quinta-feira, 27 de março de 2014

José Comblin: profeta da liberdade

“Os profetas sempre apareceram como pessoas livres. Totalmente dedicados à sua missão, totalmente dedicados aos pobres e totalmente independentes dos poderes humanos” (J. Comblin, in A profecia na Igreja, Paulus, 2008, p. 286).

            O profeta é uma figura sempre atual. A profecia não tem data de validade, pois sempre pode ser revisitada e atualizada. Assim fazemos com a profecia dos profetas bíblicos e também podemos fazer com os profetas da história do Cristianismo. No dia 27 de março de 2011, no recanto da transfiguração, em Simões Filho, próximo a Salvador – BA, faleceu o Pe. José Comblin. Este padre belga, que morreu aos 88 anos de idade, pode ser chamado de profeta da liberdade. Quero, brevemente, fazer memória de sua profecia a partir de suas palavras, acima descritas, impressas na última página do seu último livro, publicado pela editora Paulus.

Os profetas sempre aparecem como pessoas livres

            De fato, sem liberdade não há profecia. Mesmo sendo religioso, o profeta sempre está além da religião. Por isto mesmo, sempre estão em conflito com a religião, e o motivo é simples: esta sempre tende ao enquadramento e ao fechamento; é a tentação que sempre a perseguiu. A religião sempre caminha na trilha das seguranças, com suas doutrinas, dogmas, rituais, sacerdotes e estruturas. O profeta não está em função dessas coisas, mas é escolhido por Deus e enviado para anunciar a Boa Nova de Deus às pessoas; é guiado pelo Espírito do Senhor, promotor da liberdade dos filhos e filhas de Deus.

            José Comblin era presbítero católico, ordenado em 1947, e a Igreja o fez doutor em teologia. Tinha vocação para ambas as atividades, que as exercia com humildade e ousadia. Como teólogo, era dedicado à pesquisa, aos estudos. Todos os que tiveram a oportunidade de escutá-lo, logo percebiam que se tratava de um homem que falava com a autoridade de quem conhecia com largueza e profundidade, e com a autoridade de quem falava a partir de uma experiência fecunda de vida. Não produzia teologia a partir do escritório e da biblioteca universitária, mas a partir da periferia, pois decidiu viver no meio dos pobres para ser fiel ao seu método e à profecia que exercia.

            Sua palavra incomodava e ainda incomoda muita gente na Igreja: bispos, padres e leigos achavam-no azedo e pessimista. Isto ocorria porque o Pe. José Comblin colocava o dedo na chaga aberta de muitos, denunciando-lhes a infidelidade e a covardia. Sua palavra era direta, clara, precisa, objetiva e tocava os pontos fundamentais dos assuntos sobre os quais discorria. Sua capacidade de análise e de síntese surpreendia a todos. Era a capacidade de um homem que meditava, lia e relia a história à luz do evangelho de Jesus e as rezava cotidianamente. Não era um mero intelectual, mas um profeta que cultivava a honestidade intelectual e estava atento aos sinais dos tempos.

            Seus opositores, mesmo discordando de suas posições, sabiam e sabem muito bem da veracidade de seus argumentos. Ninguém ousava desafiá-lo, pois para isto teriam que estudar bastante os próprios argumentos, mas a preguiça mental e o medo da verdade sempre impediram muitos de seus opositores de fazê-lo. As críticas que lhe eram remetidas, oriundas de pessoas pouco fiéis à missão que deveriam exercer, eram pouco ou nada fundamentadas, destituídas de bom senso, caridade e verdade. O Pe. José Comblin recebeu de Deus a graça de participar da missão de Jesus, missão que só pode ser exercida por pessoas livres, que se arriscam em colocar o evangelho no centro de suas vidas.

Os profetas são totalmente dedicados à sua missão e totalmente dedicados aos pobres

            A missão profética acontece necessariamente no meio dos pobres. Materialmente falando, os profetas não são pessoas ricas vivendo confortavelmente no meio dos pobres, como ocorre com a maioria dos religiosos, mas são pobres entre os pobres. Os profetas bíblicos eram homens simples e despojados, que só tinham o necessário para viver. A dedicação é sinal de correspondência e fidelidade ao Deus que chama ao exercício da missão profética. Assim, o profeta precisa cumprir sua missão sem medo, expondo-se aos riscos inerentes, sem fugas nem receios. Neste sentido, o profeta caminha na contramão do mundo, que procura convencê-lo de que “o bom da vida é ser feliz!”, sendo que esta felicidade corresponde às satisfações dos próprios desejos e dos desejos do outro.

            Ameaçados de todas as formas, os profetas não renunciam à sua missão, mas dedicam-se com afinco, visando sempre o Reino de Deus. Alguns chegam ao derramamento de sangue, outros não. O martírio está por conta da liberdade de Deus, que assiste a cada um em seu caminhar. Alguns participam desta graça, que aos olhos do mundo é uma desgraça, mas aos olhos de Deus é evangelho de Cristo. O Pe. José Comblin não chegou ao martírio, mas foi vítima de muitas incompreensões e perseguições: foi proibido de proferir conferências e palestras, e foi expulso do Brasil no tempo de ditadura militar. Apesar disso, era muito solicitado para assessorias, pregação de retiros, assembleias, conferências, palestras e cursos. Por muito tempo auxiliou na formação de presbíteros, mas nas duas últimas décadas de sua vida dedicou-se à formação de missionários leigos no nordeste brasileiro.

            A partir das escolas de formação missionária, o Pe. José Comblin apostou no leigo como protagonista na Igreja. Os alunos destas escolas eram e continuam sendo pessoas pobres do campo e das pequenas cidades do interior nordestino. Graças a uma formação teológica sólida e popular, estas pessoas se tornam missionárias de Jesus nas comunidades eclesiais de base. Os pobres formados e informados formam comunidades cristãs ativas, efetivas e afetivamente comprometidas com o Reino de Deus. Este era e continua sendo o objetivo da proposta de formação missionária profeticamente pensada pelo Pe. José Comblin. Nas escolas, comunidades e eventos, ele era muito querido e acolhido, apesar de seu jeito tímido e calado, próprio de homem reflexivo e orante.

Os profetas são totalmente independentes dos poderes humanos

            O profeta não é um homem do poder, nem tem ligação com os poderosos, pois sabe que estes costumam ser os exploradores do povo de Deus. Os poderosos deste mundo desconhecem o evangelho de Jesus e não se importam com o mesmo; consequentemente, são inimigos da verdade e da liberdade. Assim, procuram de todo jeito calar a voz dos profetas, perseguindo-os e eliminando-os. Na Igreja, os líderes religiosos que se identificam com os poderosos também ajudam a perseguir e eliminar os profetas, mesmo sabendo que estes são enviados por Deus. Contaminados pela sede de poder, tais líderes são cúmplices na morte dos profetas. Aparentam certa simpatia em relação a estes, mas seus corações só tramam maldade.

            Os profetas se identificam com os pequenos, os prediletos de Deus na história e com eles vivem em função do Reino. Assim ocorre porque o profeta sabe que na pedagogia divina a força de Deus está com os pobres e se manifesta no mundo a partir dos pobres. Os poderosos não contam com a força de Deus, pois confiam em si mesmos e no poder que possuem. Os pobres, destituídos de poder humano, vítimas da opressão, somente podem contar com a amorosa e libertadora presença de Deus. Toda a Escritura é uma prova desta verdade. Contra esta não há o que argumentar, pois assim Deus o quis.

            O Pe. José Comblin sabia muito bem interpretar as Escrituras Sagradas e sabia muito bem a respeito do lugar da presença e da ação de Deus. Por isto mesmo optou em permanecer do lado dos pobres. A verdade de sua profecia era a do evangelho de Jesus: a libertação integral do ser humano. O núcleo de sua teologia era a liberdade do evangelho de Jesus. Consequentemente, os pobres ocupam lugar central na sua teologia. Como a opção pelos pobres deve ser a opção fundamental da ação evangelizadora da Igreja, a teologia do Pe. José Comblin continuará sendo válida por muito tempo.

            Tive a graça de conhecer a teologia de Pe. José Comblin por meio de seus inúmeros escritos, e a partir de seus questionamentos também questiono a minha fé e, sempre que posso, questiono a letargia que tem tomado conta da Igreja. Como sou leitor assíduo de suas obras, não me considero um discípulo do mesmo, pois o sou de Jesus, mas declaro que graças ao fazer teológico deste renomado teólogo da Igreja tenho aprendido a enxergar a realidade com os olhos críticos da fé. Esta não deve ser ingênua nem submissa, mas crítica e voltada para o futuro.

Com o Pe. José Comblin aprendi que ser cristão é ser livre em Cristo Jesus e não há homem neste mundo que possa impedir a manifestação desta liberdade. Ela é pura ação amorosa de Deus em Cristo e no Espírito. Louvo e agradeço a Deus pelo testemunho do Pe. José Comblin e rogo ao Espírito que não deixe faltar à Igreja e ao mundo mulheres e homens que ousem seguir Jesus de perto, na liberdade de filhos e filhas de Deus.


Tiago de França

Um comentário:

Anônimo disse...

Em primeiro lugar quero parabenizar, o seu texto revelar um profundo conhecimento que vocês deste estimado e honrado teólogo. José Comblim, foi um profeta da esperança. A sua capacidade de "teologar" mostrar por meio de suas sábias palavras, o profundo conhecimento que tinha Deus na vida dos pobres, de forma especial os pobres da América Latina. O texto traz luzes e reflexões e ao mesmo, vejo como convite para ação do profetismo. Ademias, muito grato pela bela reflexão sobre este belo exemplo de homem, profeta, missionário e teólogo comprometido com a causa da justiça social.