“Deus
não chama para fazer esta ou aquela coisa, realizar tal ou qual projeto: chama
para a liberdade” (José Comblin, profeta da liberdade).
Após alguns dias de silêncio, meditação e descanso,
queremos retomar a partilha de nossas humildes reflexões. Nestes dias de copa
do mundo certamente esta reflexão será lida por poucos. Os brasileiros estão
conectados ao mundial de futebol. Seus corações estão tomados pelas emoções das
imagens e pelo sensacionalismo midiático. O futebol é uma paixão nacional, e
como toda paixão, cega a visão das pessoas em relação aos demais acontecimentos
que se desdobram no mundo.
Vamos iniciar o mês de julho, das férias escolares,
falando da liberdade das mulheres e dos homens pós-modernos. É um tema difícil
porque a realidade está cada vez mais complexa. A complexidade de todas as
coisas torna o discernimento uma atividade árdua, experimentada por poucos.
Discernir significa apurar, analisar, meditar, contemplar a complexidade da
vida. Não há liberdade sem discernimento. Eis aqui uma primeira constatação:
atualmente, as pessoas pensam que são livres sem discernimento algum. Vivem na
ilusão pensando que são livres!
O que é a liberdade? Podemos pensá-la a partir de vários
ângulos e pontos de vista. Nossa reflexão não terá como fundamentação ou
horizonte de sentido a liberdade dos filósofos. No séc. XX se destacou o grande
pensador francês Jean-Paul Sartre, que abordou exaustivamente o tema da
liberdade, mas o conceito de liberdade de Sartre não serve para nós, pois ele
se debruçou sobre o tema na perspectiva conceitual. Em outras palavras, a
liberdade pensada por Sartre é puramente metafísica e nesta tudo é pura
abstração. Os pensadores modernos criaram a metafísica clássica e não deram
conta de explicar todos os fenômenos. Esqueceram-se da realidade. Por isso,
vamos pensar brevemente a liberdade na perspectiva da fé cristã, considerando o
mundo como o palco onde as pessoas conquistam a liberdade.
A vida humana não é abstrata, abstrato é o pensamento
humano. A liberdade não acontece no pensamento, mas na vida; exige condições
práticas para existir. A existência é prática, concreta, visivelmente fática.
Claro que a liberdade passa pela mudança de mentalidade, mas para que isto
aconteça o discernimento da facticidade da vida é imprescindível. O pensamento
por si mesmo não gera pessoas livres. A união da maneira de pensar e ver a vida
com as condições práticas geram pessoas livres. Neste sentido, a liberdade
acontece nas circunstâncias da vida. A sucessão dos acontecimentos vai
oferecendo as oportunidades para as pessoas irem se libertando ou se
escravizando.
Do ponto de vista da fé cristã, a liberdade é dom de Deus
e conquista. É dom porque é vocação, chamado de Deus. Deus chama para a
liberdade, deseja que seus filhos e filhas sejam pessoas livres. Este chamado é
uma graça divina porque somente sendo livres as pessoas conseguem fazer a
vontade de Deus. A vontade de Deus é a liberdade do ser humano. Somente na
liberdade as pessoas conseguem responder ao chamado divino. A liberdade como
dom divino revela que Deus renuncia ao controle de todas as coisas. Deus é
livre, não controla nada nem ninguém. Quando criou todas as coisas, Deus
apostou nos riscos da liberdade. A liberdade é o risco total. Considerando a
imutabilidade divina, jamais Deus vai voltar atrás na sua aposta. Se o fizesse,
seria uma contradição consigo mesmo. Ele permite todas as coisas, quer seja
boas, quer sejam más. O ser humano é livre até para voltar-se contra Deus,
desobedecendo-o e até negando-o.
Enquanto conquista, a liberdade é construção. Toda pessoa
é chamada a construir a sua personalidade. Esta é uma realidade única e
irrepetível, um “eu” consistente, ativo, fonte de energia e de ação. Cada
pessoa é chamada a fazer-se por si próprio. Trata-se de uma responsabilidade
pessoal, que não pode ser transferida. Com os demais, a conquista da liberdade
é um desafio possível e inadiável. Quem não se interessa em se libertar corre o
risco de perder o melhor da vida, perde a oportunidade de ser verdadeiramente
feliz, de experimentar a vida como ela é. A verdadeira vida é liberdade,
somente acontece na liberdade. Quem não procura ser livre pensa que vive, mas
na verdade passa pela vida. Infelizmente, cresce assustadoramente o número das
pessoas que nasceram, cresceram e ainda não sabem o que significa viver, não
conhecem a vida.
A liberdade acontece no tempo e no espaço. Estas são as
condições da vida das quais ninguém escapa. A transitoriedade da vida é fato
inegável. Quer queiramos, quer não, o tempo passa e somos sujeitos de sua ação.
O tempo não espera por ninguém e precisamos aprender a lidar com o tempo da
vida. O tempo nos recorda que tudo é imprevisível. Daí nasce a novidade.
Ninguém conhece o que o futuro reserva. Ninguém sabe se terá futuro. A qualquer
momento podemos deixar de existir. A liberdade acontece na transitoriedade de
todas as coisas. Neste sentido, a decisão mais acertada é a de que precisamos
iniciar desde já o árduo trabalho da libertação pessoal. Somente as pessoas que
buscam a liberdade reconhecem e aceitam a verdade de que todas as coisas
passam, de que tudo é transitório.
A vida acontece no espaço. Toda pessoa ocupa um espaço,
procura seu lugar no mundo. Mesmo aquelas que não procuram, vivem em algum
lugar e este determina, condiciona, limita. O ser humano é chamado ao infinito
no finito. Não podemos todas as coisas. O espaço nos recorda que vivemos sob
determinadas condições e limites. Portanto, somos chamados a nos convencer da
necessidade de aceitarmos as condições e limites da existência. Podemos desejar
e sonhar alto, mas pisando o chão dos limites da existência.
A
aceitação do lugar, da família, das próprias tendências e inclinações, da
constituição física e temperamental e dos demais limites da vida nos concede a
graça da reconciliação e da paz. A liberdade acontece quando a pessoa se
reconcilia com os limites impostos pela condição de ser humano. Isto não
significa conformismo nem estagnação, mas reconhecimento e humildade perante os
fatos e circunstâncias nos quais a pessoa percebe com clareza que nada pode
fazer. Tal reconciliação previne a pessoa do espírito da revolta e da
frustração.
Os
estudiosos falam que estamos na pós-modernidade. Há uma calorosa discussão
conceitual que não nos interessa mencionar no momento. Em linhas gerais, vamos
citar os obstáculos à liberdade em nossos dias. O que impede o homem
pós-moderno de conquistar a liberdade? Qual o conceito de liberdade dos
pós-modernos? Eis uma afirmação radical a respeito da qual iremos discorrer: mais
do que em outras épocas, nunca se falou tanto de liberdade como atualmente;
simultaneamente, nunca se viu tanta gente escrava e/ou oprimida.
Os
pós-modernos afirmam categoricamente: pessoa livre é aquela que faz o que quer
da sua vida. Esta é a ideologia pós-moderna: aquele que não faz o que quer da
sua vida é um retrógrado e um escravo. Contaminados com esta ideia, mulheres e
homens passam a viver descontroladamente, cometendo absurdos em nome da
liberdade. Os que se entregam à libertinagem são considerados livres. Os
moderados não passam de bobos e ultrapassados. A esperteza é a virtude dos
pós-modernos.
Com a pós-modernidade veio a globalização. Antes da
modernidade, os povos medievais eram considerados alienados, mergulhados no
mundo das trevas. A Igreja católica governava o mundo, juntamente com os
imperadores, reis e príncipes. Todos viviam na uniformidade, ou seja, pensavam
e viviam do mesmo modo. Os modernos inauguraram um novo mundo, o mundo da
ciência e da técnica. Estas trouxeram inúmeras novidades, fazendo surgir a
diversidade. A uniformidade medieval foi tão forte que até os dias atuais as
pessoas ainda não conseguem dar conta da diversidade. Ser diferente ainda
continua sendo estranho, anormal.
A
globalização é matéria curiosa: de um lado, faz chegar a todo o mundo as
novidades da vida pós-moderna, os frutos dos avanços científicos e
tecnológicos; e, por outro lado, induz as pessoas à uniformidade. Em todo o
mundo as pessoas tendem a fazer as mesmas coisas: todos tomam Coca-Cola, todos
comem os sanduíches do McDonalds, todos aderem aos modelos de roupas, calçados,
joias, computadores, carros que “estão na moda”, todos procuram o mundo virtual
da rede mundial de computadores (Internet), e assim por diante. As culturas e
os costumes dos povos vão sendo abafadas e eliminadas pelo fenômeno
incontrolável da globalização. Quem não adere à cultura pós-moderna é excluído,
fica de fora, transforma-se em uma espécie de ser invisível e é esquecido pela
maioria.
A
mídia é a grande responsável pela propaganda das mercadorias produzidas pelo
mercado. Este convence as pessoas de que precisam consumir. Por sinal, ser
consumidor virou moda. As pessoas vão ao comércio, aos shoppings e saem dos
mesmos com a sensação de felicidade; saem sorridentes com as sacolas cheias de
produtos muitas vezes desnecessários, procurados por quem se deixou contaminar
pelo vírus do consumismo. Estranha é a pessoa que consume pouco, que procura
viver sem as coisas supérfluas produzidas pelo mercado. Quem não faz uso das marcas
famosas está fora da moda, é ultrapassado. Para serem aceitas, reconhecidas e
se sentirem bem, as pessoas procuram adquirir o que todo mundo adquire. É a
uniformidade dominando a grande massa de seres humanos, uma massa que se recusa
a pensar por si mesma.
Infelizmente,
os jovens são as maiores vítimas do sistema, são os mais vulneráveis. De modo
geral, os jovens de hoje não pensam na vida. Esta falta do pensar é um mal da
pós-modernidade. Não se pensa nas consequências daquilo que se faz no mundo. A
desorientação e a dispersão tomam conta das pessoas. Há uma forte resistência
ao pensar. As pessoas que param para analisar a realidade logo percebem as
ideologias e as mentiram que dominam as pessoas, as instituições e a sociedade
como um todo.
A
dominação do pensamento é quase total. Poucas são as pessoas que pensam por si
mesmas. Algumas pensam que estão sendo autônomas na maneira de pensar, mas na
verdade estão seguramente controladas pelas ideologias do sistema. A TV e a
Internet são os meios eficazes para a propagação das ideologias. Tudo é
elaborado e oferecido às pessoas, de modo que estas se convencem de que tudo é
verdade. Como estão dominadas pela preguiça mental, grave pecado do mundo
pós-moderno, tudo é assimilado sem questionamentos.
Os
jovens são os maiores consumidores. O mercado pensa especialmente neles, produz
muita mercadoria. A maneira de vestir e calçar, as bebidas e as comidas, as
músicas, os jogos, as redes sociais, a maneira “certa” de se relacionar na
amizade e no namoro, e os demais produtos são pensados em vista do controle. As
ideologias cuidam do controle do pensamento. São pouquíssimos os jovens que
escapam da dominação da consciência operada pelo sistema. Valores como amor, verdade,
responsabilidade, cooperativismo, solidariedade, acolhida, perdão,
sensibilidade e tantos outros que fundamentam a construção de uma personalidade
equilibrada e saudável são deixados de lado.
Quais
as consequências de tudo isso? As consequências são inúmeras: cresce cada vez
mais o número de pessoas superficiais, que cuidam somente da aparência,
desprovidas de conteúdo. Pessoas desprovidas dos valores acima mencionados não
conseguem conquistar a liberdade. São criadoras de um mundo no qual a
indiferença se transforma na regra dominante do comportamento. O sistema gera
pessoas infantis e irresponsáveis, mesquinhas e egoístas, individualistas e
materialistas, frias e indiferentes, covardes e omissas, preguiçosas e sem
perspectiva de futuro, ambiciosas e arrogantes, maliciosas e mentirosas,
insensíveis, imediatistas e ingratas. O mundo pós-moderno é cheio dessas
pessoas. Tais características se tornaram tão normais, que a maioria fica
admirada diante do testemunho de pessoas honestas e generosas, sensíveis e
solidárias, autênticas e adultas. Os valores estão se tornando escassos como a
chuva no deserto.
Tudo
isso mostra claramente a situação da mulher e do homem pós-modernos. São
visíveis as diversas formas de apego que geram sofrimento e escravidão. Em meio
a tanto apego há quem pense que é feliz. É visível que os pós-modernos não
conhecem o que é a liberdade e a felicidade. Vivem na ilusão. Algumas pessoas
sabem que são escravas, controladas pela mentira e pela superficialidade, mas
preferem continuar na escravidão. Não querem se libertar. Não querem enxergar. Não
querem acordar. Estão adormecidas e cegas, e acham que é melhor viver assim. Desse
modo, podemos afirmar categoricamente o seguinte: o maior obstáculo à liberdade
é não querer se libertar.
Se
a pessoa não quer, então não se pode fazer nada. De modo geral, aquele que não
quer se libertar adotam a vitimização, ou seja, apresentam-se como vítimas,
como “coitadinhos”, reclamando atenção, bajulação e tolerância. Neste sentido,
quanto mais estas pessoas são bajuladas no seu comodismo e conformismo, mais se
transformam em seres humanos incapazes, infantis, infelizes e insuportáveis. Nunca
ganham autonomia e procuram viver eternamente numa dependência doentia. É
verdade que precisamos das demais pessoas para a conquista da liberdade, mas é
verdade também que toda espécie de dependência doentia tende a se perpetuar. Quando
não buscam conquistar a liberdade, não conseguem caminhar com as próprias
pernas. Quando adultas, são infantis e irresponsáveis, mesquinhas, inseguras e
dengosas.
Por
fim, consideremos a seguinte indagação: o que fazer para conquistar a
liberdade? Iniciamos a nossa reflexão mencionando a importância do
reconhecimento e da aceitação. O reconhecimento está ligado à visão. A pessoa
precisa enxergar a realidade da própria vida. A aceitação se refere à
humildade. Aceitar que é preciso se libertar, que é preciso crescer, progredir,
amadurecer, tornar-se adulto, tornar-se realmente pessoa. Isto não acontece de
repente, do dia para a noite. A liberdade exige conversão, mudança de vida;
exige decisão e atitudes concretas. Trata-se de um processo lento e doloroso,
que exige determinação e perseverança.
Há
pessoas que desejam ser livres, mas não decidem, não tomam nenhuma iniciativa,
não saem do lugar. A preguiça e o medo de caminhar as dominam. Há as que se
acostumaram com a escravidão. Colocaram na cabeça e assimilaram com próprio ser
o espírito de escravidão. Não querem se libertar nem aceitam a ajuda de
ninguém. Algumas aparentam ser livres, levando uma vida “normal”, mas
interiormente estão dominadas e destruídas, cheias de sentimentos e pensamentos
que as levam para a morte. Para elas, a morte não pode ser tardia, deve
acontecer o quanto antes, para dar um basta a tanto sofrimento. São pessoas que
vivem porque nasceram, mas não gostam da vida. Por mais que procurem fugir,
entregando-se a prazeres momentâneos, a realidade da escravidão as persegue,
conferindo-lhes angústia e tédio.
Foi
para a liberdade que Cristo nos libertou, ensina-nos o apóstolo Paulo, na sua
Carta aos Gálatas. Esta libertação é graça de Deus que acontece na caminhada
das pessoas. É preciso caminhar com alegria e disponibilidade rumo à liberdade
plena, alegria dos filhos e filhas de Deus, no Reino definitivo. Esta é a
espiritualidade cristã, que nos faz peregrinos no caminho de Jesus de Nazaré.
Tiago
de França
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