“Quem
se alimenta com a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele.
Como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo por meio do Pai, assim aquele que de
mim se alimenta viverá por meio de mim” (Jo 6, 56 – 57).
Está acontecendo uma discussão a respeito da não
participação dos casais de segunda união no sacramento da Eucaristia. Partindo
da doutrina bíblica da indissolubilidade do matrimônio, a disciplina da Igreja
não permite que estes casais participem da mesa eucarística.
Em
outras palavras, quem se casar no religioso vindo, posteriormente, a separar-se
e unindo-se, novamente, à outra pessoa, está proibido de receber o sacramento
da Eucaristia. Para quem nunca leu a Bíblia e/ou desconhece a doutrina oficial
e a disciplina da Igreja, esta proibição parece estranha. Para aquele que
conhece um pouco a mensagem de Jesus no evangelho, tal proibição é um
escândalo. Nesta reflexão queremos, com muita brevidade, tratar da questão.
Jesus
é o pão da vida, mas para alguns ou para todos?...
No evangelho
segundo João encontramos Jesus afirmando, categoricamente, que ele é o pão da
vida descido do céu (cf. Jo 6, 51). Em seguida, afirma também que toda pessoa
que comer de sua carne e beber de seu sangue viverá eternamente. Assim, tem
assegurada a vida eterna o crente que receber a Eucaristia, corpo e sangue de
Jesus. Em nenhum momento, Jesus elenca proibições para a recepção do seu corpo
e sangue.
Não
há um versículo bíblico sequer que mencione alguma proibição. Portanto, não tem
base bíblica nenhuma qualquer espécie de restrição ao corpo e ao sangue de
Jesus. É preciso que isto fique bem claro porque aqui se encontra o núcleo da
discussão que está sendo travada entre conservadores e progressistas no interior
da Igreja católica.
A
ala conservadora apega-se à proibição, afirmando aquilo que o papa João Paulo
II ensinou na sua Carta Encíclica Ecclesia
de Eucharistia, n. 37: “Se, para além
disso, o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário
da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho
obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico.
Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado
de graça compete apenas ao interessado; mas, em caso de comportamento externo
de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua
solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento,
não pode deixar de sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta
infração moral se refere a norma do Código de Direito Canônico relativa à
não-admissão à comunhão eucarística de
quantos ‘obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto’”.
Vamos analisar alguns pontos destas palavras do santo
papa polonês em sua encíclica. Primeiro, quem tem na consciência o peso dum pecado grave não pode
comungar, sem antes passar, obrigatoriamente, pelo sacramento da Confissão. Vejam
que a regra é clara. Nas bases da Igreja a grande maioria dos padres e bispos é
fiel a esta orientação.
Alguns,
antes da comunhão, fazem questão de lembrar aos fieis, modificando o disposto
no ritual, dizendo: “Felizes os
convidados e preparados para a Ceia
do Senhor, eis o cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo!”
Mesmo rezando a resposta, a assembleia entendeu muito bem o significado da
expressão “convidados e preparados”.
Além do convite, acrescenta-se a recordação da preparação. A que esta se
refere? Refere-se ao sacramento da Reconciliação, ou seja, a confissão dos
pecados a um presbítero ou a um bispo, únicos que administram tal sacramento na
Igreja.
Alguns
bispos e padres mais ousados, ainda recordam, enquanto todos se preparam para
comungar, dizendo: “Em nossa comunidade
muita gente está comungando sem se confessar. Cuidado com isso! Não venham
receber, indignamente, o corpo e o sangue do Senhor. É pecado grave!” O
resultado destas advertências em plena celebração eucarística é o esperado:
poucas pessoas se sentem “preparadas” para comungar. A maioria faz o que se
passou a chamar de “comunhão de desejo”. Este tipo de “comunhão” é um consolo
para os pecadores que não estão “aptos” à comunhão!
Segundo, o santo papa polonês fala de “estado de graça”. Do ponto de vista
bíblico, principalmente evangélico, esta expressão não tem sentido algum; mas
do ponto de vista da disciplina da Igreja, ela tem grande valor, pois a
disciplina ensina que há aqueles que estão preparados para receberem a
Eucaristia, e há os que não estão. Estes últimos, na linha de pensamento da
encíclica acima mencionada, estão em “estado de pecado grave”.
Os
que se encontram neste estado deplorável pela disciplina devem procurar o
sacramento da Reconciliação. Portanto, não podem, de modo algum, comungar. Caso
o comportamento externo do cristão infrator seja notório, o santo papa polonês
faz questão de recordar a prescrição canônica para o caso: em nome da
solicitude pastoral pela ordem comunitária e pelo respeito do sacramento,
deve-se proibir, rigorosamente, o acesso à Eucaristia. Vejam que este
valiosíssimo sacramento está revestido, pela Igreja, de uma disciplina dura e
sem misericórdia.
Terceiro, a encíclica insiste, mesmo após o Vaticano II,
em mencionar a expressão “sacrifício
eucarístico”. Neste sentido, a rigorosa disciplina acima explicitada, está
coerente com a ideia de sacrifício, mas profundamente incoerente com o
evangelho de Jesus. A Eucaristia é o banquete da vida, lugar do encontro com o Deus
encarnado na história, alimento do peregrino rumo à plenitude do Reino, fortaleza
dos pecadores e fracos, fonte da vida eterna.
Para
tanto, ninguém precisa passar por um ritual de purificação para receber este
alimento gerador de vida e de liberdade. Para os que defendem a teologia
sacrifical do corpo e do sangue do Senhor, que já deveria ter sido extinta do
vocabulário teológico da Igreja, aí, sim, cabe tal purificação.
Não
encontramos nos textos evangélicos nenhuma indicação de Jesus a respeito da
necessidade de se purificar para encontrar-se com sua pessoa. Em outras palavras,
Jesus nunca disse, por exemplo: “Prestem
atenção! Eu sou o Filho de Deus e não pecador como vocês. Assim, eu sou o pão
da vida. Se quiserem se aproximar de mim e participar do meu copo e do meu
sangue, ofereçam sacrifícios a Deus, que purificando cada um de vocês,
tornar-vos-ão dignos do meu corpo e do meu sangue”.
Se
Jesus tivesse dito isso, aí, sim, teríamos que passar pelo ritual de
purificação para depois comungarmos seu corpo e seu sangue. Com isto não
estamos afirmando que o sacramento da Reconciliação seja desnecessário. Não
estamos tratando deste sacramento, mas estamos querendo demonstrar que Jesus
não o estabeleceu como preparação e/ou etapa preparatória para a participação
no seu corpo e sangue.
Jesus
de Nazaré é o Deus encarnado entre os pecadores
Escandalosamente,
Jesus vivia rodeado pelos pecadores. Recebeu dos mestres da lei e dos fariseus,
as autoridades religiosas de seu tempo, a acusação de ser um comilão e
beberrão, amigo dos cobradores de impostos e pecadores. Jesus veio para as “ovelhas
perdidas da casa de Israel”. Hoje, quem são estas ovelhas? Entre tantas outras,
estão as pessoas excluídas do sacramento da Eucaristia.
Na
Igreja, os homossexuais assumidos, as prostitutas, os casais de segunda união e
algumas outras categorias de pessoas, não são convidadas à mesa eucarística. E
por que não são convidadas? Porque, como vimos acima, no juízo disciplinar da
Igreja, se encontram “em estado de pecado grave”. O que Jesus nos ensina no
evangelho? Ensina-nos que, apesar da disciplina eclesiástica, todas estas
categorias de pessoas excluídas já fazem parte da mesa do Reino de Deus.
Estas
pessoas, assim como as demais, são convidadas, sim, à comunhão com Jesus. A
disciplina eclesiástica não lhes tira a possibilidade desta comunhão. E porque
não tira? Porque o evangelho está acima da disciplina. O evangelho é a “norma
fundamental”, enquanto a disciplina, essencialmente, é relativa e secundária. Toda
disciplina eclesiástica que não conduz a Jesus deve ser deixada de lado,
relativizada.
Desse modo, concluindo nossa reflexão, com o devido
respeito às prescrições canônicas e ao magistério pontifício do santo papa João
Paulo II, ousamos afirmar, categoricamente, na liberdade de filhos e filhas de
Deus: Os casais de segunda união, que pautam sua relação no amor, na
fidelidade, no cuidado e na doação mútua, no seguimento de Jesus de Nazaré e
nos valores do respeito, da solidariedade e da liberdade, não somente são convidados para
tomarem parte na mesa do Senhor, como também estão legitimados para receber o
corpo e o sangue de Jesus, fonte da vida eterna.
Do
contrário, como sustentar a verdade de que a Eucaristia é comunhão? Como
convencer as pessoas de que a Igreja é chamada a oferecer o remédio da
misericórdia e não o do sacrifício? Como esperar que o povo de Deus persevere
na sua caminhada rumo à plenitude do Reino definitivo? Como ensinar o amor
proibindo as pessoas de se aproximarem de Jesus? Quem é santo diante de Deus?
Quem está preparado para comungar? O que realmente importa: o cumprimento da
lei, ou a comunhão no amor?...
As
possíveis respostas a estas perguntas derrubam, definitivamente, qualquer
espécie de proibição que impede o acesso à Eucaristia. Por mais inaceitável que
pareça ser, por mais escandaloso que seja, precisamos ter em mente, precisamos
assimilar aquilo que o próprio Jesus ensinou, dizendo: “Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes.
Não é a justos que vim chamar à conversão, mas a pecadores” (Lc 5, 31 –
32). Portanto, a mesa eucarística é lugar de gente pecadora, a ser integrada no
corpo e no sangue de Jesus.
Não
há pecado grave capaz de impedir a ação amorosa de Deus na vida do ser humano.
Basta que este tenha sede e procure matar esta sede no encontro com Jesus. E
para os clérigos da Igreja, que são a favor da exclusão dos pecadores públicos da
participação na Eucaristia, vale a advertência de Jesus: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não
entrareis no Reino dos céus” (Mt 5, 20). Por isso, tomem cuidado os
clérigos, pois a pertença à vida clerical não é nenhuma garantia para a
participação no Reino de Deus!
A
justiça praticada no interior da Igreja tem que superar a dos fariseus e
escribas, sendo a destes alicerçada na hipocrisia, na mentira e na alienação. Assim,
o pecado grave diante de Deus está em excluir as pessoas do baquete da vida. É
preciso ter cuidado com a falsa prudência e com os excessos no zelo pastoral.
Nossa esperança é a de que os bispos, juntamente com o papa Francisco, no
sínodo extraordinário sobre a família, a ser realizado em Roma, no próximo mês,
tratem da questão segundo o remédio da misericórdia, renunciando ao terrível
apego à disciplina que, nesta questão, não faz nenhum sentido porque legitima a
exclusão, não a comunhão.
Tiago de França
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