A Agência de Informação
Frei Tito para a América Latina (ADITAL), publicou, no dia 08 do corrente mês,
uma entrevista com o religioso e teólogo da Ordem dos Servos de Maria, frei
Clodovis Boff. Este foi entrevistado pela jornalista daquela agência, Natasha
Pitts. A Teologia da Libertação (TdL) foi o conteúdo da entrevista. Em artigo
publicado no dia 16 de agosto de 2008, o entrevistado já tinha manifestado o
que desta vez fez questão de repetir. Oportunamente, com artigo intitulado “As
estranhas acusações de Clodovis Boff”, em 29 de dezembro de 2008, o teólogo
José Combin (in memoriam) fez algumas considerações a respeito do artigo do
frei Clodovis Boff.
Não
sou nem preciso ser um teólogo, profissionalmente falando, para fazer e
publicar minhas considerações sobre a mencionada entrevista. Na qualidade de
cristão que procuro ser, e de leitor assíduo de numerosas obras teológicas de
muitos dos chamados teólogos da libertação, especialmente da obra de José
Comblin, que considero uma das mais densas e exigentes, ouso escrever sobre
alguns pontos abordados na entrevista. Neste sentido, convido o leitor a entrar
no portal da agência e fazer leitura prévia da entrevista, antes de se debruçar
sobre minhas humildes considerações.
A entrevista é curta, mas traz algumas acusações graves,
que precisam ser lidas com atenção, paciência e espírito de caridade. A falta
de caridade é o grande pecado de muitos teólogos, e o frei Clodovis Boff a deixou
de lado, desde que iniciou a publicação de suas reservas à TdL. Faltou com a
caridade não somente com importantes colegas desta corrente teológica, mas
também com os pobres que se prejudicam quando a Igreja deixa de lado a opção
pelos pobres, tema central da TdL.
Falar em prescrição histórica da TdL é um equívoco
simples de esclarecer. Quando foi que se começou a falar de Teologia da
Libertação? Institucionalmente, esta teologia não existe. O que existem são
pessoas que refletem, à luz da fé cristã explicitada no evangelho
de Jesus, o Cristo, a situação dos pobres e excluídos no mundo e na
Igreja. Ainda existem pobres e excluídos? Desapareceram as grandes causas do
Reino de Deus? A Igreja fez a opção pelos pobres? A realidade responde
negativamente. Se o processo de libertação integral do ser humano continua vivo
na história, a TdL tem muito que refletir e colaborar na missão da Igreja. Declarar
a extinção da TdL na Igreja é não ter visão histórica do passado recente e do
presente, ou fazer-se, ironicamente, de desentendido.
Eis uma afirmação que não tem nenhuma base histórica: A
opção preferencial pelos pobres sempre foi uma riqueza da Igreja. Sinceramente,
não sei como o frei Clodovis Boff conseguiu afirmar isso. O que a história do
cristianismo mostra são casos isolados de opção pelos pobres: São Francisco de
Assis, São Vicente de Paulo, Dom Luciano Mendes de Almeida, Ir. Dorothy Stang,
Ir. Lindalva Justo de Oliveira, entre outras testemunhas do Cristo ressuscitado.
Historicamente,
a opção pelos pobres nunca foi a riqueza da Igreja. Se assim fosse, teríamos
uma Igreja plenamente sintonizada com a Boa Notícia de Jesus. Na verdade, a Igreja
ainda não conseguiu fazer esta desafiadora opção, exceto no discurso oficial.
A TdL é uma teologia que incomoda por vários motivos,
dentre os quais podemos destacar dois: primeiro, porque não está em função da
instituição Igreja. Nesta, a TdL é um apelo permanente à conversão. Surgiu após
o Vaticano II, inaugurada por Gustavo Gutiérrez e outros, para conscientizar a
Igreja de sua missão no mundo. Em carta endereçada aos bispos do Brasil, o Papa
João Paulo II, o pontífice que mais perseguiu e condenou teólogos da
libertação, afirmou que tal corrente teológica é “oportuna, útil e necessária”,
mas a mesma não está preocupada com reconhecimento oficial.
A
TdL não existe para fortalecer a influência da Igreja no mundo, nem para
reforçar o poder do clero nas comunidades cristãs católicas, mas para recordar
e fazer valer a opção de Jesus, que é a opção pelos pobres. Não é uma teologia
de legitimação do aparato institucional eclesiástico. Segundo, porque ao
reconhecer o lugar do pobre na teologia e na Igreja, simultaneamente, denuncia
as infidelidades e abusos cometidos pela instituição. Neste sentido, podemos
encontrar inúmeros profetas e profetisas no seio da TdL.
Por outro lado, na teologia tradicional, que está
agonizando, a situação se parece com um paciente em estado terminal numa
unidade de terapia intensiva. Na teologia tradicional praticamente não existe
novidade. Trata-se, em muitos aspectos, de um discurso repetitivo e
ultrapassado. Afirma as antigas verdades fundamentais da fé de forma cansativa,
tediosa e sem futuro.
Por
que a chamada nova evangelização não acontece na Igreja? Porque nas faculdades
de teologia se ensina uma teologia que praticamente não tem condições de falar
nada de novo para o homem pós-moderno. Nela, o evangelho de Jesus não ocupa o
centro. Repetem-se, infinitamente, dogmas e verdades fechadas, praticamente
impassíveis de discussão.
Na
liturgia, os ministros repetem, anualmente, as mesmas coisas, os mesmos
conceitos. A Congregação para a Doutrina da Fé, ao invés de auxiliar na
atualização teológica, apresenta-se como o órgão fiscalizador e punitivo. Desse
modo, a teologia tradicional não consegue dialogar com a pós-modernidade,
preferindo ficar na desconfiança de todas as coisas.
Afirmar que a TdL padece pela ausência de rigor teórico é
dar um tiro no próprio pé. A leitura da tese doutoral do frei Clodovis Boff,
intitulada “Teologia e prática”, me parece bastante rigorosa, mas o teólogo
parece que se arrependeu de tê-la escrito. Quem realmente faz uma leitura
atenta da produção teológica de teólogos como Leonardo Boff, José Comblin, Jon
Sobrino, Pablo Richard, Juan Luis Segundo, Ivone Gebara, entre tantos outros e
outras, não tem nenhuma dificuldade de enxergar uma nítida e admirável
sistematização teológica. A metodologia é explicitamente clara!
A priorização do
político às expensas da fé é outra afirmação grave feita à TdL. Existe alguma
teologia apolítica? Há cristianismo apolítico? A Igreja católica não faz
política? Jesus de Nazaré, humanamente falando, foi apolítico? Estranhamente,
qualquer indução de quem quer que seja para se pensar a fé separada da política
é absurda. A política é, essencialmente,
ideológica.
Na
Igreja encontramos ideologias. A Igreja sempre praticou política, mas uma
política de direita, como afirmou recentemente Leonardo Boff ao periódico El
País, na Espanha. A fé cristã se manifesta na e por meio da política. O que a Igreja
não não deveria ter sido feito e fez durante séculos foi a partidarização da
política em detrimento dos pobres, e a teologia tradicional ajudou,
desgraçadamente, a legitimar isso. Se a TdL peca não pela politização do
evangelho, mas pela explicitação clara e objetiva do aspecto político da
mensagem cristã, então este pecado é evangelicamente necessário.
O aspecto político da mensagem cristã nunca é
transitório, mas permanente. Hoje, mais do que nunca, reconhecemos a politicidade
da condição humana na vida social. A própria Igreja reconhece em seus
documentos a necessidade da ação cristã na e por meio da política. Desta
ninguém escapa, pois é necessária para o autêntico progresso da humanidade. O
ser humano está padecendo em todo o mundo por causa da corrupção política. O
Oriente Médio é uma das provas atuais e gritantes disso. Em si, o evangelho não
é uma ideologia, mas a ação da instituição Igreja no mundo acontece também por
meio de ideologias. A história mostra com clareza a adesão da Igreja às ideologias
dominantes, que sempre tenderam à exploração humana, principalmente dos pobres.
Em nenhum momento, os teólogos da TdL ousaram colocar os
pobres no lugar de Jesus de Nazaré. Não existe a “pobrelogia” (expressão de
José Comblin, em seu artigo). Esta é a acusação mais grave do frei Clodovis
Boff. Não precisamos discutir sobre o fato de que Jesus, o Cristo, é Filho de
Deus e Senhor da Igreja. Toda teologia afirma isso. Ninguém discorda disso.
Caso
a TdL tivesse afirmado em algum momento que os pobres ocupam o lugar de Jesus e
são os Senhores da Igreja, de fato, não seria uma teologia genuína e plenamente
cristã, não iniciaria nem acabaria no horizonte da fé. Se assim fosse, os
teólogos da libertação não seriam cristãos, nem teólogos. A TdL foi a única
teologia que teve a coragem de reconhecer o lugar do pobre na vida eclesial e
no discurso teológico, e mais do que isso, levou a Igreja, em muitos lugares e
circunstâncias, a se encontrar com os pobres. Estes se tornaram um dos lugares
de encontro com Jesus de Nazaré.
Na entrevista, aparecem as expressões “princípios perenes
da fé” e “horizonte transcendente da fé”. Na teologia tradicional, tais
expressões cheiram a pura abstração. Princípios sem contexto e transcendência
sem imanência de nada valem. Na Igreja pré-conciliar, muito antes do
aparecimento da TdL, a profissão de fé era meramente abstrata.
A
evangelização consistia na mera transmissão das verdades fundamentais da fé,
sem praticamente nenhuma incidência na prática cotidiana da vida. Até os dias
de hoje, a maioria dos católicos não compreende o credo que professa.
Decoraram-no e repetem-no automaticamente nas celebrações eucarísticas. A TdL
buscou, com ousadia profética, unir fé e vida, transcendência e imanência. Nela,
os pobres encontram não somente um lugar, mas, sobretudo um meio para clamar
por justiça.
Ao final da entrevista, o frei Clodovis levanta uma
importante indagação: Qual o maior desafio da Igreja? Eis o que ele responde: “É o maior desafio do homem: o sentido de
sua vida”. A questão do sentido é, de fato, fundamental na vida humana.
Viver sem sentido parece impossível. Não discordo disso. Agora, afirmar ser
este o maior desafio da Igreja no mundo me parece ser um pouco distante do
evangelho. A leitura e meditação do evangelho não demonstra que Jesus estava
preocupado tão somente com o sentido da vida humana.
Por
outro lado, podemos vislumbrar o sentido da vida a partir do anúncio do Reino
de Deus. A partir do evangelho, podemos afirmar que o sentido da vida cristã se
encontra na adesão a Jesus e seu projeto. Jesus, Deus encarnado na história, é
o sentido último da vida humana. Este é um princípio perene de fé. Pois bem,
mas como isto acontece na vida concreta? Seria este sentido pura abstração,
coisa do intelecto humano? Em Jesus de Nazaré, não. Jesus não criou nem deixou
escrita uma teologia do sentido da vida.
Na entrevista, o frei Clodovis Boff parece opor a questão
do sentido da vida à questão social. Tal oposição, que me parece confusa, induz
o leitor a pensar o seguinte: a TdL não está preocupada com o sentido da vida
humana, mas é uma ideologia religiosa voltada para o social. É preciso entender
que a TdL não é uma disciplina auxiliar da teologia clássica, assim como não se
trata de mera sociologia. Também não é nenhuma filosofia da religião ou
psicologia social. É verdade que a TdL, partindo da experiência missionária e
messiânica de Jesus de Nazaré, busca, acolhendo as análises das mencionadas
ciências humanas, como também em outras (políticas e econômicas) fazer uma leitura
e interpretação ampla da realidade dos pobres, evangelizando-os.
Desse modo, sem nos remetermos à questão social, a
questão do sentido da vida humana fica sem sentido, caindo no vazio da mera
abstração. Onde está o ser humano? Como vive? O que faz? O que procura ser?
Quais seus anseios? Como segue Jesus? Quais suas tristezas, angústias, alegrias
e esperanças? E a Igreja, existe para si mesma? A negação do social anula as
condições de possibilidade para uma séria e comprometida reflexão do sentido da
vida.
Abrindo-se
aos demais no amor, crendo e vivendo a experiência do Cristo ressuscitado, o
crente encontra o sentido de sua vida. Para sistematizar teoricamente esta
compreensão, a teologia precisa dialogar, sem preconceitos nem espírito de
superioridade, com as demais ciências e/ou áreas de conhecimento.
A
teologia tradicional tem a tendência de tratar a questão do sentido como que
desvinculada do mundo. A história e a atual situação da Igreja mostram que tal
tendência nunca deu certo. Consequentemente, corre-se sempre o perigo de se
construir e se viver uma religião sem sentido, sem rumo, mergulhada na
desorientação e na crise. Atualmente, olhando as religiões, mesmo considerando
seus esforços, percebe-se com clareza tal desorientação. O homem pós-moderno
não encontra um horizonte de sentido, mesmo sendo religioso. É grande o número
de religiosos, leigos e clérigos, que se encontram mergulhados em uma profunda
crise de sentido. Os teólogos não estão isentos disso.
Quero
finalizar este breve artigo expressando a minha tristeza em relação às
estranhas afirmações do frei Clodovis Boff. São afirmações que não contribuem
em nada com a unidade da Igreja. O tom acusatório de suas palavras causa
confusão na mente de quem não entende muito de questões teológicas e induz
muita gente a fazer o mesmo: julgar e condenar os teólogos da libertação. Neste
sentido, me solidarizo com estes.
O
Espírito do Senhor certamente não deixará faltar à Igreja mulheres e homens que
continuem fazendo teologia na perspectiva da libertação integral dos pobres.
Graças a este mesmo Espírito, a Teologia da Libertação tem se revigorado cada
vez mais, abordando temáticas importantes e necessárias à vida eclesial e
social: debruçando-se sobre as causas dos negros, das mulheres, dos índios, dos
homossexuais, enfim, das “minorias abraâmicas”, como dizia dom Helder Câmara. Felizmente,
o papa Francisco tem demonstrado interesse em acolher tal Teologia na Igreja,
pois sabe que ela continua profeticamente oportuna, útil e necessária para a
missão da Igreja no mundo de hoje.
Tiago de França
2 comentários:
Caro Tiago, quanto mais o leio, mais afinidades e convergências de posições identifico!
Ao ler, esta semana, a entrevista do frei Clodovis Boff, cheguei a destacar alguns trechos, sobre os quais pensava tecer alguns comentários e enviar-lhes algumas provocações. Na verdade, estava pensando em lhe pedir que se manifestasse sobre a íntegra da entrevista.
Qual não foi, portanto, minha gratíssima surpresa, ao receber e ler este seu artigo!
Nenhuma consideração resta tecer. E nenhuma questão a levantar. Pois todas se encontram abarcadas por seu texto. Resta-me assinar embaixo.
É triste ver como alguém que, um dia, se considerou um teólogo da libertação e um de seus expoentes, hoje deixa clara sua mais completa falta de percepção de quão importante esta é não só para a fé cristã e para a reflexão sobre sua prática cotidiana, quanto para a própria Igreja e suas expectativas de manter relevância e significado no mundo e na vida dos cristãos!
Em política, nos meios de esquerda, costuma-se dizer que os piores e mais duros inimigos (e não apenas adversários, como deveria ser) e mais empertigados conservadores e reacionários são os “ex-esquerdistas” Pois não é que, agora, também em teologia, pode-se aplicar o raciocínio análogo e dizer que os mais tradicionalistas e conservadores são os “ex-membros da TdL”?
Valha-nos, Deus!
Sim, caro Marco! Valha-nos, Deus! A situação está crítica. Temos que, a partir de nossa fé, pedir muito a Deus para perseverar na fidelidade ao anúncio do Evangelho de Jesus, que se identifica com as grandes causas do Reino de Deus; do contrário, estamos perdidos. Obrigado pela apreciação do texto!
Abraço!
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