Após a era das
perseguições aos cristãos na Igreja dos primeiros séculos, houve certo
relaxamento no seguimento de Jesus. Líderes da Igreja resolveram se aproveitar
da oportunidade que surgiu: o cristianismo se tornou a religião oficial do
império romano. Muitos cristãos, convictos de que tal oportunidade era caminho
que não levava a Jesus, resolveram “abandonar o mundo” e foram viver no
deserto. Um dos mais famosos e considerado pai do monarquismo antigo foi santo
Antão. O deserto foi povoado por inúmeros monges, que passaram a fazer a experiência
da solidão; não a solidão segundo o entendimento moderno do termo, mas a solidão
monástica, que se traduz na experiência de viver na intimidade com Deus.
Estes Padres do deserto, como são chamados pela
patrística, ensinaram a importância da atenção a si mesmo. Costumamos prestar
atenção a tudo e a todos que se encontram a nossa volta. Chama-nos a atenção as
coisas, as pessoas e os acontecimentos do mundo. Geralmente, estamos voltados
para fora. A espiritualidade vivida pelos monges do deserto é delineada pelo olhar
que se volta para si mesmo como caminho para o autoconhecimento e,
consequentemente, para a liberdade. Este olhar não nega a realidade
exterior, mas busca conhecer a realidade interior, o que somos no mais profundo
de nós mesmos.
Em nosso inconsciente podemos encontrar as forças que
tendem a nos controlar e, portanto, revelam nosso modo de ser. Muitas destas
forças são diabólicas, no sentido de que tendem a nos dividir e nos destruir. São
forças que podem atrapalhar nossa vida, pois nos puxam para a baixeza de nossos
instintos. A ideia de inconsciente é moderna, mas na Bíblia, é substituída pelo
coração. Jesus fala que tudo o que é ruim não vem de fora da pessoa, mas sai de
dentro dela, de seu coração. Portanto, não precisamos do diabo, enquanto
espírito exterior a nós, para nos induzir ao mal, pois temos em nós forças
negativas que fazem este papel. São nossos demônios interiores.
No mundo atual, marcado pela dispersão, as pessoas
costumam não prestar atenção a si mesmas. Por isso, facilmente se deixam levar
pelas forças negativas que brotam violentamente de seu interior, tornando-as
doentes. A inveja, a cobiça, o ódio e todas as paixões desordenadas estão
escondidas no interior do ser humano. Os sentidos da visão, tato, paladar,
olfato e audição são as janelas por onde entram os estímulos que despertam do
sono os demônios interiores, as forças negativas que dentro da pessoa se parece
com um vulcão adormecido. Quando não há autoconhecimento a respeito de como
tais forças negativas agem, quando estimuladas, as pessoas se descontrolam e se
transformam em demônios encarnados, capazes de atos violentos terríveis e
assustadores.
Não há nenhum excesso neste olhar. Observemos o mundo com
suas diversas formas de violência. Não se trata de nenhuma entidade espiritual
controlando as pessoas, mas o que existe é um número incontável de pessoas
descontroladas e, portanto, doentes, incapazes de conter seus impulsos, suas
forças negativas. Os desejos incontroláveis que tais forças geram levam o ser
humano à eliminação do outro, pois este se transforma em adversário a ser
combatido e destruído. Dominados pelo espírito de competição, as pessoas
consideradas fracas são eliminadas. A lógica do mundo é clara: não há lugar
para elas.
“Desejo a todas
inimigas vida longa, pra que elas vejam cada dia mais nossa vitória. Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba...”,
é o que diz a música “Beijinho no ombro”, da Valesca Popozuda. Por que esta
música faz sucesso no momento? Porque as pessoas vivem na lógica da competição
e o que tem a oferecer reciprocamente é tiro, porrada e bomba. Este é o desejo
para os inimigos. Quem são os inimigos? Na verdade, o inimigo não existe na
realidade, mas está no interior das pessoas. A música faz sucesso e é aderida por
aquelas pessoas que pautam sua vida na lógica relacional do eu versus inimigo. Tais pessoas só vencem
na vida se outras forem destruídas.
O que fazer diante de tal situação? Se não quisermos nos
transformar em demônios encarnados que visam destruir a si mesmos e ao mundo,
podemos seguir as orientações dos Padres do deserto: entrar na própria cela,
mergulhar no mais profundo de si mesmo e lá permanecer. Permanecer em si mesmo é uma
virtude. Esta virtude conduz a pessoa ao encontro consigo mesma e com
Deus, aprende a conviver com os próprios demônios e a se tornar cada vez mais
humana, mansa e humilde de coração. Para os que professam a fé em Jesus, ele é
o caminho para a paz interior e exterior. Ele nos ensina a oração, o jejum e a
caridade como recursos necessários que nos ajudam a lidar com nossos demônios
interiores.
A oração nos recorda que Deus é nossa força. Com suas
próprias forças, ninguém chega a lugar nenhum. No caminho da vida podemos
contar com o auxílio divino, que se manifesta através do encontro com o outro. O
jejum nos recorda que somos humanos, frágeis, expostos às fraquezas. O verdadeiro
jejum nos convence da fraternidade, realidade essencialmente marcada pela
relação com o outro, na liberdade e na abertura. A caridade nos liberta da
tentação do fechamento de nós mesmos e nos torna pessoas abertas e disponíveis
para o serviço fraterno, para a diaconia. A caridade é a palavra e o gesto
direcionados para o outro, realizados ao modo de Jesus.
Por fim, é preciso afirmar que somente o amor consegue
nos libertar do domínio de nossos demônios interiores. Amar como Jesus amou: eis a
maneira perfeita de amar. Aprender com Jesus para sermos
verdadeiramente livres. Isto não extingue nossas forças negativas, mas não
permite que nos dominem. Elas nos acompanharão por toda a vida, assim como pode
nos acompanhar o amor de Deus em Cristo Jesus e na força do Espírito. Neste
amor e somente nele podemos viver com total segurança, com a segurança que nos
mantêm firmes e perseverantes, sem medo nem fugas, de pé diante da vida,
peregrinos no caminho de Jesus, estreito e pedregoso.
Tiago de França
Nenhum comentário:
Postar um comentário