sexta-feira, 11 de abril de 2014

O carreirismo jurídico e a justiça social

           
            Todas as profissões sofrem com o mal do carreirismo e as funções desempenhadas por aqueles que operam o Direito não estão excluídas disso. Nossa reflexão tem a seguinte justificativa: pessoas procuram o Direito, geralmente, ou para exercerem a profissão de advogado, ou para atuarem no Judiciário, sendo defensores públicos, promotores, juízes etc. O problema não está na procura, mas nas motivações de muitos: ganhar grandes salários e gozar do prestígio que as profissões asseguram, assim como de seus privilégios. Para isto, basta identificar-se com a técnica jurídica (saber fazer) e ser aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (quem deseja advogar), ou ser aprovado no concurso público em função do exercício da função pública e de sua respectiva estabilidade.

            E a justiça? Para muitos, a justiça não é um problema do Direito. O compromisso deste se volta para a validade das normas e o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico (conjunto de normas). O bom operador do Direito é aquele que sabe interpretar a norma, aplicando-a ao caso concreto. Esta é a lição fundamental e todo o Direito se encerra nisto. Portanto, para ocupar os postos no Judiciário e/ou ser um bom advogado, basta saber interpretar e aplicar a norma. Resumidamente, tudo o que se fala a respeito do Direito converge para esta lição fundamental. Não há nada além disso, considerando a prática jurídica tradicional: o legislador cria a norma e os operadores do Direito aplicam-nas ao caso concreto.

            Logo se percebe que não precisa pensar muito para compreender este cálculo sistemático-jurídico. Portanto, ser operador do Direito não é sinônimo de grande inteligência, mas de capacidade para dominar a sistemática jurídica. Os professores costumam afirmar que os erros oriundos da interpretação e da aplicação do Direito por parte de seus operadores justificam-se nisto: no fato de que há, na verdade, inúmeros operadores do Direito que além de se recusarem a pensar a respeito do mesmo, também não conseguem dar conta do mínimo entendimento dos rituais que envolvem as solenidades dos atos processuais jurídicos.  

Resumidamente, os operadores do Direito, uma boa parcela deles, só estudaram para os exames que asseguraram seus postos, mas, na verdade, entendem muito pouco da sistemática jurídica porque, vergonhosamente, estudaram tendo somente em vista os exames que iriam fazer. Para comprovar essa triste realidade, basta ler algumas decisões emitidas por muitos juízes em qualquer uma das instâncias do Judiciário. As aberrações são muitas e as punições pela prática das mesmas são quase inexistentes.

            Qual o problema fundamental que se encontra implícito nesta situação? O problema da preocupação com a lei em detrimento da pessoa. Renunciando à análise minuciosa das divergências e convergências da doutrina jurídica em torno da questão, tarefa a ser realizada em outro espaço e momento, podemos, sucintamente, dizer que na mente de inúmeros operadores do Direito não se encontra o desafio da dignidade da pessoa humana. Esta é citada pela norma, mas na prática as pessoas são violentadas pelo Judiciário quando não tem seus direitos assegurados e promovidos. Trata-se de uma violência institucionalizada e legalizada. As pessoas são violentadas e não tem a quem recorrer.

            O carreirista procura ser um operador do Direito preocupado consigo mesmo, com seu prestígio e bem-estar. Para conseguir isto, além de gozar dos privilégios da função, ainda se aproveita das circunstâncias para a prática da corrupção. Utiliza-se do poder que lhe foi conferido para favorecer a uns em detrimento de outros. Esta prática de corrupção pode ser entendida na seguinte sentença: favorecer o forte em detrimento do fraco, favorecer o opressor em detrimento do oprimido. O princípio da imparcialidade é costumeira e absurdamente violado. Julga-se o outro segundo as próprias conveniências e/ou preferências, buscando-se na lei a legitimação necessária.

            Para ilustrar, voltemo-nos para o cenário jurídico nacional e citemos apenas um exemplo: a politização do Judiciário. Não há como separar a política do Judiciário, mas se deve separar a política partidária das decisões judiciais. O que isto significa? Significa que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, na pessoa de alguns de seus membros, comete o vergonhoso e absurdo de julgar conforme orientações político-partidárias.

Todo julgamento jurídico é político. Todo julgamento é oriundo de uma escolha. O juiz escolhe o critério que vai utilizar para absolver ou condenar o réu. Não estamos falando contra isso. Estamos falamos da política das preferências pessoais no ato de julgar, em detrimento daquilo que se deveria buscar: a justiça pautada na dignidade da pessoa humana. Não precisa entender das normas materiais e processuais para reconhecer a politização do Judiciário no Brasil.

Esta também é a marca dos carreiristas: a falta de compromisso com a justiça em nome de uma pseudojustiça. Utilizam-se todos os argumentos possíveis numa linguagem rigorosamente elaborada, própria do mundo jurídico e feita para os leigos aplaudirem sem nenhuma forma de entendimento, em função da teatralização solene dos atos processuais tão bem explorados pela mídia, que tende a reforçar cada vez mais as decisões oriundas de operadores atrelados à mentalidade doentia que assegura o controle permanente dos poderosos sobre os fracos. Neste sentido, fica clara uma das piores consequências desta vergonhosa atuação do Judiciário: reforçar as desigualdades entre ricos e pobres, que causam tantas injustiças na sociedade.

Quando olhamos a atual situação do Judiciário no Brasil e nos voltamos para as aspirações de inúmeros estudantes dos cursos de Direito, o futuro se torna cada vez mais sombrio. É incontável o número dos que desejam somente reforçar a fileira dos que se aproveitam do Judiciário para beneficiarem-se, para exercerem de forma mesquinha e vergonhosa as funções públicas. Infelizmente, a maioria dos que compõem o povo brasileiro não consegue compreender tal situação nos seus mínimos detalhes.

De uma coisa a sabedoria popular entende: a justiça brasileira é morosa e só funciona quando se volta contra os pobres, os desvalidos da sociedade, que deveriam ser assistidos em seus clamores, salvo raras exceções; afinal de contas, os operadores do Direito no Judiciário são funcionários públicos (funcionários da coisa pública, do que é do povo). Promover a justiça deveria ser a preocupação de todos para o bem de todos. Isto significa renunciar ao carreirismo e contribuir com o desenvolvimento integral das pessoas e, consequentemente, do país.


Tiago de França

2 comentários:

Marco Antonio Osório da Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marco Antonio Osório da Costa disse...

Caro Tiago, excelente o seu artigo. E melhor ainda saber que compartilhamos de mais uma preocupação. Infelizmente, como você bem disse, a grande maioria da população sequer se dá conta dessa situação. E, pior, as parcelas de menor acesso a uma informação qualificada, reflexiva e nuançada, têm sido levadas a apostar na "justiça" como panaceia - o único caminho para a solução de todos os problemas, ou, ainda mais grave, ao justiciamemto.
Com isso temos o cada vez maior desprestígio da política e o cada vez menor apreço pela democracia, tornando-nos prisioneiros do "estado de menoridade", aquele para o qual Kant já nos alertava há séculos, em seu texto "Resposta à pergunta 'o que é esclarecimento?'". Com isso, vamos abrindo mão de nossa autonomia e delegando a uma minoria "iluminada" a prerrogativa de pensar e decidir em nosso nome. E sabemos bem aonde isso vai dar.
Trata-se do processo observado em muitas partes do mundo e que tem se acentuado vertiginosamente entre nós, da "judicialização da política". Alguns a confundem com a "politização da justiça", a que você se refere, e que também nos assola - só que este há muito mais tempo -, mas que tem consequências muitas mais graves e profundas.
Tenho alguns amigos no Facebook que partilham dessas mesmas preocupações e, se me permite, sugiro-lhe "adicioná-los": são a Maria Luiza Quaresma Tonelli, que tratou do tema em sua tese de doutorado (se tiver interesse, posso enviar-lhe o arquivo); o Edu Pessoa, um estudante de Direito aqui de Brasília e Cristiana Castro.
Também recomendo acompanhar os artigos do jornalista Paulo Moreira Leite, da ISTOÉ, além dos Professores Luiz Moreira, da Faculdade de Direito de Contagem, e Lênio Streck, do Rio Grande do Sul. Provavelmente, você já conheça alguns deles.
Recomendo também a leitura de "Responsabilidade e Julgamento", de Hannah Arendt, onde ela trata dessa abdicação da capacidade de pensar. E também de "Caminhos de saída do estado de menoridade", de Alfonso M. Iacono.
Um grande abraço, amigo!