quarta-feira, 30 de julho de 2014

Amor e egoísmo

“Nisto conhecemos o Amor: ele deu sua vida por nós. E nós também devemos dar nossa vida pelos irmãos. Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê seu irmão na necessidade e se fecha a toda compaixão, como permaneceria nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos com palavras, nem com a língua, mas com obras e em verdade” (1 Jo 3, 16 – 18).

            Nestes dias, estamos ocupados com o tema da liberdade. Hoje iremos nos ocupar com a diferença que há entre o amor e o egoísmo. O amor é a expressão máxima da liberdade, pois quem ama encontra a liberdade e quem deseja ser livre encontra no amor o caminho e o fim de sua liberdade. São realidades intimamente ligadas, tanto o sentido de uma quanto da outra se constroem reciprocamente.  

Acertadamente, diríamos que pessoa livre é pessoa que ama. Para tornar-se pessoa é necessário passar pela experiência do amor. Não há ser verdadeiramente humano fora do amor. Este acontece na simplicidade e na humildade do cotidiano da vida.  

            Hoje, mais do que em outras épocas da história, vivemos marcados pela imagem e pelo discurso. O desenvolvimento dos meios de comunicação facilita a criação de imagens e discursos. A respeito do amor, criaram-se inúmeras representações artísticas. Fala-se e visualiza-se o amor de diversas formas. Há um colorido bonito de ver, pois atrai e encanta multidões em todo o mundo. A criatividade e a fantasia humana são férteis.  

Tudo é muito belo e gera nas pessoas inúmeras sensações, emoções e sentimentos. É o mundo da fantasia, da fuga e da ilusão. De repente, quando despertamos deste sono gostoso, encontramo-nos diante da realidade: inúmeras formas de violência assolando a humanidade e as pessoas cada vez mais egoístas. Não restam dúvidas a respeito do seguinte: há muito egoísmo escondido por trás de muitos discursos e pequenos afagos que tentam falar de amor.

            Os cantores dizem que amam seus fãs, compondo músicas que falam mais de apego que de amor; os atores e atrizes das novelas e filmes afirmam que fazem tudo pelo público; os jogadores de futebol demonstram interesse pela felicidade do torcedor; a grande mídia somente deseja que o leitor e telespectador mantenham-se livres e informados; o neopentecostalismo das Igrejas cristãs promete a solução para todos os problemas materiais e espirituais; inúmeros casais juram amor eterno numa cumplicidade de dar gosto de ver... São algumas demonstrações de egoísmo mascaradas pela doçura de um vocabulário que nos causam admiração!  

Dizem que o egoísmo é amor e este é egoísta. Há coisa mais diabólica do que essa? Necessitamos de demônios para nos arrastar para as profundezas do inferno? Não. Já experimentamos o inferno. Necessitamos, na verdade, de nos libertarmos do egoísmo e para isto temos que tirar suas inúmeras máscaras. Amor jamais é egoísmo e este jamais conduz aquele.

            Quando as pessoas acreditam no amor de palavras somente podem se encontrar com a frustração. Se o amor de palavras não se confirma pelo amor de atos, tudo não passa de uma perigosa mentira. O amor de palavras gera traição. Esta aparece em todos os campos das relações humanas: traição na amizade, no namoro, no casamento, no trabalho, na fé etc. Quem trai gosta do discurso e trai discursando. O traidor é mentiroso e fraco, pois se entregou ao amor de palavras. Seus gestos, quando aparecem, são superficiais e falsos. Estão em função da traição.  

Quem ama também usa o recurso das palavras, mas o traidor depende imprescindivelmente delas para manter-se em sua aparência de amor. No mundo atual há uma ideologia legitimadora da traição, que diz: “Quem nunca traiu atire a primeira pedra!” A ideia é tornar a traição coisa natural, e o pior é que muitos a reconhecem como uma forma eficaz de amadurecimento pessoal!

No evangelho, Judas Iscariotes, um dos discípulos de Jesus, o vendeu por trinta moedas de prata, entregando-o às autoridades para ser crucificado. Aqui não interessa a historicidade ou não do relato bíblico, mas nos interessa um dado um tanto curioso: o traidor conviveu com seu mestre e com este pôs a mão no prato. Todo traidor procura conhecer com certa precisão suas vítimas para não ser pego de surpresa. Como se trata de um mentiroso, então sua mentira não se sustenta por muito tempo.

            Por que citamos a traição para falar do amor e do egoísmo? Porque este último, no fundo, é um traidor. Para os que professam a fé em Jesus, o Cristo, o amor de Deus é revelado no mais profundo de seus corações. Todo aquele que deseja seguir Jesus, segue-o amando o próximo porque o amor de Deus se revela no amor ao próximo.  

Portanto, há duas opções claras: ou amamos o próximo para conhecermos a Deus, ou nos fechamos ao amor, egoisticamente nos entregando à traição. Para quem não ama, resta a traição. O Deus e Pai de Jesus nos confiou a missão de amar, portanto, quando nos recusamos a este amor estamos fugindo de nossa responsabilidade perante Deus.

O amor reclama responsabilidade. Em sua missão, Jesus foi tentado a trair o projeto de Deus, mas não o fez. Não o fez porque viveu unido ao Pai e este o sustentou com seu amor. A fidelidade é sustentada pelo amor. Quando não nos deixamos sustentar pelo amor nos tornamos, inevitavelmente, infiéis, ou seja, traidores.

            O que significa amar com obras e em verdade? A resposta desta importante questão nos revela o discípulo de Jesus. Amar com palavras e com a língua é muito fácil, não custa muito. Podemos muito com o pensamento e com a palavra. O desafio é amar com obras e em verdade. Aqui entra o quesito responsabilidade.  

A vida nos confia o cuidado de pessoas: marido e mulher, pais e filhos, casais de namorados, patrões e funcionários, mulheres e homens revestidos com poderes para o cuidado da coisa pública (o legislativo, o executivo e o judiciário), todos em relação à natureza, os pastores em relação ao povo de Deus etc. Amar com obras é cuidar, responsavelmente. Isto também consiste o amor em verdade.

Se cada pessoa procurasse cuidar do próximo, desinteressadamente, o mundo seria melhor. Ir ao encontro do outro e com este conviver visando o seu bem, fazendo-lhe o melhor. Ao contrário, o egoísta não deseja nem procura o bem do outro, mas serve-se deste para a satisfação dos próprios interesses. Isto é traição do amor. Porque somente pensa em si mesmo, torna-se capaz de passar por cima do outro para alcançar seus objetivos mesquinhos. O egoísta é mesquinho por natureza. Desconhece o amor porque vive encerrado no próprio mundo no qual agoniza e morre sufocado.

Dominado pelo gravíssimo pecado da indiferença, os problemas do mundo e do outro não lhe interessam. Quando sai ao encontro do outro, o faz com algum interesse. Neste sentido, não sabe ser fraterno porque desconhece a fraternidade; não sabe partilhar porque só quer receber; não perdoa porque não vê vantagem no perdão. Enfim, o egoísta é uma criatura de uma mediocridade vergonhosa, tornando-se pedra de tropeço no autêntico progresso da vida no mundo. Não contribui, mas somente suga o que os outros produzem. Quer tirar vantagem em tudo. Quando morre, faz falta somente àqueles com os quais partilhou de seu egoísmo.

            Qual a contribuição da religião para a libertação do egoísmo? A missão da religião é simples e profética: apontar para o pobre necessitado. Lembrar a todos da existência do outro. Recordar e explicitar o valor da fraternidade. Anunciar à humanidade que somente o amor liberta o ser humano do egoísmo.  

No cristianismo, não se deve perder de vista aquilo que ensinou Jesus: somos filhos de um mesmo Pai, que ama a todos, indistintamente. O testemunho missionário de Jesus nos assegura a seguinte sentença que deve ser gritada em cima dos telhados para que todos possam ouvir: QUEM CHAMA A DEUS DE PAI E ABANDONA O PRÓXIMO É MENTIROSO!

Não adianta ser religioso: participar do culto, “pagar” o dízimo, receber a Eucaristia, confessar-se com o padre, contribuir com a festa do padroeiro, venerar Maria e todos os santos, crer em todas as crenças religiosas, fazer novena e ser amigo do padre... Se tudo isto e tudo o mais que constitui o ser religioso não for acompanhado pelo amor de atos, de nada vale. Chamar a Deus de Pai implica, necessariamente, reconhecer o outro como irmão em Jesus, o Cristo, e sê-lo de fato. Nisto consiste o Reino de Deus e a salvação da humanidade.


Tiago de França

sábado, 26 de julho de 2014

Jesus de Nazaré, o Reino de Deus e a Igreja

             
             Esta reflexão deseja ser uma continuação da que partilhamos no último fim de semana (cf. “O Reino de Deus hoje”, em nosso blogue COM JESUS NA CONTRAMÃO, na Internet). Considerando o texto evangélico que a Igreja católica vai partilhar com seus fiéis neste fim de semana (cf. Mt 13, 44 – 52), continuidade do texto do fim de semana passado,  iremos prosseguir nossa reflexão a respeito do Reino de Deus. Hoje, iremos dar ênfase à nítida relação existente entre Jesus, o Reino e a Igreja. O que diremos a respeito da Igreja católica, também serve para as demais Igrejas cristãs.

Jesus e o Reino de Deus

            Os judeus esperavam um Messias poderoso, que iria restaurar o povo de Israel, inaugurando o domínio do Senhor dos Exércitos sobre a face da terra, libertando-os do poder do Império Romano. Resumidamente, esta era a visão que tinham do Messias prometido e anunciado pelos profetas.  

Este Messias não veio e, segundo o cristianismo, não virá. Para quem professa a fé cristã, Jesus de Nazaré é o Cristo, o Ungido de Deus, o Escolhido, o Messias prometido. Um Messias rejeitado, perseguido, torturado e morto, vergonhosamente, na cruz. Jesus, o Nazareno, frustrou as expectativas judaicas e deixou um grupo de mulheres e homens que iniciaram um movimento que se transformou, com o passar do tempo, em uma das maiores religiões da humanidade: o cristianismo.

O testemunho de Jesus, contido nas narrativas evangélicas, deixa bem claro uma verdade que até hoje a maioria dos cristãos não aceita: Jesus não quis fundar uma religião. Portanto, ele não é o fundador do cristianismo. Jesus abriu um caminho, inaugurando o Reino de Deus. Muito depois dele, surgiu a religião cristã, com seu sistema ritual, doutrinal, hierárquico e institucional.

Nenhuma Igreja cristã poderia sequer conceber a ideia de um Jesus fundador, pois tal afirmação não tem nenhuma base nas Escrituras Sagradas. A cristologia moderna progressista não cansa de repetir o que aqui estamos explicitando. Isto já não é nenhuma novidade. Já não mais escandaliza. Portanto, em tempos pós-modernos as Igrejas falam a ouvidos moucos quando insistem em apresentar Jesus como fundador do cristianismo. Seria muito pouco pra Jesus sair do seio do Pai para vir a este mundo com a missão de fundar uma religião. Não podemos reduzir a sua missão a isso. Religião é coisa de seres humanos carentes de segurança e de caminhos que conduzam a Deus.  

            O Reino de Deus não é uma religião. Esta afirmação parece óbvia, mas na cristandade a Igreja católica se confundiu com o Reino de Deus e chegou a afirmar, até recentemente, que fora dela não existia salvação. É um absurdo, mas isto aconteceu. Infelizmente, ainda há cristãos, tanto entre leigos quanto no clero, que continuam pensando ser verdade tal absurdo. Este cai por terra se fizermos uma simples indagação: Se a Igreja católica fosse, de fato, o único caminho de salvação, como ficaria os demais cristãos? E os crentes das demais religiões, não seriam salvos?

 Certamente, os que afirmaram tal absurdo e que até hoje o sustentam, simplesmente respondem: Querem ser salvos? Que se convertam à Igreja católica! Logo se percebe a ilusão histórica que insiste em sobreviver, mesmo fadada ao irremediável desaparecimento: Toda a humanidade tem que se converter ao cristianismo, preferencialmente à Igreja católica! Quando isto vai acontecer? Nunca! Este é o sonho de Deus? Jamais!

Quando meditamos o evangelho, vemos claramente Jesus concentrado na sua missão: a inauguração do Reino de seu Pai. O Nazareno não pensava em outra coisa, não queria mais nada, não projetou algo diferente, mas empenhou-se em cumprir a vontade de seu Pai: anunciou o Reino de Deus. Este é o centro de sua mensagem, o centro do evangelho.

Na pregação do evangelho nada poderia ter substituído este núcleo fundamental. Sem referência ao Reino, a pregação se esvazia, perde o seu sentido. Jesus não falava de outra coisa a não ser do Reino. Suas palavras e gestos tinham como finalidade explicitá-lo. Nada o desviava em sua missão. Ele a cumpriu até a morte de cruz. O Reino consiste na construção de um novo céu e uma nova terra, onde justiça e paz se abraçarão. Em todas as épocas da história cristã, a pregação do Reino sempre foi imprescindível, pois quando o tema do Reino é marginalizado, sua realidade também é.

A história mostra que durante toda a cristandade o Reino foi esquecido e em seu lugar a busca pelo poder absorveu a Igreja, transformando-a em uma das instituições mais poderosas do mundo. Jesus revelou que a construção do Reino não passa pelo poder, mas pelo oposto: manifesta-se e acontece entre os pobres, os despossuídos deste mundo, o sem-poder.

O Reino de Deus e a Igreja

            Quando se entregou à luta pelo poder, a Igreja se esqueceu do evangelho e uma vez esquecendo-se deste, simultaneamente, o Reino foi marginalizado. Como ocorreu essa marginalização? Aconteceu com o esquecimento dos pobres e suas causas. Aliada aos poderosos, reis e príncipes, a hierarquia da Igreja não pregava o evangelho, mas legitimava os poderosos e seus projetos ambiciosos de exploração.  

Aos pobres eram dirigidas palavras de conformação. “Deus criou os ricos e os pobres: os primeiros para serem felizes, os pobres para sofrerem, servindo aqueles”: esta foi a ideologia dominante que fundamentava os sermões eclesiásticos em tempos imperiais. Jesus de Nazaré pregou o oposto disso.  

Durante toda a cristandade, com exceção de um Francisco de Assis, de um São Vicente de Paulo e alguns outros, os pobres foram meros destinatários de uma pregação vazia e de uma caridade legitimadora da escravidão. A caridade que não tem a justiça como fundamento é legitimadora de toda espécie de escravidão. Os poderosos sempre se interessaram em ajudar a Igreja a praticar este tipo de caridade para com os pobres. Alimentava-se uma Igreja da servidão com raríssimos sinais de libertação.

A teologia do sofrimento se sobressaiu e o povo passou a celebrar com mais vigor a Sexta-feira da Paixão que o Domingo da Ressurreição. Este mesmo povo passou a achar normal a íntima relação entre o clero e os poderosos. Os padres e bispos passaram a ser vistos como homens do poder, autoridades a serem obedecidas e veneradas. Como toda autoridade vive num patamar superior, então o clero sempre esteve distante do povo. Até hoje é assim: bispos e padres, salvo exceções, só se encontram com o povo na celebração dos sacramentos. Fora disso, cada um vai cuidar de sua vida! Jesus viveu de maneira totalmente diferente: era um leigo que vivia no meio do povo simples, levando uma vida despojada, distante da classe sacerdotal.

Nas cidades interioranas, nas festas dos padroeiros, o lugar do padre é ao lado do prefeito; nas capitais, o lugar do bispo é ao lado do governador. O povo possui esse esquema na mente e sabe muito bem como funciona. Para o povo, a Igreja é rica. O clero sempre se concebeu como detentor do poder espiritual, numa luta constante para submeter a seus caprichos o poder temporal. Com a queda das monarquias e com o Concílio Vaticano II, esta realidade diminuiu, mas ainda há fortes resquícios dela em toda a Igreja, principalmente nos países que foram vítimas do colonialismo.

Não há lugar para sequer pensar no Reino de Deus em uma Igreja absorvida pela sede de poder. O problema do poder continua sendo um dos males que afetam a vida da Igreja. O Reino acontece quando o poder se coloca a serviço da transformação da humanidade. Transformar o poder em serviço é o problema que parece sem solução. Esta transformação acontece, em primeiro lugar, a partir de uma mudança de mentalidade. É preciso repensar os esquemas mentais para, em seguida, haver mudanças na forma de agir no mundo. O Reino de Deus começa a acontecer na Igreja quando esta começa a agir conforme o evangelho de Jesus.

            A partir do Vaticano II se concebeu a ideia de que a Igreja é instrumento a serviço do Reino de Deus. O que isto significa? Há pobres lutando pela terra para nela viver e trabalhar? Lá é o lugar da Igreja! Há desempregados padecendo com suas famílias? Lá é o lugar da Igreja! Há pessoas morrendo de fome nas avenidas, ruas e vielas? Lá é o lugar da Igreja! Há índios sendo expulsos de suas terras? Lá é o lugar da Igreja! Há prostitutas sendo exploradas e violentadas? Lá é o lugar da Igreja! Há homossexuais sendo discriminados, juntamente com negros e outras vítimas da discriminação? Lá é o lugar da Igreja! Há pobres sem moradia, sem assistência médica, abandonados nos leitos dos hospitais e em suas casas? Lá é o lugar da Igreja! Há mulheres lutando pela igualdade de gênero? Lá é o lugar da Igreja! Há camponeses sendo explorados nas fazendas dos ricos? Lá é o lugar da Igreja! Há idosos sendo desrespeitados em seus direitos? Lá é o lugar da Igreja! Estes e tantos outros lugares constituem a messe do Senhor, os lugares de encontro com o Cristo crucificado.  

Quem é a Igreja? A Igreja é o Povo de Deus, o conjunto de leigos e ordenados. Juntos, todos são chamados ao encontro com Jesus que acontece nestes lugares mencionados. Nestes lugares acontece o Reino de Deus. Neles se celebra, de fato, o verdadeiro culto que agrada a Deus. Quando vai a estes lugares de encontro com Jesus, a Igreja passa a ser perseguida pelos poderosos porque se transforma em instrumento de profecia, de denúncia e anúncio. Transforma-se em pedra de tropeço no caminho dos poderosos.

Somente assim pode ser reconhecidamente missionária, advogada dos pobres, peregrina rumo ao Pai. Esta Igreja militante junto aos pobres nós a chamamos de Igreja dos Pobres. Ela surgiu nos tempos apostólicos, desapareceu na cristandade e ressurgiu na América Latina com as conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979). A conferência de Aparecida quis ressuscitá-la, mas não conseguiu. O papa Francisco quer ressuscitá-la, mas não está conseguindo.

A maioria dos hierarcas até aprecia as palavras de Francisco, mas somente aprecia. Na verdade, não querem sair e partir, mas querem permanecer nos palácios e na vida tranquila, distantes do Reino de Deus; querem seguir Jesus às escondidas, para não correrem perigo algum. O Reino de Deus foi, é e continuará sendo trabalho perigoso, disponível somente para os corajosos e audaciosos, que possuem pouco amor ao próprio pescoço, entregues à conquista violenta do novo céu e da nova terra. Enquanto isso, o Espírito do Senhor está aí, procurando abrigo nos corações generosos, para colocar mulheres e homens no caminho de Jesus de Nazaré. Quem quiser ousar, acolha-o em seu coração. Somente assim, a conversão é certa e a festa vai ser bonita de ver!


Tiago de França

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A liberdade dos profetas

“Foi-me dirigida a palavra do Senhor, dizendo: ‘Antes de formar-te no ventre materno, eu te conheci; antes de saíres do seio de tua mãe, eu te consagrei e te fiz profeta das nações’” (Jr 1, 5).

            A profecia é uma vocação, um chamado de Deus. Desde o Judaísmo antigo até nossos dias, os profetas sempre existiram. Para os cristãos, além de Filho de Deus, Jesus é o profeta por excelência. Também os judeus reconheceram que Jesus era profeta, e os discípulos que desciam para Emaús, após o episódio da crucificação, disseram que se tratava de um profeta poderoso, em palavras e obras. 

Nossa reflexão será ilustrada com dois testemunhos proféticos: o testemunho de Jesus de Nazaré e o de Dom Oscar Romero, bispo católico assassinado em El Salvador, na América Central, em março de 1980. Iniciemos falando da missão do profeta e, assim, descobriremos a sua liberdade. Ao falarmos dos profetas, também estamos considerando a vocação das profetisas.

            Quando se afirma que ser profeta corresponde a uma vocação, a um chamado de Deus, isto significa que se trata de um escolhido por Deus para o exercício de uma missão específica. Portanto, o profeta vive segundo os desígnios de Deus, pautando sua vida a partir da missão que lhe é confiada por Deus. Esta missão acontece neste mundo, especialmente no meio dos pobres.  

O profeta realiza a opção divina pelos marginalizados neste mundo, opção claramente visível no testemunho das Sagradas Escrituras. Não é o profeta que escolhe aleatoriamente e/ou segundo sua vontade o lugar no qual vai realizar a sua missão, mas vai para onde Deus envia, mesmo que a vontade divina contrarie a sua própria vontade. A escolha pertence a Deus, a iniciativa sempre parte d’Ele.

            Deus chama o profeta através do clamor dos pobres. As inúmeras injustiças geram dor e sofrimento, assim como um forte grito por justiça. O povo dos pobres clama por profetas e Deus escuta seu clamor, enviando seus mensageiros. Para fazer justiça aos pobres, Deus age pela boca e pelas mãos dos profetas.  

Na boca destes se encontra a palavra transformadora de Deus, uma palavra capaz de “extirpar e destruir, devastar e derrubar, construir e plantar” (Jr 1, 10). Por meio das mãos do escolhido, o Deus e Pai dos pobres socorre as vítimas das injustiças, curando-lhes as feridas, concedendo-lhes conforto e força.

            Geralmente, as palavras do profeta são consideras duras e pessimistas. Certo dia, os discípulos de Jesus reclamaram da dureza de seu ensinamento e receberam a seguinte resposta: “Vocês também querem ir embora?” (Jo 6, 67). Esta pergunta de Jesus revela a sua liberdade. Ele era livre e não queria escravos, mas discípulos livres para fazer outros ingressarem no mesmo caminho de liberdade.  

O profeta segue o mesmo exemplo: não se prende nem submete ninguém. A vocação profética só se realiza na liberdade. Os poderosos deste mundo não conseguem deter o profeta: não conseguem corrompê-lo, pois se trata de pessoa ungida pelo Espírito do Senhor, possuindo, dessa forma, a força divina para resistir às propostas que tendem a reforçar as forças do anti-Reino.

            Esta força divina conduz o profeta na missão até as últimas consequências. A maioria alcança a coroa do martírio, outros os poderosos não dão conta de matar. Dom Helder Câmara foi um dos profetas que não chegou ao derramamento de sangue, mas viveu o martírio de maneira diferente. Também Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia – MT: foi bastante ameaçado, mas não conseguiram matá-lo. Este último, ainda vivo, é um dos maiores profetas da Igreja católica no Brasil.

            O profeta sabe dos riscos que corre. Sabe também que conta com a força de Deus. Os poderosos sabem que se trata de um homem de Deus e com os escolhidos de Deus não se brinca. Mesmo assim, os opositores do Reino de Deus não sossegam; ameaçam e fazem de tudo para eliminar os profetas porque estes incomodam e representam uma ameaça constante.

Como lutam contra a força divina, entãao não triunfam, pois sua ruína pode até ser tardia, mas é certa como o nascer do sol. O profeta está a serviço do projeto de Deus, que é a edificação de seu Reino. Os poderosos estão a serviço dos próprios projetos, alicerçados nos interesses e ambições. Antes de falarmos do testemunho de dom Oscar Romero, vamos encerrar nossas considerações a respeito da vocação profética falando do lugar da denúncia e do anúncio na vida profética.  

            O profeta é um homem da denúncia, chamado a arrancar e destruir. Esta é constituída pela revelação da realidade. O profeta fala da realidade, revelando-a, desmascarando-a. Ele sabe que os poderosos procuram deturpar a verdade. Deus concede ao profeta o dom da visão da realidade. Causa admiração e medo em muita gente a visão do profeta. “Como conseguiu enxergar isso? Será que é isto mesmo? De onde vem a perspicácia desta visão?...”: são algumas das perguntas que costumam surgir, provocadas pela ação profética.

A denúncia profética é dirigida a toda pessoa e estrutura que se opõem à edificação do Reino de Deus. Quando necessário, o profeta denuncia sua própria família e religião, assim como toda autoridade e força poderosa que explora e oprime o povo de Deus. O cristão que responde ao chamado à profecia não pode se omitir, pois sabe que a denúncia faz parte de sua vocação. Pelo batismo, todo cristão é chamado a ser profeta, mas a maioria se recusa a assumir tal vocação, deixando-se dominar pelo medo.

            O profeta é um homem do anúncio, chamado a construir e plantar. O anúncio do Reino desperta a esperança no coração dos pobres. Estes são motivados e sustentados pela esperança. Não há profecia desvinculada da esperança. Esta não se direciona à mera utopia, mas é espera ativa da plenitude do Reino.  

O profeta provoca o aparecimento de pessoas esperançosas, motivadas para o futuro, de mangas arregaçadas na labuta diária da messe do Senhor. Anuncia-se a alegria, a esperança, a justiça, o amor, a reconciliação, a solidariedade, a paz, a amizade, entre tantos outros valores. Denuncia-se, simultaneamente, a tristeza, o desespero, a injustiça, o desamor, a indiferença, o egoísmo, a violência e as intrigas, entre tantas outras forças opostas ao Reino.

            Por fim, consideremos o testemunho profético de dom Oscar Romero. Antes de ser bispo, Oscar Romero era um jovem comum do seu povo, que desejava ser padre. No seminário, um seminarista brilhante: inteligente e obediente. Ordenado, era um padre conservador, fiel à ortodoxia e obediente ao seu bispo. Gozava das qualidades necessárias para ser nomeado bispo. Foi o que aconteceu.  

Pouco tempo depois chegou a ser arcebispo de El Salvador. Tratava-se de um bispo impecável: culto, piedoso, obediente e dedicado à missão episcopal. Não representava ameaça alguma, nem às autoridades civis nem à Cúria Romana. João Paulo II era o papa da época (1980) e apreciava bispos mais obedientes que íntegros!

            Quando era arcebispo, a ditadura militar eclodiu em El Salvador. Assim como em muitos países da América Latina, as injustiças eram gritantes: os militares eliminavam impiedosamente toda pessoa que se colocava contra a ditadura: perseguições, prisões, ameaças, torturas e mortes assolavam o país.  

Inicialmente, dom Oscar Romero não enxergava a realidade e silenciava. Com o passar do tempo e com o aumento do clamor dos pobres da cidade e do campo, ele percebeu que se tratava de uma gravíssima injustiça que precisava ser denunciada com veemência. Quando escutou o clamor dos injustiçados, dom Oscar Romero se converteu ao evangelho de Jesus, tornando-se um grande profeta do Reino de Deus.

A denúncia dos crimes ditatoriais e o anúncio da justiça do Reino se tornaram o conteúdo fundamental de suas homilias. Dirigia-se aos criminosos citando nomes e situações. O povo se alegrou porque era um sinal claro da presença amorosa do Deus que não abandona seus filhos e filhas.

            O papa João Paulo II não gostou da profecia de dom Oscar Romero: advertiu-o severamente! O pobre profeta ficou escandalizado com a ordem papal de abandonar a profecia, mas não obedeceu. Preferiu obedecer ao Espírito do Senhor que o conduzia na missão. A Cúria Romana não teve tempo para tirar dom Oscar Romero do arcebispado de El Salvador, pois em março de 1980, um atirador o matou durante a celebração da Eucaristia em um hospital.  

O profeta bispo cumpriu sua missão: denunciou com ousadia e coragem a terrível ditadura que estava tirando a vida de seu povo. Denunciou também o medo e a covardia de uma Igreja omissa e aliada aos poderosos. Alcançou a coroa do martírio. Lavou as vestes no sangue do Cordeiro. Venceu a morte e ressuscitou na vida do povo de El Salvador. Seu testemunho permanece vivo para sempre porque participou da sorte de Jesus na cruz e com Ele ressuscitou.

O papa Francisco deseja reconhecer sua santidade, canonizando-o, mas ele já é considerado pelo povo de seu país e pela Igreja militante junto aos pobres, uma das maiores testemunhas da ressurreição de Jesus. É venerado como um bispo que foi, de fato, pastor do rebanho do Senhor, ao ponto de dar sua vida por suas ovelhas. Seu testemunho é uma prova de que o Espírito do Senhor faz brotar até no alto clero homens para o exercício sublime, santo, admirável e necessário da profecia na Igreja e no mundo.

Hoje, na Igreja, os profetas são poucos: isto é um claro sinal de que a fidelidade ao evangelho anda “adormecida”, quase que desaparecendo. Há muita liturgia e pouco testemunho, muito documento feito com boa vontade e pouca adesão às grandes causas do Reino de Deus. Apesar disso, discretamente, há profetas trabalhando, e são iguais às formiguinhas, sem pressa e sem chamar a atenção de ninguém. Há pouca coisa, mas algo bom está acontecendo e são poucos que enxergam e gozam da alegria que daí surge. O Reino está acontecendo, graças a Deus!


Tiago de França

sábado, 19 de julho de 2014

O Reino de Deus hoje

“O Espírito vem em socorro de nossa fraqueza” (Rm 8, 26).

            O evangelho segundo Mateus fala do Reino de Deus com Jesus contando parábolas para o povo. Nossa meditação quer acompanhar Jesus quando fala que o “reino dos céus” (Mateus usa reino dos céus e não reino de Deus, que é a mesma coisa) é como um homem que semeou boa semente no seu campo, como uma semente de mostarda que um homem semeou em seu campo e como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado (cf. Mt 13, 24 – 43).

São três parábolas para falar da realidade do reino de Deus. Há dois elementos que são comuns às três: a pequenez e o mistério que se manifesta na discrição, no silêncio, no escondido.  

            Na primeira parábola, a boa semente é semeada e o homem não sabe como ela germina. A germinação acontece no segredo. O joio também aparece como algo estranho, que não foi semeado, mas que foi colocado por um inimigo, que não queria ver a semente germinar com tranquilidade. O joio foi colocado para atrapalhar o processo de germinação da boa semente. Mais adiante, o próprio Jesus vai dizer que esta boa semente são os que pertencem ao Reino e o joio são os que pertencem ao maligno. A semente e o joio estão juntos e somente no tempo da colheita serão devidamente separados.

            Na segunda parábola, a semente é de mostarda: a menor de todas, mas que quando cresce, fica maior do que as outras plantas. Torna-se uma árvore frondosa, acolhedora dos pássaros que vem e fazem seus ninhos.

            Na terceira parábola, o Reino é comparado a uma porção de fermento colocado em três porções de farinha. O fermento faz crescer a massa e o bolo fica bonito de ver e gostoso para comer!

            Vejam a simplicidade das parábolas de Jesus. Ele as conta de propósito. Em particular, explicava aos discípulos o seu sentido e alcance. Hoje, os cristãos precisam compreender estas parábolas e contá-las com alegria e esperança. Felizes as mulheres e os homens que conseguem compreender o mistério do Reino de Deus!  

É motivo de alegria e esperança porque é a nossa salvação. O Reino acontece no desenvolvimento da história humana, história marcada por progressos e retrocessos, inclusões e exclusões, vitórias e fracassos, sofrimentos e alegrias. Aos olhos da carne, a realidade do mundo atual parece sombria e, de fato, é assustadora. Quantas mortes provocadas por tantos conflitos, quanto sofrimento!... Onde está o Reino de Deus?...

            Recentemente, o ator Wagner Moura, em um curta-metragem (espécie de pequeno filme!) levantou algumas perguntas ao Cristo Redentor, patrimônio artístico da cidade do Rio de Janeiro: ele clama pelo Cristo, querendo uma resposta diante de tanta violência e perversidade humana. A Cúria metropolitana da cidade emitiu uma espécie de censura às palavras do ator. Não o compreendeu.  

Na Bíblia e na história da Igreja, tantas mulheres e homens questionaram a Deus. Há alguns anos, o teólogo e papa Bento XVI ficou se perguntando pela presença de Deus no massacre dos judeus, vítimas do nazismo de Adolf Hitler, na primeira metade do séc. XX, na Alemanha. Somente os místicos compreendem o silêncio de Deus naquela e em tantas outras ocasiões. Não há um estudioso neste mundo que seja capaz de falar com precisão deste ensurdecedor silêncio divino. Vão ter que meditar e ousar mergulhar no mistério da presença-ausência de Deus na história para encontrarem as possíveis respostas.

            No início de nossa reflexão citamos a pequenez. Perdoem-nos os mais piedosos de todas as Igrejas cristãs, mas o que Jesus quis dizer com estas parábolas não é aquilo que escutamos falar nos templos. Na verdade, até falam do sentido das parábolas de Jesus, mas preferem ficar na superficialidade. Esta é a marca dos medrosos e dos covardes, que se recusam a experimentar na carne o encontro com a carne do Cristo Jesus.  

Este encontro é evitado pela maioria dos crentes porque se trata de um encontro difícil, doloroso e, muitas vezes, cruel. Estamos falando do encontro com a cruz de Cristo e seus crucificados. Não estamos falando do crucifixo pendurados nos pescoços de muitos, como se fosse o verdadeiro distintivo dos cristãos. Isso é modismo piedoso!

            A Igreja e todos cristãos são chamados por Jesus para compreender que o Reino aparece na história a partir dos pobres. Estes são os pequeninos de Deus, os que possuem as condições de possibilidade da autêntica compreensão do Reino. Para compreender o Reino tem que se tornar pequeno. Não estamos falamos de uma compreensão meramente intelectual, mas de uma compreensão existencial. Existir na pequenez.  

Esta existência se encontra na contramão da história de todos os tempos, pois as pessoas querem ser grandes, querem e lutam pelo poder. O ser humano quer dominar, controlar, manipular, ascender. O movimento do Reino está na direção totalmente oposta. Os que pertencem ao Reino não desejam controlar nada nem ninguém, pois sabem que não são donos nem da própria vida porque suas vidas se encontram escondidas com Cristo em Deus (mensagem paulina do mistério divino).

            Na sociedade atual, a maioria dos cristãos não segue Jesus por uma razão muito simples de entender: busca-se o poder, tanto na vida privada quanto na vida pública. Estamos em ano eleitoral, e o que a maioria dos políticos busca? O poder! Nos seminários há inúmeros jovens querendo ser padres (alguns já pensam em ser bispos!), e o que muitos procuram? O poder! Muitos jovens se encontram nos bancos das universidades públicas e privadas do país, e o que a maioria busca? O poder! O poder é o maligno que sempre dominou as diversas esferas de atuação humana.  

Quem pensar que este maligno é um espírito tentador que nos acompanha exteriormente, arrastando-nos para o fogo do inferno, está muito enganado. O demônio é o outro que abandona o projeto de Deus e se coloca nas fileiras que fortalecem as forças do anti-Reino.

Demônios são aqueles homens dominados pelo ódio, que atiram um míssil em direção a um avião com mais de 295 pessoas a bordo, causando-lhes a morte! Nas Igrejas e no mundo há muitos demônios, e alguns andam bem disfarçados de cordeiros, mas que vivem ansiosos para devorar a vida dos filhos e filhas de Deus. São consumidores insaciáveis de carnes humanas que não escaparão do juízo de Deus!

O mistério do Reino está onde ele se manifesta. Parte dele é plenamente escatológico, ou seja, somente será revelado na volta de Jesus, no fim dos tempos. Saibam todos os poderosos e seus aliados, que o Reino está acontecendo nas periferias do mundo, onde acontece a solidariedade entre os pobres.

Visualize comigo a seguinte situação verídica, ocorrida no Rio de Janeiro e veiculada pela mídia oficial: um homem, pobre e negro, se sente mal e é abandonado, propositadamente, à frente de um hospital particular. O direito fundamental à saúde lhe é assegurado na Constituição. Outros pobres olham e gritam com ele por socorro, mas enfermeiros e médicos do hospital se recusam a atendê-lo. Ali mesmo, caído e dominado pelas dores, o homem morre. Desde o diretor do hospital até os enfermeiros omissos e covardes, surgem explicações que nada resolvem nem justificam. Aquele pobre homem representa bem os que pertencem ao Reino: pequeno, desvalido, indefeso e marginalizado. Enquanto isto acontece, a Cúria metropolitana, constituída pelos representantes oficiais da religião católica, está preocupada com pseudo-ofensas feitas por um dos atores mais famosos da cinematografia brasileira.

É na solidariedade dos pequenos que o Reino surge e acontece. Qual o significo desta afirmação? Tudo é muito simples, mas difícil de aceitar! Em primeiro lugar, a hierarquia da eclesiástica (o clero) precisa realizar verdadeiramente na Igreja a opção pelos pobres. Para isto, é preciso abandonar as alianças com os ricos, principalmente com os que se utilizam de tais alianças para aumentarem seu poder. O clero precisa abandonar também a cultura dos ricos, geradora da “psicologia de príncipes”, mencionada pelo papa Francisco quando de sua vinda recentemente ao Brasil.

Em segundo lugar, rever as estruturas da Igreja através de uma corajosa reforma. Não nos referimos à mudança nos discursos, mas às necessárias transformações das estruturas da Igreja. Sem mudanças estruturais não há como optar pelos pobres. Desse modo, esta opção continuará no discurso. O clero continua sendo uma casta clerical reservada a homens formados em filosofia e teologia, homens separados da vida do povo, salvo algumas exceções de corajosos. Portanto, a mencionada conversão estrutural apontada no Documento de Aparecida é necessária, mas ainda não foi efetivada na Igreja.

Há muitos discursos bem intencionados e pouca ação no sentido da mencionada conversão. Quando esta conversão da Igreja acontecer de fato, o Reino de Deus crescerá abundantemente entre os cristãos católicos. Como o Reino não depende necessariamente da ação da Igreja para acontecer, graças à ação do Espírito do Senhor ele está acontecendo, silenciosa e discretamente, no meio do mundo. Abramos nosso coração à ação do Espírito, a fim de sermos, de fato, membros do Reino de Deus.

Tiago de França

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A liberdade no namoro

         
        Iniciamos o mês de julho falando da liberdade no mundo atual. O problema da liberdade na pós-modernidade na perspectiva cristã (cf. o artigo “A liberdade em tempos pós-modernos”, em nosso blogue COM JESUS NA CONTRAMÃO na Internet) constitui tema complexo a respeito do qual há uma literatura muito vasta, com muitos acertos e equívocos a serem considerados. Achamos por bem continuar aprofundando o tema da liberdade, referindo-o com algumas experiências humanas. A liberdade não é pura abstração, mas experiência que acontece no mundo, em meio às forças que o dominam.  

Antes da presente reflexão, já discorremos sobre a liberdade na vida mística, no artigo “A liberdade dos místicos”, que também pode ser lido em nosso blogue acima mencionado. Agora vamos falar, em linhas gerais, mas tentando atingir o núcleo de sentido do tema, sobre a liberdade na experiência afetiva do namoro. Nossa reflexão será dividida em três momentos: um possível conceito de namoro nos dias atuais, os obstáculos à liberdade no namoro e como experimentar a liberdade no namoro. Tentaremos ser o mais breve possível e, neste sentido, nos utilizaremos de expressões afirmativas claras, concisas e objetivas. Nossa reflexão quer ser uma palavra de apoio e incentivo aos jovens, a fim de que possam se abrir cada vez mais à experiência do namoro, necessária no processo de crescimento humano das pessoas.

Um possível conceito de namoro nos dias atuais

            No passado, o namoro era visto como caminho para o casamento. Era uma experiência orientada pelo compromisso. Estabeleceu-se, tradicionalmente, a ideia de que os casais devem namorar, noivar e casar. Além disso, a religião confirmava estas experiências com duas orientações consideradas quase como “dogmáticas”: considerando a Bíblia, o homem deve procurar uma mulher para, unindo-se a ela, formarem uma só carne. É o que ensina o relato bíblico do Gênesis.  

Assim, a doutrina cristã não aceita que pessoas do mesmo sexo façam a experiência do namoro, do noivado e do casamento. A respeito da questão de namoros, noivados e casamentos homoafetivos discorreremos em outro momento, para não perdermos o foco de nossa reflexão, mas esta também se dirige aos casais homoafetivos.  Uma segunda orientação tradicional é a seguinte: sexo somente depois do casamento! Ambas as orientações são duramente questionadas desde algumas décadas, principalmente após a revolução sexual de maio de 1968, ocorrida na Europa.

            As condutas afetivas que não se orientam pelos preceitos da moral sexual tradicional são consideradas condutas desviadas. Apesar das resistências, católicos e protestantes se mantém firmes: não ao sexo antes do casamento, não ao uso de preservativos, não às relações homoafetivas! E a realidade presente dentro e fora das denominações religiosas, o que diz? A realidade que muitos se recusam a enxergar é oposta ao que ensina a moral sexual tradicional: dentro e fora das Igrejas cristãs, as pessoas experimentam o sexo antes do casamento, usam os métodos anticoncepcionais e vivem experiências homoafetivas.

Então, o que dizer? O que fazer? Como sustentar uma moral que já não corresponde aos tempos pós-modernos? Pode esta moral ser revista, atualizada, relativizada, abandonada de uma vez por todas? São questões que afetam a todos, mas principalmente aos jovens. Noutra ocasião iremos discorrer a respeito da moral sexual tradicional, tema complexo que exige a nossa atenção. Retornemos ao que nos propusemos fazer neste tópico: um possível conceito de namoro em nossos dias.

            Não é nenhuma novidade a afirmação de que hoje não se namora mais como antigamente. Pais e mães ficam preocupados e escandalizados com a forma dos jovens namorarem nos dias atuais. Alguns reagem energicamente, adotando a superproteção, impedindo o que consideram situações excessivas. Outros liberam e permitem até certo ponto, para ver até onde chegam os próprios filhos. Outros, ainda, desconhecem totalmente o namoro dos filhos, não sabendo o que se passa. O fato é que há um conflito ideológico e vivencial entre gerações diferentes. Daí surge diversos tipos de violências e repressões, assim como, na maioria dos casos, muita permissividade que acarretam graves consequências para os casais de namorados, suas famílias e para a sociedade.

            “Antigamente, a gente namorava só se olhando, nem podia se tocar. Hoje em dia está essa falta de vergonha! Se a gente deixar, transam na nossa frente!” Esta é a queixa geral de muitos pais tradicionais, preocupados e escandalizados. Pais e mães mais reciclados adotam posturas bastante avançadas, preferindo que os filhos namorem dentro de casa, junto deles. Sabendo que os filhos experimentam o sexo no namoro, então permitem que o façam em casa mesmo. Estes casos ainda podem ser considerados raros. A grande maioria dos casais de namorados vive a seguinte experiência: transam, mas não falam para os pais e estes sabem que isto acontece, mas preferem não perguntar. Pais e filhos conseguem, desse modo, viver sem grandes conflitos, pois já se encontram na etapa da aceitação da realidade.

            Falar em namoro significa falar de compromisso. Esta não é uma ideia tradicional. O compromisso é inerente ao namoro, pois através dele os casais adquirem a virtude da fidelidade. Sem compromisso não há fidelidade. Esta é uma verdade inquestionável. A experiência mostra que somente os que se sentem realmente comprometidos conseguem ser fiéis. Com o passar do tempo, apareceu aquilo que podemos considerar como o oposto do namoro: o famoso “ficar”. É um ficar que não permanece!  

Na linguagem dos adolescentes e jovens atuais, há dois tipos de “ficar”: no primeiro, as pessoas somente se encontram para conversar e podem existir abraços e beijos; no segundo, acrescenta-se o ato sexual. Geralmente, transa-se com desconhecidos! Muitas vezes, as pessoas nem se recordam do nome com as quais transaram! Os métodos anticoncepcionais facilitam estas experiências momentâneas de prazer. Muitas vezes, não são utilizados! E há toda uma ideologia que induz as pessoas a pensarem e afirmarem a normalidade e a naturalidade deste tipo de experiência.

Como não há compromisso, então o número de relações sexuais e de parceiros, às vezes, chega a ser assustador! Numa linguagem simples e direta podemos afirmar categoricamente: os que procuram somente “ficar” estão à procura somente de sexo sem sentimento algum, procuram pela “carne” e não pelo coração!

            O namoro é outra coisa. Namoro é experiência a dois, é convivência e caminho de crescimento, de autoconhecimento e de conhecimento do outro. É sentir-se atraído pelo outro e abrir-se à experiência do encontro. Não se trata de mero encontro, mas daquele encontro que preza pela valorização do outro. No namoro, os casais experimentam o amor, que se desdobra na acolhida e na compreensão recíprocas, no companheirismo e na doação.  

No “ficar” não existe nada disso. No namoro há a descoberta progressiva dos sentimentos, do modo de ser outro, de suas reais intenções, de suas perspectivas para o futuro e do estabelecimento da confiança. É no namoro que os casais aprendem a virtude da confiança. Querer o bem do outro para viver a felicidade: eis o sentido da doação. Esta exige dedicação e harmonia, respeito e liberdade. Tudo isto vivenciado na reciprocidade corresponde ao autêntico namoro.

Os obstáculos à liberdade no namoro

            Uma só palavra resume com clareza e objetividade todos os obstáculos à liberdade no namoro: apego. Não me canso de afirmar algo que continua escandalizando muita gente: de modo geral, as pessoas não se amam, mas apegam-se, reciprocamente. Se pararmos para observar com atenção a situação de inúmeros casais, é isto que acontece: apegam-se de forma violenta e doentia, pensando que estão experimentando o amor. Então, qual a diferença entre o apego e o amor? A diferença é simples, o problema é que as pessoas não aceitam.

            No apego, as pessoas são possessivas e egoístas. Apoderam-se umas das outras e se sufocam. Este apoderar-se dar à luz ao ciúme. Querer o outro somente para si, como se fosse um objeto de desejo e de mera satisfação. Há certa coisificação do outro. Ter o outro na palma da mão como um objeto qualquer. Nas rodas de conversa das mulheres possessivas e egoístas a conversa gira em torno da ideia de que o homem tem que se controlado. Os homens possessivos e egoístas pensam e agem do mesmo modo.  

Mulheres e homens egoístas vivem uma relação a dois, mas pensando somente em si mesmos e nos próprios interesses. Usam do outro para o próprio benefício. São namoros de aparência, que visam somente à satisfação mesquinha dos interesses pessoais e dos próprios desejos. Usar do outro para alcançar os próprios objetivos é o segredo dos egoístas. Assim sendo, há amor nos relacionamentos marcados pelo espírito de posse do outro e pelo egoísmo? Jamais! Onde há posse e egoísmo não há amor, mas apego violento e doentio. Neste tipo de relacionamento as pessoas vivem uma violência recíproca, alicerçada num desrespeito à dignidade do outro.

            No apego há muita insegurança, um medo de perder o outro. Por que medo de perder? Porque o outro é objeto. Pessoas apegadas sentem medo de perder suas posses. Neste sentido, a perda do outro é sinônimo de desespero e de frustração, não por causa do amor, mas porque o outro não poderá ser mais objeto de satisfação e de desejo. Libertou-se!  

Na relação de casais apegados, somente há sofrimento acompanhado de algumas doses de prazeres momentâneos. Ao invés de alegria, há muita tristeza e angústia. Somente os que experimentam o amor são capazes de sentir a alegria e a felicidade. O egoísmo, a posse e os interesses tiram a alegria das pessoas. Se há sorrisos e belas fotografias, tudo não passa de aparência de felicidade. Esta continua sendo desconhecida por muitos.

            Casais inseguros vivem numa vigilância recíproca e doentia. Onde o outro está? O que anda fazendo? Será que estou sendo traído/a? A confiança morre sufocada. A expectativa da traição atormenta a mente dos casais inseguros. Não há estabilidade emotiva, mas tensão e desgaste. As trocas de acusações e o descontrole tomam conta.

Não há meios para reencontrar a unidade e a paz porque a base fundamental, aquilo que sustenta a relação não é o amor, mas o egoísmo. Quando há amor, até a morte é superada. O amor ultrapassa as fronteiras demarcadas pela morte. O amor vence a morte. Somente o amor é capaz de superar os limites de tempo e espaço. As pessoas que amam de verdade vivem no espaço e no tempo, mas os ultrapassam.

            Isto explica porque os relacionamentos duram tão pouco. Não há amor para superar os limites da personalidade. O namoro é uma experiência amorosa que acontece entre seres humanos, marcados pelas virtudes e pelas imperfeições. Somente através do amor os casais aprendem a lidar com as imperfeições e as dificuldades que surgem com o passar do tempo. Quem não aprende a superar as dificuldades jamais saberá o que significa a felicidade. Esta não é estado de perfeição, mas experiência humana.  

O que faz a maioria dos casais de namorados diante das dificuldades? Simplesmente, fracassam. São frágeis, não tem consistência, nem constância, nem perseverança. Não há esforço, recusam-se à compreensão. Na verdade, não levam a sério o sentimento do outro. Em muitos casos, este é descartado friamente. Quando há amor, o outro é pessoa e nenhuma pessoa pode ser descartada. Pessoa é projeto de vida, possui dignidade. Quando há apego, o outro é passível de manipulação. Não há sentimentos profundos. Assim, pode ser descartado, passando para as memórias amargas da existência particular.

            Quem ama nunca perde tempo na vida. Não há tempo perdido no amor. Perde o tempo e as energias aqueles que se apegam. Estes se desgastam e são infelizes. A vida é única e irrepetível, portanto, quem ama está ganhando a vida, está crescendo, está descobrindo-se, tornando-se cada vez mais pessoa. Os que se entregam ao apego tornam a vida amarga, pesada, tediosa, fria, sem sentido, vazia. 

A cegueira que toma conta de suas vidas é tão violenta que são incapazes de enxergar o abismo em que estão submetidas. Desconhecem a alegria, a leveza da vida e a felicidade. Até desejam ser felizes, mas não tem coragem. Preferem a mesquinhez, o isolamento no mundinho da ilusão e da mentira. E a liberdade? Está longe, é coisa de outro mundo. Pessoas egoístas tem medo da liberdade, pois preferem sobreviver no apego de si mesmas e dos outros. Experimentam a egolatria (autoadoração) e a idolatria (criam ídolos para si mesmos, a fim de sobreviverem à infelicidade).

Como experimentar a liberdade no namoro

            O tópico anterior revela o caminho da liberdade: o desapego. Este último tópico é o mais simples de todos porque a liberdade é simples de se viver. É um desafio possível. Sem desapego não há liberdade. Os casais de namorados são chamados à liberdade, e esta só lhes será possível se abraçarem o caminho do desapego. Como isto acontece? É simples, basta querer. Despojar-se de ambições desmedidas, de interesses mesquinhos, da pretensão de transformar o outro em objeto de desejo e satisfação. Este é o caminho. Caso seja abraçado pelos casais, muitos conflitos deixarão de existir.  

Não haverá necessidade da mentira, da falsidade nem da ilusão. O apego gera desilusão porque os casais apegados vivem na ilusão e não no amor. O amor não ilude ninguém, pois é verdadeiro e libertador. Desapegar-se de si próprio, das manias de grandeza (achar-se e querer ser mais importante demais em relação aos outros) e das próprias imagens para viver a autenticidade. Geralmente, as pessoas fazem uma imagem de si mesmas e procuram vendê-la nos mercados da vida.

Quem se apaixona por tais imagens encontrará a desilusão e a frustração porque a verdade da pessoa vai se revelando aos poucos. Ser verdadeiro é isto: buscar ser aquilo que se é, sem máscaras, na verdade e na liberdade. Infelizmente, o que ocorre na realidade atual é que as pessoas falsas e mentirosas são mais bem aceitas do que as que procuram ser autênticas. A mentira anda tomando espaços assustadores na vida dos seres humanos e estes se acostumam à mentira; facilmente transformam mentiras em verdades. Para não ser mentira, a verdade precisa corresponder à realidade. O grande desafio é enxergar a realidade. Quem não enxerga a realidade não conhece a verdade. Como se vê, tudo é muito simples.

            Por fim, consideremos uma última questão pertinente à vida dos casais de namorados: E o sexo, pode antes do casamento? Certamente, os católicos mais tradicionais não concordarão com nosso posicionamento, mas cada um é livre para concordar ou não. Vale a liberdade de pensamento e de expressão a respeito desta e de todas as questões.  

Considerando a realidade na qual vivem os casais de namorados em nossos dias, somos contrários à insistência das Igrejas. O mais importante na vida amorosa dos casais não é a relação sexual. A Igreja católica, mais do que as demais Igrejas, tende a dar ênfase excessiva à proibição da relação sexual, deixando de lado outros aspectos importantes na vida destes casais. A relação sexual não é o absoluto do relacionamento, apesar da tendência de muitos casais jovens caírem nesta perigosa tentação de absolutização do sexo.

            Desse modo, quando um casal de namorados vive uma relação estável, pautada no amor, no respeito, na amizade e na liberdade, a relação sexual não é nenhum problema, ou pecado. Este casal não está namorando em vista da relação sexual, mas esta ocorre naturalmente, sem pressões, sem violência, com respeito e liberdade. Quando as relações sexuais se transformam no objetivo do namoro, o casal logo desiste da relação porque cai num vazio inevitável. O ser humano vive somente de sexo!  

O ato sexual, criado por Deus, está para a felicidade das pessoas. Nas relações estáveis e sadias, não é ato imoral porque não se trata do ato pelo ato, mas da entrega harmoniosa e fecunda de corpos envolvidos por um sentimento que é pura vida e liberdade. Aí, sim, a relação sexual é legítima e em muitos casos necessária. Nas Igrejas, muitos jovens preferem adiar a relação sexual para depois da cerimônia nupcial. Trata-se de uma escolha. Quando não é escolha, é imposição. Adiar a relação sexual, reprimindo violentamente os desejos somente em função da obediência à orientação da moral sexual estabelecida pelas Igrejas não é liberdade, e não faz bem a ninguém. Não sendo liberdade, não é castidade, mas escravidão.

A radical proibição gera efeitos opostos ao ensinamento central da moral sexual. As Igrejas dizem não e os jovens dizem sim! O caminho é o da moderação e do diálogo, pois o ser humano não dar conta de proibições radicais, principalmente em matéria sexual. E quando estudamos a moral sexual das Igrejas e observamos o testemunho de muitos de seus membros, tudo resulta em moralismo. A contradição entre doutrina e prática causa descrédito e os jovens enxergam muito bem tal contradição. O moralismo é imoral (na maioria dos casos esconde práticas imorais) e causa imoralidade! É o que vemos acontecer no seio das Igrejas e da sociedade hodierna. A religião deve ser um instrumento de libertação integral da juventude e não de repressão de seus desejos e sonhos.


Tiago de França