“Jesus
Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma
usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e
tornando-se igual aos homens” (Fl 2, 6 – 7).
Muito se pode dizer a respeito do relato da paixão de
Jesus, o Messias, descrito no evangelho. Cada evangelista narra em uma
perspectiva diferente, mas todos são unânimes em demonstrar o amor
infinito de Deus pela humanidade. Não é mero sacrifício expiatório, nem
mero cumprimento das Escrituras, mas paixão de Deus na história humana. Quer aceitemos,
quer não, após a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré a história ganhou um
novo significado. Para ateus e curiosos, a história do mundo gira em torno do
antes e depois de Cristo. Para os cristãos, não há somente uma demarcação
temporal, mas há um encontro extraordinário e transformador de Deus com a humanidade.
O
que aconteceu com Jesus, o Messias?
O Messias Jesus frustrou as expectativas de muita gente
importante. Ele não se enquadrou no conjunto de qualidades que a tradição
ensinava a respeito do Messias que esperavam. As pessoas esperavam um homem
cheio de poder e glória, amigo dos poderosos e restaurador das tradições, mas apareceu
um pobre coitado, nascido em Nazaré da Galiléia, que comia e
frequentava a casa das pessoas de má fama, os pecadores públicos. Conhecido como
transgressor da lei, não satisfazia os desejos das pessoas, mas torando-se
amigo dos pobres manifestava a misericórdia de um Deus que se identifica com os
fracos, indefesos e oprimidos.
Não sendo conivente com a exploração dos pobres,
consequentemente, foi perseguido por aqueles que se aproveitavam da inocência e
da ignorância dos marginalizados. Para os pobres, era um profeta de Deus a ser
escutado. Para os poderosos ligados ao império romano, era uma ameaça a ser
eliminada. Jesus foi escutando gradativamente a voz do Pai que o enviou
e foi tomando consciência dos riscos de sua missão. Proclamou com todas as palavras e
sem medo a Boa Notícia do Reino de Deus e, assim, inaugurou um novo caminho
para a humanidade encontrar-se consigo mesma no encontro com Deus. Jesus
apontou para Deus, conduziu para o Pai, revelou o caminho que conduz à vida e à
liberdade.
Executado como um malfeitor, participou
solenemente da sorte dos injustiçados do seu tempo. O Messias
crucificado: um escândalo para os judeus! Algo que eles não tinham condições de
compreender. Na cruz, Jesus continua escandalizando. No mais profundo do ser
de muitos dos que confessam a fé nele, sua imagem de crucificado continua
incomodando, e o motivo é simples: as pessoas desejam a glória e o poder,
almejam um Deus que possa satisfazer suas necessidades. Um Deus crucificado é impotente,
incapaz de satisfazer as necessidades das pessoas. Estas possuem uma
visão utilitarista de Deus. Este tem que servir para a satisfação daquilo que
elas não conseguem resolver sozinhas e com seus meios. Existe este Deus
utilitarista? Na verdade, não passa de um ídolo, uma criação da fantasia das
pessoas.
Crer
no crucificado-ressuscitado
Certo dia,
quando estava com seus discípulos, perguntou Jesus: “O Filho do Homem, quando vier, será que vai encontrar fé sobre a
terra?” (Lc 18, 8). Esta pergunta nos leva a pensar nas consequências da fé
em Jesus. Ter fé em Jesus é seguir seus passos, participar de sua vida e de sua
sorte, é colocar-se em seu caminho e perseverar. Aqui enxergamos os
riscos da fé. Esta não é mera declaração cultual. No culto se celebra, mas
somente na vida é que a fé é provada. O culto perde seu sentido e conteúdo
quando a fé não é experimentada na vida cotidiana. Vamos ilustrar com um
exemplo belíssimo da história da Igreja no Brasil.
Nascido em Fortaleza – CE, em setembro de 1945, o frei
Tito de Alencar Lima (dominicano) se tornou ícone da luta pelos direitos
humanos. Foi vítima da terrível ditadura militar no Brasil: perseguido, preso e
torturado, em São Paulo. Era militante com outros frades e estudantes
universitários. Acreditava em outro mundo possível, pautado na justiça e na
solidariedade para com as vítimas. Professava a fé em Jesus crucificado na vida
daqueles que clamavam por justiça, por uma democracia autêntica. Frei Tito
acreditava no evangelho da vida e da liberdade e sua fé era reflexo desse
evangelho. As torturas deixaram marcas profundas em sua mente, perturbando-o
horrivelmente. Traumatizado pela tortura, submeteu-se a um tratamento
psiquiátrico. Não conseguiu superar o terrível trauma, suicidou-se próximo a
Lyon, França, onde se encontrava, em setembro de 1974.
Frei Tito não renunciou à fé em Jesus, mas viveu-a
plenamente até as últimas consequências. Poderia ter optado pelo conforto da
vida conventual, recusando-se a participar das lutas pela justiça, mas optou
por seguir radicalmente a Jesus de Nazaré e encontrou-se no patíbulo da cruz. Participou
da morte de Cristo professando com a vida as promessas do batismo. Frei
Tito experimentou na carne as dores oriundas do flagelo, da humilhação, da
perseguição, da incompreensão, das ameaças, da crueldade e da força bruta de um
sistema opressor que devorava friamente a vida das pessoas que lutavam por um
mundo mais justo e fraterno. Foi crucificado com Cristo para ser
ressuscitado com ele. Foi digno de lavar suas vestes no sangue do Cordeiro.
Acreditar no crucificado-ressuscitado, Jesus
de Nazaré, é viver na própria carne sua paixão e ressurreição. A carne
de Cristo continua exposta no corpo das vítimas das injustiças que se cometem
no mundo. Temos duas alternativas com suas respectivas consequências: ou
optarmos por participar da morte de Cristo para sermos com ele ressuscitados,
ou optarmos em fazer o papel dos torturadores. Nossas palavras e gestos revelam
nosso lugar. Também nossa omissão revela nossa oposição a Jesus. A paixão
de Jesus é a paixão de Deus pela humanidade, e nosso medo, omissão e indiferença
nos excluem desta paixão divina. Esta é capaz de transformar
radicalmente a nossa vida, é a nossa salvação.
Para os cristãos católicos a Semana Santa é ocasião de
meditação e celebração da paixão e ressurreição de Jesus. É verdade que muita
gente não vai meditar nem celebrar absolutamente nada, pois vai aproveitar para
descansar, viajar, ir à praia, comer, beber etc. Será apenas mais um feriado! No
mundo pós-moderno, falar de paixão e ressurreição de Jesus é incômodo, é perda
de tempo, é algo a ser evitado. Cada um é livre para fazer suas escolhas, assim
como deve acatar com a mesma liberdade suas consequências. O essencial não pode
ser esquecido nem marginalizado: muito além da celebração ritual da paixão e
ressurreição de Jesus, é necessário permanecer unido a ele na vida e na morte
e, assim, com ele experimentar uma vida plenamente nova e eterna.
Tiago de França
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