quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Marina Silva e a providência divina

           
              Algumas declarações de fé chamam a atenção e não podem passar despercebidas. A morte do ex-governador e candidato à presidência da República, Eduardo Campos, causou comoção nacional. Quando o lado emocional aflora sem limites, geralmente, as pessoas perdem a capacidade de raciocinar os fatos. As redes sociais estão cheias de mensagens. A fantasia humana é fértil e não conhece limites. As pessoas aproveitam o momento para extravasar seus sentimentos, seu patriotismo, sua escolha partidária e, sobretudo, seus preconceitos e seus desejos de vingança em relação ao outro. Em matéria política, isto é extremamente perigoso.

Este artigo quer contemplar, considerando este contexto comocional, uma declaração feita por Marina Silva, provável candidata à presidência da República. Durante sua viagem a Recife, disse ela a uma repórter do jornal O Globo: “Existe uma providência formada em relação a mim, à Renata e ao Miguel [filho de E. Campos], mistérios que nós não compreendemos, nem em relação aos que ficaram e nem em relação aos que se foram. São mistérios”. O que estas palavras significam? O que podemos entender por providência divina? É o que queremos pensar, brevemente.

A candidata Marina é cristã de confissão não católica e congrega na Igreja Assembleia de Deus. O fervor religioso e o conservadorismo doutrinal caracterizam esta denominação religiosa, assim como a maioria das Igrejas consideradas “evangélicas”. Na doutrina cristã, independentemente da denominação religiosa, acredita-se na existência da providência divina.

De fato, Jesus de Nazaré ensinou que Deus Pai é providente. Isto significa que Deus é um bom Pai, atento às necessidades de seus filhos e filhas; um Pai que cuida, amorosa e providencialmente. Deus jamais abandona seus filhos e filhas. Em Jesus, Deus se manifestou no mundo porque é o Criador de todas as coisas e fim último no qual se encontra todo bem e toda graça. Ele é o próprio Bem e a Graça que socorre o ser humano em suas fraquezas. Esta é a confissão da fé cristã.  

Nenhum crente, católico ou não católico, duvida desta confissão de fé. Esta ultrapassa os limites e fronteiras religiosas. Deus não é religioso, ou seja, não criou a religião nem está preso a ela, mas acolhe a todos, indistintamente. Aqui se encontra o equívoco do entendimento que muitas pessoas fazem da providência divina.

Antes de expressá-lo, consideremos um conceito do que entendemos ser a providência divina: A providência divina é Deus mesmo presente na vida das pessoas. É o amor transformando-as, salvando-as, cotidianamente. Um amor capaz de libertar do egoísmo e da indiferença, que alcança a todos, que age na liberdade e para a liberdade, única realidade que garante a verdadeira felicidade humana. Portanto, a providência divina é universal, permanentemente disponível e aberta a toda mulher e homem de boa vontade.

            Qual é o equívoco de inúmeros crentes em relação à providência divina? Primeiro, que pensam que Deus faz acepção de pessoas, ou seja, escolhe alguns em detrimento de outros. São muitos os textos bíblicos que falam da maneira como Deus acolhe a todos. Citemos dois textos que são lidos por todos os cristãos: “De fato, estou compreendendo que Deus não faz discriminação entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença”, disse o apóstolo Pedro aos membros da família de Cornélio, um centurião da Cesaréia (cf. Atos dos Apóstolos 10, 34 – 35).

Falando do juízo universal de Deus, ensina-nos o apóstolo Paulo, entre outras palavras: “[...] glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem, primeiro para o judeu, mas também para o grego, pois Deus não faz acepção de pessoas” (cf. Epístola aos Romanos 2, 10 – 11). Assim, precisamos combater a falsa crença de que Deus acolhe alguns e despreza outros, glorifica uns e faz outros perecerem.

            Outra falsa crença decorrente desta é a de que há pessoas que merecem os favores divinos e, portanto, são salvas, enquanto as demais são condenadas. Na mesma Epístola aos Romanos, fala o apóstolo Paulo: “Com efeito, quando éramos ainda fracos, foi então, no devido tempo, que Cristo morreu pelos ímpios. Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa, talvez alguém se anime a morrer. Pois bem, a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores” (5, 6 – 8).  

Diante de Deus não existe ser humano que mereça os favores divinos. Deus age com plena gratuidade e misericórdia, vindo ao encontro da fraqueza humana. Somente Ele é o Santo e toda a humanidade é pecadora. A salvação acontece por pura graça e misericórdia. Nenhum crente e/ou cristão está autorizado a eleger-se e a afirmar que existe um grupo seleto de merecedores em detrimento de tantos outros que não merecem.  

Desde Adão e Eva, biblicamente falando, até os dias de hoje, a humanidade errante é uma constante negação de Deus e, apesar disso, a revelação cristã demonstra que Deus é o Amor que jamais desiste de sua criação corrompida pelo pecado. Esta mesma revelação, contida no testemunho autêntico das Sagradas Escrituras, afirma que Deus tem predileção pelos fracos e esquecidos, especialmente aqueles que são julgados e condenados pela religião. Nesta, há muitos cristãos fariseus, que se julgando melhor do que os demais se consideram merecedores da graça divina e únicos intérpretes da mesma revelação. É um grave farisaísmo que precisa ser combatido com a verdade revelada e reconhecida pela genuína tradição cristã.

            Neste sentido, considerando essas premissas teológicas, afirmar que há uma providência divina “formada” em favor de alguns poucos é um absurdo, algo inaceitável. A candidata Marina Silva induz as pessoas a se equivocarem em um ponto que, consequentemente, anula o verdadeiro sentido da providência divina, a saber: induz a pensar que Deus a poupou da morte, não poupando o Eduardo Campos e demais vítimas do trágico acidente. 

Deus a escolheu para continuar vivendo em detrimento da morte dos demais? Deus salva uns e deixa outros entregues ao poder da morte? Marina Silva não afirmou isto, mas induziu muita gente a pensar assim. Certamente, no calor da comoção, ela não pensou nos desdobramentos de suas afirmações. Considerando a interpretação fundamentalista que muitos cristãos fazem da Bíblia, mesmo sem o calor da comoção, tais afirmações são, infelizmente, feitas no seio das Igrejas cristãs.

            Recusando-nos a nos debruçarmos sobre o desrespeito por parte de inúmeras pessoas nas redes sociais, vítimas da falta de bom senso e caridade, é preciso, por fim, considerar que toda pessoa que nasce neste mundo está sujeita a toda espécie de mal, independentemente de sua fé. Na esfera dos desígnios de Deus, não há inteligência humana capaz de desvendar o sentido que se esconde por trás de determinadas fatalidades. A teodiceia e a teologia mística não apresentam respostas matematicamente calculáveis.  

No plano divino tudo é mistério. Neste ponto, acertou Marina Silva. O momento da ação da divina providência cabe ao próprio Deus saber, mas a revelação bíblica desmente qualquer pretensão que aponte para a absurda afirmação de que Deus poupa alguns e despreza a outros. Não se trata de mera análise nem de raciocínios teológicos, mas questão de fé Naquele que em Jesus se revelou na história. Quer crente, quer ateu, sem exceção, somos peregrinos nas vias transitórias da vida. Esta é, essencialmente, transitória; quer aceitemos, quer não.

Tiago de França 

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