a realidade destas pessoas, exige análise e perspicácia. São duas atitudes que as pessoas geralmente evitam: enxergar e pensar a vida. São duas atitudes necessárias para o exercício do seguimento a Jesus de Nazaré.

Acreditas no Filho do Homem?

            A libertação da cegueira concedeu ao homem a visão da fé. Prostrado diante de Jesus, o homem afirma com firmeza: “Eu creio, Senhor!” Eis o resultado da atitude de quem deseja realmente enxergar: crer em Jesus, o Filho do Homem. Mesmo contrariando sua religião, o homem liberto da cegueira arrisca-se a crer em Jesus como o Messias prometido. Todos aqueles que declarassem que Jesus era o Messias eram expulsos da comunidade. O homem liberto acreditou e foi expulso. Assumiu o risco. Estava convicto de que Jesus realmente veio de Deus: “Se esse homem não viesse de Deus, não poderia fazer nada”, respondeu às autoridades religiosas quando foi violentamente interrogado.

            Jesus veio ao mundo para realizar um julgamento, não condenatório, mas um julgamento esclarecedor, verdadeiro, libertador, que consiste no seguinte: “os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos”. Jesus veio abrir os olhos dos excluídos e pobres, a fim de que encontrem o caminho da vida e da liberdade. Os religiosos, defensores da lei, das tradições e costumes, na verdade, eram cegos, pois não eram capazes de enxergar e reconhecer o Messias enviado por Deus; não eram capazes de enxergar a ação libertadora de Deus no meio dos pecadores e pobres. Mulheres e homens de fé madura e consciente enxergam a vida com os olhos desta fé e, assim, seguem Jesus de Nazaré.

Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis ‘nós vemos’, o vosso pecado permanece.

            Quando se perguntavam se também eram cegos, estas foram as palavras que Jesus respondeu aos fariseus. Não poderíamos concluir esta meditação sem fazermos referência à religião atual, especialmente o Cristianismo. No interior deste, boa parcela das autoridades religiosas continuam agindo da mesma maneira que os fariseus: excluindo e condenando as pessoas, especialmente aquelas que vivem à margem da religião. Há muitas pessoas que desconhecem a Sagrada Escritura, as tradições, os costumes e as leis religiosas, vivendo praticamente fora do alcance da religião. Muitas até acreditam em Deus, mas não o procuram no interior da religião, e os motivos são muitos.

            O texto evangélico mostra claramente que Jesus estava fora da religião, fora do seu alcance. Jesus estava junto aos que eram desprezados, julgados e condenados pela religião. Creio que hoje ele continua no mesmo lugar: nos lugares considerados impuros e indignos, naqueles lugares nos quais não se veem a presença dos religiosos. Estes costumam permanecer no centro, lugar dos puros e dos íntegros, lugar dos que ocupam os primeiros lugares, dos privilegiados e da vida cômoda. No centro tudo é planejado e bonito, enquanto que na periferia tudo parece ser desorganizado e feio. Os que são da periferia são considerados feios e vítimas do olhar desconfiado dos que vivem no centro.

            Assim, Jesus nos fala hoje:

- Se quereis seguir-me, deixai o centro e ide para a periferia, onde se encontra a comunidade dos meus seguidores. Deixai o centro para os poderosos e sedentos de poder. Eu não estou no centro, mas na periferia, comendo com os cobradores de impostos e pecadores, convivendo com ladrões e prostitutas, rindo e chorando com as mulheres e homens sofredores. Vinde, abandonai a catedral e construí, aqui, vossa capela. Aqui, sim, entro em verdadeira comunhão com vossas liturgias. Isto significa tomar parte comigo no Reino de Deus. Vinde e vede!


Tiago de França

quinta-feira, 27 de março de 2014

José Comblin: profeta da liberdade

“Os profetas sempre apareceram como pessoas livres. Totalmente dedicados à sua missão, totalmente dedicados aos pobres e totalmente independentes dos poderes humanos” (J. Comblin, in A profecia na Igreja, Paulus, 2008, p. 286).

            O profeta é uma figura sempre atual. A profecia não tem data de validade, pois sempre pode ser revisitada e atualizada. Assim fazemos com a profecia dos profetas bíblicos e também podemos fazer com os profetas da história do Cristianismo. No dia 27 de março de 2011, no recanto da transfiguração, em Simões Filho, próximo a Salvador – BA, faleceu o Pe. José Comblin. Este padre belga, que morreu aos 88 anos de idade, pode ser chamado de profeta da liberdade. Quero, brevemente, fazer memória de sua profecia a partir de suas palavras, acima descritas, impressas na última página do seu último livro, publicado pela editora Paulus.

Os profetas sempre aparecem como pessoas livres

            De fato, sem liberdade não há profecia. Mesmo sendo religioso, o profeta sempre está além da religião. Por isto mesmo, sempre estão em conflito com a religião, e o motivo é simples: esta sempre tende ao enquadramento e ao fechamento; é a tentação que sempre a perseguiu. A religião sempre caminha na trilha das seguranças, com suas doutrinas, dogmas, rituais, sacerdotes e estruturas. O profeta não está em função dessas coisas, mas é escolhido por Deus e enviado para anunciar a Boa Nova de Deus às pessoas; é guiado pelo Espírito do Senhor, promotor da liberdade dos filhos e filhas de Deus.

            José Comblin era presbítero católico, ordenado em 1947, e a Igreja o fez doutor em teologia. Tinha vocação para ambas as atividades, que as exercia com humildade e ousadia. Como teólogo, era dedicado à pesquisa, aos estudos. Todos os que tiveram a oportunidade de escutá-lo, logo percebiam que se tratava de um homem que falava com a autoridade de quem conhecia com largueza e profundidade, e com a autoridade de quem falava a partir de uma experiência fecunda de vida. Não produzia teologia a partir do escritório e da biblioteca universitária, mas a partir da periferia, pois decidiu viver no meio dos pobres para ser fiel ao seu método e à profecia que exercia.

            Sua palavra incomodava e ainda incomoda muita gente na Igreja: bispos, padres e leigos achavam-no azedo e pessimista. Isto ocorria porque o Pe. José Comblin colocava o dedo na chaga aberta de muitos, denunciando-lhes a infidelidade e a covardia. Sua palavra era direta, clara, precisa, objetiva e tocava os pontos fundamentais dos assuntos sobre os quais discorria. Sua capacidade de análise e de síntese surpreendia a todos. Era a capacidade de um homem que meditava, lia e relia a história à luz do evangelho de Jesus e as rezava cotidianamente. Não era um mero intelectual, mas um profeta que cultivava a honestidade intelectual e estava atento aos sinais dos tempos.

            Seus opositores, mesmo discordando de suas posições, sabiam e sabem muito bem da veracidade de seus argumentos. Ninguém ousava desafiá-lo, pois para isto teriam que estudar bastante os próprios argumentos, mas a preguiça mental e o medo da verdade sempre impediram muitos de seus opositores de fazê-lo. As críticas que lhe eram remetidas, oriundas de pessoas pouco fiéis à missão que deveriam exercer, eram pouco ou nada fundamentadas, destituídas de bom senso, caridade e verdade. O Pe. José Comblin recebeu de Deus a graça de participar da missão de Jesus, missão que só pode ser exercida por pessoas livres, que se arriscam em colocar o evangelho no centro de suas vidas.

Os profetas são totalmente dedicados à sua missão e totalmente dedicados aos pobres

            A missão profética acontece necessariamente no meio dos pobres. Materialmente falando, os profetas não são pessoas ricas vivendo confortavelmente no meio dos pobres, como ocorre com a maioria dos religiosos, mas são pobres entre os pobres. Os profetas bíblicos eram homens simples e despojados, que só tinham o necessário para viver. A dedicação é sinal de correspondência e fidelidade ao Deus que chama ao exercício da missão profética. Assim, o profeta precisa cumprir sua missão sem medo, expondo-se aos riscos inerentes, sem fugas nem receios. Neste sentido, o profeta caminha na contramão do mundo, que procura convencê-lo de que “o bom da vida é ser feliz!”, sendo que esta felicidade corresponde às satisfações dos próprios desejos e dos desejos do outro.

            Ameaçados de todas as formas, os profetas não renunciam à sua missão, mas dedicam-se com afinco, visando sempre o Reino de Deus. Alguns chegam ao derramamento de sangue, outros não. O martírio está por conta da liberdade de Deus, que assiste a cada um em seu caminhar. Alguns participam desta graça, que aos olhos do mundo é uma desgraça, mas aos olhos de Deus é evangelho de Cristo. O Pe. José Comblin não chegou ao martírio, mas foi vítima de muitas incompreensões e perseguições: foi proibido de proferir conferências e palestras, e foi expulso do Brasil no tempo de ditadura militar. Apesar disso, era muito solicitado para assessorias, pregação de retiros, assembleias, conferências, palestras e cursos. Por muito tempo auxiliou na formação de presbíteros, mas nas duas últimas décadas de sua vida dedicou-se à formação de missionários leigos no nordeste brasileiro.

            A partir das escolas de formação missionária, o Pe. José Comblin apostou no leigo como protagonista na Igreja. Os alunos destas escolas eram e continuam sendo pessoas pobres do campo e das pequenas cidades do interior nordestino. Graças a uma formação teológica sólida e popular, estas pessoas se tornam missionárias de Jesus nas comunidades eclesiais de base. Os pobres formados e informados formam comunidades cristãs ativas, efetivas e afetivamente comprometidas com o Reino de Deus. Este era e continua sendo o objetivo da proposta de formação missionária profeticamente pensada pelo Pe. José Comblin. Nas escolas, comunidades e eventos, ele era muito querido e acolhido, apesar de seu jeito tímido e calado, próprio de homem reflexivo e orante.

Os profetas são totalmente independentes dos poderes humanos

            O profeta não é um homem do poder, nem tem ligação com os poderosos, pois sabe que estes costumam ser os exploradores do povo de Deus. Os poderosos deste mundo desconhecem o evangelho de Jesus e não se importam com o mesmo; consequentemente, são inimigos da verdade e da liberdade. Assim, procuram de todo jeito calar a voz dos profetas, perseguindo-os e eliminando-os. Na Igreja, os líderes religiosos que se identificam com os poderosos também ajudam a perseguir e eliminar os profetas, mesmo sabendo que estes são enviados por Deus. Contaminados pela sede de poder, tais líderes são cúmplices na morte dos profetas. Aparentam certa simpatia em relação a estes, mas seus corações só tramam maldade.

            Os profetas se identificam com os pequenos, os prediletos de Deus na história e com eles vivem em função do Reino. Assim ocorre porque o profeta sabe que na pedagogia divina a força de Deus está com os pobres e se manifesta no mundo a partir dos pobres. Os poderosos não contam com a força de Deus, pois confiam em si mesmos e no poder que possuem. Os pobres, destituídos de poder humano, vítimas da opressão, somente podem contar com a amorosa e libertadora presença de Deus. Toda a Escritura é uma prova desta verdade. Contra esta não há o que argumentar, pois assim Deus o quis.

            O Pe. José Comblin sabia muito bem interpretar as Escrituras Sagradas e sabia muito bem a respeito do lugar da presença e da ação de Deus. Por isto mesmo optou em permanecer do lado dos pobres. A verdade de sua profecia era a do evangelho de Jesus: a libertação integral do ser humano. O núcleo de sua teologia era a liberdade do evangelho de Jesus. Consequentemente, os pobres ocupam lugar central na sua teologia. Como a opção pelos pobres deve ser a opção fundamental da ação evangelizadora da Igreja, a teologia do Pe. José Comblin continuará sendo válida por muito tempo.

            Tive a graça de conhecer a teologia de Pe. José Comblin por meio de seus inúmeros escritos, e a partir de seus questionamentos também questiono a minha fé e, sempre que posso, questiono a letargia que tem tomado conta da Igreja. Como sou leitor assíduo de suas obras, não me considero um discípulo do mesmo, pois o sou de Jesus, mas declaro que graças ao fazer teológico deste renomado teólogo da Igreja tenho aprendido a enxergar a realidade com os olhos críticos da fé. Esta não deve ser ingênua nem submissa, mas crítica e voltada para o futuro.

Com o Pe. José Comblin aprendi que ser cristão é ser livre em Cristo Jesus e não há homem neste mundo que possa impedir a manifestação desta liberdade. Ela é pura ação amorosa de Deus em Cristo e no Espírito. Louvo e agradeço a Deus pelo testemunho do Pe. José Comblin e rogo ao Espírito que não deixe faltar à Igreja e ao mundo mulheres e homens que ousem seguir Jesus de perto, na liberdade de filhos e filhas de Deus.


Tiago de França

segunda-feira, 24 de março de 2014

Dom Oscar Romero: mártir da justiça do Reino de Deus

“Uma Igreja que não sofre perseguição, mas que desfruta privilégios e o apoio de coisas da terra – Tenham medo! – não é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo” (Dom Oscar Romero, em 11, 03/ 1979).

            Há 34 anos, no dia 24 de março de 1980, em El Salvador, América Central, durante a celebração da Eucaristia, foi brutalmente assassinado Dom Oscar Romero, por um atirador de elite das forças armadas salvadorenhas. Era o arcebispo da arquidiocese de San Salvador, assassinado covardemente a mando dos militares que dominavam o país, implacavelmente. Esta memória não pode ser esquecida e a Igreja tem muito a aprender com ela. Em sua infinita bondade e sabedoria, Deus teve misericórdia do povo salvadorenho e enviou um profeta para anunciar a Boa Notícia da libertação.

            Inicialmente, quando era apenas um padre, Oscar Romero era conservador, admirado por seus superiores, obediente e estritamente ortodoxo. Por isso mesmo, foi enviado a Roma para estudar. Na Igreja, os homens de inteligência brilhante e cultivadores da sagrada obediência eram enviados a Roma para se aprofundarem nos estudos, especialmente os teológicos. Era um padre como outro qualquer: humilde, obediente, culto e praticante da boa disciplina eclesiástica. Tinha todas as qualidades para ser nomeado bispo, o que ocorreu em pouco tempo.

            Tornou-se o arcebispo da arquidiocese: a maior autoridade religiosa da Igreja particular. João Paulo II era o Bispo de Roma, papa da Igreja, e apreciava bispos conservadores. Quando dom Oscar Romero resolveu aceitar Jesus e converter-se, teve que escutar uma severa advertência do mencionado papa. Este lhe exigiu que não entrasse em conflito com os militares. O papa queria preservar as alianças com os poderosos, evitando conflitos, a fim de que a Igreja continuasse gozando de seus privilégios junto aos criminosos e assassinos. Era a política do pontífice: reconciliar a Igreja com aqueles que poderiam persegui-la.

            Dom Oscar Romero ficou desapontado com o papa. Ouviu silenciosamente, mas se recordou de que na Igreja Particular o bispo tem autonomia e que o Bispo de Roma não é o chefe dos bispos do mundo inteiro. Convicto de sua missão junto ao povo sofrido pela ditadura militar, o arcebispo preferiu escutar os apelos do povo e do Espírito do Senhor, renunciando a atender à exigência papal. Dom Oscar Romero quando chamado pelo papa já gozava da liberdade dos filhos e filhas de Deus. Não tinha mais como voltar atrás. Já estava com a mão no arado e não podia olhar para trás. Fixou os olhos em Jesus e seguiu em frente.

            Desde o ambão da proclamação da palavra de Deus, o arcebispo era veemente no anúncio do evangelho da vida e da liberdade. Ungido pela força do Espírito do Senhor, denunciou os crimes cometidos pelos militares. Sua palavra era acolhida pelos pobres, que encontravam nele a figura do bom pastor, aquele que conhece suas ovelhas e é conhecido por elas, que ama suas ovelhas e é amado por elas, que tem a coragem de dar a vida por suas ovelhas. Dom Oscar Romero compreendeu a missão de Jesus de Nazaré e resolveu participar dela sendo outro Cristo junto a seu povo.

            Dom Oscar Romero denunciou a hipocrisia religiosa e o falso cristianismo. Suas palavras e gestos são pura profecia. Ele percebeu que a Igreja não pode ficar indiferente ao sofrimento do povo. No meio deste, visitando as pessoas, vendo o sangue derramado pelas ruas da cidade e no campo, escutando o grito desesperado das vítimas, abraçando-as, acolhendo-as e abençoando-as em nome de Deus, Dom Oscar Romero enxergou e tocou na carne do Cristo crucificado nas feridas abertas das vítimas. É profundamente emocionante escutar sua voz nas homilias. É de arrancar lágrimas dos olhos escutar um pastor que clama por justiça, que acredita e anuncia a verdade do evangelho de Jesus.

            Ele sabia dos riscos e dos desafios de sua missão, pois passou a ser ameaçado pelos assassinos do povo, mas o Espírito do Senhor lhe concedeu o dom da perseverança na missão. Tendo recebido de Deus o dom da profecia, não tinha mais como renunciar à missão. Tinha plena convicção de que iria ser assassinado, só não sabia exatamente a hora. Seu corpo estendido atrás do altar é a imagem de pastor fiel, que não procurou salvar a própria vida, mas entregou-se totalmente, sem medo de quem quer que seja, unindo plenamente a Jesus. Dom Oscar Romero sabia que iria ressuscitar com Cristo na vida do povo de El Salvador.

            Celebrar sua memória é repensar a missão da Igreja no mundo. Seu testemunho nos chama a atenção para anúncio da verdade e da liberdade. A Igreja não pode renunciar à verdade do evangelho de Jesus, não pode renunciar à liberdade do evangelho. Sem o anúncio do evangelho tudo permanece na tranquilidade e na vida cômoda. Inevitavelmente, quando o medo toma conta da Igreja, a busca pelo prestígio, poder e riqueza se torna a meta de muitos. Uma Igreja omissa é aquela que se cala diante das injustiças e faz alianças com os poderosos deste mundo, visando gozar dos privilégios recebidos.

            O evangelho exige a entrega da própria vida, que passa, necessariamente, pelo cuidado e responsabilidade com o outro. Se o povo tem que lutar sozinho, sem o apoio de seus pastores, o que estes pastores estão fazendo com o ministério que receberam? Estão somente presidindo o culto e dispensando os sacramentos? Qual o valor dos sacramentos que não celebram a realidade sofrida do povo? Para que servem as liturgias desencarnadas? De que adianta cumprir a lei canônica se a vida humana está sendo brutalmente ceifada? Se a religião é cega, muda e surda em relação à vida das pessoas, então é pedra de tropeço e somente reforça a alienação e a escravidão.

            Dom Oscar Romero era arcebispo da Igreja. Os pastores da Igreja precisam escutar o que o Espírito está falando neste momento: chamando a Igreja para a periferia do mundo. A oportunidade não pode ser perdida. Se o papa é favorável à opção pelos pobres, opção essencialmente evangélica, então a hora é agora. Antes de Francisco, falar na opção pelos pobres era quase que uma ofensa. Era coisa da teologia da libertação. Agora, Francisco chama um dos maiores nomes desta teologia, o peruano Gustavo Gutiérrez, e diz: esta teologia deve ser a da Igreja, pois esta é chamada a servir a toda à humanidade, preferencialmente aos pobres. Aí tem o dedo de Deus.

O testemunho de Dom Oscar Romero aponta para as vítimas deste mundo, para os crucificados da história. Que junto a Deus, ele interceda pela Igreja, a fim de que esta seja, de fato, povo de Deus em marcha, missionária e servidora dos pobres. Para que isto se torne realidade, o medo e a covardia precisam ser vencidos por aqueles que ousam ouvir o chamado de Deus e se colocam no caminho de Jesus, estreito, pedregoso e libertador.


Tiago de França

sábado, 22 de março de 2014

Nossa sede de Deus

“E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4, 14).

            Esta reflexão parte do encontro de Jesus com a samaritana (cf. Jo 4, 5 – 42), uma belíssima passagem evangélica que nos faz pensar em algumas questões que nos remetem ao sentido de nosso ser cristão. O texto traz alguns detalhes reveladores que merecem nossa atenção. Vamos meditar à luz da fé e da nossa realidade. O evangelho é fonte de verdadeira sabedoria para toda pessoa que se arrisca no seguimento a Jesus de Nazaré.

Sentado junto ao poço de Jacó

            A imagem do poço nos recorda o papel da água e da sede. A água do poço serve para matar a sede do povo. O poço de Jacó era sagrado para os samaritanos, pois na antiga aliança o povo encontrou nele a água para matar a sede do corpo. Toda fonte de água é, de fato, sagrada. O que seria do ser humano sem a água para matar a sede do corpo e satisfazer as demais necessidades? Jesus, cansado da viagem, por volta do meio dia, senta-se junto ao poço de Jacó. Em seguida, chegou uma mulher da cidade da Samaria para tirar água.

            “Dá-me de beber”, disse Jesus à mulher samaritana. Este pedido de Jesus é extraordinário, e o motivo é simples: os judeus consideravam os samaritanos um povo impuro, inferior. Chamar um judeu de samaritano era uma ofensa. Eram povos diferentes que no passado entraram em conflito. Portanto, judeus e samaritanos não se falavam nem se frequentavam. Jesus não liga para esta divisão. À samaritana pede água para beber. Ela se surpreende e começa a dialogar com Jesus.

            O diálogo revela que se tratava de uma mulher instruída a respeito da religiosidade de seu povo. Ela não tem medo de Jesus e participa do diálogo revelador. Neste, Jesus se revela como aquele que tem uma água diferente: a água que transforma as pessoas em fontes de água que jorra para a vida eterna. Ela certamente não compreendeu esta parte. Com o desenrolar do diálogo, o que lhe chama a atenção é o fato de Jesus saber de sua vida, quando trataram de outro assunto: os maridos que ela teve e o que tinha naquela ocasião.

            A mulher se convenceu de que Jesus era um profeta. A figura do profeta era muito respeitada em ambos os povos. O povo aclamava os profetas porque sabia que se tratavam dos mensageiros da palavra de Deus. Mesmo sem entender, a mulher pede a água de Jesus, deseja conhecer o dom de Deus. Que água é essa que Jesus oferece à samaritana? É ele mesmo, dom de Deus. Dialogando com Jesus e crendo nele, a mulher começa a conhecer o dom Deus, começa a beber da água que a transformará numa fonte transbordante de água viva, que jorrará para a vida eterna.

            Encontrando-se com Jesus, a samaritana bebe da fonte divina e faz a experiência de quem está sendo incluída no povo de Deus. Para Jesus, ela e seu povo não são impuros nem estão excluídos do povo de Deus, mas, no seu nome e a partir do anúncio de sua mensagem, tornam-se povo de Deus. Jesus não quis saber dos preceitos que legitimavam a separação e a exclusão. Por isso, depois de terem voltado da cidade, pois foram comprar alimentos, os discípulos ficam admirados por verem Jesus conversando com uma mulher da Samaria.

            A liberdade de Jesus é a liberdade de Deus. A visão de Jesus é a visão de Deus. Nesta liberdade e nesta visão não há lugar para separação, para segregação de pessoas e de povos. Na concepção de Jesus, o que há são pessoas, filhas e amadas por Deus. Este Deus não leva em consideração as divisões culturais e religiosas. É o Deus de todos, de toda a humanidade, o Pai das misericórdias, o Deus das gentes. O povo de Deus é adepto do mandamento divino do amor atrelado à liberdade. Neste mandamento não há lugar para as divisões e os conflitos que visam destruir a dignidade do ser humano.

O lugar do culto e a maneira correta da adoração a Deus

            Para os samaritanos o lugar do culto a Deus era no monte Garizim e para os judeus era no templo de Jerusalém. Aqui Jesus fala dos verdadeiros adoradores: aqueles que adoram em espírito e verdade, pois Deus é espírito. De fato, Deus não se encontra em um lugar determinado pelo ser humano. Ninguém pode aprisionar a Deus nem estabelecer para ele uma morada. Deus está em toda parte, especialmente no interior das pessoas, criadas à sua imagem e semelhança. A adoração em espírito e verdade desconhece lugares determinados. Ninguém pode dizer que Deus se encontra nos templos católicos e não nos evangélicos, ou vice-versa. Talvez em muitos destes templos, de ambas as denominações, Deus não se faça presente, dado o que se ensina e se pratica dentro deles!...

            Nenhum líder religioso está autorizado, considerando o que disse Jesus à samaritana, a impor a frequência ao culto religioso como único lugar de encontro com Deus. Portanto, não tem sentido a ideia de que aqueles que não frequentam o culto não estão em comunhão com Deus. É verdade que a fé religiosa é praticada no interior da religião, mas é verdade também que os que não frequentam o culto religioso também podem permanecer em comunhão com Deus, adorando-o em espírito e verdade. Jesus reconheceu a presença de Deus na vida dos samaritanos, povo excluído e condenado pelos judeus. Assim, o Deus e Pai de Jesus não está somente presente no Cristianismo, mas permanece presente na vida humana, em todo tempo e lugar.

            As palavras e os gestos de Jesus em relação aos samaritanos nos ensinam a fazermos a mesma coisa: dialogar, ouvir, acolher e participar da vida daqueles que nos parecem estranhos, alheios à nossa cultura e religiosidade. As crenças religiosas e o espírito de pertença a uma determina denominação religiosa não deveriam ser motivos de divisão e conflitos entre as pessoas, como podemos constatar no mundo atual. Os seguidores de Jesus não são chamados a converter quem quer seja, mas a anunciar o mandamento divino do amor e da liberdade por meio da palavra e do testemunho. Esta é a vocação cristã. A conversão é atividade do Espírito do Senhor, que sonda todas as coisas e as renova segundo o coração de Deus.

            Cada cristão precisa conhecer o dom de Deus, que é Jesus. Aproximar-se dele, sentar-se com ele junto ao povo, beber de sua mensagem. Ter sede de Deus é encontrar-se com Jesus e permanecer unido a ele, numa convivência fraterna, intimamente humana e espiritual. Se quisermos ser fontes de água que jorra para a vida eterna precisamos fazer a experiência da samaritana: escutar Jesus, dialogar com ele, pedir sua água, com ele tornar-se fonte do encanto, da beleza, do perdão, da acolhida, da amizade e da solidariedade. O mundo e a Igreja atuais carecem disso: de pessoas que sejam fontes de água viva.

            A Samaritana se tornou missionária do Verbo de Deus, da palavra encarnada de Deus, deste Deus amoroso que não exclui nem condena, mas acolhe, ama e no amor cura os corações feridos e atribulados e liberta de todo tipo de escravidão. Não tenhamos medo de nos tornarmos íntimos do Deus que é pura misericórdia. Somente ele, fonte de todo bem e de toda graça, é capaz de nos conceder a paz necessária para suportarmos o peso de nossos fardos.

A abertura da mente e do coração à ação amorosa deste Deus é oportunidade única de nos transformarmos naquela fonte abençoada de vida para todos aqueles que se aproximam e desejam matar sua sede. No homem há uma sede de eternidade, de felicidade e é por meio do próprio ser humano que Deus vai saciando esta sede de amor, paz, justiça e de felicidade. Esta sede é saciada a partir de dentro de cada pessoa na sua relação com Deus que está no outro. Aprendamos, pois, a bebermos do nosso próprio poço, a fim de que a chama do amor divino não se apague em nós.


Tiago de França

domingo, 16 de março de 2014

Transfigurar-se para ser sempre o mesmo

“Sai da tua terra, da tua família e da casa do teu pai e vai para a terra que eu te vou mostrar” (Gn 12, 1).

            A Bíblia fala da vocação de Abraão (cf. Gn 12, 1 – 4), que foi o primeiro grande homem de fé da antiga aliança. O texto traz dois verbos reveladores e provocantes: sair e partir. São atitudes entrelaçadas. Uma depende da outra. Ele foi convidado por Deus para sair de sua terra, de sua família e da casa do pai. Estas três realidades colaboram para a formação da personalidade das pessoas. Toda pessoa é de algum lugar, vem de alguma família e tem paternidade. Deus chamou Abraão para sair e ir para um lugar indeterminado: “E Abrão partiu, como o Senhor lhe havia dito”.

            Abraão escutou a voz de Deus e foi obediente: saiu e partiu. Para responder ao chamado de Deus, eis as atitudes necessárias: escutar, sair e partir. Todo ser humano parte para algum lugar, procurando seu lugar, buscando ser feliz. O mundo globalizado e tomado pelo capitalismo obriga as pessoas a partirem para terras desconhecidas. O deslocamento forçado e desorientador, muitas vezes, torna-se inevitável. As pessoas procuram sobreviver e, para isto, são obrigadas a caminhar.

            A vontade das pessoas é de permanecer, criar laços e enraizar-se nos lugares, mas as necessidades as obrigam ao caminhar, colocar-se a caminho, vivendo como Caim, errante no meio do mundo. A maldição do capitalismo obriga ao abandono do ninho e, muitas vezes, da cultura. As pessoas querem escapar. Os que migram sabem disso e podem falar com propriedade. No caso de Abraão, Deus não o abandonou à própria sorte, mas o chamou para iniciar uma longa caminhada, a caminhada da liberdade, a liberdade de um povo escolhido. Abraão aceitou e se tornou o “pai dos que creem”. Sua história é testemunho de homem que acreditou na palavra de Deus.

            A fé exige isso: que acreditemos na palavra de Deus. Esta palavra aponta para o futuro incerto, empurra para frente, coloca o crente no caminho da liberdade. A fé exige o partir, deixando a terra natal, a família e a casa paterna. A vocação cristã se realiza no caminhar, nos riscos do caminho. A experiência de Abraão nos serve de modelo e inspiração: é preciso escutar a palavra de Deus, sair e partir. O medo de partir é grande, mas a fé é capaz de vencê-lo. Quem se arrisca a escutar a palavra de Deus encontra nela a orientação para caminhar. É necessário vencer a tentação do conforto e das seguranças que o ninho oferece e aventurar-se no caminho proposto pela palavra de Deus.

            No novo testamento encontramos Jesus se transfigurando diante de três de seus discípulos: Pedro, Tiago e João (cf. Mt 17, 1 – 9). Estes discípulos viveram a experiência da antecipação da imagem do Cristo glorioso. É um texto simbólico. Ele fala do Messias tal como ele é na sua unidade invisível e misteriosa com Deus: puro brilho e esplendor. Uma realidade espiritual que a visão e razão humanas não conseguem vislumbrar nem compreender. Para não cairmos na tentação de ficarmos na admiração da glória de Deus, prestemos atenção na voz que saiu da nuvem luminosa: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!”

            O Pai de Jesus nos pede que façamos a experiência da escuta. Na Bíblia, esta palavra está ligada à obediência (do latim ob-audire). Escutar significa obedecer. Neste sentido, quem ousa escutar a palavra de Deus é chamado a obedecê-la. O Pai nos ensina a escuta do Filho. A obediência a Jesus é obediência ao Pai porque este está naquele, numa só realidade indivisivelmente misteriosa. Os discípulos ficaram com medo e caíram diante de Jesus. A missão não acontece com discípulos no chão, caídos. Por isso, Jesus lhes toca e diz: “Levantai-vos e não tenhais medo”.

            O medo tem derrubado muita gente na caminhada da vida. Quantas pessoas não conseguem ser felizes por causa do medo!... Elas caem e permanecem caídas, sem ânimo, sem disposição, sem coragem. É preciso levantar-se e não ter medo. É impossível colocar-se a caminho se o medo controla. Este paralisa a pessoa, incapacitando-a para a vida e para a missão. A missão é conseguir dar conta da vida, ser testemunha da vida, vencendo as forças da morte. Unidos a Jesus e na escuta permanente de sua palavra, os discípulos conseguem vencer as forças da morte.

            Que forças de morte são essas? O ódio e a indiferença, a inveja e o egoísmo, a prepotência e o orgulho, a ambição e a sede de poder, a falta de perdão e de acolhida, a vingança, os maus pensamentos e tantas outras forças que tomam conta das pessoas, tornando-as frias, indiferentes e insensíveis em relação ao próximo. Estas forças são prisões que tiram a liberdade e a dinamicidade da vida. Estas são forças geradoras de destruição e morte. Os que aderem a Jesus contam com sua palavra e com a força do Espírito para serem vencedores.

            Diante do Cristo transfigurado, Pedro quis acampar na montanha. Aliás, mais do que isto, queria permanecer na mesma, quis construir tendas. Construir tendas é a vontade de toda pessoa. No mundo atual, as pessoas querem construir a tenda do conforto e das seguranças: querem estudar, ter excelentes empregos com altos salários, querem “vencer na vida”, ter uma excelente aposentadoria e ter vida longa. Pensando nelas mesmas, procuram gozar da “felicidade” que o mundo lhes oferece.

Consciente ou inconscientemente, pensam da seguinte forma: “Vou procurar o meu lugar no mundo, quero ser feliz. Ter meu carro, minha casa, meu computador, meu celular, minha esposa (marido), meus filhos. Quero sossego pra minha vida!” Onde fica Deus neste projeto de vida? Deus vai aparecer se tal projeto não der certo. Então, é invocado para ajudar a realizá-lo, ou acusado por não ter dado certo. Recentemente, escutei um jovem universitário falar com convicção: “Quero ganhar dinheiro, ser rico e ser feliz!” Se não conseguir, certamente vai procurar por Deus ou acusar a Deus pelo seu fracasso.

Assim pensa a maioria das pessoas: vivem procurando a felicidade fora de si mesmas, nas coisas que o mundo pode lhes oferecer. Como a felicidade não se encontra fora do ser humano, então a frustração é geral. O que vemos são faces que revelam angústia, frustração e depressão. Tudo porque a felicidade não é encontrada. Assim, muita gente morre, perdendo a vida numa procura frustrante. Para estas pessoas, eis a palavra de Jesus: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Quem procura a felicidade fora de si mesmo, geralmente, são pessoas medrosas, que estão caídas no chão. Muitas frequentam a religião, mas ainda não se encontraram com Jesus. Somente quando o encontro com ele acontecer é que se libertarão.

Por fim, consideremos a seguinte indagação: o que o relato da transfiguração de Jesus significa para as Igrejas cristãs? As Igrejas cristãs continuam insistindo em fazer o que Pedro queria fazer: tendas. Quando olho para a religião cristã, salvo raras experiências de inserção no mundo comum dos mortais, vejo tendas armadas na montanha do conforto e das seguranças. As Igrejas cristãs precisam fazer a experiência da descida, do partir para a periferia do mundo, sem medo algum. Se a Igreja é assistida pelo Espírito do Senhor, por que tem medo do mundo?... A resposta é dolorosa e verdadeira: falta coragem à Igreja porque esta não confia plenamente na força amorosa e libertadora do Espírito de Deus.

O Papa Francisco está relendo o evangelho e apontando para a periferia do mundo, e quando olhamos as Igrejas Particulares, inegavelmente, assistimos a uma paralisação total, salvo raras exceções. Os pastores não querem largar o conforto e as seguranças que seus postos lhes conferem. Falam bonito do sofrimento dos pobres, mas não sofrem, não estão expostos aos riscos da missão, estão em total segurança. A Igreja precisa escutar Jesus e para escutá-lo é preciso descer da montanha, colocar-se a caminho, arriscar-se. Não há outro caminho. Este é o chamado divino para o momento atual da Igreja no mundo. Os pobres clamam por justiça: quem está escutando seus clamores?...


Tiago de França

quinta-feira, 13 de março de 2014

Um ano de pontificado do Papa Francisco

               
             Há um ano o mundo assistiu à eleição de Mario Jorge Bergoglio, argentino eleito para ser Bispo da Diocese de Roma e Pontífice da Igreja Católica. Naquela ocasião, minhas palavras eram de esperança. Na qualidade de cristão, confesso que fiquei feliz ao ver que, pela primeira vez na história, o papa veio da América Latina. Quando o vi pela televisão, sendo aplaudido e acolhido em Roma, fiquei pensando: O que este senhor vai fazer de diferente pela Igreja? Como um latino-americano vai ser aceito e vai sobreviver no Vaticano?...

            Passou-se um ano. Agora, meu sentimento é de preocupação. As palavras e gestos de Francisco estão em plena sintonia com o evangelho. Ele parece entender que, de fato, Jesus e sua mensagem devem ser o centro da vida cristã e eclesial. Como jesuíta, entende do lugar e da importância do discernimento na missão. Isto é bom. A maioria dos católicos permanece extasiada com o jeito de Francisco ser e atuar. Pessoalmente, é, de fato, um homem despojado e que sempre se recorda dos pobres como opção de Jesus e da Igreja. Seus últimos predecessores, que sofriam do mal da “psicologia de príncipes” não estavam preocupados com os pobres, mas com a moral, a liturgia, a disciplina e com a doutrina.

            Conservando minha admiração em relação às palavras e gestos cotidianos de Francisco, quero partilhar de uma preocupação que se encontra na mente e no coração de poucos. A partir daqui, alguns leitores mais piedosos não vão gostar do que vão ler. Como não sou clérigo e sempre apreciei expressar o que penso, então não me preocupo com as consequências do que falo. E mesmo se clérigo fosse, agiria da mesma forma. Acredito que aquilo que parece ser verdadeiro tem lugar nos corações das mulheres e homens de boa vontade. Jesus nos ensina a conservamos a sinceridade e a verdade.

            Francisco continua sendo elogiado pelas pessoas mais poderosas do mundo, assim como pelas mais simples. Pensar que todo o mundo está prestando atenção no que o papa fala é um engano absurdo. O papa não é o centro do mundo, mas, inegavelmente, a sua figura tem causado admiração em muita gente. Quando os grandes poderosos do mundo, tanto no mundo secular quanto no religioso, admiram-se com o papa e o elogiam, isto deve ser motivo de preocupação. Por trás destes elogios podem existir dois sentimentos: o sentimento de quem admira e venera, identificando-se com as palavras e o gestos daquele que está sendo admirado, ou o contrário, o sentimento de que admira, mas que odeia, sentindo-se impotente diante da figura religiosa que ganhou notoriedade.

            Se não estiver enganado, penso que a primeira opção é que prevalece. Quero somente acrescentar um detalhe que muda um pouco o que acima escrevi: Os poderosos deste mundo estão gostando do jeito de ser e de atuar do papa Francisco, mas se engana quem pensa que a mensagem do evangelho de Jesus que está sendo proclamada por ele está sendo tranquilamente ouvida, aceita e praticada. Os poderosos deste mundo, tanto seculares quanto religiosos, desconhecem o evangelho, assim como a pessoa de Jesus. Os seus deuses são o poder e o dinheiro. Assim, em relação ao papa se trata mais de mera simpatia do que identificação.

            Avancemos mais um pouco em nossas considerações. Historicamente, o papa exerce duplo poder: é líder religioso e secular, é Papa e Chefe de Estado. Aqui está um gravíssimo problema, uma realidade antievangélica, pois Jesus não chamou Pedro para ser Chefe de Estado, mas para ser apóstolo, ou seja, enviado para anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus. A doutrina ensina que o papa é sucessor de Pedro, só que tal como está configurado o exercício da missão pontifícia, a sucessão sofre desse mal há séculos e até hoje não apareceu um papa que resolvesse tal situação. Geralmente, as pessoas não param para observar isso, pois a própria Igreja deu conta de fazer com que a maioria dos católicos aceitasse o duplo exercício do poder papal, sem que tal realidade se tornasse um escândalo.

            Quando Francisco foi eleito, a palavra reforma foi a que mais se ouviu em torno de sua eleição. Transmitiu-se a ideia de que este seria o papa da reforma eclesiástica. O papa João XXIII, na segunda metade do século passado, não foi eleito para esta missão. Após a morte do poderoso Pio XII, os cardeais não tinham um nome à altura do falecido, então elegeram João XXIII, que, providencialmente, para a alegria de uns e para a tristeza de outros, convocou o Concílio Ecumênico Vaticano II. Ficou conhecido como o “papa bom”, devido a seus gestos e palavras livres, oriundas da inspiração de quem se deixa guiar pelo Espírito do Senhor.

            No meu primeiro artigo sobre Francisco, logo após sua eleição, dizia e continuo acreditando que não é Francisco que vai mudar a Igreja. Esta é feita de muitos e são inúmeras as realidades humanas e culturais que a compõem. A colegialidade, após o Vaticano II, é a palavra de ordem na Igreja, apesar de pouco praticada, mas, doutrinalmente, ela foi estabelecida para resolver o problema da verticalização na Igreja. João Paulo II e Bento XVI não foram papas colegiais, pois permitiram, propositadamente, que a Cúria Romana (centro do poder da Igreja) administrasse de forma controlada (disciplinada) toda a Igreja. A atuação da Cúria freou as inovações trazidas pelo Vaticano II e estagnou a Igreja nas últimas décadas.

            Neste sentido, a eleição do papa Francisco foi sentida como um alívio! Assistimos a um “graças a Deus!” após o anúncio da eleição. Parece que os cardeais foram sensíveis aos clamores por mudança, ao eleger o argentino Mario J. Bergoglio, pois este era muito bem conhecido no colégio cardinalício. Os cardeais não tiveram outra opção, pois João Paulo II e Bento XVI deixaram a Igreja gravemente comprometida em sua imagem perante o mundo. Os discursos de Bento XVI não serviam para nada e a Igreja estava totalmente desacreditada. As críticas e a evasão dos fiéis comprovavam isto.

            Agora, a situação melhorou um pouco. Não se assiste mais aos excessos disciplinares dos dois últimos papados, assim como da parafernália em torno das vestes litúrgicas do papa. Francisco não quer impressionar a ninguém com suas vestes litúrgicas. Estas voltaram para o intocável museu do Vaticano. Algo está faltando e que ainda não aconteceu. Na verdade, talvez não aconteça. Não sabemos se Francisco terá coragem para isto. Se tiver, será uma verdadeira revolução! Estamos falando das reformas estruturais, tão necessárias à vida da Igreja. Nesta parte, Francisco não fez absolutamente nada de novo e isto, de certa forma, conforta e alegra os poderosos da Cúria Romana, pois estes não tem medo das palavras e dos pequenos gestos de Francisco, mas tem muito medo das reformas que podem ser feitas.

            Reformas estruturais, como a própria expressão indica, exigem mudanças. O Vaticano tem pavor à palavra mudança. Mudar para quê? Mudar para que a Igreja se aproxime dos pobres, seja pobre com os pobres. Esta conversão é uma exigência do evangelho de Jesus, mesmo sabendo que Jesus não pediu estruturas religiosas, mas o Reino de Deus. Muitos temem que Francisco seja assassinado por causa de seu jeito de ser. Quanto a isto, fiquemos tranquilos. Na Igreja ninguém perde a vida por causa do jeito de ser. Este pode ser suportado, tolerado. No Vaticano, o que não se toleram são as reformas que são capazes de transformar as estruturas. Se Francisco as promover, aí, sim, estará correndo grande perigo e poderá ser assassinado. Enquanto isto não ocorrer, continuará sendo elogiado, aplaudido e querido; poderá ganhar o prêmio Nobel da Paz e, após sua morte, ser canonizado pelo seu sucessor. Resta-nos esperar para vermos o que ocorrerá na Igreja presidida por Francisco nos próximos dias e anos. Oxalá que aconteçam as tão esperadas e desejadas reformas estruturais!


Tiago de França