sábado, 12 de abril de 2014

A paixão de Deus

“Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens” (Fl 2, 6 – 7).

            Muito se pode dizer a respeito do relato da paixão de Jesus, o Messias, descrito no evangelho. Cada evangelista narra em uma perspectiva diferente, mas todos são unânimes em demonstrar o amor infinito de Deus pela humanidade. Não é mero sacrifício expiatório, nem mero cumprimento das Escrituras, mas paixão de Deus na história humana. Quer aceitemos, quer não, após a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré a história ganhou um novo significado. Para ateus e curiosos, a história do mundo gira em torno do antes e depois de Cristo. Para os cristãos, não há somente uma demarcação temporal, mas há um encontro extraordinário e transformador de Deus com a humanidade.

O que aconteceu com Jesus, o Messias?

            O Messias Jesus frustrou as expectativas de muita gente importante. Ele não se enquadrou no conjunto de qualidades que a tradição ensinava a respeito do Messias que esperavam. As pessoas esperavam um homem cheio de poder e glória, amigo dos poderosos e restaurador das tradições, mas apareceu um pobre coitado, nascido em Nazaré da Galiléia, que comia e frequentava a casa das pessoas de má fama, os pecadores públicos. Conhecido como transgressor da lei, não satisfazia os desejos das pessoas, mas torando-se amigo dos pobres manifestava a misericórdia de um Deus que se identifica com os fracos, indefesos e oprimidos.

            Não sendo conivente com a exploração dos pobres, consequentemente, foi perseguido por aqueles que se aproveitavam da inocência e da ignorância dos marginalizados. Para os pobres, era um profeta de Deus a ser escutado. Para os poderosos ligados ao império romano, era uma ameaça a ser eliminada. Jesus foi escutando gradativamente a voz do Pai que o enviou e foi tomando consciência dos riscos de sua missão. Proclamou com todas as palavras e sem medo a Boa Notícia do Reino de Deus e, assim, inaugurou um novo caminho para a humanidade encontrar-se consigo mesma no encontro com Deus. Jesus apontou para Deus, conduziu para o Pai, revelou o caminho que conduz à vida e à liberdade.

            Executado como um malfeitor, participou solenemente da sorte dos injustiçados do seu tempo. O Messias crucificado: um escândalo para os judeus! Algo que eles não tinham condições de compreender. Na cruz, Jesus continua escandalizando. No mais profundo do ser de muitos dos que confessam a fé nele, sua imagem de crucificado continua incomodando, e o motivo é simples: as pessoas desejam a glória e o poder, almejam um Deus que possa satisfazer suas necessidades. Um Deus crucificado é impotente, incapaz de satisfazer as necessidades das pessoas. Estas possuem uma visão utilitarista de Deus. Este tem que servir para a satisfação daquilo que elas não conseguem resolver sozinhas e com seus meios. Existe este Deus utilitarista? Na verdade, não passa de um ídolo, uma criação da fantasia das pessoas.

Crer no crucificado-ressuscitado

            Certo dia, quando estava com seus discípulos, perguntou Jesus: “O Filho do Homem, quando vier, será que vai encontrar fé sobre a terra?” (Lc 18, 8). Esta pergunta nos leva a pensar nas consequências da fé em Jesus. Ter fé em Jesus é seguir seus passos, participar de sua vida e de sua sorte, é colocar-se em seu caminho e perseverar. Aqui enxergamos os riscos da fé. Esta não é mera declaração cultual. No culto se celebra, mas somente na vida é que a fé é provada. O culto perde seu sentido e conteúdo quando a fé não é experimentada na vida cotidiana. Vamos ilustrar com um exemplo belíssimo da história da Igreja no Brasil.

            Nascido em Fortaleza – CE, em setembro de 1945, o frei Tito de Alencar Lima (dominicano) se tornou ícone da luta pelos direitos humanos. Foi vítima da terrível ditadura militar no Brasil: perseguido, preso e torturado, em São Paulo. Era militante com outros frades e estudantes universitários. Acreditava em outro mundo possível, pautado na justiça e na solidariedade para com as vítimas. Professava a fé em Jesus crucificado na vida daqueles que clamavam por justiça, por uma democracia autêntica. Frei Tito acreditava no evangelho da vida e da liberdade e sua fé era reflexo desse evangelho. As torturas deixaram marcas profundas em sua mente, perturbando-o horrivelmente. Traumatizado pela tortura, submeteu-se a um tratamento psiquiátrico. Não conseguiu superar o terrível trauma, suicidou-se próximo a Lyon, França, onde se encontrava, em setembro de 1974.

            Frei Tito não renunciou à fé em Jesus, mas viveu-a plenamente até as últimas consequências. Poderia ter optado pelo conforto da vida conventual, recusando-se a participar das lutas pela justiça, mas optou por seguir radicalmente a Jesus de Nazaré e encontrou-se no patíbulo da cruz. Participou da morte de Cristo professando com a vida as promessas do batismo. Frei Tito experimentou na carne as dores oriundas do flagelo, da humilhação, da perseguição, da incompreensão, das ameaças, da crueldade e da força bruta de um sistema opressor que devorava friamente a vida das pessoas que lutavam por um mundo mais justo e fraterno. Foi crucificado com Cristo para ser ressuscitado com ele. Foi digno de lavar suas vestes no sangue do Cordeiro.

            Acreditar no crucificado-ressuscitado, Jesus de Nazaré, é viver na própria carne sua paixão e ressurreição. A carne de Cristo continua exposta no corpo das vítimas das injustiças que se cometem no mundo. Temos duas alternativas com suas respectivas consequências: ou optarmos por participar da morte de Cristo para sermos com ele ressuscitados, ou optarmos em fazer o papel dos torturadores. Nossas palavras e gestos revelam nosso lugar. Também nossa omissão revela nossa oposição a Jesus. A paixão de Jesus é a paixão de Deus pela humanidade, e nosso medo, omissão e indiferença nos excluem desta paixão divina. Esta é capaz de transformar radicalmente a nossa vida, é a nossa salvação.

            Para os cristãos católicos a Semana Santa é ocasião de meditação e celebração da paixão e ressurreição de Jesus. É verdade que muita gente não vai meditar nem celebrar absolutamente nada, pois vai aproveitar para descansar, viajar, ir à praia, comer, beber etc. Será apenas mais um feriado! No mundo pós-moderno, falar de paixão e ressurreição de Jesus é incômodo, é perda de tempo, é algo a ser evitado. Cada um é livre para fazer suas escolhas, assim como deve acatar com a mesma liberdade suas consequências. O essencial não pode ser esquecido nem marginalizado: muito além da celebração ritual da paixão e ressurreição de Jesus, é necessário permanecer unido a ele na vida e na morte e, assim, com ele experimentar uma vida plenamente nova e eterna.


Tiago de França

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