sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Algumas considerações sobre a entrevista do frei Clodovis Boff à Adital

        A Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (ADITAL), publicou, no dia 08 do corrente mês, uma entrevista com o religioso e teólogo da Ordem dos Servos de Maria, frei Clodovis Boff. Este foi entrevistado pela jornalista daquela agência, Natasha Pitts. A Teologia da Libertação (TdL) foi o conteúdo da entrevista. Em artigo publicado no dia 16 de agosto de 2008, o entrevistado já tinha manifestado o que desta vez fez questão de repetir. Oportunamente, com artigo intitulado “As estranhas acusações de Clodovis Boff”, em 29 de dezembro de 2008, o teólogo José Combin (in memoriam) fez algumas considerações a respeito do artigo do frei Clodovis Boff.  

Não sou nem preciso ser um teólogo, profissionalmente falando, para fazer e publicar minhas considerações sobre a mencionada entrevista. Na qualidade de cristão que procuro ser, e de leitor assíduo de numerosas obras teológicas de muitos dos chamados teólogos da libertação, especialmente da obra de José Comblin, que considero uma das mais densas e exigentes, ouso escrever sobre alguns pontos abordados na entrevista. Neste sentido, convido o leitor a entrar no portal da agência e fazer leitura prévia da entrevista, antes de se debruçar sobre minhas humildes considerações.

            A entrevista é curta, mas traz algumas acusações graves, que precisam ser lidas com atenção, paciência e espírito de caridade. A falta de caridade é o grande pecado de muitos teólogos, e o frei Clodovis Boff a deixou de lado, desde que iniciou a publicação de suas reservas à TdL. Faltou com a caridade não somente com importantes colegas desta corrente teológica, mas também com os pobres que se prejudicam quando a Igreja deixa de lado a opção pelos pobres, tema central da TdL.

            Falar em prescrição histórica da TdL é um equívoco simples de esclarecer. Quando foi que se começou a falar de Teologia da Libertação? Institucionalmente, esta teologia não existe. O que existem são pessoas que refletem, à luz da fé cristã explicitada no evangelho de Jesus, o Cristo, a situação dos pobres e excluídos no mundo e na Igreja. Ainda existem pobres e excluídos? Desapareceram as grandes causas do Reino de Deus? A Igreja fez a opção pelos pobres? A realidade responde negativamente. Se o processo de libertação integral do ser humano continua vivo na história, a TdL tem muito que refletir e colaborar na missão da Igreja. Declarar a extinção da TdL na Igreja é não ter visão histórica do passado recente e do presente, ou fazer-se, ironicamente, de desentendido.

            Eis uma afirmação que não tem nenhuma base histórica: A opção preferencial pelos pobres sempre foi uma riqueza da Igreja. Sinceramente, não sei como o frei Clodovis Boff conseguiu afirmar isso. O que a história do cristianismo mostra são casos isolados de opção pelos pobres: São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Dom Luciano Mendes de Almeida, Ir. Dorothy Stang, Ir. Lindalva Justo de Oliveira, entre outras testemunhas do Cristo ressuscitado.  

Historicamente, a opção pelos pobres nunca foi a riqueza da Igreja. Se assim fosse, teríamos uma Igreja plenamente sintonizada com a Boa Notícia de Jesus. Na verdade, a Igreja ainda não conseguiu fazer esta desafiadora opção, exceto no discurso oficial.

            A TdL é uma teologia que incomoda por vários motivos, dentre os quais podemos destacar dois: primeiro, porque não está em função da instituição Igreja. Nesta, a TdL é um apelo permanente à conversão. Surgiu após o Vaticano II, inaugurada por Gustavo Gutiérrez e outros, para conscientizar a Igreja de sua missão no mundo. Em carta endereçada aos bispos do Brasil, o Papa João Paulo II, o pontífice que mais perseguiu e condenou teólogos da libertação, afirmou que tal corrente teológica é “oportuna, útil e necessária”, mas a mesma não está preocupada com reconhecimento oficial.

A TdL não existe para fortalecer a influência da Igreja no mundo, nem para reforçar o poder do clero nas comunidades cristãs católicas, mas para recordar e fazer valer a opção de Jesus, que é a opção pelos pobres. Não é uma teologia de legitimação do aparato institucional eclesiástico. Segundo, porque ao reconhecer o lugar do pobre na teologia e na Igreja, simultaneamente, denuncia as infidelidades e abusos cometidos pela instituição. Neste sentido, podemos encontrar inúmeros profetas e profetisas no seio da TdL.

            Por outro lado, na teologia tradicional, que está agonizando, a situação se parece com um paciente em estado terminal numa unidade de terapia intensiva. Na teologia tradicional praticamente não existe novidade. Trata-se, em muitos aspectos, de um discurso repetitivo e ultrapassado. Afirma as antigas verdades fundamentais da fé de forma cansativa, tediosa e sem futuro.  

Por que a chamada nova evangelização não acontece na Igreja? Porque nas faculdades de teologia se ensina uma teologia que praticamente não tem condições de falar nada de novo para o homem pós-moderno. Nela, o evangelho de Jesus não ocupa o centro. Repetem-se, infinitamente, dogmas e verdades fechadas, praticamente impassíveis de discussão.

Na liturgia, os ministros repetem, anualmente, as mesmas coisas, os mesmos conceitos. A Congregação para a Doutrina da Fé, ao invés de auxiliar na atualização teológica, apresenta-se como o órgão fiscalizador e punitivo. Desse modo, a teologia tradicional não consegue dialogar com a pós-modernidade, preferindo ficar na desconfiança de todas as coisas.  

            Afirmar que a TdL padece pela ausência de rigor teórico é dar um tiro no próprio pé. A leitura da tese doutoral do frei Clodovis Boff, intitulada “Teologia e prática”, me parece bastante rigorosa, mas o teólogo parece que se arrependeu de tê-la escrito. Quem realmente faz uma leitura atenta da produção teológica de teólogos como Leonardo Boff, José Comblin, Jon Sobrino, Pablo Richard, Juan Luis Segundo, Ivone Gebara, entre tantos outros e outras, não tem nenhuma dificuldade de enxergar uma nítida e admirável sistematização teológica. A metodologia é explicitamente clara!

             A priorização do político às expensas da fé é outra afirmação grave feita à TdL. Existe alguma teologia apolítica? Há cristianismo apolítico? A Igreja católica não faz política? Jesus de Nazaré, humanamente falando, foi apolítico? Estranhamente, qualquer indução de quem quer que seja para se pensar a fé separada da política é absurda.  A política é, essencialmente, ideológica.

Na Igreja encontramos ideologias. A Igreja sempre praticou política, mas uma política de direita, como afirmou recentemente Leonardo Boff ao periódico El País, na Espanha. A fé cristã se manifesta na e por meio da política. O que a Igreja não não deveria ter sido feito e fez durante séculos foi a partidarização da política em detrimento dos pobres, e a teologia tradicional ajudou, desgraçadamente, a legitimar isso. Se a TdL peca não pela politização do evangelho, mas pela explicitação clara e objetiva do aspecto político da mensagem cristã, então este pecado é evangelicamente necessário.  

            O aspecto político da mensagem cristã nunca é transitório, mas permanente. Hoje, mais do que nunca, reconhecemos a politicidade da condição humana na vida social. A própria Igreja reconhece em seus documentos a necessidade da ação cristã na e por meio da política. Desta ninguém escapa, pois é necessária para o autêntico progresso da humanidade. O ser humano está padecendo em todo o mundo por causa da corrupção política. O Oriente Médio é uma das provas atuais e gritantes disso. Em si, o evangelho não é uma ideologia, mas a ação da instituição Igreja no mundo acontece também por meio de ideologias. A história mostra com clareza a adesão da Igreja às ideologias dominantes, que sempre tenderam à exploração humana, principalmente dos pobres.

            Em nenhum momento, os teólogos da TdL ousaram colocar os pobres no lugar de Jesus de Nazaré. Não existe a “pobrelogia” (expressão de José Comblin, em seu artigo). Esta é a acusação mais grave do frei Clodovis Boff. Não precisamos discutir sobre o fato de que Jesus, o Cristo, é Filho de Deus e Senhor da Igreja. Toda teologia afirma isso. Ninguém discorda disso.  

Caso a TdL tivesse afirmado em algum momento que os pobres ocupam o lugar de Jesus e são os Senhores da Igreja, de fato, não seria uma teologia genuína e plenamente cristã, não iniciaria nem acabaria no horizonte da fé. Se assim fosse, os teólogos da libertação não seriam cristãos, nem teólogos. A TdL foi a única teologia que teve a coragem de reconhecer o lugar do pobre na vida eclesial e no discurso teológico, e mais do que isso, levou a Igreja, em muitos lugares e circunstâncias, a se encontrar com os pobres. Estes se tornaram um dos lugares de encontro com Jesus de Nazaré.

            Na entrevista, aparecem as expressões “princípios perenes da fé” e “horizonte transcendente da fé”. Na teologia tradicional, tais expressões cheiram a pura abstração. Princípios sem contexto e transcendência sem imanência de nada valem. Na Igreja pré-conciliar, muito antes do aparecimento da TdL, a profissão de fé era meramente abstrata.  

A evangelização consistia na mera transmissão das verdades fundamentais da fé, sem praticamente nenhuma incidência na prática cotidiana da vida. Até os dias de hoje, a maioria dos católicos não compreende o credo que professa. Decoraram-no e repetem-no automaticamente nas celebrações eucarísticas. A TdL buscou, com ousadia profética, unir fé e vida, transcendência e imanência. Nela, os pobres encontram não somente um lugar, mas, sobretudo um meio para clamar por justiça.

            Ao final da entrevista, o frei Clodovis levanta uma importante indagação: Qual o maior desafio da Igreja? Eis o que ele responde: “É o maior desafio do homem: o sentido de sua vida”. A questão do sentido é, de fato, fundamental na vida humana. Viver sem sentido parece impossível. Não discordo disso. Agora, afirmar ser este o maior desafio da Igreja no mundo me parece ser um pouco distante do evangelho. A leitura e meditação do evangelho não demonstra que Jesus estava preocupado tão somente com o sentido da vida humana.

Por outro lado, podemos vislumbrar o sentido da vida a partir do anúncio do Reino de Deus. A partir do evangelho, podemos afirmar que o sentido da vida cristã se encontra na adesão a Jesus e seu projeto. Jesus, Deus encarnado na história, é o sentido último da vida humana. Este é um princípio perene de fé. Pois bem, mas como isto acontece na vida concreta? Seria este sentido pura abstração, coisa do intelecto humano? Em Jesus de Nazaré, não. Jesus não criou nem deixou escrita uma teologia do sentido da vida.

            Na entrevista, o frei Clodovis Boff parece opor a questão do sentido da vida à questão social. Tal oposição, que me parece confusa, induz o leitor a pensar o seguinte: a TdL não está preocupada com o sentido da vida humana, mas é uma ideologia religiosa voltada para o social. É preciso entender que a TdL não é uma disciplina auxiliar da teologia clássica, assim como não se trata de mera sociologia. Também não é nenhuma filosofia da religião ou psicologia social. É verdade que a TdL, partindo da experiência missionária e messiânica de Jesus de Nazaré, busca, acolhendo as análises das mencionadas ciências humanas, como também em outras (políticas e econômicas) fazer uma leitura e interpretação ampla da realidade dos pobres, evangelizando-os.

            Desse modo, sem nos remetermos à questão social, a questão do sentido da vida humana fica sem sentido, caindo no vazio da mera abstração. Onde está o ser humano? Como vive? O que faz? O que procura ser? Quais seus anseios? Como segue Jesus? Quais suas tristezas, angústias, alegrias e esperanças? E a Igreja, existe para si mesma? A negação do social anula as condições de possibilidade para uma séria e comprometida reflexão do sentido da vida.

Abrindo-se aos demais no amor, crendo e vivendo a experiência do Cristo ressuscitado, o crente encontra o sentido de sua vida. Para sistematizar teoricamente esta compreensão, a teologia precisa dialogar, sem preconceitos nem espírito de superioridade, com as demais ciências e/ou áreas de conhecimento.  

A teologia tradicional tem a tendência de tratar a questão do sentido como que desvinculada do mundo. A história e a atual situação da Igreja mostram que tal tendência nunca deu certo. Consequentemente, corre-se sempre o perigo de se construir e se viver uma religião sem sentido, sem rumo, mergulhada na desorientação e na crise. Atualmente, olhando as religiões, mesmo considerando seus esforços, percebe-se com clareza tal desorientação. O homem pós-moderno não encontra um horizonte de sentido, mesmo sendo religioso. É grande o número de religiosos, leigos e clérigos, que se encontram mergulhados em uma profunda crise de sentido. Os teólogos não estão isentos disso.

Quero finalizar este breve artigo expressando a minha tristeza em relação às estranhas afirmações do frei Clodovis Boff. São afirmações que não contribuem em nada com a unidade da Igreja. O tom acusatório de suas palavras causa confusão na mente de quem não entende muito de questões teológicas e induz muita gente a fazer o mesmo: julgar e condenar os teólogos da libertação. Neste sentido, me solidarizo com estes.

O Espírito do Senhor certamente não deixará faltar à Igreja mulheres e homens que continuem fazendo teologia na perspectiva da libertação integral dos pobres. Graças a este mesmo Espírito, a Teologia da Libertação tem se revigorado cada vez mais, abordando temáticas importantes e necessárias à vida eclesial e social: debruçando-se sobre as causas dos negros, das mulheres, dos índios, dos homossexuais, enfim, das “minorias abraâmicas”, como dizia dom Helder Câmara. Felizmente, o papa Francisco tem demonstrado interesse em acolher tal Teologia na Igreja, pois sabe que ela continua profeticamente oportuna, útil e necessária para a missão da Igreja no mundo de hoje.

Tiago de França 

2 comentários:

Marco Antonio Osório da Costa disse...

Caro Tiago, quanto mais o leio, mais afinidades e convergências de posições identifico!

Ao ler, esta semana, a entrevista do frei Clodovis Boff, cheguei a destacar alguns trechos, sobre os quais pensava tecer alguns comentários e enviar-lhes algumas provocações. Na verdade, estava pensando em lhe pedir que se manifestasse sobre a íntegra da entrevista.
Qual não foi, portanto, minha gratíssima surpresa, ao receber e ler este seu artigo!
Nenhuma consideração resta tecer. E nenhuma questão a levantar. Pois todas se encontram abarcadas por seu texto. Resta-me assinar embaixo.
É triste ver como alguém que, um dia, se considerou um teólogo da libertação e um de seus expoentes, hoje deixa clara sua mais completa falta de percepção de quão importante esta é não só para a fé cristã e para a reflexão sobre sua prática cotidiana, quanto para a própria Igreja e suas expectativas de manter relevância e significado no mundo e na vida dos cristãos!
Em política, nos meios de esquerda, costuma-se dizer que os piores e mais duros inimigos (e não apenas adversários, como deveria ser) e mais empertigados conservadores e reacionários são os “ex-esquerdistas” Pois não é que, agora, também em teologia, pode-se aplicar o raciocínio análogo e dizer que os mais tradicionalistas e conservadores são os “ex-membros da TdL”?
Valha-nos, Deus!

Tiago de França disse...

Sim, caro Marco! Valha-nos, Deus! A situação está crítica. Temos que, a partir de nossa fé, pedir muito a Deus para perseverar na fidelidade ao anúncio do Evangelho de Jesus, que se identifica com as grandes causas do Reino de Deus; do contrário, estamos perdidos. Obrigado pela apreciação do texto!
Abraço!