terça-feira, 30 de setembro de 2014

A palavra de Deus e a liberdade humana (por ocasião do "Mês da Bíblia")

“Sede praticantes da Palavra, e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com efeito, aquele que ouve a Palavra e não a põe em prática é semelhante a alguém que observa o seu rosto no espelho: apenas se observou, sai e logo esquece como era a sua aparência. Aquele, porém, que se debruça sobre a Lei perfeita, que é a da liberdade e nela persevera, não como um ouvinte distraído, mas praticando o que ela ordena, esse há de ser feliz naquilo que faz” (Tiago 1, 22 – 25).

Amigos e amigas, irmãos e irmãs no Cristo Jesus,

Graça e paz!

            Mais uma vez me dirijo a vocês para lhes transmitir uma palavra por ocasião do “Mês da Bíblia”. Exortar as pessoas, em nome de Deus, para ajudá-las no seguimento de Jesus, é um ofício que me ocupa desde a minha infância. Pelo batismo somos chamados a isto: sermos evangelizadores, missionários do evangelho de Jesus. Este é o ofício que Jesus partilha conosco. Portanto, somos partícipes da missão de Jesus. Isto é sublime e maravilhoso. A vida da humanidade depende da nossa disposição de anunciadores do mandamento por excelência: o amor, que é capaz de salvar, indistintamente, a todos.

            Para esta mensagem, escolhi os versículos da Carta do apóstolo Tiago, transcritos acima. São palavras de Deus que nos convidam a pensar na maneira como lidamos com a Sua palavra. Os cristãos são acusados pelos que se dizem ateus e por alguns outros de outras religiões, de sermos pessoas relaxadas, que somente louvamos e bendizemos a Deus, mas que não nos preocupamos com a prática da palavra de Deus. Em parte esta acusação é verdadeira. Na mensagem que escrevi por ocasião do “Mês das vocações”, me perguntava: Por que será que o Brasil tem tanta corrupção, apesar de ser o maior país cristão do mundo?... A maioria da população de nosso país afirma ser cristã. Tanto na política quanto no cotidiano da vida do povo encontramos, com certa facilidade, uma forte tendência cultural à corrupção. O famoso “jeitinho brasileiro” resolve praticamente tudo na vida de muitos. Parece que nos acostumamos com a corrupção e passamos a nos surpreender quando nos encontramos com pessoas honestas, transparentes e íntegras.

            É verdade que cada pessoa não é em si mesma totalmente boa, nem totalmente má. O joio e o trigo estão misturados em nós. Somos seres tendenciosos. Temos nossas más inclinações. A realidade, no entanto, tem demonstrado que estamos perdendo cada vez mais o controle sobre nossas tendências e/ou inclinações. A relativização de valores fundamentais como o amor, a solidariedade e o perdão está transformando o mundo em um caos. Assistimos a uma generalizada crise de humanidade. As inúmeras formas de violência não são contidas. O ser humano se transformou em mercadoria: é comprado, usado e descartado. Assiste-se a tudo isto com perplexidade e, às vezes, com naturalidade. Clama-se por justiça, mas as injustiças se proliferam. Vejam a guerra entre Israel e Palestina: mais de duas mil pessoas mortas! No Brasil, anualmente, cinquenta e seis mil pessoas são assassinadas por ano! Não estamos falando de coisas, mas de pessoas. Qual é o valor da vida humana?...

            O que nós temos que ver com isso? Esperando minha vez de ser atendido por um cabelereiro, escutei um senhor aparentemente instruído, dizer: “Aquele povo do Oriente Médio é um bando de doidos! Tem mesmo é que morrer! Bandido tem que morrer!” No seu pescoço, um crucifixo de ouro e em um dos pulsos, um escapulário de Nossa Senhora do Carmo. Vejam o tipo de cristão que temos: pessoas que frequentam o culto e desejam a morte de seu semelhante. Aquele senhor representa milhões de cristãos. Aliás, de pseudocristãos. Quem deseja a morte de seu semelhante, por “pior” que este seja, não merece o nome de cristão, pois Jesus doou a sua vida para a salvação de todos, indistintamente. Este mau exemplo é para ilustrar a frieza oriunda da indiferença de muitos que se dizem cristãos. Se nos afirmamos cristãos e os problemas das pessoas e do mundo não nos interessam, nosso cristianismo é mentiroso e nocivo.

            O que nos ensina o apóstolo Tiago nos versículos acima transcritos? Ensina-nos, em primeiro lugar, a sermos praticantes da palavra de Deus, e não meros ouvintes. É verdade que não existe no mundo um cristão sequer que seja capaz de praticar com perfeição a palavra de Deus. Ninguém é perfeito e Deus não nos exige a plena observância. Deus sabe de que somos feitos, mas isto não justifica a forma como muitos cristãos procedem no mundo. O Espírito do Senhor, que trabalha diuturnamente em nossos corações, é nossa força e nos auxilia na prática da palavra de Deus. A escuta, a meditação e a prática da palavra de Deus só nos são possíveis graças à ação do Espírito do Senhor. Somente com seu auxílio é que podemos compreender a vontade de Deus explicitada nas Escrituras. Este mesmo Espírito nos motiva ao encontro da palavra do Pai, nos ajuda a compreendê-la e a praticá-la no cotidiano da vida. Isto significa um caminho, um itinerário capaz de nos transformar interiormente, concedendo-nos a graça de sermos continuadores da missão de Jesus.

            Em segundo lugar, o apóstolo Tiago nos ensina que a palavra de Deus é a Lei da liberdade, que, se a observarmos, seremos, de fato, felizes naquilo que buscarmos fazer. Quem não deseja ser livre não deve se debruçar sobre a palavra de Deus. A liberdade é a consequência inevitável do encontro com a palavra do Pai. Nenhuma lei criada pelo ser humano é capaz de libertar as pessoas. As leis humanas são instrumentos de opressão, pois, na maioria dos casos, somente condenam os mais fracos. A lei de Deus é a Lei da liberdade, pois a esta somos chamados. Quem a observa consegue se libertar de qualquer espécie de mal.

O que é esta Lei da liberdade? É o amor. Este é a via única pela qual podemos ser livres. Quando amamos o próximo como a nós mesmos estamos praticando a Lei da liberdade. Amar o próximo com atos, e não com meras declarações de amor. Nenhuma declaração transforma interiormente as pessoas: nem quem a emite, nem quem a recebe. O amor que não passa é o amor de atos, que acontece no encontro com o rosto do outro. Quem se recusa a amar o próximo pode apresentar qualquer forma de justificativa, mas nenhuma é válida diante de Deus. Na Lei da liberdade não há meio termo: ou amamos, ou não amamos. Quem optou por não amar, fica preso ao seu egoísmo e nele perecerá. Em Cristo Jesus não há salvação para quem não ama. Isto significa a Lei da liberdade: o amor ao próximo como a si mesmo até as últimas consequências. Isto é seguimento de Jesus, caminho de liberdade aberto a todos. O amor é a condição para ingressar, permanecer e perseverar neste caminho. Quem não está disposto a amar o próximo não pode seguir Jesus.

Por fim, amigos e amigas, quero me despedir fazendo-lhes uma breve recomendação quanto às eleições deste ano: primeiro, vejam o passado do candidato; segundo, escolham livremente, visando o bem comum; terceiro, cuidado com o que fala a mídia deturpadora dos fatos, principalmente a Rede Globo; quarto, observem se as propostas do candidato são reais ou ilusórias, e quinto, votem naquele que já fez, de fato, o que foi possível fazer para o bem de todos, com verdade e dignidade. Para maiores esclarecimentos, entrem em meu blogue na Internet (cf. Com Jesus na contramão: http://tiagodefranca.blogspot.com). Neste, disponibilizo alguns artigos sobre as três principais candidaturas à presidência da República (Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves), assim como outras orientações a respeito da importância do voto e das eleições para a consolidação democrática do país. Participem das eleições, pois participar da política faz parte da missão cristã. Recusar-se à política é um grave pecado! Recomendo-me às suas preces, na certeza de que as faço por vocês. Que o Pai no Espírito nos confirme no caminho de seu amado Filho.

Fraternalmente, no Cristo ressuscitado,

Tiago de França 

sábado, 27 de setembro de 2014

Fazer a vontade de Deus

“Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no reino de Deus” (Mt 21, 31).

            Jesus está no Templo de Jerusalém e se encontra com os sumos sacerdotes e com os anciãos do povo, e pergunta-lhes o seguinte: Um homem tinha dois filhos, ao primeiro pediu que fosse trabalhar na vinha. O filho logo respondeu que não iria, mas depois mudou de opinião e foi. Dirigindo-se ao segundo filho, também o mandou trabalhar na vinha e este logo afirmou que iria, mas depois mudou de opinião e não foi. Quando Jesus pergunta-lhes sobre quem fez a vontade do pai, os anciãos e sumos sacerdotes respondem corretamente: “O primeiro”.

            Em seguida, corajosamente, Jesus dispara: “Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no reino de Deus. Porque João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os cobradores de impostos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele” (Mt 21, 28 – 32). Este é o texto evangélico que as comunidades cristãs católicas irão proclamar e meditar neste domingo. O que os pregadores vão dizer, certamente, se referirá tão somente ao arrependimento dos pecados para a acolhida de Jesus e de seu Reino, mas a mensagem não se encerra aí. Há outro aspecto que precisa ser ressaltado com força e verdade.

            Jesus estava falando aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo. Quem são essas pessoas? Eram as autoridades religiosas do Templo. Assim, as palavras de Jesus, hoje, se dirigem, em primeiro lugar, aos líderes religiosos de nossas Igrejas cristãs, principalmente aqueles que usam de seu poder religioso para julgar e condenar os que se encontram em “estado de pecado grave”. Todos os religiosos, mas especialmente estes últimos, precisam meditar e considerar profundamente as palavras que Jesus dirigiu aos sumos sacerdotes e anciãos do Templo. Vamos tentar traduzir o que elas significam hoje. Vamos atualizá-las.

            Quem são, hoje, estes cobradores de impostos e prostitutas? Na época de Jesus eram os pecadores públicos, rejeitados pela sociedade e pela religião judaica. Hoje, as prostitutas continuam sendo vítimas da terrível acusação de serem mulheres de “vida fácil”. Que as acusa desse modo é porque, geralmente, não as conhece de perto. Seria bom que seus acusadores pudessem substituí-las por uma noite de jornada de trabalho. No outro dia, certamente, mudariam de opinião. As prostitutas são condenadas pela sociedade e esta não procura conhecer as causas que as levam a viverem desse modo. São mulheres que não encontram apoio nem nas leis civis nem nas leis religiosas. Para a sociedade, elas não passam de vadias; para a religião, não passam de pecadoras.  

            Hoje, a categoria dos cobradores de impostos e prostitutas abarca inúmeras outras pessoas, que representam as minorias sociais criminalizadas e demonizadas pela sociedade e por segmentos religiosos hipócritas que tendem a sufocá-las e eliminá-las. Quer aceitemos, quer não, toda essa gente precederá os religiosos e as religiosas no Reino de Deus.

Quem estiver pensando que vai encontrar no Reino de Deus uma multidão de santos e purificados, assistindo com semblante de piedade os pecadores sendo “queimados” no fogo do inferno está profundamente enganado. Essa falsa imagem foi construída durante todo o processo de evangelização da Igreja ao longo da sua história. Na lógica do evangelho, sentar-se-ão à mesa do Reino de Deus os últimos de todos os tempos e lugares, aquele número incontável de pecadores desprezados e condenados pelas leis religiosas.  

            Essa gente pecadora e condenada pela multidão dos que praticam os rituais de pureza no Templo será, escandalosamente, acolhida à direita do Pai porque acreditaram em Jesus, porque carregaram sua cruz e participaram de sua sorte. Jesus convida os sumos sacerdotes e anciãos ao arrependimento. Eles não acreditaram na profecia de João Batista, que veio até eles em um caminho de justiça.  

O mesmo convite se dirige a todas as Igrejas cristãs, especialmente à Igreja católica atual. Nela há um número considerável de bispos e padres que precisam abandonar a vaidade e a hipocrisia para se colocarem no caminho de Jesus, convertendo-se ao evangelho. Alguns se destacam pelos absurdos que cometem nas suas dioceses e paróquias. Incansavelmente, desde Roma, o papa Francisco não se cansa de exortar à conversão e, em alguns casos, está intervindo providencialmente, punindo alguns que andam cometendo algumas atrocidades no seio da Igreja (pedofilia, desvio de dinheiro, tráfico de influência, calúnia, difamação, injúria etc.).

O caso mais recente é o de dom Rogelio Livieres Plano, bispo do Opus Dei, uma das mais ricas congregações da Igreja, afastado da diocese de Ciudad del Este, no Paraguai; acusado de proteger um padre acusado de pedofilia e pela falta de transparência no uso de dinheiro em sua diocese (possível desvio de dinheiro). Publicamente, tem se pronunciado contra o papa Francisco, dizendo que o pontífice “prestará contas a Deus” pela sua demissão.

Na verdade, procederá ao contrário: o bispo demitido é que terá que prestar contas a Deus pelo escândalo que está provocando na Igreja católica daquele país. Este e tantos outros casos demonstram que a Igreja institucional está gravemente enferma, e que o papa Francisco continuará tendo muito trabalho a realizar.  

Terá que fazer como Jesus que, corajosamente, enfrentou os sumos sacerdotes e anciãos, religiosos corruptos, que sugavam o sangue do povo. Na Igreja há um parasitismo eclesiástico a ser banido, definitivamente. O povo já não suporta mais este número vergonhoso de clérigos que se aproveitam dos ministérios de presbítero e bispo para se promoverem, vivendo no luxo e na ostentação.

Assim como Jesus, o papa Francisco tem ter o devido cuidado. Em Jerusalém, Jesus expulsou os ladrões do Templo a chicotadas porque transformaram a “Casa de Deus” em lugar de exploração. Francisco, desde Roma, está usando o mesmo chicote e terá que usá-lo com força e convicção. Certamente, outros escândalos hão de aparecer, pois há ainda muita coisa ruim acontecendo ocultamente tanto em Roma quanto nas bases da Igreja. Esta viveu décadas de silêncio em relação a tais escândalos. Há muita podridão a ser descoberta.

São necessárias a coragem, a vigilância, a prudência e a ousadia para enfrentar o mal. Acima de tudo, é preciso que tudo concorra para que se cumpra a vontade de Deus. E a vontade divina é que façamos como Jesus, que “encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o nome que está acima de todo nome” (Fl 2, 7 – 9).  

Não importa salvar a instituição, mas viver conforme a vontade de Deus. O tempo atual é um tempo de graça e salvação. O sopro do Espírito é forte e desinstalador. Este mesmo Espírito, discretamente, vai fazendo justiça aos pobres e aos injustiçados. Os poderosos caem de seus tronos e os humildes são elevados. É isso que estamos assistindo dentro e fora da Igreja, em várias partes do mundo. Ninguém escapa da justiça do Reino de Deus.


Tiago de França

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

São Vicente de Paulo: um santo para nossos dias

“O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano aceito da parte do Senhor” (Lc 4, 18 – 19).

            Na minha passagem pelo Seminário Interno (noviciado) da Congregação da Missão, no ano de 2011, numa pequena cidade do triângulo mineiro, chamada Campina Verde, tive a graça de me encontrar com São Vicente de Paulo, em seus escritos. Foi uma belíssima experiência! Fiz questão de ler seus numerosos escritos, traduzidos para a língua espanhola. De fato, foi “um ano aceito da parte do Senhor”.

Anualmente, a Igreja reservou o dia 27 de setembro para que seja celebrada a memória deste importante presbítero, missionário evangelizador dos pobres (França, 1580 – 1660). O Monsieur Vicent Depaul, como era carinhosamente conhecido, era homem simples e dedicado à evangelização dos pobres do povo de Deus. Converteu-se no encontro com os marginalizados de seu tempo. Tornou-se padre por causa do status que o ministério até hoje confere, mas, com o passar do tempo, foi percebendo que Deus o chamava para o serviço aos pobres do povo, não à satisfação dos privilégios da vida clerical.

Fundou, em 1625, um grupo de missionários, uma Companhia de Padres para, somente, evangelizar os pobres camponeses de seu tempo e contexto. Como hoje, a Igreja tinha inúmeros padres, mas estes somente queriam permanecer nos grandes centros urbanos, sendo financiados pela Corte francesa, gozando dos privilégios da vida clerical. Os pobres sobreviviam no abandono, excluídos e esquecidos, inclusive pela própria Igreja, que estava ligada ao luxo da Corte. Deus, em sua infinita sabedoria e misericórdia, faz aparecer o padre Vicente de Paulo, que, após a conversão, quando tinha renunciado à busca pelo poder, tornou-se um dos homens mais influentes de seu tempo.

Assim como Jesus, a fama do padre Vicente de Paulo se espalhou por toda a França. Gente de toda parte, incluindo padres, bispos e cardeais, foi ao seu encontro, para conhecê-lo de perto e para escutar suas famosas conferências nas quais falava com a autoridade do testemunho e com a eloquência da palavra sobre a opção pelos pobres vivida por Jesus de Nazaré.

Para ilustrar o que estamos afirmando, veja o leitor a profundidade das palavras do santo dos pobres, dirigida ao padre Portail, um dos cofundadores da Companhia da Missão: “Lembrai-vos, Padre, que vivemos em Jesus Cristo pela morte de Jesus Cristo e que havemos de morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo e que nossa vida deve estar oculta em Jesus Cristo e plena de Jesus Cristo e que, para morrer como Jesus Cristo, é necessário viver como Jesus Cristo” (COSTE, Pierre (Org.). Saint Vicent de Paul. Correspondance, entretiens, documents. Paris: Lecofre/Gabalda, 1920-1925, vol. 1, p. 295).

O padre Vicente, após sua conversão, era um homem profundamente cristológico. Jesus de Nazaré, o missionário evangelizador dos pobres, está no centro de seu carisma. A vida e a obra de São Vicente de Paulo são profundamente marcadas pelo Cristo dos pobres. O Espírito do Senhor, que guiou Jesus e também iluminou São Vicente de Paulo, fez surgir na Igreja um carisma novo e extraordinário: a evangelização exclusiva dos pobres do povo de Deus. Isto foi inédito na história da Igreja.

Até então, ninguém tinha ousado fazer tal coisa. Naquela época, séc. XVII, assim como hoje, em muitos lugares da atuação da Igreja, não existia a opção pelos pobres. São Vicente de Paulo é, portanto, uma chamada de atenção do Espírito do Senhor, a fim de que a Igreja se recorde de sua missão fundamental, que foi a missão de Jesus: a edificação do Reino de Deus entre os pobres, através da evangelização dos pobres.

Com Santa Luísa de Marillac (França, 1591 – 1660), São Vicente de Paulo também ajudou na fundação de um grupo de mulheres pobres, leigas e consagradas ao serviço dos pobres, grupo que ganhou o nome de Companhia das Filhas da Caridade. Até a data da fundação, em 1633, estas mulheres trabalhavam nas Confrarias da Caridade, que constituíram um dos primeiros ramos da numerosa Família Vicentina. Santa Luísa de Marillac, juntamente com São Vicente de Paulo, converteu-se a Jesus encontrando-o nos pobres.

A vocação da Companhia das Filhas da Caridade foi delineada em uma das cartas do santo dos pobres. Nela enxergamos com clareza como deve viver toda mulher consagrada que deseja viver em comunidade para a missão junto aos pobres: “Vosso mosteiro é a casa dos enfermos e aquela em que reside a superiora. Vossa cela é o quarto de aluguel. Nisso, sois mais semelhantes a Nosso Senhor. Tendes como capela a igreja paroquial, na qual deveis assistir ao santo sacrifício e dar bom exemplo, sendo sempre a edificação do povo, ainda que sem deixar, por isso, o serviço aos enfermos. Vosso claustro são as ruas da cidade, pelas quais tendes que ir para atender aos enfermos, já que a obediência tem que ser vossa clausura. Por grade tereis o temor de Deus. E por véu, levareis a santa modéstia” (COSTE, Pierre (Org.). Saint Vicent de Paul. Correspondance, entretiens, documents. Paris: Lecofre/Gabalda, 1920-1925, vol. X, p. 662).

Com o passar do tempo, como ocorreu com todas as grandes congregações religiosas, masculinas e femininas, assim como com as grandes ordens e institutos da Igreja, os Padres da Missão e as Filhas da Caridade foram se distanciando dos pobres. Ambas as Companhias foram relativizando, no cotidiano de seus trabalhos, a exclusiva destinação de seus carismas.

Há belos testemunhos, certamente, de consagrados e consagradas ao serviço dos pobres em todos os ramos da grande Família Vicentina. São edificantes os testemunhos de santidade de inúmeros clérigos e leigos nos diversos ramos dos que herdaram a herança espiritual de São Vicente de Paulo; mas, atualmente, o serviço efetivo e afetivo aos pobres está um pouco adormecido em muitos lugares nos quais se encontram os Padres, as Filhas e os inúmeros leigos vicentinos.

Para a Igreja, São Vicente de Paulo é uma chama acesa, que recorda os pobres de Jesus. A Igreja perde sua identidade missionária quando se esquece dos pobres. No momento atual, contamos com a presença profética do papa Francisco que, assim como São Vicente de Paulo, luta incansavelmente pela ressurreição da verdadeira Igreja, aquela dos primeiros séculos, uma Igreja profeticamente missionária, simples, humana, fraterna e acolhedora, testemunha fiel do Cristo ressuscitado na história, peregrina no caminho de Jesus. Que a intercessão de São Vicente de Paulo ajude a Igreja a colocar-se no caminho de Jesus, no encontro libertador e evangélico com os pobres, rumo ao Reino definitivo.

Tiago de França

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Eucaristia: sacramento dos santos ou dos pecadores?

“Quem se alimenta com a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele. Como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo por meio do Pai, assim aquele que de mim se alimenta viverá por meio de mim” (Jo 6, 56 – 57).

            Está acontecendo uma discussão a respeito da não participação dos casais de segunda união no sacramento da Eucaristia. Partindo da doutrina bíblica da indissolubilidade do matrimônio, a disciplina da Igreja não permite que estes casais participem da mesa eucarística.  

Em outras palavras, quem se casar no religioso vindo, posteriormente, a separar-se e unindo-se, novamente, à outra pessoa, está proibido de receber o sacramento da Eucaristia. Para quem nunca leu a Bíblia e/ou desconhece a doutrina oficial e a disciplina da Igreja, esta proibição parece estranha. Para aquele que conhece um pouco a mensagem de Jesus no evangelho, tal proibição é um escândalo. Nesta reflexão queremos, com muita brevidade, tratar da questão.

Jesus é o pão da vida, mas para alguns ou para todos?...

            No evangelho segundo João encontramos Jesus afirmando, categoricamente, que ele é o pão da vida descido do céu (cf. Jo 6, 51). Em seguida, afirma também que toda pessoa que comer de sua carne e beber de seu sangue viverá eternamente. Assim, tem assegurada a vida eterna o crente que receber a Eucaristia, corpo e sangue de Jesus. Em nenhum momento, Jesus elenca proibições para a recepção do seu corpo e sangue.  

Não há um versículo bíblico sequer que mencione alguma proibição. Portanto, não tem base bíblica nenhuma qualquer espécie de restrição ao corpo e ao sangue de Jesus. É preciso que isto fique bem claro porque aqui se encontra o núcleo da discussão que está sendo travada entre conservadores e progressistas no interior da Igreja católica. 

A ala conservadora apega-se à proibição, afirmando aquilo que o papa João Paulo II ensinou na sua Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 37: “Se, para além disso, o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico. Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado; mas, em caso de comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta infração moral se refere a norma do Código de Direito Canônico relativa à não-admissão à comunhão  eucarística de quantos ‘obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto’”.

            Vamos analisar alguns pontos destas palavras do santo papa polonês em sua encíclica. Primeiro, quem tem na consciência o peso dum pecado grave não pode comungar, sem antes passar, obrigatoriamente, pelo sacramento da Confissão. Vejam que a regra é clara. Nas bases da Igreja a grande maioria dos padres e bispos é fiel a esta orientação.

Alguns, antes da comunhão, fazem questão de lembrar aos fieis, modificando o disposto no ritual, dizendo: “Felizes os convidados e preparados para a Ceia do Senhor, eis o cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo!” Mesmo rezando a resposta, a assembleia entendeu muito bem o significado da expressão “convidados e preparados”. Além do convite, acrescenta-se a recordação da preparação. A que esta se refere? Refere-se ao sacramento da Reconciliação, ou seja, a confissão dos pecados a um presbítero ou a um bispo, únicos que administram tal sacramento na Igreja.

Alguns bispos e padres mais ousados, ainda recordam, enquanto todos se preparam para comungar, dizendo: “Em nossa comunidade muita gente está comungando sem se confessar. Cuidado com isso! Não venham receber, indignamente, o corpo e o sangue do Senhor. É pecado grave!” O resultado destas advertências em plena celebração eucarística é o esperado: poucas pessoas se sentem “preparadas” para comungar. A maioria faz o que se passou a chamar de “comunhão de desejo”. Este tipo de “comunhão” é um consolo para os pecadores que não estão “aptos” à comunhão!  

            Segundo, o santo papa polonês fala de “estado de graça”. Do ponto de vista bíblico, principalmente evangélico, esta expressão não tem sentido algum; mas do ponto de vista da disciplina da Igreja, ela tem grande valor, pois a disciplina ensina que há aqueles que estão preparados para receberem a Eucaristia, e há os que não estão. Estes últimos, na linha de pensamento da encíclica acima mencionada, estão em “estado de pecado grave”.  

Os que se encontram neste estado deplorável pela disciplina devem procurar o sacramento da Reconciliação. Portanto, não podem, de modo algum, comungar. Caso o comportamento externo do cristão infrator seja notório, o santo papa polonês faz questão de recordar a prescrição canônica para o caso: em nome da solicitude pastoral pela ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, deve-se proibir, rigorosamente, o acesso à Eucaristia. Vejam que este valiosíssimo sacramento está revestido, pela Igreja, de uma disciplina dura e sem misericórdia.

            Terceiro, a encíclica insiste, mesmo após o Vaticano II, em mencionar a expressão “sacrifício eucarístico”. Neste sentido, a rigorosa disciplina acima explicitada, está coerente com a ideia de sacrifício, mas profundamente incoerente com o evangelho de Jesus. A Eucaristia é o banquete da vida, lugar do encontro com o Deus encarnado na história, alimento do peregrino rumo à plenitude do Reino, fortaleza dos pecadores e fracos, fonte da vida eterna.  

Para tanto, ninguém precisa passar por um ritual de purificação para receber este alimento gerador de vida e de liberdade. Para os que defendem a teologia sacrifical do corpo e do sangue do Senhor, que já deveria ter sido extinta do vocabulário teológico da Igreja, aí, sim, cabe tal purificação.

Não encontramos nos textos evangélicos nenhuma indicação de Jesus a respeito da necessidade de se purificar para encontrar-se com sua pessoa. Em outras palavras, Jesus nunca disse, por exemplo: “Prestem atenção! Eu sou o Filho de Deus e não pecador como vocês. Assim, eu sou o pão da vida. Se quiserem se aproximar de mim e participar do meu copo e do meu sangue, ofereçam sacrifícios a Deus, que purificando cada um de vocês, tornar-vos-ão dignos do meu corpo e do meu sangue”.  

Se Jesus tivesse dito isso, aí, sim, teríamos que passar pelo ritual de purificação para depois comungarmos seu corpo e seu sangue. Com isto não estamos afirmando que o sacramento da Reconciliação seja desnecessário. Não estamos tratando deste sacramento, mas estamos querendo demonstrar que Jesus não o estabeleceu como preparação e/ou etapa preparatória para a participação no seu corpo e sangue.

Jesus de Nazaré é o Deus encarnado entre os pecadores

            Escandalosamente, Jesus vivia rodeado pelos pecadores. Recebeu dos mestres da lei e dos fariseus, as autoridades religiosas de seu tempo, a acusação de ser um comilão e beberrão, amigo dos cobradores de impostos e pecadores. Jesus veio para as “ovelhas perdidas da casa de Israel”. Hoje, quem são estas ovelhas? Entre tantas outras, estão as pessoas excluídas do sacramento da Eucaristia. 

Na Igreja, os homossexuais assumidos, as prostitutas, os casais de segunda união e algumas outras categorias de pessoas, não são convidadas à mesa eucarística. E por que não são convidadas? Porque, como vimos acima, no juízo disciplinar da Igreja, se encontram “em estado de pecado grave”. O que Jesus nos ensina no evangelho? Ensina-nos que, apesar da disciplina eclesiástica, todas estas categorias de pessoas excluídas já fazem parte da mesa do Reino de Deus.

Estas pessoas, assim como as demais, são convidadas, sim, à comunhão com Jesus. A disciplina eclesiástica não lhes tira a possibilidade desta comunhão. E porque não tira? Porque o evangelho está acima da disciplina. O evangelho é a “norma fundamental”, enquanto a disciplina, essencialmente, é relativa e secundária. Toda disciplina eclesiástica que não conduz a Jesus deve ser deixada de lado, relativizada.

            Desse modo, concluindo nossa reflexão, com o devido respeito às prescrições canônicas e ao magistério pontifício do santo papa João Paulo II, ousamos afirmar, categoricamente, na liberdade de filhos e filhas de Deus: Os casais de segunda união, que pautam sua relação no amor, na fidelidade, no cuidado e na doação mútua, no seguimento de Jesus de Nazaré e nos valores do respeito, da solidariedade e da liberdade, não somente são convidados para tomarem parte na mesa do Senhor, como também estão legitimados para receber o corpo e o sangue de Jesus, fonte da vida eterna.  

Do contrário, como sustentar a verdade de que a Eucaristia é comunhão? Como convencer as pessoas de que a Igreja é chamada a oferecer o remédio da misericórdia e não o do sacrifício? Como esperar que o povo de Deus persevere na sua caminhada rumo à plenitude do Reino definitivo? Como ensinar o amor proibindo as pessoas de se aproximarem de Jesus? Quem é santo diante de Deus? Quem está preparado para comungar? O que realmente importa: o cumprimento da lei, ou a comunhão no amor?...

As possíveis respostas a estas perguntas derrubam, definitivamente, qualquer espécie de proibição que impede o acesso à Eucaristia. Por mais inaceitável que pareça ser, por mais escandaloso que seja, precisamos ter em mente, precisamos assimilar aquilo que o próprio Jesus ensinou, dizendo: “Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes. Não é a justos que vim chamar à conversão, mas a pecadores” (Lc 5, 31 – 32). Portanto, a mesa eucarística é lugar de gente pecadora, a ser integrada no corpo e no sangue de Jesus.

Não há pecado grave capaz de impedir a ação amorosa de Deus na vida do ser humano. Basta que este tenha sede e procure matar esta sede no encontro com Jesus. E para os clérigos da Igreja, que são a favor da exclusão dos pecadores públicos da participação na Eucaristia, vale a advertência de Jesus: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos céus” (Mt 5, 20). Por isso, tomem cuidado os clérigos, pois a pertença à vida clerical não é nenhuma garantia para a participação no Reino de Deus!  

A justiça praticada no interior da Igreja tem que superar a dos fariseus e escribas, sendo a destes alicerçada na hipocrisia, na mentira e na alienação. Assim, o pecado grave diante de Deus está em excluir as pessoas do baquete da vida. É preciso ter cuidado com a falsa prudência e com os excessos no zelo pastoral. Nossa esperança é a de que os bispos, juntamente com o papa Francisco, no sínodo extraordinário sobre a família, a ser realizado em Roma, no próximo mês, tratem da questão segundo o remédio da misericórdia, renunciando ao terrível apego à disciplina que, nesta questão, não faz nenhum sentido porque legitima a exclusão, não a comunhão.


Tiago de França 

sábado, 20 de setembro de 2014

A liberdade e a bondade de Deus

“Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos, diz o Senhor” (Is 55, 8).

            São extraordinárias a beleza e a profundidade expressas nos textos bíblicos a serem lidos e meditados nas celebrações da Igreja católica, neste fim de semana (cf. Isaías 55, 6 – 9; Filipenses 1, 20 – 24.27; Mateus 20, 1 – 16). Como seria bom se todos os cristãos de nossas Igrejas e os que não se encontram em nenhuma delas, pudessem compreender a liberdade e a bondade de Deus. Nossa interpretação aponta para a liberdade divina e sua bondade insondável e infinita.

            No evangelho, Jesus compara o Reino de Deus a um patrão que saiu de madrugada, às nove horas da manhã, ao meio dia, às três horas da tarde e às cinco horas da tarde para contratar trabalhadores para a sua vinha. Vejam que o patrão passou o dia inteiro contratando pessoas para a sua vinha. Isso demonstra sua preocupação com as pessoas. Ele as quer na vinha, trabalhando. 

No Reino de Deus as pessoas são chamadas à ação, não ao mero trabalho. Não se visa à produtividade, mas o agir constante e perseverante. No fim do dia, na hora do pagamento dos contratados, o patrão age causando murmurações naqueles que trabalharam desde as primeiras horas do dia. Ele deu a todos, indistintamente, o mesmo valor: uma diária a todos! Uma moeda de prata, conforme o combinado.

            E Jesus finaliza com as seguintes palavras: “Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”. O que dizer desta belíssima parábola? Este patrão é o Deus e Pai de Jesus. Diferentemente da imagem divina que aparece no Antigo Testamento das Escrituras, o Pai é bom. Em outra ocasião, Jesus não quis ser chamado de bom mestre, porque ensinava que somente Deus é bom.  

Este bom Pai recebe e acolhe, em primeiro lugar, os que neste mundo são colocados em último lugar. Em nossas Igrejas cristãs, qual o lugar que estes últimos ocupam? Há lugar para eles? Há lugar para os mendigos, os viciados, as prostitutas, enfim, para as “minorias abraâmicas” (expressão do santo bispo, Helder Câmara)?...

            Somente compreende o Pai de Jesus aquele que levar em conta o que disse o profeta Isaías nos versículos acima transcritos: Deus não pensa como os homens pensam, e os caminhos humanos não são os seus. O que isto significa? Significa que Deus é livre e libertador. Ninguém conhece os pensamentos de Deus, exceto Jesus e o Espírito porque formam com o Pai a divina comunidade, o Amor.  

Mesmo desconhecendo os insondáveis desígnios divinos, foi do querer deste mesmo Deus se revelar na pessoa de Jesus. Temos acesso ao Pai em Jesus de Nazaré. Assim, Deus deixou de ser o Altíssimo, o Senhor dos Exércitos, o Terrível, para se tornar o Pai que acolhe com bondade, ternura e misericórdia suas filhas e filhos pecadores. Seus critérios são outros e sua lógica contradiz a lógica humana.

            Neste sentido, não adianta querermos compreendê-lo a partir dos critérios da lógica deste mundo. Deus não é um Pai carrasco, que vigia seus filhos e filhas, querendo castigá-los. Os salmos ensinam que Ele não nos trata como exigem nossas faltas, mas “é muito bom para com todos, sua ternura abraça toda criatura” (Sl 144 [145]). Infelizmente, nas Igrejas cristãs e fora delas, a imagem divina é demasiadamente distorcida.  

Na maioria das vezes, prega-se e acredita-se num Deus com péssimos atributos humanos: rancoroso, invejoso, cruel, sanguinário, vingativo, enfim, a imagem de um Deus que trata o ser humano nos moldes humanos de tratamento. Logo se vê que se trata de idolatria, fundamentada na mentira e na ilusão. O Pai de Jesus não é nada disso. Precisamos nos libertar desta perversa idolatria, pois quando levada ao extremo, chega-se a matar em nome deste falso deus.

            Então, o que significa acreditar no verdadeiro Deus e Pai de Jesus? Significa assumir a postura de irmão/ã. Ser fraterno é abrir-se para o encontro com o outro. Neste encontro o amor de Deus acontece, o Pai se torna presente. Nas comunidades cristãs deve existir a fraternidade. Se esta não existir, então não temos comunidade, mas somente aparência de comunidade.  

É na comunidade que encontramos o amor fraterno. No isolamento não existe amor, mas egoísmo. Para conhecermos a liberdade e a bondade divinas precisamos viver a experiência do amor. Trata-se da via única para tal conhecimento.

            A renúncia à mania de grandeza é essencial para tomar parte no Reino de Deus. A violenta vontade de ser grande, importante, brilhante, esplendoroso; aquele desejo de querer abarcar o mundo; o desejo oculto e explícito de ter vantagem em tudo; a procura pelos elogios e aplausos; o viver segundo a lógica do sistema dominante; enfim, tudo isso deve ser renunciado em função da participação do Reino de Deus.  

Este Reino não acontece a partir destas coisas. Todas passam e tornam inútil a vida humana. Tudo não passa de vaidade das vaidades! Nas Igrejas, os líderes religiosos precisam renunciar aquilo que o papa Francisco chamou de “psicologia de príncipes”, que consiste no servir-se da Igreja para promover-se, para viver em função do poder, do prestígio e da riqueza.

            Deus é livre e quer a liberdade do ser humano, não manipula nem é manipulado por ninguém. Não somente quer ver o homem livre, mas trabalha, diuturnamente, para que isto acontece. Na força e na graça do Espírito, trabalha, incansavelmente, nos corações das mulheres e homens de boa vontade.

Acolhendo-o em nossos corações, temos a graça de nos libertarmos de nós mesmos, de nossos interesses mesquinhos, de nossa visão míope da realidade, de nossas ambições desmedidas, de nossa religiosidade mentirosa e hipócrita, de nossa fé ingênua e carente de confiança, de nosso comodismo diante das injustiças que assolam a sociedade, enfim, de nossa covardia diante das necessidades de nossos irmãos e irmãs que sofrem.

            Por isso, acolhamos o convite do profeta Isaías: Busquemos a Deus e o invoquemos; abandonemos nosso mau proceder e nossas vergonhosas maquinações contra o próximo; voltemos para o Senhor, pois, afinal de contas, como nos ensina Paulo: “Só uma coisa importa: vivei à altura do evangelho de Cristo”. Este viver à altura do evangelho de Cristo passa, necessariamente, pelo caminho de Jesus. Quem desconhece este caminho jamais conseguirá viver conforme o evangelho.

Que evangelho é este? É o evangelho da vida, da liberdade e do amor. Se nossas palavras e ações provocam a morte, a escravidão e a falta de amor, então estamos fora do caminho de Jesus. Não há meio termo. Não existe mais ou menos. Ou somos quentes, ou frios, porque o morno é vomitável! O mundo carece de mulheres e homens maduros e decididos, transparentes e corajosos, que se coloquem no caminho de Jesus, voltando-se para o Senhor. Isto significa fazer parte do número dos últimos, que serão os primeiros no Reino de Deus.  

Se nos deixamos dominar pelo medo e pela covardia, então sejamos, pelo menos, sinceros, evitando certa aparência de piedade e religiosidade, que não passa de mentira e ilusão. Que o Espírito nos fortaleça e nos mantenha de pé, livres e acordados, na contemplação e na ação, em vista de um mundo melhor para todos e de uma religião mais humana e fraterna.


Tiago de França

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Eleitores prejudiciais à democracia

Após três breves análises dos três principais candidatos à presidência da República, queremos oferecer ao leitor/eleitor algumas considerações a respeito de alguns eleitores que julgamos prejudiciais à democracia. Certamente, além dos que citaremos a seguir há muitos outros, mas estes nos parecem mais evidentes. Observando algumas manifestações nas ruas e nas redes sociais, achamos útil oferecer uma descrição sobre eles. Nosso objetivo é auxiliar na conscientização política das pessoas, visando o bem comum, tão precioso para a consolidação democrática do país.

  1. Eleitor egoísta/individualista
Este é um dos tipos que mais se destacam. Trata-se do eleitor que, apesar de viver em sociedade, somente pensa em si mesmo. Encontra-se na mesma situação dos políticos que não consideram o bem comum. Eis a pergunta que revela este eleitor: “O que vou ganhar votando neste candidato?” O candidato escolhido é aquele que vai trazer algum benefício para sua pessoa e/ou grupo.

Imaginemos que este eleitor seja um advogado. Neste caso, ele irá procurar um candidato que venha trazer algum benefício para sua carreira e/ou categoria. As demais áreas e necessidades da população não lhe interessam. Não está preocupado se o candidato vai ou não trabalhar pelo bem de todos, mas está centrado na busca e realização de seus interesses.

  1. Eleitor desinformado/alienado
É o eleitor que não procura se informar a respeito da conjuntura política. Geralmente, isto ocorre por preguiça mental ou falta de interesse. Torna-se presa fácil da mídia oficial. Sua opinião é formada pela mídia, principalmente pela televisão. É o eleitor que vota segundo a avaliação do Jornal Nacional da Rede Globo! Totalmente passivo, as informações midiáticas são por ele assimiladas sem espírito crítico.

Desse modo, pensa que está informado, mas, na verdade, está alienado, pois submeteu sua inteligência à distorção dos fatos. Não tem discernimento de nada e muda facilmente de ideia, de acordo com as conveniências do momento. Geralmente, este eleitor vota segundo o resultado das pesquisas dos institutos Ibope e Datafolha. Desconhece as reais intenções dos candidatos, deixando-se levar pela aparência. É um dos eleitores prediletos de candidatos corruptos.

3.    Eleitor omisso/indiferente

Há eleitores que somente possuem o título eleitoral e procuram justificar seu voto, ou votam nulo, ou em branco. Afirmam que não se interessam por política e os motivos são inúmeros. Costumam ser céticos porque se encontram desacreditados. A crise de valores na política os transformou em pessoas indiferentes. Alguns não opinam, outros, porém, reclamam demais.

O eleitor omisso se recusa a participar, perdendo, assim, a moral para reclamar. Pensa que a política se encerra com as eleições. E o pior é que também pensa que política somente corresponde às eleições! Quando nervosos, gritam para todos ouvirem: “Não quero saber de política! Odeio política! Isto não resolve nada! Não acredito mais em ninguém! Todos são uns bandidos! Quero que o Brasil se exploda!” Logo se vê que a situação do país não lhe interessa. Deixou-se levar pelo pessimismo e se convenceu de que a não participação não faz mal algum.

  1. Eleitor violento/agressivo
Geralmente, é o eleitor partidarista, que defende, ferrenhamente, a ideologia do seu partido. Imaginemos dois eleitores violentos: um do PT e outro do PSDB. Discute-se, sem respeito nem moderação, violentamente. É o tipo de eleitor que não enxerga os limites/defeitos de seu partido, enxergando o mal somente nos demais. Na situação atual, infelizmente, as ideologias partidárias andam enfraquecidas, pois a forma de governar de muitos políticos, tanto da direita quanto da esquerda, é praticamente igual.

Em outras palavras, hoje as pessoas votam olhando o perfil do candidato, sem se importarem muito com o seu partido político. Apesar disso, ainda temos eleitores violentos que, de forma agressiva, defendem a ideologia de partidos e políticos ligados a estes. O problema está na violência que cega e aliena, que desqualifica e inferioriza o outro, impedindo o diálogo e a troca de ideias e experiências.

  1. Eleitor amnésico
É o eleitor que sofre com problema de memória. Não estamos nos referindo ao eleitor que sofre da doença denominada amnésia, mas ao eleitor que não possui memória histórica. Em outras palavras, é aquele que não está atento ao processo histórico de seu país, que não presta atenção ao sentido e à repercussão dos fatos. Isto faz com que muitos políticos como José Sarney, Fernando Collor de Melo, Renan Calheiros e tantos outros sejam reeleitos, apesar dos graves escândalos de seus mandatos políticos.

A falta de memória histórica é um grave entrave à democracia porque um povo sem memória é um povo sem futuro. Somente quem tem consciência da história política do país escapa de colaborar para que erros e crimes absurdos se repitam. O eleitor que sofre de memória é um dos mais prejudiciais à democracia e dos mais queridos por políticos da linha dos políticos mencionados no parágrafo anterior. Na maioria dos casos, o eleitor amnésico sequer se recorda dos candidatos nos quais votou na última eleição.

  1. Eleitor corrupto
Descarado e hipócrita, oportunista e desonesto, o eleitor corrupto é aquele que vende sua consciência e seu voto. Este é trocado por dinheiro e favores. Portanto, é mercadoria barata. Assim como o político corrupto, este tipo de eleitor merece ser punido com o rigor da lei, pois não colabora com a frágil democracia do país. A maioria deles sabe da gravidade de suas condutas, mas persevera no intuito de beneficiar-se injustamente. Nas eleições municipais, para prefeito e vereador, a situação é bem pior. A compra e venda de votos por parte de políticos e eleitores desonestos são criminosas e vergonhosas.

As denúncias não dão conta de acabar com este terrível mal da vida política brasileira. Nas regiões mais pobres do país esta realidade se repete assustadoramente. Na maioria dos casos, a justiça não consegue punir os envolvidos, cabendo, assim, ao eleitor tomar consciência da importância do voto, assim como denunciar com coragem e firmeza aqueles que procuram comprar seu voto. Infelizmente, o eleitor corrupto, quer pobre, quer rico, dominado pelo espírito da corrupção, não consegue se libertar desta vergonhosa situação que o envolve e absorve.

E você, prezado/a leitor/a que está finalizando a leitura deste artigo, enquadra-se em algum desses tipos de eleitores acima mencionados? Esperamos que não! O Brasil precisa de eleitores cidadãos, que participem ativamente, com espírito crítico do processo democrático. O voto continua sendo uma arma poderosa nas mãos do cidadão eleitor consciente. É necessário fazer bom uso dela, a fim de que as mudanças necessárias sejam possíveis de serem realizadas. Participar é um direito assegurado constitucionalmente. Por isso, vamos fazer valer nosso direito.

A participação através do voto livre e consciente é imprescindível para um país melhor. Nossa ida às urnas é uma das formas mais eficientes de protesto. Basta de omissão, indiferença e corrupção! Sejamos, pois, críticos e responsáveis! Vamos assumir com ousadia e liberdade a nossa responsabilidade política por um país mais justo e fraterno. No dia 5 de outubro não percamos a oportunidade para contribuirmos com a renovação política tão desejada para o país. Não permitamos que nos tirem nossa esperança por um Brasil melhor!

Tiago de França 

sábado, 13 de setembro de 2014

Festa da exaltação da santa cruz

“Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).

            Muito antes de Jesus, a cruz foi considerada sinal de maldição (cf. Dt 21, 22 – 23). Portanto, pendurado na cruz, Jesus se torna um escândalo. Seus discípulos certamente ficaram desconcertados, pois não compreendiam praticamente nada. O mestre passou pelo mundo fazendo o bem e, de repente, é crucificado. Este era seu destino? Estava tudo esquematizado? Havia um plano premeditado para a sua morte? A autêntica teologia da cruz de Cristo não nos permite enxergarmos sua morte pelo viés do mero destino ou predestinação.

            No cristianismo, quer de vertente católica, quer protestante, há uma corrente espiritualista que prega a cruz desvirtuada do evangelho. Para eles, Jesus morreu simplesmente para expiar os pecados da humanidade. Há um culto do sangue e das chagas abertas de Jesus. “Oh, sangue e água, que jorrastes do coração de Jesus como fonte de misericórdia para nós, eu confio em vós!”: esta é a prece dos espiritualistas. Cultua-se um Cristo ensanguentado. Reza-se diante do crucifixo. Rios de lágrimas jorram dos olhos da multidão pecadora. Trata-se de um culto piedosamente forte, que toca o mais íntimo dos sentimentos.

            Há, porém, um problema neste culto: as pessoas não se perguntam pelos motivos que levaram Jesus a morrer crucificado. Simplesmente, olham para as profecias antigas e repetem a lição que lhes foi ensinada: Jesus morreu por causa de nossos pecados, para nos purificar e salvar. Desse modo, parece que Jesus caminhava serenamente, como um anjo, para a morte, sem motivos historicamente apreciáveis. Estava tudo escrito a respeito dele e, assim, tudo deveria se cumprir com perfeição. Neste sentido, os evangelistas souberam escrever sobre o relato e foram fieis às profecias messiânicas. Os escritos estão em plena sintonia com estas profecias. Não há nada a ser reprovado em relação a isto.

            A festa da exaltação da santa cruz exige de cada cristão um novo olhar, um olhar atualizado sobre a morte de Jesus. A interpretação moderna nos ensina que na cruz estava Jesus de Nazaré, missionário fiel à palavra do Pai. Esta fidelidade aponta para toda uma vida dedicada ao serviço do próximo, à libertação das pessoas com as quais conviveu. Este serviço está inserido em um projeto universal de salvação. Desde sua adolescência, no seio de sua pobre família, Jesus foi descobrindo a sua missão, tomando consciência de fazer a vontade de Deus a quem chamava carinhosamente de Pai.

            Viveu tão unido ao Pai que no fiel cumprimento da missão se sentiu escolhido e enviado para fazer com que toda a humanidade pudesse reencontrar o caminho que conduz à vida em plenitude. Ele mesmo se tornou este caminho. Tornou-se o único mediador entre Deus e os homens. Portanto, a cruz é o desdobramento de sua missão, é a consequência lógica e inevitável de sua fidelidade à missão recebida. Pendurado na cruz, declara: “Tudo está consumado”, ou seja, estava cumprida, com todo o amor que um ser humano pode demonstrar, com sinceridade e verdade, a missão recebida. O Reino estava inaugurado.

            Diante da cruz de Jesus, o cristão precisa se perguntar: Como anda minha fidelidade no seguimento de Jesus? Estou trilhando um caminho estreito e pedregoso, ou me encontro numa estrada larga, prazerosa e cômoda? Como estou carregando a cruz do meu cotidiano: murmurando como os filhos de Israel a caminho da terra prometida, ou dando graças ao Pai por estar participando da mesma sorte de Jesus? O que tenho feito para ajudar o meu próximo a carregar a sua cruz? São indagações para nossa meditação pessoal, para a escuta sincera e humilde de nossa consciência.

            Por fim, precisamos dizer com todas as letras o que o evangelho nos inspira a crer: Se quisermos, de fato, viver e participar já neste mundo da vida eterna, precisamos tomar parte na cruz de Cristo. Isto não significa cultuar o sofrimento e transformá-lo no pão nosso de cada dia, apegando-nos a ele. Isso é masoquismo, e não seguimento de Jesus. A cruz está no caminho de Jesus. Neste caminho é preciso permanecer, perseverando até as últimas consequências. O Pai nos enviou o Filho unigênito porque nos ama, infinita e incondicionalmente. Isto significa que somos chamados a fazermos a mesma coisa: permanecendo no caminho do Filho, na direção do Pai, vivendo o amor ao próximo, até chegar o dia definitivo, o dia do encontro alegre e feliz da festa do Reino sem fim.


Tiago de França