quarta-feira, 9 de abril de 2014

Nossos demônios interiores

           
           Após a era das perseguições aos cristãos na Igreja dos primeiros séculos, houve certo relaxamento no seguimento de Jesus. Líderes da Igreja resolveram se aproveitar da oportunidade que surgiu: o cristianismo se tornou a religião oficial do império romano. Muitos cristãos, convictos de que tal oportunidade era caminho que não levava a Jesus, resolveram “abandonar o mundo” e foram viver no deserto. Um dos mais famosos e considerado pai do monarquismo antigo foi santo Antão. O deserto foi povoado por inúmeros monges, que passaram a fazer a experiência da solidão; não a solidão segundo o entendimento moderno do termo, mas a solidão monástica, que se traduz na experiência de viver na intimidade com Deus.

            Estes Padres do deserto, como são chamados pela patrística, ensinaram a importância da atenção a si mesmo. Costumamos prestar atenção a tudo e a todos que se encontram a nossa volta. Chama-nos a atenção as coisas, as pessoas e os acontecimentos do mundo. Geralmente, estamos voltados para fora. A espiritualidade vivida pelos monges do deserto é delineada pelo olhar que se volta para si mesmo como caminho para o autoconhecimento e, consequentemente, para a liberdade. Este olhar não nega a realidade exterior, mas busca conhecer a realidade interior, o que somos no mais profundo de nós mesmos.

            Em nosso inconsciente podemos encontrar as forças que tendem a nos controlar e, portanto, revelam nosso modo de ser. Muitas destas forças são diabólicas, no sentido de que tendem a nos dividir e nos destruir. São forças que podem atrapalhar nossa vida, pois nos puxam para a baixeza de nossos instintos. A ideia de inconsciente é moderna, mas na Bíblia, é substituída pelo coração. Jesus fala que tudo o que é ruim não vem de fora da pessoa, mas sai de dentro dela, de seu coração. Portanto, não precisamos do diabo, enquanto espírito exterior a nós, para nos induzir ao mal, pois temos em nós forças negativas que fazem este papel. São nossos demônios interiores.

            No mundo atual, marcado pela dispersão, as pessoas costumam não prestar atenção a si mesmas. Por isso, facilmente se deixam levar pelas forças negativas que brotam violentamente de seu interior, tornando-as doentes. A inveja, a cobiça, o ódio e todas as paixões desordenadas estão escondidas no interior do ser humano. Os sentidos da visão, tato, paladar, olfato e audição são as janelas por onde entram os estímulos que despertam do sono os demônios interiores, as forças negativas que dentro da pessoa se parece com um vulcão adormecido. Quando não há autoconhecimento a respeito de como tais forças negativas agem, quando estimuladas, as pessoas se descontrolam e se transformam em demônios encarnados, capazes de atos violentos terríveis e assustadores.

            Não há nenhum excesso neste olhar. Observemos o mundo com suas diversas formas de violência. Não se trata de nenhuma entidade espiritual controlando as pessoas, mas o que existe é um número incontável de pessoas descontroladas e, portanto, doentes, incapazes de conter seus impulsos, suas forças negativas. Os desejos incontroláveis que tais forças geram levam o ser humano à eliminação do outro, pois este se transforma em adversário a ser combatido e destruído. Dominados pelo espírito de competição, as pessoas consideradas fracas são eliminadas. A lógica do mundo é clara: não há lugar para elas.

            “Desejo a todas inimigas vida longa, pra que elas vejam cada dia mais nossa vitória. Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba...”, é o que diz a música “Beijinho no ombro”, da Valesca Popozuda. Por que esta música faz sucesso no momento? Porque as pessoas vivem na lógica da competição e o que tem a oferecer reciprocamente é tiro, porrada e bomba. Este é o desejo para os inimigos. Quem são os inimigos? Na verdade, o inimigo não existe na realidade, mas está no interior das pessoas. A música faz sucesso e é aderida por aquelas pessoas que pautam sua vida na lógica relacional do eu versus inimigo. Tais pessoas só vencem na vida se outras forem destruídas.

            O que fazer diante de tal situação? Se não quisermos nos transformar em demônios encarnados que visam destruir a si mesmos e ao mundo, podemos seguir as orientações dos Padres do deserto: entrar na própria cela, mergulhar no mais profundo de si mesmo e lá permanecer. Permanecer em si mesmo é uma virtude. Esta virtude conduz a pessoa ao encontro consigo mesma e com Deus, aprende a conviver com os próprios demônios e a se tornar cada vez mais humana, mansa e humilde de coração. Para os que professam a fé em Jesus, ele é o caminho para a paz interior e exterior. Ele nos ensina a oração, o jejum e a caridade como recursos necessários que nos ajudam a lidar com nossos demônios interiores.

            A oração nos recorda que Deus é nossa força. Com suas próprias forças, ninguém chega a lugar nenhum. No caminho da vida podemos contar com o auxílio divino, que se manifesta através do encontro com o outro. O jejum nos recorda que somos humanos, frágeis, expostos às fraquezas. O verdadeiro jejum nos convence da fraternidade, realidade essencialmente marcada pela relação com o outro, na liberdade e na abertura. A caridade nos liberta da tentação do fechamento de nós mesmos e nos torna pessoas abertas e disponíveis para o serviço fraterno, para a diaconia. A caridade é a palavra e o gesto direcionados para o outro, realizados ao modo de Jesus.

            Por fim, é preciso afirmar que somente o amor consegue nos libertar do domínio de nossos demônios interiores. Amar como Jesus amou: eis a maneira perfeita de amar. Aprender com Jesus para sermos verdadeiramente livres. Isto não extingue nossas forças negativas, mas não permite que nos dominem. Elas nos acompanharão por toda a vida, assim como pode nos acompanhar o amor de Deus em Cristo Jesus e na força do Espírito. Neste amor e somente nele podemos viver com total segurança, com a segurança que nos mantêm firmes e perseverantes, sem medo nem fugas, de pé diante da vida, peregrinos no caminho de Jesus, estreito e pedregoso.


Tiago de França

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